Categoria: Sociedade

  • Limpezas na Marinha: este ano, Gouveia e Melo já soma ajustes directos de quase quatro milhões

    Limpezas na Marinha: este ano, Gouveia e Melo já soma ajustes directos de quase quatro milhões

    Embora o actual Chefe do Estado-Maior da Armada, Gouveia e Melo, tenha usado o camuflado como ‘imagem de marca’ durante a pandemia, é o branco, a cor da limpeza, que mais se associa à Marinha. Mas este ano, o ramo das Forças Armadas liderado pelo homem que se tornou ‘herói da logística’, apenas consegue manter as suas instalações limpas recorrendo a sucessivos ajustes directos, porque um concurso público agregado aberto no início de 2022 ‘naufragou’, e no ano passado um novo concurso público só previu a limpeza durante três meses. Por via de contratos de ‘mão beijada’, que beneficiaram sobretudo duas empresas, este ano já foram ‘limpos’ quase quatro milhões de euros por esta via, três vezes mais do que em 2022 e 2023. Além disso, a Marinha usou um expediente que levanta muitas dúvidas legais: admitiu ao PÁGINA UM que ‘ofereceu’ os contratos às empresas a quem fez uma consulta preliminar ao mercado, algo que viola os princípios da não discriminação e da transparência.


    Um concurso público da Marinha aberto em Novembro do ano passado para, entre outros lotes, comprar esfregonas, vassouras, esponjas em nylon, trapos, pás de plástico, panos de flanela para o pó e sacos de lixos foi concluído com sucesso no ‘tempo de um ai’. No início de Fevereiro deste ano, já estavam a ser celebrados contratos com diversas empresas concorrentes, para cumprir o plano de compras de 2024, com montantes que iam de 20,40 euros até pouco mais de 17 mil euros.

    Porém, no ramo das Forças Armadas que tem hoje a liderar o homem que se destacou nas operações de logística da vacinação contra a covid-19, o almirante Gouveia e Melo, foi um autêntico ‘cabo das tormentas’ despachar um concurso público para a limpeza de diversas instalações militares aberto em Fevereiro de 2022. Em abono da verdade, o concurso público ‘naufragou’. Resultado prático: este ano têm-se somado sucessivos ajustes directos sem se conhecerem os verdadeiros motivos do imbróglio de um procedimento concursal iniciado há 30 meses nem os motivos para a preferência agora concedida sobretudo a duas empresas de limpeza, a Intelimpe e a Lucena & Lucena.

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    O mais recente ajuste directo desta natureza beneficiou a empresa Fine Facility Services, contratada até ao final de Dezembro por serviços de limpeza da Base Naval de Lisboa, do Comando do Corpo de Fuzileiros e do Depósito de Munições, entre outros departamentos da Marinha. Vai receber, de ‘mão beijada’, um total de 584 mil euros, que se ‘transformam’ em 718 mil euros com IVA. Mas mais ‘sorte’ teve a sua concorrente Interlimpe, que conseguiu arrecadar, apenas desde Fevereiro de 2024, seis ajustes directos que já totalizam mais de 1,47 milhões de euros, que aumentam para mais de 1,8 milhões de euros com IVA.

    Também afortunada aparenta ser a Lucena & Lucena – uma empresa de Matosinhos com apenas três anos e um capital social de apenas 5.000 euros, que pertence a um casal que viverá no Brasil –, que celebrou, entre Fevereiro e Julho deste ano, quatro ajustes directos para limpeza de instalações da Armada. O valor potencial destes contratos sem concorrência aproxima-se dos 990 mil euros, que aumentam para mais de 1,2 milhões de euros com IVA.

    De acordo com um levantamento do PÁGINA UM no Portal Base, incluindo um contrato de compra de papel higiénico com folha dupla de 12.450 euros – que deverá dar para 50 mil rolos, embora o caderno de encargos nem sequer indique a quantidade a entregar –, a Marinha já contabiliza, para serviços e produtos de limpeza, 16 ajustes directos nos primeiros oito meses do presente ano. No total, a factura já ultrapassa os 3,1 milhões de euros, ou seja, 3,85 milhões de euros contando com o IVA.

    Confrontando os valores registados este ano para serviços de limpeza, mostra-se evidente um aumento substancial dos ajustes directos, não tanto em número mas sobretudo em montantes. Por exemplo, em todo o ano passado, a estrutura militar liderada por Gouveia e Melo celebrou 16 ajustes directos, embora totalizando 974 mil euros (sem IVA), ou seja, apenas um terço daquilo que registou em apenas oito meses de 2024. Em 2022, o primeiro ano com Gouveia e Melo em funções de topo, a Marinha tinha celebrado 35 ajustes directos, mas sem chegar à fasquia de um milhão de euros (995 mil, sem IVA). Em contraste, os serviços de limpeza e de aquisição de produtos de limpeza contratados por concurso público atingiram 2,01 e 1,21 milhões de euros, respectivamente em 2022 e 2023. Este ano, em oito meses, por concurso público apenas se celebraram contratos no valor de 131 mil euros, todos de pequeno valor.

    Almirante Gouveia e Melo, Chefe do Estado-Maior da Armada. Foto: DR

    Um conjunto de seis questões foram enviadas pelo PÁGINA UM ao Chefe do Estado-Maior da Armada, pedindo esclarecimentos, entre outros aspectos, sobre a sistemática opção pelos ajustes directos em serviços de necessidade contínua e programável, uma porta-voz da Marinha diz terem sido “motivos extraordinários e num âmbito muito restrito” que levaram à decisão dos ajustes directos, após o concurso público de 2022 – que agregava 22 lotes de diversos ramos das Forças Armadas – ter sofrido “diversas vicissitudes procedimentais, normais em procedimentos contratuais”, tendo estes sido concluídos apenas “no final de Maio”.

    Acrescente-se, contudo, que, além de a Marinha não ter explicitado, apesar de pedido reiterado, quais as vicissitudes procedimentais que alegadamente existiram, não é (ou não deveria ser) uma situação normal a não conclusão de um concurso público ao fim de 30 meses. Aliás, aparentemente, o Estado-Maior da Armada não terá contado toda a ‘história verdadeira’ ao PÁGINA UM, porque o concurso aberto em Fevereiro de 2022 já nem sequer será aproveitável. Tanto assim que em Julho do ano passado foi aberto pela Marinha um novo concurso público para serviços de limpeza, mas para apenas os três últimos meses de 2023, provavelmente por razões orçamentais.

    Apesar de o Estado-Maior da Armada ter colocado a informação errada no Portal Base sobre este concurso público, repartido em 20 lotes, referindo que foi ganho apenas pela Interlimpe, contra cinco concorrentes, na verdade esta empresa arrecadou 11 lotes e a Lucena & Lucena um total de nove, com um custo global de 733 mil euros. Certo é que, neste caso, este concurso público ficou decidido em menos de quatro meses, uma vez que os contratos para os 20 lotes foram assinados em Outubro do ano passado.

    Porém, terminada a vigência de apenas três meses destes contratos dos 20 lotes, e sem haver novo concurso público concluído para garantir serviços de limpeza ao longo de 2024, a Marinha decidiu então lançar mão de sucessivos ajustes directos. E esta é a principal razão para já se atingirem quase quatro milhões de euros em serviços e produtos de limpeza. E é para tentar justificar a falta de planeamento que a Marinha tenta usar a estratégia da tergiversação.

    Base Naval de Lisboa, no Alfeite. Foto: DR

    Com efeito, perguntado como são feitas as escolhas específicas das empresas que, por ausência de concorrência, beneficiam dos ajustes directos, e se existe uma justificação por escrito (para ser enviada), a porta-voz de Gouveia e Melo diz ter-se optado “por efectuar consultas preliminares ao mercado nos termos do artigo 35º-A do CCP [Código dos Contratos Públicos], tendo como racional na escolha dos operadores económicos a consultar as empresas que já se encontravam a prestar os serviços de limpeza e as empresas a quem, no âmbito do procedimento agregado do MDN [Ministério da Defesa Nacional], foram adjudicados os serviços, ou seja, aquelas que dispunham de capacidade de resposta imediata por conhecer os serviços e as infraestruturas  a limpar”.

    Em termos práticos, apesar de não explicado, o Estado-Maior da Armada estabeleceu ajustes directos, pelo que se apura, apenas com as duas empresas – Intelimpe e Lucena & Lucena – que tinham vencido os concursos públicos do último trimestre de 2023, em detrimento da concorrência. E alega urgência imperiosa que, na verdade, se deverá prolongar, na generalidade dos casos, até ao final do presente ano. Acrescente-se também que o alegado uso pela Marinha de uma consulta ao mercado para decidir pela escolha das empresas beneficiadas com ajustes directos mostra-se opção polémica e eventualmente ilegal. Com efeito, a consulta ao mercado constitui somente uma fase de preparação do procedimento para a formação de contratos e requer, por isso, especiais cuidados, devendo cingir-se a consultas informais de mercado, através da “solicitação de informações ou pareceres de peritos, autoridades independentes ou agentes económicos, que possam ser utilizados no planeamento da contratação”.

    Nessa linha, a consulta preliminar às “empresas que já se encontravam a prestar os serviços de limpeza e as empresas a quem, no âmbito do procedimento agregado do MDN [Ministério da Defesa Nacional], foram adjudicados os serviços”, como refere a Marinha na resposta ao PÁGINA UM, aparenta configurar uma violação ao CCP. E isto porque a lei destaca que a consulta preliminar “não pode ter por efeito distorcer a concorrência, nem resultar em qualquer violação dos princípios da não discriminação e da transparência”, o que sucederá se, posteriormente à consulta a uma empresa, a entidade pública adjudicante lhe oferece de ‘mão beijada’ um ajuste directo.

    Aliás, a norma do CCP sobre a consulta preliminar ao mercado explicita, por esse motivo, que ”quando um candidato ou concorrente, ou uma empresa associada a um candidato ou concorrente, tiver apresentado informação ou parecer à entidade adjudicante ou tiver sido consultada […] ou tiver participado de qualquer outra forma na preparação do procedimento de formação do contrato, a entidade adjudicante [neste caso, a Marinha] deve tomar as medidas adequadas para evitar qualquer distorção da concorrência em virtude dessa participação”.

    Fuzileiros em acção. Foto: DR.

    E acrescenta essa norma que “são consideradas medidas adequadas, entre outras, a comunicação aos restantes candidatos ou concorrentes de todas as informações pertinentes trocadas no âmbito da participação do candidato ou concorrente na preparação do procedimento de formação do contrato, com inclusão dessas informações nas peças do procedimento”. Ora, como a Marinha fez ajustes directos com as empresas que consultou, sem ponderar sequer outros procedimentos, esta norma do CCPJ terá sido assim violada.

    Saliente-se que o PÁGINA UM solicitou a Gouveia e Melo que fossem enviadas as justificações escritas para a escolha por ajuste directo das empresas, mas sem sucesso. Também não foi respondida a questão sobre as regras existentes no Estado-Maior da Armada com vista à redução dos contratos de ‘mão beijada’, sobretudo para a aquisição de bens e serviços onde exista concorrência conhecida, como é o caso evidente dos serviços de limpeza.


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  • Câmara da Covilhã é uma ‘casa santa’ para o provedor da Santa Casa da Misericórdia do Fundão

    Câmara da Covilhã é uma ‘casa santa’ para o provedor da Santa Casa da Misericórdia do Fundão

    Amigos, amigos, negócios à parte” – assim reza o adágio. Mas há uma excepção, pelo menos na Covilhã: se quem pagar a conta for o Erário Público, então pode ser ‘amigos, amigos, negócios incluídos’, porque não será de estranhar que um presidente da autarquia contrate sucessivamente por ajuste directo um seu correligionário de longa data, por sinal provedor da Santa Casa da Misericórdia do vizinho Fundão, para serviços jurídicos. E se for necessário ‘inventar’ que não há, entre os 40.065 advogados existentes em Portugal, outro igual ao amigo, alegue-se então ser ele um ‘primus inter pares’, para se prescindir de concurso público aberto e transparente. Numa investigação do PÁGINA UM, conheça a fantástica relação comercial entre o edil Vítor Pereira, que também acumula a liderança da Federação Distrital de Castelo Branco do Partido Socialista, e o advogado Jorge Gaspar, que tem sido frutuosa para o segundo: 432 mil euros sem ‘espinhas’. O mais recente contrato de ‘mão beijada’ ocorreu há cerca de três semanas e ‘pinga’ até meio de 2027.


