Categoria: Saúde

  • ‘Fumos de cartelização’ em negócios de transporte de doentes na região do Médio Tejo

    ‘Fumos de cartelização’ em negócios de transporte de doentes na região do Médio Tejo

    Na região do Médio Tejo abrem-se todos os anos concursos públicos para transporte de doentes, mas já se sabe antecipamente o resultado: ninguém ganha, porque ninguém concorre. Fica tudo deserto. Depois, também já se sabe o que se segue: dezenas de ajustes directos negociados entre a administração da actual Unidade Local de Saúde (ULS) do Médio Tejo e as empresas e corporações de bombeiros. Todos ganham, menos os contribuintes. Este ano, os ajustes directos já atingem para o transporte de doentes cerca de 4,6 milhões de euros, quando os três concursos públicas tinham, no total, um preço base de menos de três milhões de euros. O maior ajuste directo é de 1,2 milhões de euros e a quilometragem contratada dá para 50 voltas ao Mundo. Até a corporação do presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, António Nunes, ganhou um ajuste directo de 250 mil euros, apesar de distar cerca de 150 quilómetros do ‘coração’ do Médio Tejo.


    Nos últimos quatro anos, os sucessivos concursos públicos abertos pela actual Unidade Local de Saúde (ULS) do Médio Tejo para transporte de doentes não urgentes têm ficado desertos – ou seja, ninguém se manifesta interessado –, mas depois surgem mais de uma dezena de associações de bombeiros voluntários, empresas do sector e mesmo a Cruz Vermelha Portuguesa interessadas nos chorudos ajustes directos, onde os preços e condições são definidas caso-a-caso.

    Os contornos, até pela recorrência e pelos intervenientes, indiciam uma possível prática ilegal de cartelização – também conhecida, nesta tipologia, por cambão –, com o objectivo de concertar preços ou estratégias em detrimento do interesse e finanças públicas, estando a fiscalização sob a alçada da Autoridade da Concorrência.

    Foto: Médio Tejo.

    De acordo com um levantamento do PÁGINA UM, só este ano a ULS do Médio Tejo – que integra agora três hospitais (Abrantes, Tomar e Torres Novas) e 34 centros de saúde – já celebrou 19 ajustes directos para transporte de doentes não urgentes que totalizam quase 4,6 milhões de euros, a que acresce IVA. O maior dos ajustes directos atinge o impressionante montante de 1,25 milhões de euros, com a empresa Ambulâncias Crespo, com sede em Fátima, que tem como referência transportar doentes entre unidades de saúde num total de 1.984.127 quilómetros durante nove meses, entre Abril e Dezembro deste ano. Contas feitas, o equivalente a quase 50 voltas ao Mundo. Acresce a este contrato um outro de 250 mil euros referente aos primeiros três meses deste ano.

    O segundo maior ajuste directo beneficia outra empresa privada: a Ambulâncias 111, uma empresa de Sintra, detida por Hélder Paiva, também presidente da Associação Portuguesa dos Transportadores de Doentes, que conseguiu um ajuste directo de 745 mil euros para transportar doentes em trajectos equivalentes a quase 30 voltas ao Mundo. Curiosamente, em Agosto do ano passado, este empresário assegurava que não se candidatava em concursos públicos, porque “os critérios não se adaptam à postura da [sua] empresa no mercado”, dizendo que os hospitais escolhiam sempre quem cobrava menos em detrimento da qualidade.  E, de facto, é mesmo verdade: a Ambulâncias 111 nunca ganhou um concurso público, embora conte 13 contratos, todos por ajuste directo – e todos, desde 2019, ao Centro Hospitalar do Médio Tejo, antecessor da ULS. O ‘maná’ dos ajustes directos apenas com este centro hospitalar já lhe granjeou uma facturação de mais de 5,3 milhões de euros.

    Foto: Médio Tejo

    A Ambulâncias 111 não é a única a fugir dos concursos públicos da ULS do Médio Tejo como o diabo da cruz, mas segue logo para o ‘beija-mão’ quando está na hora de negociar ajustes directos com a mesma entidade pública. A Ambulâncias Infante – denominada até meados do ano passado por Ambulâncias de Santa Maria de Alcobaça, desde que passou a sede para Tomar – ‘sacou’ um ajuste directo de 500 mil euros há cerca de um mês e meio, depois de se desinteressar pelos concursos públicos. Este é, no entanto, o sexto contrato, sempre por ajuste directo, que esta empresa celebra com a ULS do Médio Tejo para transporte de doentes não urgentes desde meados de 2022. Em menos de dois anos já facturou com este centro hospitalar mais de um milhão de euros. Não tem contratos com outra qualquer entidade pública até agora. Ou seja, também aparenta ter-se tornado numa ‘empresa da casa’.

    Na lista deste ano de ajustes directos para transporte de doentes surge também a Cruz Vermelha Portuguesa com três contratos assinados em Março: um de três meses por 30 mil euros; outro de um ano por 60 mil euros e outro de um ano por 200 mil euros. Contudo, a maioria das entidades contratadas são associações de bombeiros voluntários ou de socorros, quase todas da região centro. Este ano, contam-se ajustes directos para transporte de doentes com 11 associações de bombeiros ou de socorro, destacando-se os 500 mil euros com os bombeiros de Constância, os 300 mil euros com a Associação de Socorros da Freguesia da Encarnação, os 150 mil com os bombeiros de Fátima e os 250 mil euros com os bombeiros de Oeiras, apesar de distarem cerca de 150 quilómetros do coração do Médio Tejo. Saliente-se que a Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Oeiras é a entidade a que pertence António Nunes, o actual presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses.

