Categoria: Sociedade

  • Lobby das farmacêuticas na Ordem dos Médicos perde e presidente do Colégio de Pediatria acaba ilibado

    Lobby das farmacêuticas na Ordem dos Médicos perde e presidente do Colégio de Pediatria acaba ilibado

    Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, foi um dos muitos clínicos que criticou a estratégia da Direcção-Geral da Saúde em recomendar a vacinação universal de crianças contra a covid-19. Por causa da sua opinião, a Ordem dos Médicos instaurou-lhe um processo disciplinar por pressão do bastonário, Miguel Guimarães, através dos membros do seu Gabinete de Crise para a Covid-19, encabeçado por Filipe Froes e outros médicos com ligações comerciais com as farmacêuticas. A campanha de denegrir a imagem pública de Jorge Amil Dias surtiu efeito, mas o procedimento disciplinar caiu esta semana por terra. O presidente do Colégio de Pediatria espera que esta decisão faça “jurisprudência” para que, no futuro, não volte a haver tentativas de silenciamento de médicos pela via da “secretaria”.


    É mais uma derrota para o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. E é mais uma evidência dos meandros nebulosos que circundaram o “mundo dos médicos” desde 2020, com clínicos a comportarem-se como porta-estandartes da indústria farmacêutica sobretudo desde o surgimento da pandemia da covid-19.

    Esta semana caiu por terra a queixa apresentada na Ordem dos Médicos contra o presidente do Colégio de Pediatria, Jorge Amil Dias, por um grupo de médicos afectos ao bastonário e à indústria farmacêutica, entre os quais se destacam Filipe Froes, Carlos Robalo Cordeiro e Luís Varandas.

    Jorge Amil Dias, pediatra e presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos.

    A queixa destes médicos e de mais outros 13 levou à abertura de um processo disciplinar contra o reputado pediatra, que está agora a caminho do arquivamento. O relator do processo, João Branco, membro efectivo do Conselho Disciplinar Regional do Sul, conclui , de forma clara e evidente, “não ter havido violação das leges artis ou do Código Deontológico por parte do médico participado”.

    O “crime” que estava em causa por este renomado especialista em gastroenterologia pediátrica é simples de explicar: tomou posição pública, a título pessoal, ao considerar a vacinação de crianças “desproporcionada” e “desnecessária”, além de advogar a relevância da imunidade natural. Além disso, foi um dos subscritores de um abaixo-assinado que integrou quase uma centena de médicos e outros profissionais de saúde, alertando também para os riscos da vacinação num grupo etário de baixíssimo risco.

    O processo disciplinar contra o presidente do Colégio de Especialidade de Pediatria – que não é escolhido, assim como nos outros colégios, nas mesmas eleições do bastonário, e beneficia de independência – resultou de uma carta-denúncia no início de Fevereiro, assinada por médicos afectos ao bastonário e à indústria farmacêuticas.

    Miguel Guimarães (à direita), urologista e bastonário da Ordem dos Médicos, ao lado de Carlos Robalo Cordeiro, um dos subscritores da queixa contra Jorge Amil Dias.

    Neste grupo estão incluídos todos os membros do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 que solicitaram “a avaliação da conduta, por eventual infração disciplinar” de Amil Dias.

    Miguel Guimarães, que se manifestou incomodado por pediatras contrariarem as suas posições de médico urologista a falar de assuntos de pediatria, anunciou mesmo que levaria o assunto a reunião do Conselho Nacional Executivo para depor a destituição de Amil Dias como presidente do Colégio de Pediatria, algo que nunca sucedeu.

    Mais do que qualquer castigo relevante que pudesse atingir Jorge Amil Dias, este processo da Ordem dos Médicos revelava então o “clima de guerra” que alimenta as relações entre estes profissionais de saúde no mandato de Miguel Guimarães, que escancarou portas a procedimentos inquisitoriais por meros delitos de opinião, sobretudo com o advento da pandemia.

    Miguel Guimarães tem sido, além disso, criticado internamente por não acatar os pareceres técnicos dos Colégios de Especialidade – e até de os esconder publicamente –, optando antes por criar órgãos de consulta não-estatutários.

    O pediatra Jorge Amil Dias afirmou ao PÁGINA UM que considera que “o parecer do Relator é muito claro e desmonta ponto por ponto as acusações” que lhe eram feitas, não vendo qualquer violação do ponto de vista deontológico nem de ter violado “os bons princípios e as boas práticas”. Para Amil Dias, seria bom se esta decisão “fizesse alguma jurisprudência quanto às tentativas de calar [médicos] na ‘secretaria’, para os silenciar”.

    Extracto do relatório da proposta de arquivamento do processo contra Amil Dias.

    De acordo com a proposta de arquivamento a que o PÁGINA UM teve acesso, o relator do processo disciplinar dá plena razão a Jorge Amil Dias em diversos pontos.

    João Branco começa por lembrar que “à data dos factos em apreciação no presente processo disciplinar, existia, na comunidade médica em geral, e nos médicos pediatras em particular, uma
    divisão sobre o tema da vacinação contra a SARS-Cov-2 em crianças e
    adolescentes, nomeadamente no que respeita à necessidade desta, ao grau de
    proteção conferido e respetivos efeitos adversos”.

    E adiante, em seguida, que “são compreensíveis e aceitáveis” as preocupações transmitidas por Jorge Amil Dias em relação aos possíveis efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 nas crianças, “uma vez que, em 29 de Outubro de 2021, foi emitida uma autorização para o uso de emergência da vacina da Pfizer-BioNtech para a prevenção da covid-19 em crianças entre os 5 e os 11 anos de idade”.

    “Ora, tal significa”, continua o relator, “que o processo de licenciamento da vacina para administração em crianças foi acelerado em relação ao normal processo de licenciamento, pelo que as reações adversas de médio e longo prazo, poderiam ainda não ser, à data, integralmente conhecidas, com os inerentes riscos”, frisou no seu parecer.

    Sobre a queixa de Filipe Froes e demais médicos relativa a declarações prestadas por Amil Dias sobre o Hospital D. Estefânia, o relator considerou que até “poderão ser pertinentes” as questões levantadas pelo pediatra.

    Na opinião de João Branco, “não se deve considerar que o médico participado [Jorge Amil Dias] estava a colocar em causa as competências profissionais dos colegas do Hospital de D. Estefânia, mas somente que aquele terá procurado esclarecer a veracidade dos números de doentes internados com covid-19 revelados numa entrevista e divulgados pela comunicação social, os quais, posteriormente, se terá comprovado não corresponderem aos dados reais”.

    Miguel Guimarães, Bastonário da Ordem dos Médicos.

    E salienta ainda que os comentários do presidente do Colégio de Pediatria “realizados pelo médico participado “no que respeita à metodologia dos estudos do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) são pertinentes, bem como são justificadas as questões clínicas levantadas”.

    Relativamente às Cartas Abertas subscritas por Amil Dias, com data de 25 de Janeiro e de 3 de Fevereiro de 2022, o Relator defende que “os médicos, enquanto médicos e cidadãos, têm o direito de escrever cartas abertas, divulgando a sua posição, ainda que esta seja contrária à orientação da Ordem dos Médicos, do Senhor Bastonário, do Gabinete de Crise para o [sic] covid-19 e da Direção-Geral da Saúde”.

    João Branco salienta também que “a divergência de opiniões sobre a vacinação infantil não se verificou só em Portugal, sendo de realçar que no Reino Unido, após ter sido assumida uma recomendação de vacinação das crianças dos 5 aos 11 anos de idade, um grupo de 18 médicos também se dirigiu publicamente às autoridades de saúde manifestando preocupação, não tendo tal sido considerado ofensivo ou atentatório da verdade científica”.

    girl covering her face with both hands

    Neste enquadramento, e salvaguardando que é pessoalmente “favorável à vacinação”, João Branco deefnde que “as questões metodológicas e clínicas levantadas pelo médico participado foram pertinentes, entendendo que as mesmas não devem ser consideradas ofensivas para os Colegas, para a Ordem dos Médicos, para o seu Bastonário, ou para o Gabinete de Crise para a Covid-19, apenas traduzindo divergência de opiniões, sendo, no contexto em que foram proferidas, aceitáveis”.

    Apesar de se mostrar satisfeito com a recomendação de arquivamento do processo disciplinar instaurado contra si, Amil Dias condena o facto de os media ajudarem a enxovalhar em público quem é sujeito a este tipo de acusações. E que, depois, nota o pediatra, quando sai uma decisão favorável que deita por terra as acusações, a imprensa em geral, com algumas excepções,”publica uma pequena notícia na página 54″. “Isto é feio”, conclui.

  • Juíza quer ver com os próprios olhos se o Instituto Superior Técnico tem um “esboço embrionário” ou uma desculpa esfarrapada

    Juíza quer ver com os próprios olhos se o Instituto Superior Técnico tem um “esboço embrionário” ou uma desculpa esfarrapada

    Assumindo a sua “autoridade científica”, o Instituto Superior Técnico começou, primeiro de forma sobranceira, a recusar ao PÁGINA UM o acesso a um relatório alarmista sobre a covid-19 disponibilizado à Lusa. Intimado através do Tribunal Administrativo de Lisboa, a instituição tem alegado que só fez um “esboço embrionário”. A juíza quer saber se é verdade. E obrigou esta entidade universitária presidida pelo catedrático Rogério Colaço a entregar-lhe o documento, em envelope lacrado, para o analisar.