    No final do ano passado, estavam registados 40.065 advogados em Portugal, segundo a Ordem dos Advogados, mas o advogado e presidente da autarquia da Covilhã, o socialista Vítor Pereira, não teve dúvidas em contratar com dinheiros públicos, no início deste mês, o seu antigo colega de escritório, Jorge Gaspar, entregando-lhe uma nova avença mensal de 4.000 euros para os próximos três anos, por alegadamente não existir “concorrência por motivos técnicos”. Em todo o país, presume-se; daí não se ter a autarquia do distrito de Castelo Branco aberto um concurso público para prestar serviços jurídicos, pois seria uma inutilidade, porquanto, a atender às razões invocadas (ausência de concorrência), Jorge Gaspar nunca teria quem o igualasse, quanto mais o superasse.

    E quem é Jorge Gaspar? Considerando a existência de 40.065 advogados, será então um ‘primus inter pares’, uma ‘pérola’ mesmo se sedeado num pequeno escritório de advocacia na Covilhã, sem parceiros, mas com estatuto social suficiente para liderar também a Santa Casa da Misericórdia do Fundão, uma instituição de solidariedade social fortemente financiada pela Estado, embora com um passivo que subiu dos 6,1 milhões de euros em 2018 para 10,3 milhões no ano passado.

    Covilhã: amigos, amigos; negócios incluídos. Foto: D.R.

    A inusitada contratação do advogado Jorge Gaspar – através de uma justificação perfeitamente ridícula e falaciosa, apenas com o objectivo de contornar as limitações legais aos ajustes directos – foi concretizada no passado dia 30 de Julho, tendo sido disponibilizada três dias depois no Portal Base. Este contrato, que tem Vítor Pereira e Jorge Gaspar como signatários, não é acompanhado na plataforma da contratação pública pelo caderno de encargos, não estipula em concreto as tarefas específicas a executar, que poderiam fazer alguma luz para o facto de este causídico ser considerado único, ou seja, sem concorrência possível de se encontrar. O presidente da Câmara da Covilhã, que também é líder da Federação Distrital de Castelo Branco do Partido Socialista, não respondeu às perguntas do PÁGINA UM.

    Certo é que este é um contrato entre dois amigos de longa data da cidade da Covilhã, algo que pode ser visto como um hino à fraternidade, mas com o senão de envolver dinheiros públicos. E não é amizade recente: já ultrapassou três décadas e meia. Não tão longa é a relação de negócios entre o edil Vítor Pinheiro e o causídico Jorge Gaspar. Começou em 2014, um ano depois do ex-deputado socialista ter vencido as suas primeiras eleições autárquicas. Nesse ano, o presidente da autarquia da Covilhã mostrou-se grato ao seu antigo patrono, Antunes Ferreira, e entregou um ajuste directo de 48 mil euros à sociedade de advogados Antunes Ferreira, Jorge Gaspar & Associados, ou seja, começou a relação comercial. A norma para o ajuste directo tinha, neste caso, uma base legal, porque era então possível este procedimento para montantes inferiores a 75 mil euros.

    Este contrato terminaria em meados de 2015, mas só em 2016, mais precisamente em Julho, Vítor Pereira achou que, apesar da existência do habitual departamento jurídico camarário, precisava novamente do seu amigo Jorge Gaspar, e assim o contratou, dessa vez apenas a ele. Por um ano, em ajuste directo se ‘ajustou’ o pagamento de 48 mil euros por 365 dias de trabalho, ou seja, 4.000 euros por mês. Como o preço era inferior a 75 mil euros, o contrato mostrava-se legal por esta via.

    Vítor Pereira, advogado e presidente da autarquia socialista da Covilhã desde 2013, considera o seu amigo Jorge Gaspar como o único capaz de executar tarefas que já custaram mais de 420 mil euros ao município. Foto: CMC

    No ano seguinte, em Julho de 2017, foi repetida a ‘dose’: mais 12 meses com a avença de 4.000 euros, num total de 48 mil euros no ano. O limite legal para o ajuste directo era então de 50 mil euros, e o contrato entre os dois amigos foi concretizado pouco mais de um mês antes de uma alteração legislativa que procurava impedir a sucessão de ajustes directos por valores ‘cirurgicamente’ abaixo do limite. Ou seja, a partir desse momento, em teoria deixavam de ser possíveis ajustes directos (ou adjudicações após consulta prévia) a entidades ou pessoas que no ano económico em curso e nos dois anos económicos anteriores tivessem sido contratados por essa via, e se fossem ultrapassados limites relativamente baixos.

    Mas onde o Código dos Contratos Públicos fecha uma porta aos abusos, a imaginação e os expedientes encontram sempre uma brecha, ou rasgam uma janela. Por esse motivo, mudou a estratégia do presidente da Câmara da Covilhã para contratar o amigo Jorge Gaspar por ajuste directo, sem os incómodos da concorrência. Assim, apesar de ter sido divulgado apenas em Novembro de 2021, o ajuste directo celebrado em 20 de Julho de 2018, no habitual valor de 48 mil euros com a duração de um ano, apresentou já como justificação um critério material, ou seja, um expediente que permite qualquer valor desde que se possa encaixar numa das excepções do Código dos Contratos Públicos. E foi aqui que se começou a ‘inventar’ que Jorge Gaspar era um advogado tão especial que, enfim, a sua contratação por ajuste directo se mostrava inevitável por “não exist[ir] concorrência por motivos técnicos”.

    O PÁGINA UM consultou diversos peritos que asseguraram que a amizade ou a confiança não podem ser invocadas como “motivo técnico” para uma contratação por ajuste directo (ou consulta prévia), ainda mais quando se está perante um mercado fortemente concorrencial como o da advocacia.

    Depois deste ajuste directo de 2018, no Portal Base apenas surge um novo contrato entre a autarquia da Covilhã e Jorge Gaspar em Julho de 2021, voltando-se a alegar novamente o critério material de inexistência de concorrência. E desta vez, para não se estar a repetir a ‘cantiga’ dos outros anos, o presidente Vítor Pereira tratou de compor um contrato com a duração de três anos pelo valor global de 144 mil euros, dando assim os habituais 4.000 euros por mês. Nessa linha, o contrato do passado mês de Julho acaba assim por ser um déjà vu: até meados de 2027, ‘imune’ à inflação, serão 4.000 euros a pingar por mês. Em suma, descontando o primeiro contrato, ainda celebrado com a sociedade de advogados, Jorge Gaspar ‘sacou’ do seu amigo Vítor Pereira 432 mil euros em dinheiros públicos, sempre através de ajustes directos, e sempre sem os incómodos da concorrência, e sem sequer se saber os processos em que terá trabalhado.

    Vítor Gaspar (ao centro), em Julho, durante uma visita de deputados do Grupo Parlamentar Socialista à Santa Casa da Misericórdia do Fundão, onde se destaca Alexandra Leitão e Ana Mendes Godinho, antiga ministra da Segurança Social. Foto: SCMF

    Apesar de a Câmara da Covilhã – a entidade pública que deve responder pela contratação – nada ter dito ao PÁGINA UM, o advogado Jorge Gaspar reagiu, questionando alegadas “encomendas” nesta investigação jornalística, que ‘nasceu’ de uma pesquisa no Portal Base. Mas o causídico covilhanense ‘sem igual’ diz presumir que na base desta investigação jornalística esteja “o mesmo covarde que, após a minha primeira contratação pelo Município da Covilhã, apresentou uma denúncia anónima na PJ [Polícia Judiciária]”, que assegura ter sido arquivada pelo Ministério Público.

    Jorge Gaspar defende, aliás, a legalidade de todos os contratos, apesar das evidências, dizendo que “a relação entre advogado e cliente tem subjacente uma relação de confiança, pessoal e profissional, pelo que as pessoas singulares e os representantes das pessoas coletivas, particulares ou públicas, procuram para os patrocinar juridicamente os advogados e/ou jurisconsultos e quem confiam, quer pelas suas qualidades pessoais, quer pelas suas qualidades e competências profissionais”. E o advogado ‘puxa dos galões’ para demonstrar que, na sua perspectiva, não existem mesmo dúvidas quanto aos facto de ser um ‘primus inter pares’: “os quase 34 anos de advocacia, os milhares de clientes, pessoas singulares ou coletivas, de direito público ou particular, que já patrocinei, bem como os colegas e magistrados com quem tenho trabalhado, falam por mim”, diz. O presidente da Câmara da Covilhã, que pelo facto de ter contratado, poderia (e deveria) falar, optou por não o fazer.

    Jorge Gaspar acrescenta também, à laia de argumento de não ser o único a beneficiar de dinheiros públicos de ‘mão beijada’, achar “estranho que tendo o Município da Covilhã um outro advogado avençado, com uma avença de valor superior à que me é paga, cujo contrato existe há décadas, inicialmente com o pai, ilustre advogado, e actualmente e desde há mais de 20 anos, com o filho, igualmente ilustre advogado, só suscite estranheza e curiosidade a minha contratação, quando o meu prestígio e competência profissionais não são menores do que os daqueles ilustres profissionais”.

    Saliente-se, contudo, que antes mesmo desta ‘sugestão’ de Jorge Gaspar, já o PÁGINA UM detectara a outra avença para serviços jurídicos, beneficiando por ajuste directo a sociedade Fontes Neves & Associados, fundada na Covilhã por um antigo delegado do Procurador da República, António Fontes Neves, e agora liderada pelo seu filho David. No entanto, de acordo com a consulta ao Portal Base, onde devem constar todos os contratos públicos desde 2009, as relações entre a autarquia liderada desde 2013 pelo socialista Vítor Pereira são, porém, mais pontuais com a Fontes Neves & Associados. Na verdade, sob a liderança do actual presidente da edilidade covilhanense, somente foi assinado um ajuste directo, em finais de Maio de 2022, com uma duração de três anos e um valor de 252 mil euros, ou seja, uma avença mensal de 7.000 euros.

    Neste caso, porém, o argumento para a contratação não foi a ausência de concorrência, mas antes um outro ‘expediente’ cada vez mais comum para contornar o concurso público: a alegada dificuldade “na elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas”. Conhecer os motivos desta contratação também não foi possível, uma vez que também em relação a esta contratação o presidente da autarquia da Covilhã não deu resposta.

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    Para a autarquia da Covilhã, Jorge Gaspar não é um entre mais de 40 mil advogados portugueses: é o único advogado capaz de defender os interesses do município…

    Já Jorge Gaspar não esconde a longa relação que tem com o edil da Covilhã, mas considera não existirem motivos para colocar em causa a legitimidade ou a ética dos procedimentos contratuais. “Quanto ao meu relacionamento com o atual Presidente da Câmara, além de termos estagiado, em simultâneo, com o mesmo patrono [Antunes Ferreira] e de termos trabalhado durante algum tempo no escritório daquele (do qual o s[enho]r. Presidente saiu, há mais de 25 anos, para abrir escritório próprio e eu fiquei, acabando por constituir uma sociedade de advogados com o meu ex-patrono), nunca existiu qualquer outro relacionamento profissional ou negocial, seja de que natureza for”, assegura Jorge Gaspar.