    De entre os contratos celebrados pela ULS do Médio Tejo para transportes, há porém um único que foi precedido de concurso público, ganho pela Rodoviária do Tejo, tendo havido a concorrência de outra empresa. Mas, neste caso, a prestação de serviços, num montante de cerca de 227 mil euros entre Fevereiro e Dezembro deste ano, não será por ambulância (nem para doentes propriamente), mas sim de pessoas para os diversos hospitais, através de autocarros com uma capacidade mínima de 25 lugares. Contudo, a Rodoviária do Tejo teve ainda direito para o mês de Janeiro a um ajuste directo para esse serviço no valor de 27 mil euros.

    Foto: Médio Tejo

    A administração da ULS do Médio Tejo confirmou ao PÁGINA UM que todos os anos, desde 2021, os concursos ficam desertos, não adiantando quaisquer medidas para evitar uma prática com aparentes características de cartelização. Segundo se apurou, em Novembro do ano passado, ainda pelo Centro Hospitalar do Médio Tejo, foram abertos três concursos públicos, todos para transportes de doentes não urgentes: um com o preço base de 1.417.500 euros, outro de 630 mil euros e outros ainda de 945 mil euros. Para um negócio público que, no conjunto, envolvia quase três milhões de euros, não houve qualquer interessado. Mas depois, para ajustes directos, distribuídos por quase duas dezenas de entidades e empresas, já houve interesse. Pudera: a ULS abriu os cordões à bolsa na fase dos ajustes directos, celebrando contratos no valor de 4.565.000 euros.

    No ano passado, em 2022 e em 2021, os esquemas foram similares. Concursos desertos, ajustes directos cheios. A actual ULS gastou quase 3,1 milhões em contratos de ‘mão-beijada’ para transporte de doentes não urgentes em 2023, no ano anterior gastara cerca de 2,6 milhões de euros, e em 2021 cerca de 2,5 milhões de euros. O único concurso público que surge no Portal Base para este centro hospitalar foi celebrado em meados de 2016, e findou em Dezembro de 2018, tendo sido ganho pelos bombeiros de Constância, com um preço contratual de 4,8 milhões de euros, ou seja, um pouco menos de dois milhões de euros em média anual.

    O aumento dos custos – cerca do dobro do que se gastava antes da pandemia – é justificado pela ULS do Médio Tejo por via da fusão dos centros de saúde com o centro hospitalar decidido pelo anterior Governo, e também por razões conjunturais pós-pandemia. “Temos ainda de considerar o pico inflacionário e o próprio aumento do preço por diploma […] para este tipo de serviço”, refere o gabinete de comunicação da ULS, destacando o aumento da actividade entre 2022 e 2023, com “mais 21% de cirurgias e mais 18% de partos, 8% de internamentos e 5% de atendimentos na sua urgência mais diferenciada, em Abrantes”.

    Francisco Casimiro Ramos, presidente da Unidade Local de Saúde do Médio Tejo. Foto: Médio Tejo.

    A administração da ULS não explica quais são os critérios para a escolha das entidades que beneficiam dos ajustes directos, apenas elencando duas dezenas e meia de associações de bombeiros e de empresas de transporte de doentes a que lançaram “convite”. Na lista entregue ao PÁGINA UM encontram-se entidades que acabaram por não assinar qualquer contrato por ajuste, desconhecendo-se como foi feita, na fase de negociação, a distribuição das verbas e o estabelecimento das condições contratuais. Em todo o caso, analisando alguns contratos, o preço por quilómetro é, por regra, de 63 cêntimos, havendo outros encargos a considerar caso a caso.

    Sobre o contrato com a associação de bombeiros de Oeiras, a ULS do Médio Tejo diz ser uma ‘herança’ vinda de um contrato celebrado com a extinta Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo para transporte de doentes de hemodiálise, mas garante que “nunca foi pedido qualquer transporte a esta corporação enquanto Centro Hospitalar, e que sempre que é necessário recorrer a corporações fora da nossa área geográfica por falta de resposta dos operadores locais é sempre solicitada a devida autorização ao Conselho de Administração, com a devida fundamentação para tal”.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Covid-19: AstraZeneca retira ‘vacina problemática’ que este ano começou a dar prejuízo

    Covid-19: AstraZeneca retira ‘vacina problemática’ que este ano começou a dar prejuízo

    Mesmo a dar problemas desde o início, com efeitos adversos graves detectados logo em Abril de 2021, foram necessários três anos para que, de uma forma discreta, a AstraZeneca retirasse do mercado a sua vacina contra a covid-19, evitando uma decisão, sempre sensível politicamente, da Agência Europeia do Medicamento. Apesar da gravidade dos efeitos adversos, a AstraZeneca ainda conseguiu facturar em 2021 quase quatro mil milhões de dólares com a sua Vaxzevria, mas depois foi sendo ‘ostracizada’ e, nos anos seguintes, começou o descalabro. No primeiro trimestre deste ano até já registou prejuízos, da ordem dos 17 milhões de dólares, que estrarão associadas às eventuais indemnizações de meia centena de processos judiciais em curso no Reino Unido. Na União Europeia, a AstraZeneca não tem de se preocupar com responsabilidades, pois a Comissão von der Leyen negociou a isenção de pagamento de indeminizações para as farmacêuticas. A retirada de medicamentos associados à covid-19 não é inédito, e a própria AstraZeneca viu já colapsar o chorudo negócio de um anticorpo monoclonal depois de a Food & Drug Administration lhe ter suspendido a licença de comercialização nos Estados Unidos.