    A juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa, Telma Nogueira, exige ver o alegado estudo do Instituto Superior Técnico divulgado pela imprensa em finais de Julho que estimava a ocorrência de centenas de mortes por causa das festas populares e festivais de música em Junho passado, numa altura em que, na verdade, se observou uma tendência de redução significativa de casos positivos.

    Em causa estão as estimativas e análises sobre a pandemia elaboradas pelo Instituto Superior Técnico desde Junho de 2021, em parceria com a Ordem dos Médicos, que inclui aquele que se debruçou sobre os efeitos das festividades de Junho, mas que agora a instituição universitária diz não ser, afinal, um relatório, apesar de a agência Lusa ter garantido ao PÁGINA UM que assim é. As estimativas apontavam para a ocorrência da “morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados [sic] às festas populares de junho”.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede da Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico diz que não houve um acordo escrito desta parceria. O Tribunal Administrativo decidirá se obriga ou não uma instituição pública a ceder dados científicos para validação pública.

    Durante o processo judicial no Tribunal Administrativo, o Instituto Superior começou por defender que não tem o dever de disponibilizar os documentos ao PÁGINA UM – incluindo os dados em bruto e a metodologia – por se estar perante um “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

    Já na semana passada, o Instituto Superior Técnico veio argumentar, também em sede do processo de intimação instaurado pelo PÁGINA UM, dizendo que “o requerido [IST] nunca negou ter elaborado um ensaio, apenas afirmou que não se tratava do produto final do estudo, mas uma mera abordagem embrionária, por isso que era um esboço”. E dizia ainda que a pretensão do PÁGINA UM “já se encontra satisfeita”, alegando que “o conteúdo do esboço foi dado a conhecer ao requerente [director do PÁGINA UM] assim que foi solicitado”.

    A instituição universitária presidida pelo catedrático Rogério Colaço argumentava, por fim, que “não se vislumbra também qual a utilidade que um documento incompleto, ou seja, por concluir, possa ter para o requerente [PÁGINA UM], pois tratando-se de um ensaio de projeção/ estimativa, pode não conter informações exatas e precisas, para que o requerente como jornalista possa depois difundir, podendo até sugestionar interpretações contrárias à verdadeira pretensão.”

    Lusa noticiou as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festividades em Junho na transmissão e mortes por covid-19. Instituição universitária, que faz Ciência, quer convencer o Tribunal que aquilo que fez não foi um estudo, mas apenas “um esboço embrionário”. Ou uma “mera abordagem embrionária”, como agora esclarece.

    Mas agora a juíza Telma Nogueira quer mesmo saber se o Instituto Superior Técnico está a contar a verdade. No seu despacho, e “com vista a apurar se o documento em causa nos autos constitui um ‘esboço’ conforme alegado”, a juíza ordena que o Instituto Superior Técnico entregue, num prazo de 10 dias, “o referido documento que designa de ‘esboço’, em envelope lacrado” e dentro de outro envelope. A juíza dá a alternativa desse documento chegar ao Tribunal em mão ou via correio postal.

    Se o Instituto Superior Técnico conseguir convencer a juíza de que o documento em causa é um esboço – por exemplo, um guardanapo de papel com meros tópicos rascunhados é considerado um “esboço” –, a lei não o obriga a cedê-lo para consulta, mas ficará assim patente que a imprensa mainstream divulgou informação imprecisa, incompleta e errada, com a agravante de lhe chamar relatório. Se o documento estiver minimamente estruturado, então a equipa liderada pelo matemático Henrique Oliveira, e supervisionada pelo próprio presidente da instituição, poderá ser escrutinada sob o ponto de vista científico.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico.

    Relembre-se que o PÁGINA UM viu-se na necessidade de recorrer às instâncias judiciais perante a recusa expressa do Instituto Superior Técnico – incluindo do seu presidente, Rogério Colaço – em ceder tanto esse como os restantes relatórios elaborados desde Junho do ano passado em parceria com a Ordem dos Médicos.

    O PÁGINA UM também viu recusado o pedido de acesso aos dados brutos e à metodologia estatística usada. O PÁGINA UM não fez mais do que pedir elementos essenciais comummente usados em instituições académicas para validação científica – aliás, esta é uma prática pacífica e aceite com respeito mútuo pelo requerido e pelo requerente em meios universitários.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM, contando com o FUNDO JURÍDICO, está envolvido em 13 processos de intimação junto do Tribunal Administrativo, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 12.025 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Saliente-se que o PÁGINA UM tem de garantir uma “provisão” para as situações em que possa ter sentenças desfavoráveis, o que acarretará o pagamentos de custas que podem ser elevadas por cada processo perdido. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Instituto Superior Técnico já diz agora que o seu “esboço” que associou mortes às festividades de Junho “pode não conter informações exactas e precisas”

    Instituto Superior Técnico já diz agora que o seu “esboço” que associou mortes às festividades de Junho “pode não conter informações exactas e precisas”

    Desde Junho de 2021, o Instituto Superior Técnico, investido da sua autoridade científica, elaborou relatórios sobre pandemia em parceria com a Ordem dos Médicos. No último estudo conhecido, divulgado há pouco mais de dois meses pela imprensa, atribuía directamente às festas populares e aos concertos em Junho várias centenas de mortes por covid-19, numa altura em que os casos positivos até apresentavam, afinal, forte tendência decrescente. Perante a recusa em ceder a informação, o PÁGINA UM apresentou um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa. Independentemente do seu resultado prático – acesso à informação –, este processo acaba por ser revelador de uma certa forma de “fazer” Ciência em Portugal, e da postura dos denominados “peritos”.


    Em processo que corre no Tribunal Administrativo de Lisboa (TAL) – intentado pelo PÁGINA UM para aceder a um alegado estudo (incluindo dados numéricos e metodologia) que associava as festas populares de Junho passado a um incremento directo de mortes por covid-19 –, o Instituto Superior Técnico (IST) veio agora reinterpretar o significado de “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”, conceito que usara inicialmente para classificar um relatório profusamente divulgado pela imprensa em final de Julho.

    A notícia original foi elaborada pela agência Lusa – que garantiu ao PÁGINA UM que “o relatório (…) existe, naturalmente, caso contrário (…) não teria feito notícia” – e reproduzido então por mais de uma dezena de órgãos de comunicação social de âmbito nacional.

    Relembre-se que o PÁGINA UM viu-se na necessidade de recorrer às instâncias judiciais perante a recusa expressa do Instituto Superior Técnico – incluindo do seu presidente, Rogério Colaço – em ceder tanto esse como os restantes relatórios elaborados desde Junho do ano passado em parceria com a Ordem dos Médicos. O PÁGINA UM também viu recusado o pedido de acesso aos dados brutos e à metodologia estatística usada. Saliente-se que o PÁGINA UM não fez mais do que pedir elementos essenciais comummente usados em instituições académicas para validação científica – aliás, esta é uma prática pacífica e aceite com respeito mútuo pelo requerido e pelo requerente.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede da Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico diz que não houve um acordo escrito desta parceria. O Tribunal Administrativo decidirá se obriga ou não uma instituição pública a ceder dados científicos para validação pública.

    Numa alegação entregue na passada quarta-feira no TAL, a advogada mandatada por Rogério Colaço veio agora dizer que “o requerido [IST] nunca negou ter elaborado um ensaio, apenas afirmou que não se tratava do produto final do estudo, mas uma mera abordagem embrionária, por isso que era um esboço”. E diz ainda que a pretensão do PÁGINA UM “já se encontra satisfeita”, alegando que “o conteúdo do esboço foi dado a conhecer ao requerente [PÁGINA UM] assim que foi solicitado”.

    Saliente-se, porém, que o PÁGINA UM apenas recebeu de um dos investigadores do Instituto Superior Técnico uma explicação vaga sobre a suposta metodologia, mas nunca lhe foi remetido qualquer parte do alegado relatório escrito – que chegou mesmo a merecer citações expressas no take da Lusa, difundido pela restante imprensa – nem qualquer ficheiro com dados numéricos que possibilitasse qualquer conclusão.

    De acordo com a notícia da Lusa, de 28 de Julho passado – que continha sete citações expressas (vd. em baixo) do suposto relatório –, os peritos do Instituto Superior Técnico – supervisionados pelo próprio presidente – apontavam, entre outros aspectos, para a ocorrência da “morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados [sic] às festas populares de junho”.

    Lusa noticiou as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festividades em Junho na transmissão e mortes por covid-19. Instituição universitária, que faz Ciência, quer convencer o Tribunal que aquilo que fez não foi um estudo, mas apenas “um esboço embrionário”. Ou uma “mera abordagem embrionária”, como agora esclarece.

    Sucede, porém, que na realidade ao longo do mês de Junho se registou uma redução sistemática do número de casos positivos e de mortes atribuídas à covid-19, tornando paradoxal, e pouco sustentável cientificamente, que as festividades tivessem tido um impacte agravante. Ou seja, o levantamento das restrições e a maior proximidade física das pessoas sem máscara não foi acompanhada de um acréscimo de casos nem de óbitos.