    E o advogado ‘sem concorrência’ não esconde que “sempre t[e]ve uma relação de amizade com o Dr. Vitor Pereira, mesmo após a sua saída do escritório, tal como mantenho com outros autarcas, empresários, colegas de profissão, etc.”, se bem que, acrescenta, teve mesmo assim “ ocasião de litigar em processos em que o Dr. Vítor Pereira, enquanto exerceu advocacia, patrocinava a parte contrária, defendendo cada um, o melhor possível, os interesses dos seus clientes”. E conclui: “o S[enho]r. Presidente da Câmara Municipal da Covilhã, tal como os demais vereadores do executivo camarário, conhecem bem as minhas qualidades pessoais e profissionais, que me levaram a granjear o prestígio que me é reconhecido não só na cidade da Covilhã, mas em toda a Beira Interior, onde mais trabalho”.

    Portanto, concluindo, para o advogado Jorge Gaspar, tudo normal nos sucessivos contratos por ajuste directo com a câmara municipal liderada pelo amigo de longa data Vítor Pereira, usando-se dinheiros públicos… e esta notícia nem sequer tem, nessa perspectiva, uma razão para existir.


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  • Península de Tróia: Acidentes rodoviários ‘aceleram’ com turismo de luxo

    Península de Tróia: Acidentes rodoviários ‘aceleram’ com turismo de luxo

    Disparou o número de acidentes rodoviários na estrada que liga a agora afamada povoação do Carvalhal à península de Tróia. O ano de 2023 foi responsável por um terço do total de número de sinistros registados na zona no último quinquénio. De 14 acidentes registados em 2022, o número saltou para 45 no ano passado. Mas esta tendência preocupante pode ser apenas o início de uma constante escalada de sinistros automóveis naquela via. Isto porque a Guarda Nacional Republicana observa também um maior número de infracções de trânsito na estrada na zona, nomeadamente o desrespeito pelos semáforos e também pelo traço contínuo. Recorde-se que um acidente recente na EN 261, junto a Comporta, vitimou mortalmente um jovem casal e deixou três feridos graves. O sinistro, em destaque nos media, marcou pela tragédia e deve servir de alerta. A GNR relaciona o maior número de desastres na zona com o aumento do tráfego devido “a deslocações por motivos profissionais bem como ao aumento da atividade turística naquela região” e apela à precaução dos condutores.


    Mais empreendimentos, mais negócios e mais turistas têm levado mais carros para uma zona outrora pacata e que só “animava” em Agosto. A península de Tróia e toda a costa até Melides ganharam ainda mais fama entre os famosos e não só. Os ‘bólides’ chegam pela autoestrada e pelo ‘ferry’ que liga Tróia a Setúbal. O aumento do tráfego na zona está a dar dores de cabeça à Guarda Nacional Republicana (GNR), que registou, em 2023, mais do dobro dos acidentes rodoviários entre o Carvalhal e Tróia, uma via com cerca de 26 quilómetros, quase sempre de rectas. De 14 acidentes em 2022, no ano passado já entraram para as estatísticas 45 acidentes.

    Em 2024, a tendência de aumento do número de sinistros rodoviários na zona mantém-se. Mas não são apenas os desastres na via que são um sinal de alerta para as autoridades. A GNR também observa um maior número de infracções por parte dos condutores.

    “É uma pouca vergonha. Mesmo no centro do Carvalhal, passam constantemente na Avenida a acelerar. Este fim-de-semana recebi 30 ou 40 mensagens e tenho recebido muitas queixas. Mataram um cão de estimação e fugiram”. O relato é de Nuno Carvalho, presidente da Junta de Freguesia do Carvalhal. “A Comporta e o Carvalhal cresceram de uma maneira gigante. Não há sinalização, as autoridades não têm os meios necessários e há falta de civismo”, disse ao PÁGINA UM.

    A praia da Comporta é uma das procuradas na zona. O aumento do turismo na zona entre Melides e Tróia tem gerado um acréscimo de tráfego automóvel e também do número de acidentes e das infracções. (Foto: D.R.)

    Nste mês de Agosto, um acidente na Estrada Nacional (EN) 261, junto a Comporta, vitimou um jovem casal e deixou ainda três feridos. Com a excepção deste trágico acidente, nos últimos cinco anos, os sinistros na região têm causado sobretudo feridos ligeiros. Mas o acidente fatal ocorrido neste mês é visto como um sinal de alerta numa região que se tornou na coqueluche do turismo de luxo a nível nacional.

    Na realidade, do Carvalhal a Tróia, há duas vias distintas: a EN 261 entre o Carvalhal e a Comporta, com cerca de 10 quilómetros; e a EN 253-1 entre a Comporta e Tróia, com 16 quilómetros. Ambas as vias têm tido um aumento de procura por força da pressão turística e do crescente número de novas construções e obras de empreendimentos na região. O problema estende-se também à EN 253, entre Comporta e Alcácer do Sal, e também à EN 261, mais a sul.

    À crescente pressão ambiental e urbanística, junta-se o maior tráfego rodoviário em estradas compostas sobretudo por rectas, mas com curvas sem visibilidade. Quem conduz na zona sabe que nem todos respeitam as velocidades máximas permitidas, nem os semáforos existentes junto a Comporta. As ultrapassagens velozes, com ‘bólides’ a passar à frente de várias viaturas de uma vez, são o ‘normal’.

    Sinistros rodoviários na estrada que liga o Carvalhal a Tróia. (Fonte: GNR/ Comando Territorial de Setúbal. Dados: Em Unidades)

    Acresce que as vias têm vindo a ser alvo de melhoramentos, com antigos buracos e desníveis a serem substituídos por novo alcatrão, que deixa o convite a mais velocidade. Praticamente não há bermas, apenas areia para onde se têm desviado alguns condutores para evitar acidentes, normalmente a fugir de viaturas a fazer ultrapassagens perigosas.

    A GNR, através do Comando Territorial de Setúbal, contabilizou, nos últimos cinco anos, um total de 144 acidentes entre o Carvalhal e Tróia. Um terço destes acidentes ocorreu em 2023, com a EN 261 a ser responsável por 86 sinistros e a EN 253-1 por 58. A preocupação das autoridades é justificada: de 14 acidentes em 2022, o número disparou para 45 no ano passado. Também nesse ano, a maior parte dos acidentes ocorreu na EN 261, que registou 33 desastres, face aos 17 observados na EN 253-1.

    O número de feridos também aumentou. Nos últimos cinco anos, os acidentes na zona provocaram 45 feridos, dos quais 42 ligeiros e três graves. Dos quatro feridos registados em acidentes na zona em 2022, o número de vítimas saltou para 13 feridos em 2023. O último ano com um número de feridos similar foi o de 2020, mas nos restantes o número de vítimas de acidentes naquelas vias não passava da meia dúzia.

    A EN 261, entre o Carvalhal e a Comporta, registou 33 acidentes rodoviários em 2023, contra oito em 2022. Na EN 253-1, que liga a Comporta a Tróia, o número de sinistros na via duplicou, passando de seis para 12. (Imagem: Mapa do Microsoft Bing)

    A GNR indicou ao PÁGINA UM que, “ao longo dos últimos anos, é possível verificar um aumento de tráfego nestas vias, estando estes factos diretamente associados a deslocações por motivos profissionais bem como ao aumento da atividade turística naquela região”.

    Quanto ao número de infracções, também tem vindo a crescer. “No que diz respeito ao número de contraordenações registadas naqueles troços, comparando igual período de 2023 e 2024 (Janeiro a Julho), verifica-se um ligeiro aumento no registo de infrações relativas ao desrespeito da sinalização luminosa e à transposição de linha longitudinal contínua”, referiu a GNR em resposta a questões do PÁGINA UM.

    A tendência em termos de aumento de sinistros parece manter-se em 2024. Nos primeiros sete meses deste ano, o número total de acidentes vai em 17, com quatro feridos ligeiros a registar, ultrapassando, assim, o número de sinistros registado em todo o ano de 2022. Mas ainda falta contabilizar o mês de Agosto, quando a zona recebe muitos turistas, e também o início do Outono e do Inverno, quando a chuva e o nevoeiro ‘traem’ alguns condutores.

    O parque de estacionamento da praia da Comporta conta agora com uma maior zona alcatroada para receber viaturas ligeiras e autocarros. O cheiro a alcatrão é, de resto, o primeiro cartão de visita que recebem os turistas que se deslocam até esta praia que está rodeada de dunas, arrozais e habitats diversos que estão sob ameaça perante a crescente pressão imobiliária e turística de luxo.
    (Foto: PÁGINA UM)

    No Carvalhal, a Junta de Freguesia conseguiu financiamento privado para instalar lombas e travar os ‘aceleras’, mas a Câmara Municipal de Grândola não autorizou a operação. “Os políticos são todos iguais, só muda a cor. Fica tudo para o último ano, o ano de eleições, para tirarem a fotografia”, lamentou Nuno Carvalhal. Adiantou que “a Câmara tem um plano para a mobilidade e segurança rodoviária”, que “vai arrancar em Outubro, a tempo das eleições”. Mas o presidente da Junta do Carvalhal teme que venha tarde para alguns condutores. “Vai aumentar [o número de acidentes] e a qualquer momento há o risco de haver uma tragédia dentro da aldeia”, referiu, apontando que actualmente, ao fim-de-semana, chegam ao Carvalhal entre 3000 e 4000 pessoas. “É muita gente, há muita juventude, muitas festas”.

    A GNR, “através do Destacamento Territorial de Grândola, para além do patrulhamento existente, tem realizado várias ações de fiscalização de âmbito rodoviário nas principais vias à sua responsabilidade, sendo a segurança rodoviária e a redução do número de vítimas mortais na estrada, uma prioridade estratégica para a Guarda”. Mas, apesar da fiscalização, nem sempre é possível evitar a ocorrência de tragédias, como a que se deu este mês.

    Por isso, e enquanto não chega o ano de eleições autárquicas, que traga sinalização nas estradas e outras medidas de reforço da segurança rodoviária na região, a GNR “apela a que sejam observados alguns conselhos de segurança, aquando do exercício da condução”, nomeadamente “adequar a velocidade às condições meteorológicas, às caraterísticas da via e ao volume de tráfego rodoviário”. Também recomenda aos condutores que evitem “realizar manobras perigosas que possam resultar em embaraço para o trânsito ou que, de alguma forma, possam originar acidentes”, além de que apela ao “cumprimento da sinalização rodoviária” e à adopção de “uma condução atenta, cautelosa e defensiva”.


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  • Pedidos de asilo de menores não acompanhados quase duplicaram no primeiro semestre

    Pedidos de asilo de menores não acompanhados quase duplicaram no primeiro semestre

    Segundo o Conselho Português para os Refugiados (CPR), Portugal registou um aumento de 82% no número de pedidos de protecção internacional por parte de menores não acompanhados, no primeiro semestre deste ano. Os dados mostram que, no total, houve 111 pedidos de asilo feitos pela primeira vez por parte de menores não acompanhados. Estes dados superam os pedidos registados em todo o ano de 2023. Dado o elevado número de requerentes, o CPR não conseguiu acolher todas as crianças e jovens, sendo que alguns foram acolhidos por outras organizações por indicação do Instituto da Segurança Social. 


    Disparou o número pedidos de protecção internacional por parte de crianças e jovens não acompanhados, no primeiro semestre deste ano, em Portugal. No total, foram registados pedidos de asilo pela primeira vez por 111 menores não acompanhados, o que representa um aumento de 82% face ao número de pedidos registados na primeira metade de 2023, segundo o Conselho Português para os Refugiados (CPR). O número de pedidos observado na primeira metade deste ano ultrapassa os 108 que foram observados em todo o ano de 2023.

    O pedido de protecção internacional inclui todos os que fogem de países onde existem conflitos ou onde podem ser perseguidos.

    “Tendo em conta o elevado número de pedidos de proteção internacional apresentados por menores não acompanhados, o CPR não consegue acolher todos os MENA [menores não acompanhados], sendo que são acolhidos por outras organizações por indicação do Instituto da Segurança Social”, indicou Tito Campos e Matos, vice-presidente do CPR, ao PÁGINA UM. O CPR acolheu 27 menores.