    No meio de 51 processos judiciais no Reino Unido sobre os efeitos adversos da sua vacina contra a covid-19, a AstraZeneca pediu à Comissão Europeia uma autorização para a retirada voluntária do mercado. Oficialmente, a Vaxzevria – nome comercial da vacina da farmacêutica anglo-sueca – vai deixar de ser comercializada a partir de amanhã, por razões de quebra da procura, mas essa costuma ser a ‘desculpa’ para antecipar uma expulsão pré-anunciada pelo regulador, neste caso a Agência Europeia do Medicamento (EMA).

    Com efeito, desde Abril de 2021, a Vaxzevria começou a dar indicações de graves efeitos adversos, mas a EMA manteve a autorização, embora mantendo uma monitorização adicional, que, neste momento, inclui ainda as vacinas contra a covid-19 da Pfizer, Janssen, Moderna e Hipra (uma farmacêutica espanhola que somente conseguiu aprovação no ano passado). Contudo, apesar de os peritos, como o pneumologista Filipe Froes – que colabora regularmente com a AstraZeneca –, tenham menorizado o problema, de uma forma discreta as autoridades de saúde na Europa foram descartando novas compras da Vaxzevria, mas sem assumirem os graves problemas na administração das doses já compradas ao abrigo dos acordos secretos da Comissão Europeia promovidos por Ursula von der Leyen.

    A AstraZeneca foi criada em 1999 pela fusão da sueca Astra com a inglesa Zeneca, tendo o seu core business nos fármacos no sector da oncologia.

    Na verdade, em Portugal, na Primavera de 2021, as autoridades manifestaram um completo desnorte. Depois de uma breve suspensão da administração da Vqaxzevria – que antes dos problemas detectados era administrada a menores de 65 anos –, a Direcção-Geral da Saúde decidiu que afinal se passaria a injectar aos maiores de 60 anos. E quem não a quisesse receber – porque nunca houve o ‘direito’ de se escolher a marca, mesmo se a incidência de efeitos adverso era distinta –, arriscava perder a tona, segundo para o fim da lista de prioridades.

    Em todo o caso, muito por causa destas polémicas, a vacina da Astrazeneca perdeu ‘força’ para a concorrência. De acordo com os dados do European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC), foram administradas até 5 de Outubro do ano passado 2.303.477 doses de Vaxzevria, cerca de 8,1% do total. As vacinas da Pfizer dominaram largamente com 74% das 28,3 milhões de doses administradas.

    A ostracização, embora discreta, a que a sua vacina foi votada – embora com ‘paninhos quentes’ para evitar uma ‘contaminação’ de má fama para as vacinas das outras farmacêuticas – reflectia-se já nas contas da AstraZeneca em 2022. Estando ainda a beneficiar dos acordos de compra secretos da Comissão Europeia, a Astrazeneca facturou ainda conseguiu facturar em 2021 com a sua vacina um total de 3.941 milhões de dólares em todo o Mundo, de acordo com o seu relatório financeiro anual.

    person holding white and orange plastic bottle

    No ano de 2022, já com o ‘ferrete’ dos efeitos adversos conhecidos, as receitas da Vaxzevria sofreram uma queda nas receitas de quase 55%, situando-se em 1.798 milhões de dólares. No ano passado confirmou-se o descalabro, já que quase ninguém comprou a vacina da AstraZeneca, que registou uma facturação para este fármaco de apenas 12 milhões de dólares, uma queda de 99,7% face a 2021. Os resultados do primeiro trimestre de 2024 da AstraZeneca, divulgados no passado dia 25 de Abril, indicam mesmo que a Vaxzeria já deu um prejuízo de 17 milhões de dólares, provavelmente devido a políticas de devoluções ou mesmo pela necessidade de assumir provisões para fazer face a eventuais indeminizações no Reino Unido.

    Saliente-se, contudo, que daquilo que se conhece dos acordos secretos da Comissão von der Leyen – que não se aplica ao Reino Unido –, as farmacêuticas que produziram vacinas contra a covid-19 estão desoneradas de qualquer responsabilidade para qualquer efeito adverso. Essas responsabilidades são assumidas pelos Estados, mas torna-se complexo provar esses efeitos quando os próprios reguladores, como o Infarmed, são tutelados pelos Governos, e mantêm a informação confidencial. Recorde-se, aliás, que o PÁGINA UM tem, desde finais de 2021, tentado obter informação detalhada (e anonimizada) da base de dados das reacções adversas, estando o processo de intimação agora em recurso no Tribunal Central Administrativo Sul há mais de um ano.

    A retirada do Vaxzeria do mercado comunitário por iniciativa do próprio fabricante, antes de a EMA a impor, não é a primeira envolvendo medicamentos contra a covid-19. Em Julho do ano passado, a Merck Sharpe & Dohme retirou também de forma voluntária do mercado o seu antiviral molnupiravir, convenientemente dois meses antes de estudos científicos revelarem que afinal não só era ineficaz como até promovia mutações do SARS-CoV-2.

    a person in a red shirt and white gloves

    Já no mercado norte-americano, a Food & Drug Administration não teve contemplações e retirou do mercado em Janeiro do ano passado, por ineficaz, um anticorpo monoclonal da AstraZeneca supostamente para tratamento de pessoas vulneráveis contra a covid-19.