    Foi exactamente para averiguar o cumprimento de preceitos de rigor científico que o PÁGINA UM pretendeu aceder ao suposto relatório do Instituto Superior Técnico, que a Lusa diz existir, e que a instituição universitária pública esclarece agora que “não se tratava do produto final do estudo, mas uma mera abordagem embrionária, por isso (…) era um esboço”.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico.

    No entanto, esboço ou qualquer outra coisa que seja, certo é que o Instituto Superior Técnico nunca veio a público negar a validade das notícias da Lusa e dos outros órgãos de comunicação social, mesmo se agora a sua advogada garanta que desconhece como aquele (esboço ou relatório) “chegou à comunicação social”.

    Convém, aliás, notar que, na troca de e-mails no final de Julho passado entre o PÁGINA UM e o investigador Henrique Oliveira – coordenador da equipa de peritos do Instituto Superior Técnico –, aquele matemático não ignorava, pelo contrário, a repercussão mediática daquele esboço ou relatório.

    Com efeito, argumentando que toda a equipa estava de férias – e que ele era “o único do grupo de trabalho mandatado a falar sobre esses assuntos de análise” –, Henrique Oliveira fez mesmo gala de ter recusado “diversos convites” da imprensa, “nomeadamente de três televisões nacionais para falar sobre o assunto”. E a sua recusa para falar às televisões não fora por não reconhecer o relatório – ou por não o considerar válido ou validado –, mas sim porque, adiantava ao PÁGINA UM, “entrei de férias e as férias são, digamos, pouco científicas”.

    Resposta de Henrique Oliveira em 29 de Julho ao PÁGINA UM, em que informa ter recusado convites para falar com três televisões nacionais por estar de férias, nunca se demarcando da divulgação de informação não autorizada ou não validada cientificamente pela instituição universitária.

    Acrescente-se também que o PÁGINA UM seguiu o conselho de Henrique Oliveira e pediu o relatório e os dados em bruto ao gabinete de imprensa do Instituto Superior Técnico, mas este não foi satisfeito. Essa recusa seria mesmo reiterada por Rogério Colaço por mensagem enviada do seu telemóvel. Um posterior pedido formal, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, nem mereceu resposta, razão pela qual o PÁGINA UM fez entrar um processo de intimação junto do TAL.

    Mas agora o Instituto Superior Técnico ainda defende que, independentemente da classificação do documento em causa – relatório, ensaio, esboço ou outro qualquer termo –, o PÁGINA UM não deve ter acesso. “Considerando o princípio da proporcionalidade, salvo melhor opinião, não nos parece que o direito à informação do requerente [PÁGINA UM] se revele suficientemente relevante para justificar o acesso a um documento em estado embrionário, um estudo sem estar concluído”, acrescenta a defensora do Instituto Superior Técnico.

    Um relatório anterior do Instituto Superior Técnico alertava que haveria um aumento das infecções com as festividades, mas tal não sucedeu. O suposto relatório de finais de Julho pretendia convencer o público que afinal as previsões estavam quase certas. Mas, na hora de mostrar a base científica dessas conclusões, a instituição universitário optou por recusar essa validação externa. As festas populares em Lisboa este ano tiveram grande fluxo, sem máscaras, mas os casos positivos de covid-19 regrediram face a Maio.

    E conclui ainda que “não se vislumbra também qual a utilidade que um documento incompleto, ou seja, por concluir, possa ter para o requerente [PÁGINA UM], pois tratando-se de um ensaio de projeção/ estimativa, pode não conter informações exatas e precisas, para que o requerente como jornalista possa depois difundir, podendo até sugestionar interpretações contrárias à verdadeira pretensão.”

    Saliente-se que a única pretensão do PÁGINA UM, neste caso, é analisar a qualidade da produção científica do Instituto Superior Técnico que, em articulação com a Ordem dos Médicos, ao longo dos meses apresentou e divulgou estudos sobre a pandemia. E sobretudo perceber se esta instituição científica fez algo para evitar que o seu nome fosse usado mediaticamente para transmitir informação errada ou inexacta, tanto mais que é o próprio Instituto Superior Técnico que admite que o seu (assim classificado) “ensaio de projeção/ estimativa” afinal “pode não conter informações exatas e precisas”.

    Em Março passado, Henrique Oliveira, que é professor do Departamento de Matemática do Instituto Superior Técnico, zurziu no relatório semanal da Direcção-Geral da Saúde, dizendo que era pobre. Em declarações à CNN Portugal disse mesmo que tinha “muito pouca qualidade, nebuloso mesmo”, e que, “como matemático, não hesitaria em chumbar um aluno que me apresentasse um relatório destes”. Sobre os relatórios do próprio Henrique Oliveira, em breve o PÁGINA UM saberá da sua qualidade, se a sentença do Tribunal for favorável a esse conhecimento público.


    Citações (entre aspas) do (suposto) relatório do Instituto Superior Técnico transcritas pela Lusa no take de 28 de Julho passado, que comprovam a existência de um relatório escrito, ou então estaremos perante uma “fraude” (transcrição de citações de um estudo inexistente). A Lusa recusou mostrar prova da existência do relatório, mas garante que existe. O PÁGINA UM apresenta as citações retiradas do artigo publicado pelo Diário de Noticias de 28 de Julho que transcreve o take da Lusa.

    1 – “Se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil

    2 – “não teriam impacto económico

    3 – “os seus efeitos seriam cumulativamente menores e a descida seria mais cedo e mais rápida

    4 – “O efeito aqui é mais lento e menor do que o efeito das medidas gerais, pois afeta diretamente população mais jovem, mas leva a contágios em cascata que acabam por vitimar os mais suscetíveis a doença grave

    5 – “uma possível correlação com vagas de calor

    6 – “com tendência de atingirmos os valores mais baixos de 2022

    7 – “ter excesso de confiança é o risco que Portugal corre


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM, contando com o FUNDO JURÍDICO, está envolvido em 13 processos de intimação junto do Tribunal Administrativo, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 12.025 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Saliente-se que o PÁGINA UM tem de garantir uma “provisão” para as situações em que possa ter sentenças desfavoráveis, o que acarretará o pagamentos de custas que podem ser elevadas por cada processo perdido. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • Sentença: Tribunal Administrativo de Lisboa exige que Inspecção-Geral das Actividades em Saúde mostre processos sem esconder nada

    Sentença: Tribunal Administrativo de Lisboa exige que Inspecção-Geral das Actividades em Saúde mostre processos sem esconder nada

    A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) não queria revelar nomes das entidades e pessoas envolvidas em processos de fiscalização, alguns politicamente sensíveis, alegando sempre que estavam em causa dados nominativos protegidos pelo Regulamento Geral de Protecção de Dados. Após uma “luta” do PÁGINA UM de mais de seis meses, o Tribunal Administrativo de Lisboa faz mais uma sentença em prol da transparência da Administração Pública. Finalmente, vai saber-se como a IGAS desenvolveu os prometidos processos contra Filipe Froes e António Morais, presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, devido às suas ligações com as farmacêuticas.


    Mais uma vitória para a transparência da Administração Pública. O Tribunal Administrativo de Lisboa intimou o inspector-geral das Actividades em Saúde, Carlos Carapeto, a entregar ao PÁGINA UM os processos integrais, sem quaisquer rasuras nem expurgos, que tenham sido levantados por aquela entidade pública desde 2018, aos médicos suspeitos de violarem o regime jurídico das incompatibilidades, designadamente por via de ligações comerciais com farmacêuticas.

    A decisão saiu de uma sentença na sexta-feira passada, e que será comunicada esta semana à IGAS, que tem um prazo de 10 dias para a cumprir, sob pena de “poder vir a ser condenado no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória.” A IGAS pode, contudo, ainda recorrer da sentença, o que constituiria um sinal de adiamento ao necessário processo de transparência em curso.

    Carlos Carapeto, inspector-geral das Actividades em Saúde

    No lote de processos inspectivos a que o PÁGINA UM pretende aceder, num total superior a três dezenas, estarão incluídos os alegados processos anunciados contra os pneumologistas Filipe Froes e António Morais – actual presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia – para apurar se as relações que mantêm com farmacêuticas estão dentro da lei.

    Recorde-se que Filipe Froes – bastante mediático durante a pandemia e grande defensor da vacinação universal contra a covid-19, do uso de certificados digitais como passaporte sanitário e da compra pelo Estado de polémicos antivirais (Velklury, da Gilead, e Paxlovid, da Pfizer) – é consultor da Direcção-Geral da Saúde e um dos médicos portugueses com maiores ligações comerciais com as farmacêuticas, tendo recebido quase 450 mil euros deste sector na última década.

    A IGAS anunciou em Novembro de 2021 a abertura de um “processo de averiguação“, mas até agora não são conhecidas quaisquer conclusões e muito menos as eventuais diligências tomadas por aquela entidade para o apuramento da verdade.

    Exemplo de uma página de um processo “rasurado” pela IGAS por suposta existência de dados nominativos, impossibilitando o acesso a qualquer informação relevante.

    Já António Morais, que preside à Sociedade Portuguesa de Pneumologia desde 2019, entidade que beneficia de generosos donativos e patrocínios das farmacêuticas, foi consultor da Direcção-Geral da Saúde (no Programa Nacional de Doenças Respiratórias e membro da Comissão de Avaliação de Tecnologias de Saúde do Infarmed. Desta última entidade foi afastado em 7 de Julho passado, após notícias do PÁGINA UM, e a IGAS confirmou também que lhe instaurara um processo de contra-ordenação.