    (Foto: D.R./CPR)

    Mas também se observou uma subida no número global de pedidos de protecção internacional, embora não tão expressivo quanto o observado nas crianças e jovens não acompanhados. “De acordo com os nossos registos e com os pedidos de proteção internacional que nos foram comunicados pelas autoridades, verificou-se um aumento de 16% do número de pedidos de proteção internacional no primeiro semestre de 2024 por comparação ao primeiro semestre de 2023”, informa o CPR. O número de pedidos passou de 1.075 na primeira metade de 2023 para 1.246 no mesmo período deste ano.  

    “Quanto ao número de pedidos de protecção internacional apresentados por menores não acompanhados, verificou-se um aumento mais significativo, na ordem dos 82% no primeiro semestre de 2024, por comparação com o primeiro semestre de 2023”, subindo de 61 pedidos para 111.

    Nos termos da Lei do Asilo, do total de pedidos de asilo, “264 requerentes foram identificados como particularmente vulneráveis, incluindo 111 crianças não acompanhadas”, sendo que apenas “21% dos requerentes são mulheres”. Em termos de país de origem, os pedidos foram apresentados “por requerentes de 69 nacionalidades e apátridas, sendo Afeganistão, Colômbia, Gâmbia e Senegal os países de origem mais representativos”.

    (Foto: D.R./CPR)

    O CPR é a única organização em Portugal que gere várias estruturas dedicadas ao acolhimento de requerentes de asilo pela primeira vez. Esta organização sem fins lucrativos gere três centros de acolhimento “para requerentes e beneficiários de proteção internacional dedicados a requerentes espontâneos, refugiados reinstalados, além de um centro especializado para crianças e jovens estrangeiros não acompanhados e uma creche/jardim-de infância”. Este ano, deu-se uma mudança na gestão de pedidos de asilo e acolhimento, com a entrada em funcionamento da Agência para a Integração Migrações e Asilo (AIMA). Outras organizações, para além do CPR, passaram a acolher requerentes de proteção internacional durante a fase de admissibilidade.

    O CPR acolheu, no primeiro semestre deste ano, “915 requerentes espontâneos, incluindo 27 crianças não acompanhadas”. Também “acolheu, a partir de Junho, 120 requerentes espontâneos em fase de instrução no âmbito de Protocolo de Cooperação com o ISS [Instituto da Segurança Social]”.

    No âmbito do Programa Nacional de Reinstalação, o CPR garantiu acolhimento a 54 refugiados reinstalados, nomeadamente nacionais do Irão, Iraque, Síria, Eritreia e Sudão, provenientes da Turquia, do Egipto e da Jordânia. Foram também acolhidos pelo CPR 34 Afegãos ao abrigo do programa de evacuação humanitária e 2 requerentes provenientes de resgates de barcos humanitários no Mediterrâneo. Além disso, o CPR acolheu ainda 10 cidadãos provenientes da Ucrânia.

    Além de acolher os requerentes de asilo, o CPR contabilizou ainda, na primeira metade deste ano, 13.838 atendimentos jurídicos, sociais, de integração e psicológicos a requerentes e beneficiários de proteção internacional de 83 nacionalidades.

    (Foto: D.R./ CPR)

    Na União Europeia, o número de pedidos de pedidos de protecção internacional, diminuiu 5% nos primeiros seis meses deste ano, comparando com o mesmo período de 2023, abrangendo 76.795 pedidos, segundo dados do Eurostat.

    De resto, em termos anuais, Portugal tem registado um aumento dos pedidos, e 2023 não foi uma excepção. No ano passado, foram comunicados ao CPR, 2.565 pedidos de protecção internacional espontâneos, o que representa um aumento 20% face ao ano anterior. Destes, 482 requerentes foram identificados como particularmente vulneráveis, incluindo 108 crianças não acompanhadas. Quanto ao género, apenas 26% eram mulheres.

    Relativamente a 2023, o CPR garantiu acolhimento a 1.937 requerentes espontâneos, o que corresponde a um aumento de 23% relativamente ao ano anterior. No caso dos menores não acompanhados, esta entidade concedeu guarida a 62 crianças em 2023.


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  • Fornecedores escolhidos a dedo: Parques de Sintra gasta quase meio milhão em ‘bibelots’ para turistas

    Fornecedores escolhidos a dedo: Parques de Sintra gasta quase meio milhão em ‘bibelots’ para turistas

    A gestora dos parques e monumentos de Sintra ‘queimou’ 455 mil euros em 15 dias, em dois ajustes directos para rechear as suas lojas com ‘souvenirs’ para turistas. A despesa em ‘marketing cultural’ abrangeu a compra, sem concurso, de produtos como sabonetes, canecas e bases para tachos em cortiça com azulejo pintado. A Parques de Sintra – Monte da Lua alega existirem critérios materiais para contornar a necessidade de fazer concursos públicos. E garante que o merchandising é um negócio lucrativo, não se tratando de despesas, mas de investimento, já que obtém retorno para os seus cofres. Mas estas não foram as únicas compras feitas sem concurso pela Parques de Sintra – Monte da Lua, que em menos de dois meses ‘estoirou’ mais de um milhão de euros em contratos de valor avultado feitos com fornecedores escolhidos a dedo.


    À grande e à francesa. Foi assim que, no espaço de duas semanas, a Parques de Sintra – Monte da Lua (PSML) fez ‘voar’ 455,1 mil euros de dinheiro dos contribuintes na compra de sabonetes e outros ‘recuerdos‘ para vender a turistas, através de duas compras a fornecedores escolhidos a dedo, sem concurso.

    num dos contratos, firmado a 7 de Agosto, a gestora dos parques e monumentos de Sintra ‘largou’ 307,5 mil euros (com IVA incluído) para rechear as suas lojas com canecas, bases para tachos em cortiça com azulejo, cadernos, sacos e outros ‘bibelots‘ de ‘marketing cultural’. A ‘sorte grande’ saiu à empresa Liquid Brand Unipessoal, que ganhou o contrato para fornecer, durante três anos, “produtos de merchandising cultural com design de autor para revenda” sem ter de enfrentar concorrência.

    (Foto: D.R.)

    A carta-convite enviada a esta empresa foi assinada pela presidente da PSML, Florinda Cruz. A Parques de Sintra justificou a opção pelo ajuste directo com o artigo 24º, número 1, alínea a), do Código dos Contratos Públicos (CCP), que prevê a excepção quando “em anterior concurso público ou concurso limitado por prévia qualificação, nenhum concorrente tenha apresentado proposta, todas as propostas tenham sido excluídas com fundamento na primeira parte da alínea a) do n.º 2 do artigo 70.º, nenhum candidato se haja apresentado, ou todas as candidaturas tenham sido excluídas com fundamento nas alíneas c), j) ou l) do n.º 2 do artigo 184.º” do CCP.

    Contudo, consultado o Diário da República, não se encontra nenhum anúncio da PSML relativo a abertura de concurso para a compra de produtos de merchandising. Contactada, a PSML respondeu que houve um “lapso” e que, afinal, o ajuste directo foi feito ao abrigo do artigo 24º, número 1, alínea e), subalínea iii) do CCP, ou seja, por ser “necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual”. E indicou que esta fundamentação está expressa nas peças de procedimento que acompanham o anúncio do ajuste directo.

    Entretanto, a PSML corrigiu a fundamentação que constava no anúncio no Portal Base. Contudo, consultadas peças de procedimento que acompanham o anúncio do ajuste directo, apenas na carta-convite se encontra a fundamentação referida pela PSML, mas sem mencionar a alínea iii) do mesmo artigo do CCP, a qual justifica a ausência de concurso com a fundamentação de que é necessário proteger direitos, incluindo de propriedade intelectual. O que consta da carta-convite é a apenas a invocação do artº 24, número 1, alínea e), que justifica o ajuste directo quando “as prestações que constituem o objeto do contrato só possam ser confiadas a determinada entidade por uma das seguintes razões”. Fica-se, assim, sem saber oficialmente, de forma documentada, o motivo para a ausência de concurso.

    Segundo o CCP, o ajuste directo em caso de compra de bens ou serviços deve ser de montante inferior a 20 mil euros. Mas a Lei admite excepções em caso de haver ‘critérios materiais’ específicos. Consultando o Portal Base, verifica-se que a excepção passou a ser a norma e muitas entidades públicas passaram a entregar milhares ou mesmo milhões de euros a um só fornecedor, que é escolhido a dedo, sem que haja um procedimento concursal, alegando as mais diversas justificações, as quais não são aplicáveis em diversos casos.

    O segundo fornecedor escolhido a dedo para fornecer bens para as lojas da PSML foi a conhecida fabricante de sabonetes nortenha Castelbel Artigos de Beleza, que facturou 147,6 euros (com IVA incluído) num contrato por ajuste directo firmado no dia 30 de Julho.

    Neste caso, ao invés de lançar um concurso, dando a oportunidade a outros fornecedores para fornecerem as lojas da PSML, a empresa decidiu escolher sozinha a Castelbel para fornecer sabonetes, velas aromáticas, difusores de perfume e saquetas perfumadas. Para realizar este ajuste directo, a PSML alegou ser “necessário proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual”.

    Este é o segundo ajuste directo firmado com a Castelbel. Em 2018, a PSML firmou um contrato com a empresa nortenha invocando o artigo 24.º, n.º 1, alínea e), subalínea ii), do CCP, ou seja, alegando que não exista mais nenhuma empresa que pudesse fornecer os artigos pretendidos de perfumaria para revenda por motivos técnicos.

    Mas a opção pelo ajuste directo para ‘rechear’ as lojas com artigos de revenda é recorrente. Em Novembro de 2023, a PSML publicou no Portal Base um contrato por ajuste directo no montante de 150 mil euros com a empresa Gatafunhos para a aquisição de artigos de merchandising, nomeadamente canecas, t-shirts e sweat-shirts. Em Setembro de 2022, já tinha sido celebrado um contrato similar no valor de 75 mil euros, sem que fosse divulgado o preço unitário de cada produto a comprar. Aliás, chegaram a ser vendidos, no âmbito deste contrato, produtos que não constavam do contrato celebrado com a Gatafunhos. Na altura, o director de comunicação da PSML, Rui Mateus, justificou ao PÁGINA UM que “inicialmente, o contratante pode estabelecer os produtos que previsivelmente pretende obter, mas podem ser criados, ao longo da execução do contrato, novos produtos ou produtos que sejam claramente mais vendáveis”, dependendo do ‘apetite’ dos consumidores e das tendências do mercado. Também garantiu que o negócio compensou, já que “uma despesa de 75 mil euros originou uma receita superior a 200 mil euros”.

    Mas estes são apenas dois dos ajustes directos feitos pela PSML, mas a empresa, só nos últimos dois meses, gastou cerca de um milhão de euros dos contribuintes em 16 contratos por ajuste directo relativos à compra de bens e contratação de serviços diversos, desde a instalação de máquinas de venda automática de bebidas, a actividades equestres e compra de material de canalização, passando pela contratação de serviços de comunicações móveis à Meo. Tudo sem concurso ou por serem de valor abaixo dos 20 mil euros ou alegando-se critérios materiais específicos.

    (Foto: D.R./Parques de Sintra)

    Dos ajustes directos contratados desde o início de Julho, cinco envolvem montantes globais acima dos 100 mil euros. É o caso dos dois contratos com a Castelbel e a Liquid Brand Unipessoal e mais três. Um deles, publicado no dia 14 de Agosto no Portal Base, diz respeito a “Aquisição de chocolate quente, derivados, chás, bebidas sem glúten e açucaradas para venda nos espaços de Cafetaria e Restauração sob a gestão da Parques de Sintra”. Neste caso, a PSML escolheu a empresa Natfood Portugal, Limitada, que factura 98.000 euros (sem IVA), para fazer o fornecimento daqueles produtos a quiosques e cafetarias da PSML durante dois anos.