    Este medicamento ineficaz da AstraZeneca –que em Portugal tinha Filipe Froes como uma espécie de ‘embaixador’ – tinha facturado em 2022 uma maquia fabulosa: 2.185 milhões de dólares. No ano seguinte, por via da decisão do regulador do mercado norte-americano, a factura do anticorpo monoclonal da AstraZeneca derrapou para os 132 milhões de dólares, uma queda de 94%. No primeiro trimestre deste ano valeram uma facturação de apenas 2 milhões de euros, mostrando bem a forma como os ‘humores’ e ‘rigores’ dos reguladores podem causar a ‘sorte grande’ ou o ‘desastre financeiro’ de qualquer fármaco.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Tratado Pandémico ganha ‘inimigo’ de peso nos Estados Unidos

    Tratado Pandémico ganha ‘inimigo’ de peso nos Estados Unidos

    As recentes alterações propostas ao plano de preparação para pandemias da Organização Mundial de Saúde (OMS) foram insuficientes para tranquilizar os maiores receios em torno do que está a ser planeado. Além de haver apelos para que seja adiado o prazo para a aprovação do polémico plano, um novo revés surgiu nos Estados Unidos. Todos os senadores do Partido Republicano estão contra a adesão do país ao plano que poderá dar mais poderes à OMS em caso de pandemia ou crise sanitária. Os 49 senadores Republicanos enviaram uma carta a Biden e avisam que qualquer acordo ou convenção sobre preparação para pandemias será considerado um tratado e terá de ter dois terços de votos a favor para passar no Senado. Os senadores pedem também que sejam feitas reformas na OMS antes de ser criado qualquer tratado. O plano da OMS envolve a criação de um acordo ou tratado e também alterações ao Regulamento Sanitário Internacional. Ambos estão em discussão e podem ser aprovados já no final de Maio. Entre os principais receios existentes está o alargamento dos poderes da OMS, o desrespeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como ameaças à liberdade de expressão.


    O que nasce torto será que se endireita? O plano da Organização Mundial da Saúde (OMS) para preparar o Mundo para novas pandemias enfrenta um novo obstáculo. Apesar de ter sofrido profundas alterações recentemente, as dúvidas em torno do plano persistem, incluindo nos Estados Unidos, onde todos os senadores do Partido Republicano mostraram estar contra a adesão do país ao plano da OMS.

    Esta semana, os 49 senadores Republicanos enviaram uma missiva ao presidente norte-americano pressionando Joe Biden a rejeitar o plano que poderá dar mais poderes à OMS em futuras e pandemias crises sanitárias.

    Na carta, os senadores deixam um apelo a Biden: “Pedimos fortemente que não adira a nenhum tratado, acordo ou convenção relacionados com pandemias que estejam a ser considerados”. Os países irão adoptar ou rejeitar o novo plano da OMS na 77ª Assembleia Mundial de Saúde, que tem início a 27 de Maio.

    (Foto: D.R.)

    O plano da OMS consiste na criação de um acordo ou convenção – o chamado Tratado Pandémico – e também envolve alterações ao Regulamento Sanitário Internacional (RSI). A oitava reunião do grupo de trabalho que está a negociar as alterações ao Regulamento, que decorreu na semana passada, ficou em standby e será concluída numa última sessão de dois dias, a 16 e 17 de Maio, anunciou a OMS. No total, o RSI envolve 196 países – os 194 países membro da OMS, o Liechtenstein e o Vaticano.

    No caso do Tratado Pandémico, a nona reunião foi suspensa a 28 de Março e os países acordaram retomar os trabalhos para concluir as negociações do texto entre 29 de Abril e 10 de Maio.

    Na carta datada de 1 de Maio, os senadores Republicanos recordaram que qualquer acordo do género seria considerado um tratado, pelo que exige “a concordância de dois terços do Senado nos termos do artigo I, secção 2, da Constituição”.

    Os senadores sublinham que “o fracasso da OMS durante a pandemia de covid-19 foi tão total quanto previsível e causou danos duradouros ao nosso país”. Por isso, frisam que o país “não se pode dar ao luxo de ignorar esta última incapacidade da OMS para desempenhar a sua função mais básica e deve insistir em reformas abrangentes da OMS antes mesmo de considerar alterações ao Regulamento Sanitário Internacional ou qualquer novo tratado relacionado com a pandemia que aumente a autoridade da OMS”.

    O Senator Republicano Ron Johnson liderou a iniciativa de pedir a Biden a não adesão ao plano pandémico da OMS. (Foto: D.R.)

    “Em vez de abordar as deficiências bem documentadas da OMS, o tratado concentra-se em transferências obrigatórias de recursos e tecnologia, destruindo direitos de propriedade intelectual, infringindo a liberdade de expressão e reforçando a OMS”, alertam os senadores na carta enviada a Biden.

    Mas os senadores também elencam uma série de falhas formais: “O artigo 55.º do RSI exige que o texto de qualquer alteração ao RSI seja comunicado aos Estados-Membros pelo menos quatro meses antes da WHA [World Health Assembly] em que devem ser considerados”. Frisam que, “uma vez que a OMS ainda não forneceu o texto final de alteração aos Estados-Membros, consideramos que as alterações relativas ao RSI podem não ser consideradas na WHA do próximo mês”.

    Na carta, é também destacado que “algumas das mais de 300 propostas de alterações feitas pelos Estados-membros aumentariam substancialmente os poderes de emergência sanitária da OMS e constituiriam violações intoleráveis à soberania dos EUA”. Assim, consideram que “era essencial que a OMS respeitasse o período de pré-aviso de quatro meses para dar tempo aos Estados-Membros para garantir que nenhum vestígio de tais propostas fosse incluído num pacote final de alterações para apreciação pela WHA”, contudo, “não o tendo feito, as alterações não são corretas”.