    A sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, da autoria da juíza Joana Ferreira Águeda, será em princípio o culminar de uma longa e exasperante tentativa da Inspecção-Geral da Saúde – tutelada pelo Ministério da Saúde – em esconder detalhes dos seus processos de fiscalização, alguns dos quais politicamente sensíveis.

    Com efeito, o PÁGINA UM começou, primeiro, por pedir de forma informal, em 19 de Abril passado, que o inspector-geral da IGAS, Carlos Carapeto, “informasse se têm sido desenvolvidas por rotina verificações sobre se membros de corpos sociais das sociedades médicas que sejam também consultores daquelas entidades estão em violação do preceituado por lei, designadamente saber se essas sociedades médicas receberam em média mais de 50 mil euros por ano no quinquénio anterior.”

    Pedia-se também à IGAS que, caso existissem relatórios sobre estas matérias, fosse dada permissão de acesso.

    Mas como a IGAS apenas remeteu informação genérica sobre a sua acção fiscalizadora das incompatibilidades, o PÁGINA UM solicitou formalmente um pedido de acesso a documentos administrativos, que não obteve resposta. Somente após um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, em 15 de Junho, a IGAS reagiria, mas fora do prazo, dizendo que fora decidido disponibilizar a informação mas com “expurgo de matéria reservada”, pelo que seria necessário um prazo mais alargado para ser satisfeito o pedido.

    Filipe Froes é um dos médicos portugueses com maiores ligações à indústria farmacêutica, mas mantém-se como consultor da DGS e beneficia de palco mediático como suposto especialista independente.

    Nessa medida, e porque aceitar as condições da IGAS determinaria voltar à “estaca zero”, o PÁGINA UM decidiu apresentar um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa no passado dia 1 de Agosto.

    Ao longo de mais de dois meses e meio, em sede de processo administrativo, a IGAS tudo tentaria para não disponibilizar os documentos integrais, chegando até a enviar mais de cinco mil páginas dos 34 processos instaurados desde 2018 com todos os nomes “escondidos” a tinta branca, primeiro, e preta, depois.

    Ou seja, nos processos não eram identificadas as pessoas ou entidades fiscalizadas e mesmo até os nomes dos inspectores da IGAS eram ocultados. Assim, em termos práticos, o PÁGINA UM não conseguia sequer identificar com segurança se, no meio daqueles processos, constavam os relacionados com Filipe Froes e António Morais.

    Primeira página da sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que deu razão ao PÁGINA UM contra a IGAS.

    Agora, a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa explicita que a IGAS tem um “prazo de 10 dias (…) desde o trânsito em julgado” para permitir ao PÁGINA UM “a consulta dos processos em causa, com os nomes dos inspetores, membros da entidade requerida, e/ou gestores de contratos públicos, envolvidos”.

    E diz também que a IGAS deve informar o PÁGINA UM sobre “se existe, ou não, qualquer determinação e/ou processo que vise o Senhor António Manuel Martins de Morais”, presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia.

    Mas um dos aspectos mais clarificadores desta sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa – e que se revela da maior importância em processos similares – acaba por ser a magna questão da legalidade de a Administração Pública poder “apagar” os nomes dos funcionários públicos ou das pessoas fiscalizadas no âmbito de actos públicos em documentos administrativos.

    Em suma, saber-se se a simples divulgação dos nomes e elementos pessoais, per si, são considerados dados nominativos susceptíveis de serem ocultados por razão do famigerado Regulamento Geral de Protecção de Dados. A alegada existência de nomes de funcionários públicos no exercício de funções tem sido um dos argumentos genericamente usado pelas entidades públicas para não cederem documentos administrativos ou “limparem” o rasto dos responsáveis por determinadas decisões, algo que não se encontra plasmado naquele regulamento, onde se explicita que a protecção se refere a dados que possam, revelar aspectos da intimidade das pessoas.

    Na sua sentença, a juíza Joana Ferreira Águeda defende que “as informações requeridas, relativas aos nomes dos inspetores, membros da entidade requerida, e/ ou gestores de contratos públicos, pedidas com um fundamento claro e atendível de apreciação da legalidade e transparência da atuação administrativa em termos relativos nesse âmbito, não configuram manifestamente dados pessoais, pelo que não podem gozar do regime de proteção de dados pessoais, pois que se está em presença de meras questões relativas à tramitação/ decisão, no exercício das respetivas funções/ atribuições (…), e no contexto de um sistema público no domínio das atividades em saúde, sendo, por isso, questões de contornos públicos, não se podendo consubstanciar como documentos de natureza nominativa, desde logo se pensarmos nos princípios gerais contidos no Código do Procedimento Administrativo em matéria de isenção, de transparência e de publicidade da atuação da Administração.”

    António Morais, ao centro, numa foto durante a cerimónia de posse como presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia em Janeiro de 2019.

    Alegando que “no exercício de funções públicas a regra é a publicação dos atos de nomeação”, a magistrada acrescenta ainda que “a circunstância de a tramitação/ decisão nos processos em causa provir de atos vinculados e não discricionários da Administração, só pode reforçar o entendimento que aqui se defende, e não o contrário”, concluindo assim que “existe direito de acesso à informação requerida, o que determina que a mesma deve ser prestada.”


    N.D. Em virtude das notícias que denunciavam as relações promíscuas entre a Sociedade Portuguesa de Pneumologia e as farmacêuticas (muitas das quais com interesses directos na pandemia), António Morais apresentou queixas contra o director do PÁGINA UM na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e na Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ). Estas duas entidades, sem permitirem uma defesa cabal ao PÁGINA UM, tiveram o desplante de exarem uma deliberação e um parecer onde vergonhosamente censuraram e criticaram o nosso trabalho de investigação jornalística. Esta sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa demonstra, aqui e agora, o que é fazer jornalismo de investigação. E esta sentença também qualifica assim os actos das pessoas que conjunturalmente fazem parte da ERC e da CCPJ, porquanto, de forma objectiva, quiseram ser parte activa e empenhada de uma tentativa de descredibilização do jornalismo independente e assertivo do PÁGINA UM. Malsucedidos foram. E continuarão a ser.


    Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM está envolvido em 13 processos de intimação, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 11.653 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Saliente-se que o PÁGINA UM tem de garantir uma “provisão” para as situações em que possa ter sentenças desfavoráveis, o que acarretará o pagamentos de custas que podem ser elevadas por cada processo perdido.

    Na secção TRANSPARÊNCIA começámos a divulgar todas as peças principais dos processos em curso no Tribunal Administrativo. Este processo específico da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde pode ser consultado aqui.

  • Sentença histórica do Tribunal Administrativo de Lisboa obriga Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos a mostrarem contas

    Sentença histórica do Tribunal Administrativo de Lisboa obriga Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos a mostrarem contas

    Foram meses de pedidos recusados, houve um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) ignorado e muita argumentação falaciosa. As Ordens de Miguel Guimarães e de Hélder Mota Filipe saíram derrotadas em toda a linha e foram intimadas a entregar ao PÁGINA UM todos os documentos operacionais e contabilísticos da campanha “Todos por Quem Cuida”, que angariou 1,4 milhões de euros, mas da qual se desconhece detalhes de quem beneficiou. Conheça aqui também todas as peças processuais relevantes desta “batalha jurídica” pela transparência promovida pelo PÁGINA UM, com o apoio dos seus leitores através do seu FUNDO JURÍDICO.


    A Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos tentaram tudo; mesmo tudo. Todas as armas e todos argumentos. O bastonário dos médicos, Miguel Guimarães, nem se esqueceu de informar o Tribunal Administrativo de Lisboa que apresentara uma queixa-crime contra o director do PÁGINA UM em Fevereiro passado, como se isso fosse relevante para o caso em análise. E a Ordem dos Farmacêuticos alertou que a “prestação da informação (…) poder[ia] até servir fins menos idóneos”, como se um órgão de comunicação social regulado se prestasse a torpes fins só por querer analisar documentos.

    Porém, de nada lhes valeu. A sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, com data de 14 de Outubro, é taxativa: as duas Ordens foram mesmo intimadas a, “no prazo de 10 dias, disponibilizarem ao Requerente [Pedro Almeida Vieira] os documentos administrativos, incluindo de índole contabilística e operacional, relativos a todas as ações desenvolvidas no âmbito da campanha ‘Todos por Quem Cuida’, expurgados da informação relativa à matéria reservada. As duas Ordens foram também condenadas a pagar as custas processuais.

    Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos pediram dinheiro e apoio aos cidadãos e empresas para apoiarem entidades durante a pandemia. Angariaram 1,4 milhões de euros mas, na hora de prestar contas, fecharam portas. Tribunal diz que têm de permitir consulta.

    Há dois anos, Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos, com o apoio da indústria farmacêutica, lançaram uma campanha mediática, recorrendo a figuras públicas, para angariarem dinheiro e género para apoiar instituições que lutavam contra a covid-19.

    Oficialmente, as duas entidades terão arrecadado mais de 1,4 milhões de euros, que envolveu um polémico donativo de 380 mil euros da Merck S.A. e mais 665 mil euros da Apifarma. Na hora de prestar contas, até por serem entidades com deveres similares à Administração Pública, fecharam-se em copas quando o PÁGINA UM pediu para consultar, em detalhe, os documentos operacionais e contabilísticos, de modo a avaliar a boa gestão da campanha.