    Estranhamente, para justificar não ter feito concurso, a PSML invocou o artigo 20º, número 1, alínea d) do CCP que permite a opção pelo ajuste direto, “quando o valor do contrato for inferior a € 20 000”.

    Um outro ajuste directo avultado foi feito no início de Julho com a Multimac Hito Innovation, no montante global de 239 mil euros referente a “serviço de suporte e manutenção do sistema de bilhética”. Também no início do mês passado, a PSML assinou um contrato por ajuste directo com a Revelamos Jornalismo e Fotografia no valor de 125 mil euros, a que acresce IVA, para a “aquisição de artigos com imagens de autor”.

    A verdade é que a vida não corre mal à PSML, uma sociedade anónima de capitais públicos criada em 2000, e que tem como actuais acionistas a Direção-Geral do Tesouro e Finanças, com uma participação de 35%, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, também com uma participação de 35% e o Turismo de Portugal e a Câmara Municipal de Sintra, ambos com 15% do capital.

    Pormenor do Palácio Nacional de Queluz. (Foto: D.R./PSML)

    Em 2023, as receitas da empresa pública subiram 25,3% face ao ano anterior, fixando-se em 34,7 milhões de euros, mas o valor ficou ligeiramente abaixo da facturação em 2019, antes da pandemia de covid-19 e das medidas radicais impostas pelo Governo, que arrasaram o sector do turismo e da restauração e atiraram a PSML para o registo de prejuízos em 2020 e 2021.

    Segundo a empresa, a sua principal fonte de receitas continua a ser a venda de bilhetes (para se visitar o Palácio da Pena, por exemplo, o custo de um bilhete normal é de 20 euros), que representou 80% total em 2023. A restauração corresponde a 9% das receitas e as lojas 4%. A empresa teve um lucro de 7,132 milhões de euros em 2023, uma ligeira descida face aos 7,264 milhões de euros obtidos em 2022. Ainda assim, os valores estão aquém do lucro de 10,2 milhões de euros observados em 2019.

    Mas, seja com lucro ou com prejuízo, a obrigação de observação de regras de transparência no uso de dinheiros públicos é a mesma e o que é certo é que em vários contratos celebrados pela PSML a justificação para a opção pelo ajuste directo deixa muito a desejar.


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  • Coimbra é a ‘cidade dos doutores’, enquanto há vastas regiões do país onde os médicos não querem viver

    Coimbra é a ‘cidade dos doutores’, enquanto há vastas regiões do país onde os médicos não querem viver

    Se é expectável que seja nos concelhos com hospitais de maior dimensão que vivam mais médicos, uma análise do PÁGINA UM aos dados de 2023 disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística mostra que há vastas regiões do país onde, mesmo com programas de incentivo, os médicos não se querem fixar, acarretando efeitos catastróficos na assistência das populações, sobretudo dos mais idosos. Na verdade, o rácio médio de médicos (5.8 por mil habitantes) em Portugal não tem qualquer significado: por exemplo, se o concelho de Coimbra, onde quase 4% da população é licenciada em Medicina, apresenta um valor que está seis vezes acima da média nacional, há nove em cada 10 municípios que não superam o valor médio. Destes, 109 têm menos de dois médicos por cada mil habitantes. A pior situação é na Pampilhosa da Serra, ironicamente no mesmo distrito de Coimbra.


    Em Junho passado, a Câmara de Montalegre anunciou um incentivo para a fixação de médicos naquele concelho transmontano que inclui habitação, pagamento de despesas como energia, água e Internet e entrada gratuita em serviços e equipamentos municipais. Compreende-se: o rácio de médicos residente, segundo os mais recentes dados do Instituto Nacional de Estatística, é de apenas 2 por mil habitantes – menos de metade da média nacional (5,8 por mil habitantes), o que significa, atendendo à sua população total que ali vivem apenas 18. Na verdade, até se pode dizer que, além de clínicos gerais, haverá em Montalegre um cirurgião, três médicos de Medicina Geral e Familiar, um de Medicina Interna, um ortopedista e um de Medicina Intensiva. Contas feitas, de entre as 96 especialidades registadas pelo INE, de entre os médicos que ali  vivem só há cinco especialidades.

    As ofertas municipais de fixação de médicos passaram a ser quase generalizadas ao país, esquecendo as autarquias que se se puxa o cobertor para um lado se destapa outro. Numa pesquisa rápida acumulam-se tanto os incentivos das autarquias para atrair médicos como queixas pela sua falta. Em Abril, Figueiró dos Vinhos também divulgou condições especiais aos médicos que ali fixassem residência. Tem um rácio de 2,7 médicos por mil habitantes Ourém conseguiu recentemente atrair nove médicos para o concelho através de incentivos remuneratórios. Mesmo assim continua muito abaixo do rácio médio, apenas com 1,5 por mil habitantes.

    doctor holding red stethoscope

    Castanheira de Pêra procurou, igualmente, cativar médicos, no final do ano passado, acenando com um incentivo mensal de 2.200 euros para quem optasse por viver no concelho. Não se sabe se resultará, mas bem precisado se encontra este pequeno concelho do distrito de Leira, localizado a pouco mais de 40 quilómetros de Coimbra. Acabou o ano de 2023, segundo os dados do INE, com um miserável rácio de 0,7 médicos por mil habitantes, o terceiro pior do país (a par de Cadaval, Barrancos, Vila do Bispo e Lajes das Flores), apenas atrás dos concelhos de Pampilhosa da Serra (0,5 médicos por mil habitantes) e Pedrógão Grande (0,6).

    Podem existir outros bons indicadores para avaliar o quão enviesado se encontra o desenvolvimento de Portugal e também que mostre como tão desequilibrado se encontra o país em termos de atractividade, mas pouco ‘batem’ o rácio dos médicos por habitante. Sendo certo que, obviamente, será expectável, aceitável e mesmo normal que este rácio seja bastante mais elevado em grandes cidades, sobretudo com centros hospitalares de referência, quando se observam os valores em concretos fica-se de imediato com a percepção e noção, em simultâneo, que Portugal tem um problema de Saúde Pública.

    Na verdade, o rácio médio neste caso significa pouco ou nada – ou melhor, talvez até muito porque mostra como os médicos não se sentem muito atraídos por grande parte do país. Saber se o problema é das condições de grande parte do país ou de se de grande parte dos médicos, fica para outras análises. Certo é que somente há 30 municípios, de um universo de 308, que estão acima da média dos 5,8 médicos por mil habitantes, o que significa que há, assim, 278 abaixo da média. E muitos estão mesmo muito abaixo da média.

    Com efeito, para além dos já mencionados municípios com baixa concentração de médicos residentes (Pampilhosa da Serra, Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra, Cadaval, Barrancos, Vila do Bispo e Lajes das Flores), há mais 18 municípios que não ultrapassam o rácio de um médico por mil habitantes. Destes os municípios de Barrancos, Lajes das Flores, Góis e Freixo de Espada-à-Cinta não têm sequer médicos de uma qualquer especialidade. Essa ‘característica’ é extensível a mais dois concelhos: Monchique e Oleiros.

    brown brick house on green grass field under blue sky during daytime
    Concelhos rurais e envelhecidos não atraem médicos, mesmo quando as autarquias concedem subsídios.

    Contratando (ou confirmando) este cenário terceiro-mundista, os únicos municípios acima da média nacional em termos de rácio de médicos são, geralmente, aqueles onde se localizam unidades de saúde, mostrando que em Portugal a Saúde Pública ainda está ainda muito associada à assistência hospitalar e à concentração de consultas e tratamentos ambulatórios em cidades. Neste pequeno grupo destacam-se, com mais de 10 médicos por mil habitantes, Matosinhos, Faro, Oeiras – onde, de forma absurda, a autarquia concede também incentivos para fixação de residência a estes profissionais – e sobretudo Lisboa, Porto e Coimbra.

    A cidade do Mondego é, aliás, a terra dos doutores portugueses com um rácio de 34,7 médicos por mil habitantes, seis vezes superior à média nacional. Significa que em 100 conimbricenses se encontram mais de três médicos, e de quase todas as especialidades: 92 em 96 ‘vivem’ (e exercem) por lá. Mais afastado está a cidade do Porto onde se encontra um rácio de 22 médicos por mil habitantes, cerca de quatro vezes a média nacional, mas até tem mais especialidades (94) do que as contabilizadas em Coimbra. No terceiro lugar do pódio surge então a cidade de Lisboa com um rácio de 17,6 médicos por mil habitantes, abrangendo 94 especialidades.

    Saliente-se também que estes são os únicos municípios onde vivem médicos de mais de 90 especialidades, sendo que somente Vila Nova de Gaia (88), Oeiras (87) e Cascais (83) têm mais de 80 médicos especialistas a viverem nos respectivos concelhos.

    Em termos regionais, a Região de Coimbra é aquela que apresenta um melhor rácio (13,8 médicos por mil habitantes), mas também maiores desigualdades. De entre os 19 municípios que constituem esta região, além do município de Coimbra, apenas Figueira da Foz (7,1) e Condeixa-a-Nova (6,2) apresentam um rácio superior à média nacional. E há 10 municípios desta região com rácios inferiores a 3 médicos por mil habitantes:  Montemor-o-Velho (2,9), Soure (2,7), Lousã (2,6), Oliveira do Hospital (2,1), Tábua (2,0), Penacova (1,5), Arganil (1,1), Vila Nova de Poiares (1,1), Góis (0,8) e Pampilhosa da Serra (0,5).

    city with high rise buildings under white clouds during daytime
    Coimbra é literalmente a ‘cidade dos doutores’, com um rácio de 34,7 médicos por mil habitantes, seis vezes superior à média nacional. No município de Pampilhosa da Serra, que integra o seu distrito, este rácio é de 0,5.

    Mas mesmo na Região de Lisboa essas disparidades ficam patentes, que mais do que efeitos negativos em termos de assistência médica, mostra que há concelhos pouco atractivos para os médicos viverem. De facto, apesar de possuir no seu concelho um grande hospital (Dr. Fernando Fonseca), o rácio de médicos da Amadora é inferior à média nacional (3,7), e pior ainda está Sintra (2,7).

    Mas muito pior ainda, em termos regionais, está o Alentejo Litoral, que tem apenas um rácio de 2,2 por mil habitantes. O ‘melhor’ dos cinco concelhos desta região é Santiago do Cacém com 3,8, bastante abaixo da média nacional. Não está esta região sozinha em escassez de médicos. De acordo com os dados do INE, também nas regiões do Ave, do Tâmega e Vale do Sousa, de Leiria, da Beira Baixa, do Oeste, do Médio Tejo e mesmo de Setúbal não há um único município com rácio de médicos acima da média nacional. E nos Açores e na Madeira apenas Ponte Delgada (7,1) e Funchal (9,0) estão acima da média.


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  • Mais de 1,2 milhões de euros de dinheiros públicos para evento com ‘naming’ do Continente

    Mais de 1,2 milhões de euros de dinheiros públicos para evento com ‘naming’ do Continente

    A Volta a Portugal em bicicleta foi perdendo élan nas últimas décadas, mas mantém-se no imaginário de autarcas, que abrem os cordões à bolsa com dinheiros públicos, para os seus municípios serem escolhidos pela organização como locais de chegada, de partida e até de metas volantes. Como o negócio fala mais alto, o resultado é uma Volta que parece uma manta de retalhos, onde os ciclistas quase andam tanto de autocarro como de bicicleta. A edição deste ano, de acordo com as contas do PÁGINA UM, já ultrapassam os 1,2 milhões de euros de dinheiros públicos, mas o ‘naming’ foi sacado pelo Continente por um valor não divulgado pela empresa organizadora, a Podium Events.