    “À luz dos elevados riscos para o nosso país e do nosso dever constitucional, apelamos a que (1) retire o apoio da sua Administração às atuais alterações do RSI e às negociações do tratado sobre a pandemia, (2) mude o foco da sua Administração para reformas abrangentes da OMS que resolvam os seus fracassos persistentes sem expandir a sua autoridade, e (3) caso ignore estes apelos, submeta qualquer acordo relacionado com a pandemia ao Senado para parecer e aprovação”, refere a carta.

    Sob a liderança de Joe Biden, os Estados Unidos estiveram no grupo de países que aplicou medidas radicais na pandemia de covid-19, muitas das quais sem fundamento na evidência científica. Além de impor confinamentos e fecho de escolas, foi imposta vacinação obrigatória contra a covid-19, mesmo sabendo-se que as vacinas não impedem nem a infecção nem o contágio. (Foto: D.R.)

    Outra preocupação dos senadores Republicanos é de que “avançar com um novo tratado de preparação e resposta à pandemia ignora o facto de que ainda não temos certeza das origens da covid-19 porque Pequim continua a bloquear uma investigação independente legítima”.

    Uma das hipóteses fortes levantadas desde o início da pandemia é de que a covid-19 teve origem numa fuga de um laboratório, uma tese que a administração Biden ordenou que as redes sociais censurassem em 2021, como o PÁGINA UM noticiou ontem. Ainda esta semana, Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, esteve a ser ouvido no Subcomité sobre a Pandemia de Coronavírus, nos Estados Unidos, sobre as ligações da organização a pesquisa conduzida num laboratório em Wuhan, na China. A EcoHealth tem sido também financiada pelo National Institutes of Health dos Estados Unidos, que chegou a ter Anthony Fauci – que foi o rosto da estratégia da covid-19 da Casa Branca – como director.

    Desde cedo que os textos do novo Tratado e as alterações ao RSI levantaram dúvidas e desconfiança por mutilarem o conceito de direitos humanos e liberdades fundamentais do Regulamento e por reforçarem os poderes da OMS em caso de novas pandemias, entre outros temas controversos, incluindo em torno do tema de financiamento de projectos de saúde em países mais pobres. Além disso, teme-se que o plano pandémico represente uma forte ameaça à liberdade de imprensa e liberdade de expressão, com medidas que podem ser adoptadas com a justificação do combate à ‘desinformação’.

    Mas o director-geral da OMS, Tedros Adhanom, tem tentado, em diversas declarações públicas, pressionar os países a rubricar o plano, tentando afastar os receios em torno do reforço dos poderes da OMS em futuras pandemias face à soberania dos diversos países.

    Imagem da primeira página da carta enviada a Biden assinada por todos os senadores Republicanos.

    Recentemente, os textos sofreram alterações de fundo, tendo sido reposto o conceito de defesa dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em saúde, como o PÁGINA UM noticiou, mas as mudanças foram insuficientes e crescem os apelos para que a votação do plano seja adiada para que os países tenham mais tempo para preparar textos mais sólidos e que respeitem a autonomia dos países e a defesa dos direitos humanos e civis em futuras pandemias.

    Existem receios de que, com o plano pandémico que está a ser desenhado na OMS, acabe por ser criada uma indústria de pandemias focada na venda de produtos e medicamentos à custa de dinheiros públicos. Recorde-se que na covid-19, os países da União Europeia, incluindo Portugal, tiveram de pagar vacinas que vão para o lixo, entre outros desperdícios e gastos com equipamento e medicamentos que eram desnecessários ou até contraproducentes.

    Também se teme que se repita o desastre que foi a gestão da pandemia de covid-19 na maioria dos países. A estratégia seguida pela maior parte dos países foi um fracasso o que é comprovado, nomeadamente, pelo enorme excesso de mortalidade registado em países que seguiram indicações da OMS e aplicaram medidas radicais e, muitas vezes, sem fundamentação na evidência científica. Além dos danos causados na economia, o que levou a um aumento do nível de pobreza, os mais vulneráveis foram muito prejudicados, incluindo crianças e jovens, devido ao fecho de escolas, mas também os mais idosos e doentes que ficaram sem acesso a tratamentos.

    A excepção foi a Suécia, que implementou o habitual protocolo, não impôs confinamentos nem uso de máscara, em geral, não encerrou a generalidade das escolas e manteve a economia a funcionar. É um dos países com o menor nível de excesso de mortalidade, desde 2020.

    white and black printer paper
    A maioria dos países seguiu as recomendações da OMS na pandemia de covid-19 com resultados desastrosos, incluindo um grande excesso de mortalidade, além dos danos causados nos mais vulneráveis, incluindo crianças e jovens, os mais idosos e os mais pobres. (Foto: D.R.)

    Tal como aconteceu durante a pandemia de covid-19, no caso do Tratado Pandémico, em vez de estar a ser debatido publicamente, tem estado envolto numa polarização política, o que tem impedido um debate e análise profundos e sérios do tema, incluindo nos media. A imprensa, em geral, tem ignorado as negociações em curso na OMS e também tem abafado a polémica em torno de algumas propostas controversas que estão na mesa.

    O tema do Tratado Pandémico não tem sido alvo de debate público, incluindo em Portugal, e os mass media também têm ignorado o tema, apesar da sua relevância. A polémica e as propostas controversas em torno do plano têm sido abafados pelos media mainstream, chegando pouca ou nenhuma informação ao público em geral. Por exemplo, em Portugal, as poucas notícias sobre o tema – incluindo uma recente da agência Lusa que foi amplamente difundida pela generalidade dos media – escondem o facto de terem caído as propostas mais controversas e não mencionam as dúvidas e críticas existentes face ao plano.