    Mesmo depois da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) dar razão ao PÁGINA UM em finais de Abril, tanto o bastonário dos Médicos, Miguel Guimarães, como a então bastonária dos farmacêuticos, Ana Paula Martins (actual alto quadro da farmacêutica Gilead) mantiveram a recusa, obrigando assim o PÁGINA UM a entrar com um processo de intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa em 23 de Maio passado.

    Ana Paula Martins, antiga bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, e Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos (na entrega dos Prémios Almofariz 2020), recusaram acesso a documentos administrativos de campanha milionária.

    Apesar de ser um processo jurídico urgente, os meses seguintes serviram para as duas Ordens esgrimirem argumentos contra as pretensões do PÁGINA UM, que serviram sobretudo, numa primeira fase, para questionar a idoneidade e intenções do seu director, conforme se poderá verificar pela consulta dos vários requerimentos que se apresentaram, e depois em argumentar que a documentação era demasiado extensa e continha dados nominativos insusceptíveis de serem disponibilizados.

    Em tudo, a juíza Márcia Sofia Andrade deu razão às legítimas pretensões do PÁGINA UM, recusando todas os argumentos da Ordem dos Médicos e dos Farmacêuticos.

    Com efeito, a juíza relembrou que a jurisprudência dos tribunais superiores “tem vindo a interpretar restritivamente a noção de documento nominativo” quando estão em causa “o exercício de funções públicas”, ou seja, apenas deveriam ser protegidos se contivessem “dados pessoais que revelem a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à visa sexual ou à orientação sexual de uma pessoa”. Nessa medida, a juíza considera que “o nome e IBAN das pessoas e entidades que fizeram doações não configura informação nominativa no sentido próprio”.

    Mas a juíza vai mais longe, e acrescenta que “sempre se imporia direito de acesso do Requerente [director do PÁGINA UM] aos documentos solicitados tendo em conta a proteção de tais dados, no âmbito de um juízo ponderativo de proporcionalidade, atendendo ao direito de acesso a documentos administrativos (…), bem como a liberdade de imprensa e a liberdade de informação”, remetendo para artigos da Constituição Portuguesa.

    Quanto ao argumento da Ordem dos Farmacêuticos – defendida pela sociedade de advogados PMLJ – de que seria impossível expurgar os dados relativos a suposta matéria reservada e de que os documentos estariam dispersos, a juíza Márcia Sofia Andrade diz que “essa informação não se mostra consentânea” com aquilo que fora anteriormente alegado.

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    Desconhece-se (ainda) para onde foram os donativos e géneros recolhidos por esta campanha.

    De facto, apesar de a Ordem dos Farmacêuticos dizer que havia documentação espalhada em vários computadores, mesmo de advogados – que beneficiam de sigilo profissional –, e que desconhecia a quantidade total, também adiantava que estava a ser realizada uma auditoria à campanha. A Ordem dos Farmacêuticos – agora liderada por Hélder Mota Filipe, que foi também dirigente do Infarmed durante 11 anos (2005-2016) – pretendia que, no máximo, o PÁGINA UM tivesse acesso apenas ao relatório da auditoria após ser concluído.

    Ora, para a juíza, “esse argumento [mostrava-se] contraditório, por um lado, porque a Requerida [Ordem dos Farmacêuticos] aduziu desconhecer ao certo a quantidade de documentos necessários para cumprir a pretensão do Requerente [director do PÁGINA UM], e que os mesmos se encontram dispersos por várias entidades, porém, alegou que fazem parte do objeto da auditoria, o que significa que os documentos se encontram reunidos e são possíveis de quantificar”.

    E a juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa acrescenta ainda “que também não se afigura congruente” que a Ordem dos Farmacêuticos assevere “que a informação pretendida está sujeita às restrições de acesso, mas com os resultados da auditoria o Requerente vai poder ver a sua pretensão satisfeita”.

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    Esta é a terceira sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa inteiramente favorável ao PÁGINA UM em prol da maior transparência das entidades públicas.

    Aliás, outro argumento rechaçado pela magistrada refere-se à acusação da Ordem dos Farmacêuticos de que o PÁGINA UM poderia usar a informação recolhida sobre a gestão dos fundos da campanha “Todos por Quem Cuida” para “servir fins menos idóneos”. A juíza assegura que a Ordem dos Farmacêuticos “não concretizou em que se traduzem tais fins”, recordando que esse “ónus […] sobre si impende – de alegar e provar os factos que lhe interessam”.

    A Ordem dos Médicos, que teve estratégia ligeiramente distinta – mas similar no propósito de manter um véu escuro sobre a campanha que envolveu 1,4 milhões de euros –, também viu derrocar toda a sua argumentação. O bastonário Miguel Guimarães defendia que o pedido do PÁGINA UM tinha um “carácter manifestamente abusivo”, mas a juíza é concisa em desmontar esta tese: “não existem razões para coartar a regra geral do livre acesso a documentos administrativos”.

    Tanto a Ordem dos Médicos como a Ordem dos Farmacêuticos ainda podem recorrer desta sentença para o Tribunal Central Administrativo do Sul, como já fez a primeira entidade no caso dos pareceres técnicos, cuja sentença em primeira instância lhe foi também desfavorável.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Até ao momento, o PÁGINA UM está envolvido em 13 processos de intimação, quatro dos quais em segunda instância, e ainda em duas providências cautelares. Até ao momento foram angariados 11.131 euros, um montante que começa a ser escasso face à dimensão e custos envolvidos nos processos. Na secção TRANSPARÊNCIA começamos a divulgar todas as peças processuais dos processos. em curso no Tribunal Administrativo. Este processo específico pode ser consultado aqui.

  • Instituto Superior Técnico diz agora que afinal fez “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”

    Instituto Superior Técnico diz agora que afinal fez “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”

    Divulgado há menos de dois meses, um alarmista relatório do Instituto Superior Técnico, que “responsabilizava” as festividades e festivais de música de Junho de terem causado centenas de mortes, afinal parece que não foi bem um relatório. No Tribunal Administrativo de Lisboa, uma das mais credenciadas instituições universitárias públicas do país, que tem um protocolo com a Ordem dos Médicos, diz agora que só fez um “esboço embrionário”, e que não há relatório algum. A Lusa, porém, garantiu ao PÁGINA UM que “o relatório existe, naturalmente”. Moral da história: cerca de uma dezena de órgãos de comunicação social divulgaram, como verídico, um estudo científico alarmista, afinal nunca validado, e que, aparentemente, nem sequer existiu, apesar de a Lusa ter feito citações na sua notícia original. Eis um caso paradigmático do estado da Ciência e do rigor informativo do Portugal de hoje.


    Foi apresentado taxativamente como um relatório do Instituto Superior Técnico (IST). Em 28 de Julho passado, a agência noticiosa Lusa – detida maioritariamente pelo Estado – divulgou um take, replicado por cerca de uma dezena de órgãos de comunicação social, revelando que o IST estimava que a realização em Junho das festividades dos santos populares e festivais como o Rock in Rio tinha sido a causa da ocorrência de cerca de 340 mil casos de covid-19.

    E mais: citando frases do relatório – assim apresentado sempre nas notícias divulgadas pela imprensa –, salientava-se que com medidas sem impacto económico, designadamente o uso de máscara e a testagem gratuita, ter-se-ia registado igualmente uma sexta vaga, devido à variante Ómicron, mas “os seus efeitos seriam cumulativamente menores e a descida seria mais cedo e mais rápida”.

    Lusa noticiou as conclusões de um estudo do Instituto Superior Técnico sobre o impacte das festividades em Junho na transmissão e mortes por covid-19. Instituição universitária, que faz Ciência, quer convencer agora o Tribunal que aquilo que fez foi apenas “um esboço embrionário”.

    O estudo na base do relatório – que a direcção editorial da agência noticiosa garantiu em 2 de Agosto passado ao PÁGINA UM que “existe, naturalmente, caso contrário a Lusa não teria feito notícia” – ainda terá permitido que os peritos apontassem “a morte de 790 pessoas com covid-19 devido ao levantamento das restrições e às festividades, dos quais 330 associados às festas populares de Junho.”

    Mas, afinal, a história estava mal contada. Muito mal contada. Por todos os envolvidos.

    Em resposta ao Tribunal Administrativo de Lisboa – no seguimento de uma intimação feita pelo PÁGINA UM no início deste mês por recusa de acesso aos diversos relatórios e dados em bruto produzidos por esta instituição universitária pública desde 2021 –, o gabinete jurídico do IST afiança que “o grupo de investigadores (…) [encabeçado pelo próprio presidente, o catedrático Rogério Colaço] apenas realizou um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes, na sede do Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico recusa divulgar os estudos e os dados. O Tribunal Administrativo decidirá se obriga ou não uma instituição pública a ceder dados científicos para validação pública.

    Repita-se: “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

    Destaque-se de novo: “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

    Com essa manobra, o IST está a procurar convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa a não o obrigar a disponibilizar qualquer relatório nem dados em bruto, uma vez que a lei determina que “as notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais e outros registos de natureza semelhante, qualquer que seja o seu suporte” não são classificados como documentos administrativos.

    Trecho das alegações do IST junto do Tribunal Administrativo de Lisboa a garantir que realizou “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”. A Lusa garante que viu um relatório, e até o cita.