    A empresa organizadora da Volta a Portugal em bicicleta – que terminou no passado domingo com a vitória do russo Artem Nych –, que conta com quatro empregados, já garantiu na edição deste ano mais de 1,1 milhões de euros de dinheiros públicos. Apesar do ‘naming’ deste evento desportivo estar associado aos supermercados Continente, do Grupo Sonae, e existirem dezenas de patrocinadores e fornecedores oficiais, uma parte substancial das receitas da Podium Events surge de ‘patrocínios’ de autarquias e outras entidades públicas, em grande parte dos casos como contrapartida de os municípios respectivos serem escolhidos para início ou fim das etapas.  

    No passado dia 24 de Julho, quando se iniciou a principal prova portuguesa que integra o calendário da Union Cycliste Internationale (UCI) Europe Tour, o PÁGINA UM já tinha relatado que, contabilizando também um patrocínio da Santa Casa da Misericórdia de 310 mil euros, constavam no Portal Base contratos envolvendo entidades públicas e a Podium Events no valor de quase 815 mil euros. Mas este valor foi aumentando à medida que se foi desenrolando o evento. Entre o dia do prólogo até sexta-feira passada foram adicionados mais sete contratos com autarquias (Felgueiras, Bragança, Fafe, Boticas, Paredes e Santarém) e mais um com a Entidade Regional de Turismo do Centro de Portugal. No caso do ajuste directo com a Câmara Municipal de Bragança – a única localidade com ‘direito’ a ser sítio de chegada e partida durante a edição deste ano da Volta a Portugal –, o montante em causa (210 mil euros) garante, desde já, uma nova passagem em 2025.

    Autarquias a pagar para ver chegar e partir os ciclistas aparentam ser o factor mais determinante para que a Podium Events – que, também com outra denominação, tem organizado ou co-organizado esta prova, desde o início do século –, o que ‘obriga’ a uma complexa ginástica que tornou a Volta a Portugal num quase exercício de ‘pogo stick’.

    Com efeito, nos últimos anos, o pelotão não descansa logo que acaba uma etapa, porque na esmagadora maioria das etapas tem de saltar de bicicletas e bagagens para outra localidade, para daí partir na manhã seguinte. Em alguns casos, a caravana vai literalmente em mais do que duas rodas durante largos quilómetros.

    Por exemplo, na edição 85 que terminou domingo, depois do prólogo em Águeda, a primeira etapa saiu, no dia seguinte, em terras do vizinho concelho da Anadia, uma vila de Sangalhos. Neste caso foram 12 quilómetros, mas a primeira etapa terminou em Miranda do Corvo, mas a caravana viu-se obrigada a percorrer em veículos 111 quilómetros, porque a segunda etapa saiu de Santarém. Essa etapa terminou em Lisboa, e nova ‘peregrinação’ houve: 180 quilómetros até ao Crato, no norte do Alentejo, onde se iniciou a terceira etapa.  

    Não considerando o prólogo (Águeda) e o contra-relógio da última etapa (Viseu) – que, pela curta distância, podem ser considerados ‘circuitos’ –, apenas houve uma etapa que se iniciou na mesma localidade onde terminou a anterior: Bragança.

    De resto, a caravana automóvel, com os ciclistas à boleia, andou de norte ao centro do país para levar tudo do sítio onde se terminou para o outro onde se continuaria, a saber: Covilhã-Sabugal (42 km), Guarda-Penedono (63 km), Boticas-Felgueiras (79 km), Paredes-Viana do Castelo (83 km), Fafe-Maia (55 km) e Mondim de Basto-Viseu (123 km). Contas feitas, os ciclistas que terminaram a Volta pedalaram cerca de 1.540 quilómetros, mas entre etapas, de carro, andaram mais 748 quilómetros.

    Na análise do PÁGINA UM, apesar da Volta a Portugal deste ano ter tido somente um prólogo e 10 etapas, houve 18 concelhos onde a caravana parou para chegar ou partir. Até agora, não surgem ainda no Portal Base respeitantes à passagem da prova ciclista nos municípios do Crato, Sabugal, Penedono, Viana do Castelo, Maia, Mondim de Basto e Viseu. Também ainda não aparece qualquer contrato com a autarquia de Miranda do Corvo, chegada da primeira etapa, embora haja um apoio de 19.990 euros da Entidade Regional de Turismo do Centro de Portugal.

    De resto, todas as outras 11 autarquias por onde ‘estancou’ a caravana já abriram os cordões da ‘bolsa pública’ em direcção à Podium Events, sem sequer ser claro os critérios para definir o montante que cada uma pagou. O município de Águeda para ter o prólogo, mas sem direito a partida da primeira etapa, gastou 110 mi euros. Por sua vez, a autarquia de Anadia somente despendeu 24.390,24 euros – sem se perceber o motivo de, contrariamente aos outros, não haver um número redondo – para ficar com a saída da primeira etapa. Na segunda etapa, que ligou Santarém a Lisboa, a autarquia escalabitana desembolsou 20 mil embora, mas na capital foi a Junta de Freguesia de Marvila – onde se localizam alguns dos bairros mais maiores carências – que pagou à Podium Events, e não foi pouco: 90 mil euros para ficar no ‘mapa da Volta’ por uma simples tarde, até porque a caravana seguiu logo para o Crato.

    Como já referido, não existe ainda informação sobre verbas pagas pelos municípios da saída da terceira (Crato), quarta (Sabugal) e quinta (Penedono), mas há para as metas: a autarquia da Covilhã pagou 60 mil euros, a da Guarda 140 mil (integrado num contrato de quatro anos assinado em 2022 no valor total de 400 mil euros) e a de Bragança desembolsou 105 mil euros, que incluiu a partida da sexta etapa.

    Por sua vez, Boticas pagou 80 mil euros para ser meta da sexta etapa, enquanto Felgueiras e Paredes, que se ligaram na sétima etapa, deram à Podium Events 35 mil e 80 mil euros, respectivamente. Relativamente às etapas oitava a décima, somente se conhece ainda os 80 mil euros pagos pelo município de Fafe e os 79.950 euros pagos pela autarquia de Mondim de Basto por ter a etapa final na Senhora da Graça. E há ainda uma autarquia, a de Penamacor, que decidiu pagar 10 mil euros, em ajuste directo, apenas para que houvesse uma simples passagem por esta vila do distrito de Castelo Branco com direito a ‘meta volante’.

    Além destas verbas, este ano a Santa Casa da Misericórdia achou por bem ‘despachar’ 620 mil euros para a Podium Events para ser patrocinador, durante duas edições, da camisola branca (para o melhor jovem ciclista na classificação geral)) e do Prémio Melhor Português. Ou seja, 310 mil euros em cada ano. Este contrato tem, além de tudo, partes expurgadas: cerca de seis páginas do texto inserido no Portal Base, respeitantes à cláusula segunda, estão irregularmente em branco, uma vez que o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC) permite estes abusos.

    Contas feitas, e contabilizando o patrocínio da Santa Casa da Misericórdia, a facturação com dinheiros públicos da Podium Events já ultrapassa os 1,23 milhões de euros, podendo ainda subir. Este montante representa cerca de um terço da facturação em todas as actividades desta empresa – que não se cinge á Volta a Portugal – ao longo do ano de 2022. A empresa, que apresentou nesse ano, um lucro de 1.263 euros, ainda não apresentou as contas do exercício do ano passado, mas mostra-se evidente ser apenas um intermediário, dado que conta quatro empregados e praticamente todas as verbas arrecadadas servem para contratar serviços externos.

    Saliente-se que, para contornar o impedimento de patrocínios directos a empresas privadas, a generalidade dos contratos celebrados pelas autarquias, sob a forma de ajuste directo, indicam estar-se perante uma aquisição de serviços – como se fossem os municípios os organizadores do evento –, o que constitui uma forma pouco ortodoxa de cumprir o Códigos dos Contratos Públicos. Até agora, o Tribunal de Contas tem ‘fechado os olhos’, mesmo sendo evidente que se está perante patrocínios, tanto assim que a lista das autarquias surge na página dedicada aos patrocinadores.

    Embora a Podium Events realize outros eventos, sobretudo de ciclismo, as entidades públicas, sobretudo autarquias, são relevantes clientes. Desde 2009 contabilizam-se quase 190 contratos, envolvendo quase 13 milhões de euros, ultrapassando assim os 15 milhões, caso se inclua IVA. Mais de 3,6 milhões de euros apenas desde 2022.

    Grande parte destes contratos envolvem autarquias e comunidades intermunicipais, destacando-se como melhores clientes da Podium Events, para além da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (620 mil euros), os municípios de Lisboa (1,8 milhões de euros), de Castelo Branco (1,04 milhões de euros), de Viana do Castelo (895 mil euros), da Guarda (790 mil euros), Mondim de Basto (533 mil euros), Montalegre (430 mil euros), Covilhã (375 mil euros) e Braga (355 mil euros).

    O PÁGINA UM contactou a Podium Events para obter esclarecimentos e outras informações, mas não obteve resposta. Não foi assim esclarecido quanto pagou a Sonae pelo ‘naming’ da Volta a Portugal, que, para se realizar este ano, implicou mais de 1,2 milhões de euros em apoios públicos.


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  • Uma serralharia de Guimarães é a única empresa capaz (por três vezes) de ‘tratar’ de um bloco operatório do Hospital de Faro

    Uma serralharia de Guimarães é a única empresa capaz (por três vezes) de ‘tratar’ de um bloco operatório do Hospital de Faro

    O caso foi insólito no primeiro ajuste directo. Estranho no segundo. E cada vez mais suspeito ao terceiro. Por estranhas razões, a empresa Custódio de Castro Lobo & Filhos, uma simples serralharia de Guimarães, conseguiu, desde Setembro do ano passado, sucessivos ajustes directos adjudicados pelo Centro Hospitalar Universitário do Algarve, primeiro para instalar um bloco operatório em estrutura amovível, depois para serviços de ‘terraplanagem’ e, agora, para efectuar melhorias não especificadas. Tudo sem concurso, sempre com justificações diversas, e a última mesmo absurda. Certo é que a empresa vimaranense, com sede a 600 quilómetros de distância de Faro, já facturou com este negócio mais de 1,2 milhões de euros.


    Já diz o ditado que ‘não há duas sem três’. No caso de uma empresa de serralharia de Guimarães, a permissa cumpriu-se. A sociedade Custódio de Castro Lobo & Filhos conseguiu um terceiro contrato por ajuste directo com o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), desta vez, para efectuar “melhorias funcionais ao novo edifício do Bloco Operatório Amovível”, sem se saber que melhorias são precisas para uma unidade que terá sido construída, em princípio para ficar funcional, pela mesma empresa, há menos de um ano.

    Ao todo, não tendo transcorrido uma volta da Terra ao eixo do Sol, esta empresa facturou já 1.245.495,90 euros em três contratos com o CHUA. O primeiro contrato que conseguiu, em Setembro de 2023, no valor de 800 mil euros, noticiado pelo PÁGINA UM, envolveu a ‘montagem de bloco operatório, duas salas cirúrgicas, em estrutura aligeirada amovível’.

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    (Foto: D.R.)

    Seguiu-se, no mesmo mês, um segundo e estranho contrato de 199.249,60 euros para a realização de ‘trabalhos de terraplanagem, modelação do terreno e preparação de acessibilidades’, apesar de o alvará registado pela serralharia vimaranense no Instituto dos Mercados Públicos Imobiliário e Construção (IMPIC) não pareça abranger a execução daquele tipo de trabalhos de construção, como o PÁGINA UM também noticiou.

    Agora, no dia 1 de Agosto, foi publicado no Portal Base um terceiro contrato, assinado a 20 de Maio, por ajuste directo, entre a CHUA e a Custódio de Castro Lobo & Filhos, no valor de 246.246,30 euros, para efectuar ‘melhorias funcionais ao novo edifício do Bloco Operatório Amovível’. O motivo invocado, desta vez, para a não realização de concurso público pelo CHUA, foi a necessidade de “proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual“, algo que, por norma, se aplica à compra de obras de arte ou de espectáculos culturais, e não para obras de construção, como blocos operatórios. Instado a comentar este argumento, o centro hospitalar nada disse a este respeito.