    Em Portugal, o plano pandémico foi alvo de debate no Parlamento, como o PÁGINA UM noticiou, por força de uma petição que obrigou os deputados a discutir o tema, mas acabou por ser debatido de forma superficial, com deputados a fugir completamente à discussão em concreto das propostas que estão na mesa para os textos do plano da OMS. Uma proposta do partido Chega para recomendar ao governo que Portugal não adira ao Tratado Pandémico foi rejeitada, tendo tido apenas o apoio da Iniciativa Liberal.

    Agora, com a oposição do Partido Republicano, resta saber se os Estados Unidos vão acabar por ser a pedra final no sapato de Tedros Adhanom e fica no ar a dúvida sobre como a OMS vai agora conseguir descalçar esta bota em que se tornou o controverso plano para preparar o mundo para futuras pandemias.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Governo Biden coagiu Big Techs a censurarem até livros e sátira, diz relatório

    Governo Biden coagiu Big Techs a censurarem até livros e sátira, diz relatório

    Mostrando um cenário ‘orwelliano’, o Comité Judiciário da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos revelou dezenas de milhar de e-mails e documentos oficiais que provam que a Casa Branca pressionou com coacção as grandes tecnológicas para censurarem livros, informação verdadeira e até sátira no auge da pandemia da covid-19. Num relatório de 881 páginas, tornado público esta semana, entre os documentos divulgados estão mensagens entre responsáveis do Governo Biden e executivos de grandes tecnológicas. Segundo o relatório, houve pressão para censurar conteúdos que não violavam as regras das plataformas online. Em consequência, a Casa Branca impediu que houvesse debate sobre temas de relevo, impondo políticas desastrosas adoptadas na pandemia, diz o relatório que acusa a Administração Biden de violação da Primeira Emenda “em conluio com terceiros”, ao condicionar a liberdade de expressão. A investigação daquele Comité vai prosseguir, até porque ainda faltam documentos pedidos e ainda não entregues pelo Governo Federal norte-americano.


    A Casa Branca coagiu grandes tecnológicas, incluindo a Meta – dona do Facebook – , a Alphabet – dona do Google e YouTube – e a Amazon para censurarem informação verdadeira, livros, vídeos e até sátira, em 2021, durante a pandemia de covid-19.

    As provas de censura constam de um extenso e detalhado relatório de 881 páginas, publicado na passada quarta-feira nos Estados Unido pelo Comité Judiciário da Câmara de Representantes, em conjunto com o Subcomité sobre a instrumentalização do Governo Federal. Tanto o comité como o subcomité tem maioria republicana. O título do relatório não poderia ser mais expressivo: “The censorship-industrial complex: how top Biden White House officials coerced Big Tech to censor Americans, true information, and critics of the Biden Administration”, ou seja, em tradução livre para português, “Complexo industrial de censura: como os funcionários de topo da Casa Branca coagiram as grandes tecnológicas a censurarem os norte-americanos, a informação verdadeira e os críticos da Administração Biden”.

    O relatório vem confirmar, para já, que a pressão da Casa Branca visou a censura de informação e conteúdos que nem sequer violavam os termos de utilização das plataformas tecnológicas, e acabou por ter um efeito duradouro, uma vez que “no final de 2021 o Facebook, o YouTube e a Amazon tinham alterado as suas políticas de moderação (de conteúdos) de forma a responder directamente a críticas feitas pela Administração Biden”.

    Segundo o relatório, “a campanha de censura da Casa Branca de Biden teve como alvo a informação verdadeira, sátira, e outros conteúdos que não violaram as políticas das plataformas”. “Ao contrário das seus alegações de querer combater a suposta desinformação, a Administração Biden pressionou as empresas a censurar informações verdadeiras, sátiras, memes, opiniões e experiências pessoais dos americanos”, acusa o relatório do Comité.

    Saliente-se que este Comité da Câmara de Representantes dos Estados Unidos tem vastos poderes, sendo responsável pela supervisão da administração da Justiça nos tribunais federais, mas também no acompanhamento de temas como liberdades e direitos civis. A maioria dos actuais membros do Comité (24 contra 18) são do Partido Republicano, adversário do Partido Democrata e da presidência de Biden. Na sequência de intimações, o Comité obteve dezenas de milhar de e-mails e documentos oficiais que se serviram de base para este relatório detalhado.

    person holding silver iphone 6
    O Facebook começou a censurar informação sobre a possível origem do SARS-CoV-2 ser uma fuga de um laboratório em Wuhan, onde era conduzida investigação com coronavírus. Uma entidade financiada pelos Estados Unidos, a polémica EcoHealth Alliance, tem estado no centro das atenções desde 2020, por estar ligada a investigação naquele laboratório na China.
    (Foto: Solen Feyissa/ D.R.)

    No documento agora divulgado fica claro que, “embora a campanha de pressão da Casa Branca de Biden tenha sido amplamente bem-sucedida, os seus efeitos foram devastadores”, pois “ao suprimir a liberdade de expressão e distorcer intencionalmente o debate público, ideias e políticas, deixaram de ser razoavelmente testadas e debatidas pelos seus méritos”. O relatório adianta ainda que, “em vez disso, os decisores políticos implementaram uma série de medidas de saúde pública que se revelaram desastrosas para o país”.

    O relatório é, aliás, taxativo em expor medidas erradas: “De encerramentos prolongados desnecessários de escolas a mandatos inconstitucionais de vacinação que obrigaram os trabalhadores a tomar uma recém-desenvolvida vacina ou corriam o risco de perder os seus empregos, a Administração Biden e outros funcionários impuseram desnecessariamente danos e sofrimento aos americanos em todo o país”.