    Ou seja, o IST pretende ver reconhecido pelo Tribunal Administrativo de Lisboa que o relatório que a Lusa garante existir, afinal não existe porque não passa afinal de um esboço – ou menos do que isso: “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”.

    No entanto, antes das insistências do PÁGINA UM em finais de Junho junto do investigador Henrique Oliveira – e mais tarde junto do próprio presidente do IST, Rogério Colaço –, nunca aquela instituição universitária renegou as notícias da Lusa e dos outros órgãos de comunicação social.

    Pelo contrário, na troca de e-mails com Henrique Oliveira, este investigador do IST mostrava que conhecia o impacte mediático da divulgação do take da Lusa.

    Num dos e-mails ao PÁGINA UM, este investigador, que assume ser “o único do grupo de trabalho [de cinco elementos] mandatado a falar sobre esses assuntos de análise”, escreveu o seguinte: “ontem [dia 28 de Julho] recusei diversos convites, antes do seu e-mail, nomeadamente de três televisões nacionais, para falar sobre o assunto porque… entrei de férias e as férias são, digamos, pouco científicas”.

    Resposta da directora-adjunta da Lusa ao PÁGINA UM garantindo que o relatório do IST “existe, naturalmente”, caso contrário não teria sido feita notícia. Mas para o Tribunal Administrativo de Lisboa, o IST diz agora que nunca houve relatório mas apenas um “esboço embrionário, consubstanciado num mero ensaio para um eventual relatório”. Aparentemente, o “esboço embrionário” não evoluiu, ao fim de dois meses, não tendo havido gestação e o “nascimento” de um qualquer relatório científico.

    Henrique Oliveira salientou também ao PÁGINA UM que todos os outros membros do grupo de trabalho do IST – Pedro Amaral, José Rui Figueira e Ana Serro, além de Rogério Colaço – estavam de férias. Ou seja, a notícia da Lusa foi convenientemente divulgada na véspera de todos os cinco investigadores do IST meterem férias.

    Saliente-se que as conclusões alarmistas do alegado relatório do IST – afinal um “esboço embrionário” transmitido ao público como se fosse pura Ciência saída de uma universidade pública portuguesa – não encontram respaldo nas evidências observadas durante o mês de Junho, como o PÁGINA UM revelou.

    Com efeito, enquanto decorreram as festas de Santo António, São João, Rock in Rio e outros festivais ao de Junho, os casos positivos de covid-19 foram sempre descendo em Portugal, contrariando mesmo as previsões anteriores de um relatório do IST, conforme comprovara o jornal digital Blind Spot dias antes do take da Lusa.

    Por exemplo, no dia 1 de Junho a média móvel de sete dias estava nos 24.602 casos positivos para todo o país, no dia 8 tinha descido para 20.575 casos, no dia 15 já estava nos 15.368 casos positivos, no dia 22 baixou para os 12.939 casos positivos e no final do mês estava mesmo abaixo dos 10 mil casos.

    Um relatório anterior do IST alertava que haveria um aumento das infecções com as festividades, mas tal não sucedeu. O suposto relatório de finais de Julho pretendia convencer o público que afinal as previsões estavam quase certas. Mas, na hora de mostrar a base científica dessas conclusões, o IST está a recusar essa validação externa. As festas populares em Lisboa este ano tiveram grande fluxo, sem máscaras, mas os casos regrediram face a Maio

    Durante o mês de Junho, os casos positivos de covid-19 aceleraram sempre, mas na direcção oposta à subida: ou seja, reduziram-se, o que contrariou os defensores do uso de máscaras e de restrições aos ajuntamentos como formas eficazes de controlo da pandemia. Em Julho sucedeu o mesmo. De acordo com os dados do Worldometer para Portugal, no final de Julho contabilizavam-se 3.258 casos positivos em cada dia (média móvel de sete dias). Em Agosto, os casos mantiveram-se sempre estáveis em redor dos 2.500 casos positivos. Actualmente, rondam os 2.200 casos por dia.

    A acção do PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa, com o apoio dos leitores através do FUNDO JURÍDICO, surgiu depois de esgotados todos os prazos e tentativas para o presidente do IST, Rogério Colaço, disponibilizar voluntariamente todos os relatórios e dados brutos sobre as análises em redor da pandemia. A verificação externa independente é, aliás, uma prática comum de validação em debates científicos, algo que o catedrático que agora lidera esta instituição pública parece querer ignorar, independentemente da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos.

    Mas o presidente do IST sempre recusou disponibilizar essa informação. Aliás, a única vez que Rogério Colaço se dirigiu ao PÁGINA UM foi numa lacónica mensagem enviada através do seu Galaxy: “O pedido formal ao presidente do IST está respondido e a resposta é negativa.”

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, nunca negou a existência e paternidade do relatório divulgado pela Lusa no final de Julho. No Tribunal Administrativo de Lisboa alega agora que a instituição universitário pode promover, sob a forma de Ciência, um “esboço embrionário, consubstanciado num mero ensaio para um eventual relatório”, não permitindo sequer uma validação externa independente.

    Saliente-se, por fim, que o PÁGINA UM questionou no início de Agosto os responsáveis editoriais do Público, Observador, Visão, TSF, Correio da Manhã, jornal i, Sábado e CNN Portugal para saber se, tendo todos replicado o take da Lusa, houvera antes da divulgação junto dos leitores uma confirmação da veracidade dos factos, se houvera confronto de outras fontes e se alguém das respectivas redacções tivera acesso ao famigerado relatório do IST.

    Só dois responderam ao PÁGINA UM: Sábado e jornal i. E confirmaram que não tinham tido acesso ao relatório. Todos os outros nem sequer responderam ao PÁGINA UM, considerando assim o assunto irrelevante.

    Em suma, cerca de uma dezena de órgãos de comunicação de âmbito nacional divulgaram uma notícia sobre um “relatório” que afinal a própria instituição científica diz ser agora ser “um esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório” – e, por esse motivo, não o quer divulgar. Nem divulgar os supostos dados científicos que estiveram na base de uma notícia alarmista não confirmável.

    O processo de intimação do PÁGINA UM continua a correr no Tribunal Administrativo de Lisboa, até porque foi solicitado ao IST mais informação do que a referente ao suposto “esboço embrionário”.

  • E a grande novidade da Feira do Livro de Lisboa (ao ar livre) é… a ausência de máscaras

    E a grande novidade da Feira do Livro de Lisboa (ao ar livre) é… a ausência de máscaras

    Desde 2020, a Feira do Livro de Lisboa foi “empurrada” para Agosto. Depois de fortes restrições nas úlltimas duas edições, abriu ontem a 92ª edição. Há muitos livros, encontros com autores e muitos comes-e-bebes. Só faltam mesmo as máscaras, que não deixam saudade.


    Já foi na Primavera, com chuvadas à mistura, agora tem sido em pleno Verão, mas é uma tradição incontornável em Lisboa. A caminho do centenário, ontem, abriu a 92ª edição da Feira do Livro, em pleno Parque Eduardo VII.

    Embora o panorama sócio-económico actual seja de crise e inflação, a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) promete que esta, sim, será a maior de sempre: 340 pavilhões e 140 participantes, entre grandes grupos editoriais, pequenas editoras e mesmo alfarrabistas.

    Ontem, na inauguração, a maior diferença que saltou à vista, face aos dois anos anteriores, não foram os livros, nem as roulottes com comida, nem a presença já habitual do presidente da República. Foi sim uma ausência face às duas edições anteriores (2020 e 2021): a máscara facial. Além de todas as outras medidas como a entrada condicionada ou o álcool gel.

    A “normalidade” tem-se vindo a recuperar aos poucos e os corredores da Feira comprovaram-no. Poucas foram as máscaras, muitos os livros.

    Longe de estarmos perante uma canícula, pela tarde de ontem o fluxo de visitantes ainda era moderado, e concentrava-se não tanto nos pavilhões, mas nas sombras das árvores. E também, sem surpresa, nas zonas dos “comes e bebes”, incluindo bancas de gelados, mais apetecíveis que um Prémio Nobel.

    Mas não apenas de livros viverá esta feira. Estamos perante um evento cultural em que haverá workshops, debates, showcookings – que foram interrompidos durante a pandemia – e as costumeiras sessões de autógrafos para todos os gostos e feitios. Os fins-de-semana são garantidamente os dias com maior concentração de autores para dois dedos de conversa – às vezes nem isso, se a fila for grande para os mais populares – e uns autógrafos da praxe.

    Um colaborador da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, que já representa a marca na Feira do Livro de Lisboa há seis anos, disse ao PÁGINA UM que a afluência de visitantes estará agora próxima da realidade pré-pandemia. “Nota-se uma clara diferença em relação aos últimos anos, as pessoas estão mais descontraídas e não têm tanto medo de mexer nos livros”, reconheceu Gonçalo Silva.

    Junto aos stands do grupo editorial Penguin Random House, o testemunho de outro vendedor também foi positivo. João Alves, um estreante a trabalhar nesta edição, assegurou que, apesar de ser esperada uma maior afluência ao final da tarde, logo nas primeiras horas da manhã “as vendas correram muito bem”.