    Assim, segundo o CHUA, o primeiro contrato com esta serralharia foi feito sem concorrência invocando o o artigo do Código dos Contratos Públicos que admite o ajuste directo quando “em anterior concurso público ou concurso limitado por prévia qualificação, nenhum concorrente tenha apresentado proposta, todas as propostas tenham sido excluídas […], nenhum candidato se haja apresentado, ou todas as candidaturas tenham sido excluídas” com base em determinados fundamentos.

    A serralharia de Guimarães tem um alvará de empreiteiro de obras públicas mas não consta expressamente no IMPIC que esteja habilitada para efectuar um dos serviços contratados pelo CHUA, que envolveu a execução de terraplanagem. (Foto: PÁGINA UM)

    No segundo contrato, o da terraplanagem, o argumento usado pelo CHUA foi o da urgência, para não lançar concurso público. Isto sabendo-se que, nestes casos, o ajuste directo só pode ser justificado se “estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, [e que] não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias […] não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”. Para essa opção, não basta invocar, mas tem de se fundamentar; algo que nunca sucedeu.

    De resto, antes destes contratos com o centro hospitalar algarvio, a empresa de Guimarães tinha apenas mais um contrato registado, além destes três ajustes directos com o CHUA: um contrato obtido através de um procedimento de consulta prévia, em Junho de 2023, com o Município de Alijó, no valor de 23.070 euros para ‘Aquisição de serviços de restauro e recuperação de peças para exposição do Centro Interpretativo D`Olival ao Azeite de D`Ouro’.

    Saliente-se que esta empresa vimaranense tem uma estrutura familiar, sendo gerida por José Dâmaso da Cruz Castro Lobo, um empresário que também é dono da Mabera, que comprou a histórica têxtil Coelima, em 2021, para a recuperar. No seu portfólio, disponível no site da empresa, a serralharia vimaranense apresenta como clientes o Hospital de Braga, apesar de no Portal Base não constar nenhum contrato correspondente. No entanto, é comum existirem subcontratações em obras de grande envergadura.

    Destaque-se que o Hospital de Braga chegou a ser presidido pelo actual presidente do CHUA, o economista João António do Vale Ferreira, entre 2011 e 2019, mas o centro hospitalar algarvio sempre se escusou a esclarecer o motivo para que fosse escolhida uma serralharia a 600 quilómetros para montar um bloco operatório, que requer conhecimentos específicos.

    (Foto: D.R.)

    Com efeito, questionado pelo PÁGINA UM sobre as razões da ausência de concurso público nestes três contratos e como foi feita a escolha da empresa vimaranense, a Unidade Local de Saúde do Algarve apenas afirmou, através de respostas enviadas pelo gabinete de comunicação, que “realizou os procedimentos de contratação, a que se refere no estrito cumprimento da lei em vigor e da sua missão e na proteção de direitos e obrigações exclusivas dos Contratos Públicos”.

    Adiantou que “a escolha do procedimento contratual adotado para cada um dos contratos, encontra-se devidamente fundamentada, considerando a exigência das necessidades de garantia de prestação de cuidados em segurança, por parte do órgão competente para a decisão de contratar”, sem responder directamente às questões colocadas.

    Fonte oficial deste centro hospitalar indicou ainda que, desde o início de atividade do bloco operatório amovível, “foram já realizados 481 procedimentos urgentes em ambas as salas cirúrgicas, atendendo a que o Bloco Operatório Central da Unidade Hospitalar de Faro não estará operacional até final do corrente ano por motivo de obras adjudicadas a outro concorrente”.

    (Foto: D.R.)

    “A alteração do Plano de Contingência Clínico da obra principal para salvaguarda da segurança na reabilitação de forma muito mais célere no Bloco Central no Edifício Principal, considerando a adaptação das respostas cirúrgicas ao plano de proteção radiológica e reforço do circuito do doente, motivou a decisão de adjudicar os trabalhos necessários à empresa responsável pela construção do novo Bloco Operatório em causa”, diz fonte do centro hospitalar algarvio, acrescentando que só dessa forma ficavam garantidos “os direitos e obrigações de garantia relacionados com a montagem e fornecimento dessa instalação, e assegurando a celeridade e qualidade desejadas”.

    Este tipo de procedimentos, de sucessivos ajustes directos, transformando em fases a execução de um projecto, constitui um expediente de duvidosa legalidade, sobre o qual o Tribunal de Contas ainda se pode pronunciar. Caso tal não suceda, será provável que haja um quarto ou quinto contrato, e que a facturação improvável desta serralharia de Guimarães em serviços num hospital do Algarve, a 600 quilómetros de distância, e sem concorrência, continue de boa saúde.


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  • Açores, Algarve e Alto Alentejo lideram criminalidade contra a integridade física em 2023

    Açores, Algarve e Alto Alentejo lideram criminalidade contra a integridade física em 2023

    No ano passado foram registados cerca de 57 mil crimes contra a integridade física, mas na hora de tentar perceber onde está a maior violência, os números absolutos e o mediatismo podem enganar os mais incautos. Na verdade, quando se observam as taxas de crime sob o prisma da população residente, são municípios dos Açores, Alto Alentejo e Algarve que se destacam como os mais violentos. A taxa no município açoriano da Ribeira Grande chega mesmo a ser mais do dobro da registada na cidade de Lisboa, sendo 155% superior à média do país. E não é uma situação pontual. Em muitos discretos e pequenos concelhos, a violência criou raízes. Os municípios mais urbanos estão bastante longe de serem os piores. De entre os 10 concelhos mais populosos, o Porto é o pior (6,8 crimes por mil habitantes), mas ocupa apenas a posição 57. E naqueles que são capitais de distrito, Coimbra destaca-se pela positiva como o menos violento.


    Açores, Algarve e Alto Alentejo foram as regiões do país com maior taxa de crimes contra a integridade física ao longo do ano passado. Os dados de 2023, discriminados por município, foram revelados na quinta-feira passada pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), e analisados pelo PÁGINA UM, revelam um ligeiro acréscimo face ao ano anterior, situando-se agora em 5,4 por mil habitantes. Este valor está na linha com a evolução da última década – sempre abaixo dos 6 casos por mil -, registando-se mesmo valores bastante mais baixos nos dois primeiros anos de pandemia (2020 e 2021), que registaram apenas 4,7 casos por mil. Para a população portuguesa, uma variação de 0,1 casos por mil representa, em termos absolutos, cerca de 1.060 crimes por ano.

    Com a taxa média registada em 2023, significa que em Portugal, para uma população estimada de 10,6 milhões de habitantes, os crimes contra a integridade física terão rondado os 57 mil durante todo o ano passado, ou seja, cerca de 156 crimes desta tipologia por dia. O INE não discrimina as subcategorias destes crimes.

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    Apesar de uma percepção de que existe uma maior criminalidade associada à violência física, incluindo na esfera doméstica, em meios mais urbanos, na verdade a esmagadora maioria dos municípios que registam maior taxa são de pequena dimensão ou localizados nas ilhas. Com efeito, de entre os 20 concelhos de maior dimensão, o mais violento é o Porto, mas ocupando ‘apenas’ a 57ª posição.

    O concelho da Ribeira Grande, na ilha açoriana de São Miguel, lidera a lista dos municípios com maior violência física, tendo registado 13,8 casos por mil habitantes. Com uma população de cerca de 32 mil habitantes, esta taxa significa cerca de 440 crimes em apenas um ano. Se essa fosse a taxa nacional, em vez dos cerca de 55 mil crimes contra a integridade física contabilizados em Portugal no ano passado (6 crimes por hora), teríamos tido mais de 140 mil. o que daria 16 crimes por hora.

    Tal como outros municípios no topo em 2023, este município açoriano é um caso recorrente, pelo menos a atender aos dados discriminados por concelho pelo INE. No último triénio, Ribeira Grande esteve sempre no ‘triste pódio’: foi o segundo mais violento em 2022 (com 12, 4 por mil, apenas atrás de Santa Cruz das Flores) e foi o primeiro em 2021, com 14,4 por mil.

    O segundo concelho mais violento foi Barrancos, o município alentejano conhecido pela tourada de morte. No ano passado registou 11,9 casos por mil habitantes, mas em 2021 também ocupou a segunda posição, com 12,7 casos por mil. Em 2022 ocupou a quarta posição dos mais violentos, com 12,4 por mil. Agora já com menos de 1.500 residentes, o número absoluto de crimes contra a integridade física é, digamos, baixo: rondará os 16 crimes por ano, pouco mais de um por mês.

    No desfile da 13ª edição da Feira Quinhentista, realizada este mês na Ribeira Grande, retratou-se os tempos de violência nos tempos de Luís de Camões e Vasco da Gama. Hoje, os níveis não semelhantes, mas este município açoriano é o que regista a maior taxa de crimes contra a integridade física em Portugal. Foto: CMRG.

    No top 10 dos mais violentos em 2023 estão ainda mais quatro municípios alentejanos: Avis (3ª posição, com 11,8 casos por mil), Vidigueira (4ª posição, com 11,1 por mil), Mourão (7ª posição, com 9,9 por mil) e Ferreira do Alentejo (10ª posição, com 9,5 por mil). Neste grupo (que integra ainda um 11º município ex aequo), os restantes municípios localizam-se no distrito de Aveiro (Murtosa), e nas regiões dos Açores (Lagoa, Velas e Ponta Delgada) e do Algarve (Albufeira). No caso deste último concelho, os dados estarão inflacionados por se tratar de uma zona turística, com um fluxo de não-residentes elevado (potenciais vítimas e agressores), agravando assim o valor da taxa que é determinada pelo número de residentes habituais.

    Por via da grande preponderância de concelhos deste arquipélago, os Açores registam a taxa mais elevada de crimes contra a integridade física, com 8,8 casos por mil habitantes, um valor que é cerca de 63% superior à média nacional. Em todo o caso, nos pequenos municípios açorianos do Corvo e Lajes das Flores não existem registos desta tipologia de crimes nos últimos três anos.

    O Algarve vem pouco atrás dos Açores, com 7,8 casos por mil, mas como se referiu em relação a Albufeira este valor refllecte uma situação que não tem em conta o ‘aumento populacional’ no período estival. A fechar o pódio, encontra-se o Alto Alentejo com 7,1 casos por mil habitantes. No extremo oposto, ou seja, as zonas com menor violência física são as regiões do Ave (4,1 casos por mil) e Médio Tejo e do Tâmega e Sousa, ambas com 4,2 casos por mil.

    Nas regiões urbanas, e mais populosas, não há nenhum dos maiores municípios acima de uma taxa de 7 casos por mil. De entre os 10 municípios com mais população, acima da média nacional (5,4 por mil) estão seis: Porto (6,8), Lisboa (6,6), Loures (6,5), Almada (6,0), Amadora (5,9) e Sintra (5,5). No caso da capital, com uma população estimada de 525 mil habitantes, esta taxa significa cerca de 3.500 crimes desta natureza ao longo do ano passado, um pouco menos de 10 por dia. Abaixo da média nacional, neste grupo de municípios estão Matosinhos (5,2), Vila Nova de Gaia e Cascais (ambos com 5,1) e Braga (4,1).

    Taxa de crimes contra a integridade física (casos por mil habitantes) em Portugal entre 2011 e 2023. Fonte: INE.

    Nos restantes concelhos que são capitais de distrito – para além de Lisboa, Porto e Braga -, a incidência de criminalidade contra a integridade é muito distinta, sendo bastante baixa nas três principais cidades do Litoral Centro (Aveiro, com 4,6 casos por mil; Coimbra e Leiria, com 4,1 casos por mil) e bastante mais elevada do que a média nacional na região sul, com Beja e Faro com taxas de 7,0 casos por mil.