    Para o seu trabalho, o Comité da Câmara dos Representantes viu-se obrigado a emitir dezenas de intimações às Big Tech, ao Governo, às agências e a diversas entidades de relevo para obter dezenas de milhares de documentos para assim apurar “os detalhes da campanha de pressão da Casa Branca de Biden”. Contudo, o relatório considera que “os documentos mais importantes para entender os esforços de censura da Casa Branca de Biden são e-mails internos das empresas que receberam ameaças e coacção”. E estas visavam a censura em concreto de “informações verdadeiras, sátiras e outros conteúdos que não violavam as políticas das plataformas” tecnológicas. Além disso, salienta-se que a Casa Branca também “promoveu a censura de livros”, nomeadamente os vendidos pela Amazon.

    O relatório de 881 páginas revela o conteúdo de e-mails e documentos oficiais que provam a coacção e exigências feitas pela Casa Branca em 2021.

    Mas, segundo o relatório, o governo norte-americano “também travou a sua campanha de pressão contra as livrarias online”. Ou seja, como mostram “documentos obtidos pelo Comité, a Casa Branca de Biden tentou censurar o discurso de uma das formas mais antigas de comunicação: os livros”.

    Com efeito, em Março de 2021, funcionários da Casa Branca chegaram a criticar a Amazon, a maior livraria online mundial, por vender livros que questionavam a segurança ou eficácia das vacinas, incluindo das vacinas covid-19 recentemente desenvolvidas. “Pressionada pela Casa Branca, a Amazon reagiu rapidamente, implementando uma nova política, no prazo de uma semana, para adicionar restrições” a livros sobre vacinas.

    Como exemplo, é relatado no relatório que, em Março de 2021, um funcionário da Amazon enviou um e-mail a outras pessoas dentro da empresa sobre o motivo da nova mudança na política de moderação de conteúdos da livraria Amazon: “[O] impulso para este pedido é a crítica da Administração Biden sobre a sensibilidade de livros aos quais estamos a dar uma posição de destaque”.

    Um e-mail enviado por um assessor da Casa Branca à Amazon a pedir a censura de livros sobre vacinas. (Foto: Captura a partir do Relatório do Comité)

    Numa secção do relatório com o título ‘Amazon Files’, é relatado que, em Março de 2021, a Casa Branca enviou um e-mail ao vice-presidente de Políticas Públicas da Amazon, pedindo para haver uma discussão sobre os “altos níveis de propaganda e desinformação” na empresa de venda de produtos online. O Governo de Biden alegava então que vários membros da Casa Branca tinham feito pesquisas na Amazon com a palavra-chave “vacinas” e enviou capturas de ecrã por e-mail da página de resultados de pesquisa para a Amazon, observando que se se adicionasse um aviso do Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) seria insuficiente para censurar adequadamente os livros.

    Imediatamente, a Amazon começou a acelerar internamente a análise de implementar uma nova política que desfavoreceria os livros considerados anti-vacina ou críticos de vacinas. No dia 9 de Março, apenas uma semana após o contacto inicial por parte de Andy Slavitt, um alto funcionário da Casa Branca, e após um encontro entre responsáveis da Amazon e da Administração Biden, a empresa implementou uma nova política e adicionou o rótulo “Não promover” aos livros considerados ‘anti-vacina’.

    Em conversas com a Casa Branca, a livraria da Amazon criou uma secção para livros sobre vacinas a “não promover” e organizou uma lista de 43 livros para ficarem ‘marcados’. (Foto: D.R.)

    Por sua vez, na secção ‘Facebook Files’, é demonstrado que, em Fevereiro de 2021, a maior rede social do Mundo aumentou a censura de conteúdos considerados ‘anti-vacina’, bem como as alegações sobre fuga laboratorial como estando na origem da pandemia causada pelo SARS-CoV-2, devido a “conversas tensas com a nova Administração [Biden]” e como parte de um esforço para responder a exigências da Casa Branca para “fazer mais” no combate a alegada desinformação.

    Contudo, adianta o relatório do comité da Câmara dos Representantes, o Facebook percebeu, um meses mais tarde, que a Casa Branca “preocupava-se mais em censurar conteúdos anti-vacina” e assim foi levantada a censura sobre conteúdos relativos à fuga laboratorial como origem da covid-19. Surge mesmo referido que, em Julho de 2021, um executivo do Facebook, Nick Clegg, perguntou num e-mail a um funcionário do Facebook a razão de se censurar a teoria da criação do vírus SARS-CoV-2 em laboratório, que obteve a seguinte resposta: “Porque estávamos sob pressão do Governo [Biden] e de outros para fazer mais. . . . Não deveríamos ter feito isso”.

    E-mail de Mark Zuckerberg em resposta a um outro e-mail, em que o Facebook assumia que, afinal, já não iria classificar como falsa a tese de que o SARS-CoV-2 pode ter tido origem numa fuga de laboratório. Zuckerberg escreveu: “Parece ser um bom lembrete de que, quando comprometemos os nossos padrões devido à pressão de uma administração em qualquer direção, muitas vezes arrependemo-nos mais tarde”. Mas o Facebook continuou a ceder a novas exigências de censura de informação por parte da Casa Branca.

    Num outro exemplo, em Agosto de 2021, um e-mail interno do Facebook explicava por que a empresa estava a desenvolver e, em última análise, a implementar novas políticas de moderação de conteúdos:
    “A liderança [do Facebook] pediu a Misinfo Policy (…) para debater algumas outros alavancas políticas que podemos puxar para sermos mais agressivos contra a desinformação. Isto decorre das críticas contínuas à nossa abordagem por parte da Administração [Biden]”.