    Este será o terceiro e último ano em que a Feira do Livro decorre na recta final do Verão (em Agosto e Setembro), ainda no decurso das medidas impostas no âmbito da pandemia. Em 2023, o evento voltará a realizar-se de acordo com o calendário habitual – entre Maio e Junho. Na cidade do Porto, por sua vez, a sua Feira inicia-se hoje.

  • Tribunal decide se amigo de Marta Temido repõe versão original (que “mutilou” para impedir investigações do PÁGINA UM)

    Tribunal decide se amigo de Marta Temido repõe versão original (que “mutilou” para impedir investigações do PÁGINA UM)

    Depois de dois processos contra o Ministério da Saúde (um dos quais em “representação” da Direcção-Geral da Saúde), de mais dois contra o Infarmed e de mais um contra a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, o PÁGINA UM decidiu apresentar uma nova intimação desta vez contra a decisão da Autoridade Central do Sistema de Saúde. Em causa está o “expurgo” da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, que foi retirada em Maio passado do Portal da Transparência, após o PÁGINA UM ter publicado investigações comprometedoras. A base de dados foi “reposta” no início deste mês, mas completamente “mutilada” , impossibilitando qualquer análise séria que possa, por exemplo, explicar as causas para o excesso de mortalidade em Portugal desde finais de Fevereiro.


    Vítor Herdeiro, amigo de longa data da ministra da Saúde e presidente da Administração Central do Serviço de Saúde, vai ter de justificar junto do Tribunal Administrativo de Lisboa as razões para a retirada da base de dados original da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar que constava do Portal da Transparência do SNS.

    Esta é a consequência imediata do processo de intimação apresentado hoje pelo PÁGINA UM – o sexto envolvendo o Ministério da Saúde ou entidades tuteladas pela ministra Marta Temido – que tem, como objectivo primordial, a reposição da base de dados que permitia uma avaliação rigorosa do desempenho do SNS durante a pandemia, auxiliando também a perceber quais as doenças que estarão a causar um excesso de mortalidade desde finais de Fevereiro.

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    Como denunciou o PÁGINA UM em editorial no dia 16 de Junho, o Ministério da Saúde decidiu “expurgar” a base de dados com informação mensal desde Janeiro de 2017 sobre o número de internamentos e de óbitos, envolvendo 62 unidades do SNS, desagregados por sexo (dois) e por grupo etário (sete). Essa base de dados, que em Janeiro deste ano contava 440.036 linhas de informação, permitira ao PÁGINA UM elaborar um dossier específico de oito artigos, entre 13 de Maio e 1 de Junho, que mostrava uma situação muito distinta da “narrativa oficial” quanto aos números da pandemia e sobre o desempenho das diferentes unidades hospitalares mesmo em relação a outras doenças.

    Esses dados permitiram, por exemplo, ao PÁGINA UM concluir que houve menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurar que a Ómicron tinha indicadores de letalidade inferior aos da gripe; identificar problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinar que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificar a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificar que estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocar dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.

    Um dos artigos do dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho no PÁGINA UM, com informação obtida a partir da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, agora “apagada”.

    O ministério liderado por Marta Temido nunca assumiu terem sido razões políticas, em resultados das investigações do PÁGINA UM, a determinarem o “apagão” da base de dados, embora haja uma coincidência entre a decisão de retirar essa informação do Portal da Transparência e a publicação dos primeiros artigos noticiosos.

    A ACSS adiantaria, mais tarde, como causa do “expurgo”, a necessidade de uma “análise interna”, mas nunca explicou cabalmente qual o propósito.

    Certo é que após um pedido expresso do PÁGINA UM para acesso à base de dados original, ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), Vítor Herdeiro decidiu em 5 de Agosto repor no Portal da Transparência um “sucedâneo” da base de dados, mas que constitui uma autêntica mutilação da versão pública original, tornndo-a inútil.

    Com efeito, a base de dados original foi partida em três completamente separadas – por sexo, por faixa etária e por instituição –, impedindo assim, por exemplo, comparações entre unidades de saúde em função do grupo etário.

    Também ficou impedido de se conhecer os números absolutos de internamentos e de óbitos em unidades de saúde por tipologia de doença, impossibilitando apurar-se que tipo de doenças estarão a tornar-se mais mortíferas desde finais de Fevereiro, quando Portugal iniciou um período sem precedentes de contínuo excesso de mortalidade.

    A intimação agora apresentada ao Tribunal Administrativo de Lisboa pretende assim que, independentemente de Marta Temido concordar com a “mutilação” da base de dados agora exposta no Portal da Transparência do SNS, a versão original seja disponibilizada ao PÁGINA UM. Isto é, o objectivo é o Tribunal sentenciar o amigo da ministra da Saúde a entregar obrigatoriamente a base de dados original (existente antes e existente agora) da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar – que esteve disponível ao público até Maio deste ano – ao PÁGINA UM.

    Se o Tribunal Administrativo de Lisboa condenar a ACSS a entregar essa base de dados original, o PÁGINA UM compromete-se a disponibilizá-la imediatamente no seu site. E continuará a dissecar essa informação – vital para compreender o excesso de mortalidade em curso –, sob a forma de análises e notícias rigorosas e isentas.

    Saliente-se que a intimação para a prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões é um processo considerado e, por isso, os prazos são curtos. A entidade pública responsável dispõe de 10 dias para responder, e o juiz deve decidir em cinco dias, embora possam ser pedidos mais informações.

    Marta Temido (ministra da Saúde) e Victor Herdeiro (presidente da ACSS), terceiro e quarto a contar da esquerda, juntos na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho. Foram companheiros durante três mandatos na Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.

    Caso a entidade pública continue sem satisfazer o pedido, após intimada pelo tribunal para o fazer, o juiz deve determinar a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias, sem prejuízo da responsabilidade (civil, disciplinar, criminal) a que possa haver lugar.

    Além dos seis processos de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboam envolvendo entidades públicas na área da Saúde (Ministério da Saúde, Infarmed, Inspecção-Geral das Actividades em Saúde e agora AACS), o PÁGINA UM tem ainda em curso mais três acções similares (satisfação de pedidos de acesso a documentos administrativos) sobre a Ordem dos Médicos, Ordem dos Farmacêuticos e Conselho Superior da Magistratura (CSM), tendo já vencido duas acções em primeira instâncias. Porém, nesses dois casos, as duas entidades (CSM e Ordem dos Médicos) recorreram da decisão para o tribunal superior, demonstrando uma cultura pouco atreita à transparência.


    N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso. Até ao momento, estão em curso oito processos administrativos e mais dois em preparação.

  • Serra da Estrela transformou-se numa cordilheira do fogo: desde o início do século já ardeu quase toda

    Serra da Estrela transformou-se numa cordilheira do fogo: desde o início do século já ardeu quase toda

    O maior incêndio deste ano, reactivado ontem, dois dias após ser considerado controlado, vem mostrar sobretudo as crónicas falhas no combate e na gestão florestal, sobretudo em zonas sob gestão do Estado. As áreas protegidas continuam a ser as zonas mais fustigadas ano após ano. Na Serra da Estrela, metade da área foi atingida pelas chamas desde 2017. No presente século, pouco ou quase nada não foi passada pelo fogo. Mas não é um exclusivo. O PÁGINA UM apresenta um retrato de uma triste realidade que atinge as nossas áreas (des)protegidas.


    O Parque Natural da Serra da Estrela não é apenas a maior área protegida do país. Com o violento incêndio da última semana – acrescido de reacendimentos que vieram reavivar as crónicas deficiências do sistema de gestão florestal e de combate aos fogos –, também já é aquela com maior superfície ardida desde o início do século em função da área total.

    Embora ainda seja prematuro estabelecer a dimensão final, por ainda estar em curso o incêndio que começou no dia 6 – e que ontem se reactivou –, estima-se que já tenham sido destruídos 22.343 hectares este ano na Serra da Estrela, de acordo com valores avançados pelo Público.

    green and brown mountains under blue sky during daytime

    Considerando este valor, os incêndios nesta área protegida – que ocupa 89.132 hectares no centro do país, quase nove vezes a cidade de Lisboa – já lavraram cerca de 85 mil hectares desde 2001, segundo os registos do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) consultados pelo PÁGINA UM.

    Embora algumas partes da Serra da Estrela – como sucede noutras regiões – tenham sofrido mais do que um fogo ao longo das últimas duas décadas, a área ardida acumulada nesta área protegida é agora de quase 96%. Ou seja, são poucas as zonas desta região que não “sentiram” o fogo no presente século.

    Os incêndios deste mês fizeram assim que o Parque Natural da Serra da Estrela ultrapassasse aquele que era então a área protegida mais vulnerável ao fogo: o Parque Natural do Alvão, com 84,2% da área ardida acumulada desde 2001.

    Contudo, esta área protegida de reduzidas dimensões – com apenas 7.238 hectares, localizada nos municípios de Mondim de Basto e Vila Real, e que tem as Fisgas de Ermelo como principal atracção – tem sido poupada aos fogos nos últimos anos.

    Desde o início do século, quase toda a área ardida no Parque Natural do Alvão se concentrou em 2001 (6.094 hectares) e em 2013 (3.154 hectares).

    Ao invés, o Parque Natural da Serra da Estrela regista sistematicamente fogos com dimensão relevante. Desde 2001 contabiliza nove anos sempre com mais de 2.000 hectares ardidos, sendo que em três se superaram os 10 mil hectares: 2003 (11.593 hectares); 2017 (20.202) e este ano, onde já se terá superado os 22 mil hectares.