    Para além das já citadas cidades, de entre as capitais de distrito, há mais duas abaixo da média nacional (Guarda, com 5,3 casos por mil; e Évora, com 4,9), o concelho de Santarém apresenta o valor médio (5,4 casos por mil) e os restantes seis municípios estão acima da média nacional (Portalegre, com 6,3 casos por mil; Setúbal, com 6,2 casos por mil; Vila Real e Castelo Branco, com 5,8 casos por mil, ambos; e ainda Viana do Castelo e Bragança, com 5,6 casos por mil, ambos).


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  • Volta a Portugal é (mais) uma ‘roda dos milhões’ com dinheiros públicos

    Volta a Portugal é (mais) uma ‘roda dos milhões’ com dinheiros públicos

    Chamar Volta a Portugal à principal prova de ciclismo do país é já só uma força de expressão. Os ciclistas nem percorrem agora todas as regiões de Portugal e até andam cada vez mais de autocarro, porque a localidade de partida, no dia seguinte, é quase sempre diferente da do sítio da chegada. Este ano, por exemplo, os ciclistas pedalarão, a partir de hoje, 1.540 quilómetros, mas serão transportados em viaturas por mais 748. A ‘culpa’ é da organização que define os percursos em função das autarquias que abrem os ‘cordões à bolsa’ com dinheiros públicos. O PÁGINA UM contabilizou, só no ano passado, 16 contratos entre autarquias e a empresa organizadora (Podium Events) no valor total de quase 860 mil euros, ultrapassando um milhão se se incluir IVA. Este ano o valor deverá ultrapassar a fasquia de um milhão, uma vez que a Santa Casa da Misericórdia vai, com 310 mil euros por edição, passar a patrocinar a ‘camisola branca’. À conta dos pagamentos com dinheiros públicos – num evento que conta com dezenas de patrocinadores privados –, Lisboa só vai ser a meta da etapa desta quinta-feira porque a Junta de Freguesia de Marvila ‘despachou’ 90 mil euros.


    Uma roda de bicicleta é redonda, embora nem todas as voltas sejam circulares – mas, convenhamos que, mesmo podendo haver curvas e rectas, existia um princípio no desporto, em especial no ciclismo, sobre o conceito de Volta: pressupunha chegar de onde se partira ou, no limite, sendo por etapas, como no ciclismo, a chegada num dia sempre seria, em condições normais, a partida noutro.

    Esqueçamos isso. Se, sobretudo a partir dos anos 90, a Volta a Portugal em bicicleta nunca mais acertou em dar mesmo uma volta ao país – e o Alentejo e o Algarve chegaram mesmo a nem ser pedalados em alguns anos –, nos últimos anos tem sofrido uma espécie de esquizofrenia: o pelotão acaba uma etapa num sítio e vai de bicicletas e bagagens para sair noutra localidade pela manhã seguinte. Em alguns casos, a caravana vai literalmente em mais do que duas rodas durante largos quilómetros.

    Ciclistas vão andar a pedalar e a andar de carro (ou autocarro). Foto:  Tavfer-Ovos Matinados-Mortágua

    Exemplo paradigmático é a edição 85 que hoje se inicia a partir das 14h30, com um prólogo, em Águeda. São apenas 5,7 quilómetros, mas a primeira etapa já sairá, amanhã, em terras do vizinho concelho da Anadia, uma vila de Sangalhos. Em todo o caso, são apenas 12 quilómetros entre Águeda e Sangalhos. Terminada esta etapa em Miranda do Corvo, a caravana percorrerá em veículos 111 quilómetros, porque a segunda etapa sairá de Santarém. Essa etapa termina em Lisboa, e nova ‘peregrinação’ de popós, que será mais longa do que muitas etapas a dar ao pedal: são 180 quilómetros a partir da capital para se chegar ao Crato, no norte do Alentejo, onde se iniciará a terceira etapa.  

    Na verdade, não considerando o prólogo (Águeda) e o contra-relógio da última etapa (Viseu) – que, pela curta distância, podem ser considerados ‘circuitos’ –, apenas haverá uma etapa que se inicia na mesma localidade onde termina a anterior: Bragança. De resto, a caravana automóvel, com os ciclistas à boleia, vai andar como ‘barata tonta’ pelo norte e centro do país para levar tudo do sítio onde se termina para o outro onde se continuará, a saber: Covilhã-Sabugal (42 km), Guarda-Penedono (63 km), Boticas-Felgueiras (79 km), Paredes-Viana do Castelo (83 km), Fafe-Maia (55 km) e Mondim de Basto-Viseu (123 km). Contas feitas, os ciclistas que terminarem a Volta pedalarão cerca de 1.540 quilómetros, mas entre etapas, de carro, andarão mais 748 quilómetros.

    A razão para este ziguezaguear tem uma explicação sobretudo pragmática, ou, melhor dizendo, económica no sentido não de tempo mas de valor monetário: a organização da Volta a Portugal, entregue pela Federação Portuguesa de Ciclismo à empresa Podium Events, escolheu o traçado das etapas em função dos municípios que ‘abrem os cordões à bolsa’, ou seja, que fazem ‘circular’ o dinheiro dos contribuintes. Por exemplo, no ano passado, de entre os 20 municípios que integraram as etapas (como partida ou chegada), 15 pagaram pelo ‘serviço’: no Portal Base só não se encontraram contratos entre a Podium Events e os municípios de Viseu (onde se fez o prólogo), Vila Franca de Xira, Sines e Estremoz.

    Foto: DR

    O município da Guarda pagou 140 mil euros, havendo mais seis autarquias que pagaram, para ver os ciclistas a terminarem ou a começarem etapas, valores acima dos 75 mil euros, a saber: Loulé (85.000 euros), Viana do Castelo (83.500 euros), Castelo Branco, Fafe e Montalegre (80.000 euros, cada um), Mondim de Basto (79.950 euros) e Covilhã (52.500 euros). Com verbas mais modestas para patrocinar a Volta a Portugal adiantaram-se ainda as autarquias de Paredes (40.000 euros), Abrantes (25.000 euros), Anadia (20.325 euros), Penamacor (20.000 euros), Ourique (12.500 euros, embora a etapa tenha partido de Sines). A Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo deu um patrocínio de 15.000 euros. No total, a Podium Events – que organiza este evento desde 2001, embora com outra denominação antes de 2013 – recebeu, via municípios, quase 860 mil euros de dinheiros públicos

    Este ano deverá vir a receber muito mais, porque, além dos patrocínios dos municípios, a Santa Casa da Misericórdia continua uma ‘mãos largas’ e já assumiu contratualmente que vai pagar 620 mil euros à Podium Events para ser patrocinador, durante duas edições, da camisola branca (para o melhor jovem ciclista na classificação geral)) e do Prémio Melhor Português. Ou seja, 310 mil euros em cada ano. Este contrato tem, além de tudo, partes expurgadas: cerca de seis páginas do texto inserido no Portal Base, respeitantes à cláusula segunda, estão irregularmente em branco, uma vez que o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC) permite estes abusos.

    Tendo em conta a proximidade, para a edição da Volta a Portugal que hoje se inicia ainda estarão em falta diversos contratos entre a Podium Events e autarquias que se predispuseram a pagar largas dezenas de milhar ou mesmo mais de 100 mil euros para serem ‘escolhidas’. Por exemplo, certamente o prólogo de hoje não se realizaria em Águeda sem uma transacção de 110 mil euros. Sem contrato escrito, alegando que se trata de uma excepção no Código dos Contratos Públicos – mas de legalidade duvidosa, até por classificar o patrocínio como “serviços sociais e outros serviços específicos” –, a autarquia social democrata assumiu apenas ontem esse pagamento para ver rodar as bicicletas durante 5,6 quilómetros.

    Autarquia de Águeda pagou 110 mil euros (mais IVA) para receber prólogo da edição deste ano. Foto: DR

    Muito menos pagou o município de Anadia que, para ter a partida da etapa de amanhã no seu concelho – mais propriamente em Sangalhos, uma vila histórica do ciclismo, em cuja equipa pedalou Alves Barbosa, o primeiro vencedor de três Voltas, nos anos 50 –, despendeu ‘apenas’ 24.390,24 euros. O contrato assinado anteontem foi até aos cêntimos. Mesmo assim foi cerca de quatro mil euros acima do valor pago no ano passado pelo mesmo ‘serviço’.

    Por agora, o montante mais chorudo (140 mil euros) é o da autarquia da Guarda, estando inserido no contrato de 400 mil euros celebrado em Julho de 2022 para garantir a passagem na cidade das edições de 2022 a 2025. No caso da edição deste ano, o contrato estipula um preço de 140 mil euros, para que seja o destino final da 4ª etapa.

    Também como patrocinador nesta edição está a autarquia de Mondim de Basto, que celebrou em 2022 um contrato por três anos no valor de 195 mil euros. Para este ano, a Podium Events vai amealhar 79.950 euros deste município do distrito de Vila Real, conhecido por ter o ponto mais complicado da Volta, a Senhora da Graça.

    Também a Covilhã optou por um contrato plurianual: assinou anteontem um  para garantir a passagem na cidade serrana de duas edições da Volta de Portugal no valor de 120 euros. Assume-se que, para este ano, entregará à empresa organizadora 60 mil euros para receber o final da terceira etapa.  

    Lisboa vai estar, ao contrário do ano passado, também no mapa da Volta, mas o pelotão só se vai abeirar da freguesia de Marvila na próxima sexta-feira, como final da etapa que parte de Santarém. A razão é simples de explicar: foi a Junta de Freguesia de Marvila – e não a Câmara Municipal de Lisboa – a adiantar-se com o dinheiro. E não é pouco para esta freguesia socialista: 90 mil euros.   

    Contas feitas, e contabilizando o patrocínio da Santa Casa da Misericórdia e apenas seis autarquias – as partidas e chegadas das etapas envolvem 17 municípios –, a organização da Volta a Portugal já amealhou para a edição deste ano quase 815 mil euros de dinheiros públicos, mas será quase certo que ultrapassará a fasquia de um milhão.

    A estes montantes públicos, acrescem os financiamentos privados para a organização do evento. A Volta a Portugal tem o Continente como patrocinador principal, além de ter a Galp e a Carclasse como patrocinadores oficiais das camisolas. Entre patrocinadores e fornecedores oficiais, a Podium Events conta com mais de duas dezenas e meia de empresas privadas.

    Saliente-se que, para contornar o impedimento de patrocínios directos a empresas privadas, a generalidade dos contratos celebrados pelas autarquias, sob a forma de ajuste directo, indicam estar-se perante uma aquisição de serviços – como se fossem os municípios os organizadores do evento –, o que constitui uma forma pouco ortodoxa de cumprir o Códigos dos Contratos Públicos. Até agora, o Tribunal de Contas tem ‘fechado os olhos’, mesmo sendo evidente que se está perante patrocínios, tanto assim que a lista das autarquias surge na página dedicada aos patrocinadores.

    Embora a Podium Events realize outros eventos, sobretudo de ciclismo, as entidades públicas, sobretudo autarquias, são relevantes clientes. Desde 2009 contabilizam-se cerca de 180 contratos, envolvendo quase 12,4 milhões de euros, ultrapassando assim os 15 milhões, caso se inclua IVA. Mais de 3,1 milhões de euros apenas desde 2022.

    Grande parte destes contratos envolvem autarquias (62) e comunidades intermunicipais, destacando-se como melhores clientes da Podium Events, para além da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (620 mil euros), os municípios de Lisboa (1,8 milhões de euros), de Castelo Branco (1,04 milhões de euros), de Viana do Castelo (895 mil euros), da Guarda (790 mil euros), Mondim de Basto (533 mil euros), Montalegre (430 mil euros), Covilhã (375 mil euros) e Braga (355 mil euros).

    N.D. Houve um pequeno lapso em um dos percursos entre etapas, pelo que a distância a percorrer pela caravana de viaturas será de 748 quilómetros, e não de 762, como indicado na notícia original. Esta correcção foi introduzida às 1h30 de 26/07/2024.


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