    A situação dramática da Serra da Estrela é apenas o reflexo supremo do estado calamitoso das áreas protegidas do país que, embora naturalmente de maior risco de incêndios pela abundância vegetal, se mostram, na prática, completamente desprotegidas. Na verdade, ardem mais do que as áreas não-protegidas, apesar de ocuparem apenas 742 mil hectares, ou seja, cerca de 8% do território português.

    De acordo com uma análise do PÁGINA UM, os incêndios dentro das 48 áreas classificadas em Portugal Continental – sendo 32 geridas pelo ICNF, 15 por municípios e uma por privados – afectaram, desde 2001, um total de 229.559 hectares, ou seja, 31% do total. Convém referir, contudo, a existência de recorrências em determinadas áreas.

    Zonas protegidas classificadas com área total e área queimada (em hectares) e área afectada (em percentagem) entre 2001 e 2022 (dados provisórios). Fonte: ICNF.

    Embora a destruição em 2022 em áreas classificadas esteja já próxima dos 30 mil hectares, o pior ano continua ainda a ser 2003. Nesse ano, os incêndios afectaram 40.717 hectares, dos quais 20.139 hectares no Parque Natural de São Mamede e 11.5593 hectares na Serra da Estrela.

    Há cinco anos, em 2017, os fogos dizimaram mais 34.608 hectares de áreas protegidas, com destaque para os 20.202 hectares também na Serra da Estrela e os 9.986 hectares no Parque Natural do Douro Internacional.

    Destaque-se, de igual modo, os anos de 2010 e 2016 com vastas zonas de áreas protegidas fustigadas por incêndios. No primeiro ano ardem 16.225 hectares e no segundo 16.695 hectares.

    Porém, o fenómeno dos incêndios não é homogéneo por todas as zonas classificadas, tanto mais que uma quantidade substancial é de pequena dimensão, de carácter menos rural e/ ou integrando sobretudo ecossistemas menos propensos ao fogo (zonas húmidas, por exemplo).

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    Assim, de acordo com os registos do ICNF, 98% de toda a área ardida desde 2021 concentra-se em apenas 14 zonas protegidas.

    Além da Serra da Estrela e do Alvão, as áreas protegidas mais fustigadas são a Área de Paisagem Protegida do Corno do Bico (70% da área afectada), o Parque Nacional da Peneda-Gerês (46%), os Parques Naturais da Serra de São Mamede (39%), do Douro Internacional (38%), da Serra de Aire e Candeeiros (31%), do Montesinho (24%), da Ria Formosa (16%) e de Sintra-Cascais (11%).

  • Amigo da ministra Marta Temido “mutila” informação e serve sucedâneo para esconder caos do SNS

    Amigo da ministra Marta Temido “mutila” informação e serve sucedâneo para esconder caos do SNS

    Um discreto e diligente burocrata, que foi saltitando de administração hospitalar em administração hospitalar, até ser colocado na presidência da Administração Central do Serviço de Saúde pela ministra Marta Temido (amiga de longa data), decidiu expurgar do acesso público, em Maio passado, uma detalhada base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar. Repôs agora, mas trucidando-a em três e “mutilando” a informação, tornando-a num sucedâneo inútil. O PÁGINA UM vai recorrer, mais uma vez, ao Tribunal Administrativo, e ao seu FUNDO JURÍDICO (com o apoio dos seus leitores), para obrigar o Ministério da Saúde a disponibilizar a base de dados original.


    Um carniceiro de cutelo em riste não teria feito melhor obra a despedaçar uma carcaça. Victor Herdeiro – presidente da Administração Central do Serviço de Saúde (ACSS) e amigo de longa data da ministra da Saúde Marta Temido – mandou repor ontem a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar no Portal da Transparência do SNS, mas partida em três, com uma frequência trimestral e expurgando dados estatísticos que tornam intencionalmente a informação inútil.

    Recorde-se que a retirada da base de dados original ocorreu após o PÁGINA UM ter começado a elaborar um conjunto de artigos de investigação sobre o desempenho das unidades hospitalares do SNS nos seus diversos departamentos (e doenças) ao longo da pandemia. Até Maio passado, a base de dados então existente no Portal da Transparência do SNS continha informação estatística (e, portanto, anonimizada) com uma frequência mensal e diversos campos que possibilitavam múltiplas análises: mês e ano, tipo de doenças (por grupo, incluindo covid-19), grupo etário, sexo, unidade de saúde, número de internados, dias de internamento e óbitos.

    Marta Temido (ministra da Saúde) e Victor Herdeiro (presidente da ACSS), terceiro e quarto a contar da esquerda, juntos na sessão de apresentação dos novos Estatutos do SNS no passado dia 7 de Julho.

    Esses dados – que então compreendiam um período mensal entre Janeiro de 2017 e Janeiro de 2022 – permitiram, por exemplo, ao PÁGINA UM concluir que houve menos 51 mil hospitalizações de crianças durante a pandemia por todas as doenças; apurar que a Omicron tinha indicadores de letalidade inferior aos da gripe; identificar problemas graves (com aumento de taxas de letalidade mesmo em alas não-covid); determinar que a taxa de mortalidade da covid-19 foi evoluindo ao longo da pandemia e em função dos hospitais, sendo 30% superior à das doenças respiratórias; desmistificar a alegada elevada pressão durante a pandemia, até porque houve menos 280 mil doentes por outras causas não-covid; e também identificar que estranhas descidas na mortalidade por cancros e outras doenças, bem como colocar dúvidas sobre a mortalidade por covid-19 nos hospitais.

    Ora, os serviços de Victor Herdeiro “mutilaram” completamente a base de dados, com o fito de esconder análises mais elaboradas a partir da base de dados original – que requeria conhecimentos estatísticos mais avançados –, impedindo assim a descoberta de diferenças entre a “narrativa oficial” do Ministério da Saúde e a realidade.

    Um dos artigos do dossier “Investigação SNS”, publicado entre 13 de Maio e 1 de Junho no PÁGINA UM, com informação obtida a partir da original base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar. Com a base de dados sucedânea e “mutilada” passará a ser impossível análises similares.

    Com efeito, a ACSS – que alega, na comunicação formal de Victor Herdeiro ao PÁGINA UM, que estavam em causa informação protegida pelo Regulamento Geral de Protecção de Dados (na verdade, nunca houve nomes de pessoas divulgados) – não apenas alargou a periodicidade (passando a agregar dados mensais em trimestre) como expurgou, com intenção, os dados absolutos, disponibilizando somente taxas de internamento e de mortalidade.

    A utilidade desta informação é agora nula.

    Além disso, a base de dados original foi partida em três completamente separadas – por sexo, por faixa etária e por instituição –, impedindo assim, por exemplo, comparações entre unidades de saúde em função do grupo etário. Algo que se conseguia antes, agora o presidente da ACSS decidiu expurgar para evidente satisfação do Ministério da Saúde, para quem a base de dados original poderia vir a fazer (mais) mossa.  

    Recorde-se que os laços entre Marta Temido e Victor Herdeiro são bastante estreitos e de longa data. Ambos tiraram o curso de Direito, tendo-se cruzado nos corredores da Universidade de Coimbra, embora o actual presidente da ACSS seja mais velho (nasceu em 1969, enquanto Temido nasceu no início de 1974). No entanto, passaram a ter contactos estreitos há cerca de duas décadas, porque ambos ingressaram na carreira de administradores hospitalares.

    Na Associação Nacional de Administradores Hospitalares (APAH) – uma poderosa agremiação por via das ligações políticas e dos financiamentos das farmacêuticas –, Victor Herdeiro e Marta Temido compartilharam mesmo três mandatos ao longo de nove anos: 2008-2011, 2011-2013 e 2013-2016.

    Nos dois primeiros mandatos, Temido foi tesoureira e Herdeiro vogal, enquanto naquele último triénio a actual ministra presidiu à APAH, mantendo-se Herdeiro como vogal. Já sem Marta Temido nos órgãos sociais desta associação, Victor Herdeiro foi vice-presidente no mandato de 2016-2019. Ambos são também “responsáveis” pelo convite a Alexandre Lourenço para presidir à APAH há seis anos, como o próprio confessou em Março último.

    Apesar desta tentativa de obstaculização ao acesso à informação e ao sinal evidente de obscurantismo da Administração Pública por conveniência política, o PÁGINA UM já solicitara expressamente ao presidente da ACSS o acesso integral à base de dados original – que continua a ser produzida mas não divulgada agora no Portal da Transparência do SNS. Como Victor Herdeiro não cedeu essa base de dados original, e já passou o prazo de 10 dias úteis para resposta, o PÁGINA UM apresentará, na próxima semana, um processo de intimação junto do Tribunal Administrativo para obrigar a ACSS a disponibilizar esse conjunto de dados.

    close-up photography of person lifting hands

    Caso o Tribunal Administrativo de Lisboa conceda ao PÁGINA UM o direito a ter acesso à base de dados original, poderemos continuar a ter informação isenta e rigorosa. Se o Tribunal não conceder esse direito, o obscurantismo do Ministério da Saúde vence e não haverá mais informação sobre o desempenho do SNS de forma independente.


    N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso. Até ao momento, estão em curso oito processos administrativos e mais dois em preparação.