    Também a Alphabet, dona do Google e do Youtube, não escapou à campanha de censura do Governo norte-americano. Em Setembro de 2021, após receber críticas por não eliminar conteúdo não violador dos termos de uso, o YouTube compartilhou com a Casa Branca uma nova “proposta de política” para censurar mais conteúdos que criticassem a segurança e eficácia das vacinas, e pedia “qualquer feedback” que a Administração Biden pudesse fornecer antes de a política ser finalizada. A Casa Branca respondeu: “À primeira vista, parece um grande passo”.

    O relatório frisa que os comportamentos em termos de colaboração das três Big Techs “são impressionantes”. Em cada caso, as empresas identificaram os pedidos de censura da Casa Branca de Biden como “pressão” ou recearam que pudessem entrar numa “espiral e ficar fora de controlo”. Apesar de o Comité ter detectado diferenças temporais de actuação e também na forma como cada empresa sucumbiu à pressão da Casa Branca, basicamente, em Setembro de 2021, tanto o Facebook como o YouTube e a Amazon tinham adoptado novas políticas de moderação de conteúdo que “removeram ou reduziram pontos de vista e conteúdo visto como como desfavorável por Biden”.

    A Casa Branca pediu ao Facebook para eliminar um meme com uma imagem de Leonardo DiCaprio onde se lê a frase “Daqui a 10 anos vai estar a ver TV e vai ouvir: Você ou um familiar tomaram a vacina contra a covid? Pode ter direito a uma compensação”.

    As investigações deste Comité sobre o crime de violação da Primeira Emenda por parte do Governo norte-americano vão continuar e no relatório sublinha-se que “a Primeira Emenda proíbe o Governo de condicionar a liberdade de expressão” e que “qualquer lei ou política governamental que reduza essa liberdade nas [redes sociais] plataformas viola a Primeira Emenda”.

    Este relatório, apesar da sua relevância, tem sido largamente ignorado pelos mass media norte-americanos e também pelos media portugueses, os quais alinharam, em geral, nas mesmas práticas de censura durante a pandemia.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Vacina contra a covid-19: Ex-jogador do Marítimo processa Pfizer, BioNTech e Federação Francesa de Futebol

    Vacina contra a covid-19: Ex-jogador do Marítimo processa Pfizer, BioNTech e Federação Francesa de Futebol

    François-Xavier Fumu Tamuzo, antigo jogador de futebol do Marítimo, quer tirar as dúvidas sobre se as lesões que levaram ao fim prematuro da sua carreira foram provocadas ou não pela vacina contra a covid-19. O jogador do francês Stade Lavallois vai processar quatro entidades: a Pfizer e a alemã BioNTech, que desenvolveram a vacina que o jogador tomou, a Pfizer França e a Federação Francesa de Futebol. A audiência no Tribunal Judicial de Paris está marcada o dia 2 de Julho. Em França, como em muitos países, atletas foram obrigados a tomar a vacina contra a covid-19, sob pena de ficarem afastados da equipa e da competição.


    Terminou a sua carreira como futebolista aos 29 anos na sequência de uma série de lesões, quando estava ao serviço do Stade Lavallois, na segunda divisão francesa. François-Xavier Fumu Tamuzo, um antigo jogador do Marítimo, suspeita que as suas lesões se deveram às vacinas contra a covid-19 que tomou. Por isso, anunciou que vai processar a Pfizer e a BioNTech, que fabricaram a vacina e reforços que tomou, bem como a Pfizer França e a Federação Francesa de Futebol.

    “Gostaria de entender por que meu corpo parou de funcionar”, disse o jogador citado pela France Bleu, que avançou com a notícia que já está a ter eco em alguma imprensa francesa e italiana, além de meios desportivos online.

    François-Xavier Fumu Tamuzo, jogador no Stade Lavallois de 29 anos, anunciou o fim prematuro da sua carreira no futebol em Abril. (Foto: D.R./Stade Lavallois)

    A notícia sublinha que o jogador natural da França não é um anti-vacinas nem um teórico da conspiração, mas decidiu tomar medidas depois de sofrer uma sucessão de lesões que levaram este antigo internacional sub-20 a anunciar o fim da sua carreira de forma prematura, a 18 de Abril.

    A audiência no Tribunal Judicial de Paris está agendada para o dia 2 de Julho e deverá ser decidido se será nomeado um painel de especialistas para estabelecer ou não um nexo de causalidade entre a vacina contra a covid-19 e as lesões sofridas pelo jogador.

    Fumu Tamuzo foi vacinado pela primeira vez com uma dose da Pfizer em 30 de julho de 2021. Na altura, a vacina não era ainda obrigatória para os jogadores profissionais em França, o que mais tarde veio a acontecer, em Janeiro de 2022. O jogador tomou a segunda dose da vacina em 23 de agosto e foi aí que começaram os seus problemas de saúde, de acordo com o jogador.

    Primeiro, sentiu dores no joelho esquerdo e depois uma tendinopatia em outubro. Em Março de 2022, após a toma da terceira dose da vacina, o atleta sofreu uma ruptura do tendão de Aquiles que o retirou de actividade. O jogador queixa-se que “a caminhada longa é quase insuportável, correr é impossível” e quando quer “dar um impulso, por exemplo, para subir escadas ou […] descer escadas, a dor é aguda”.

    O jogador assinou pelo Marítimo em Agosto de 2020, mas em Julho de 2021 regressou a França, seu país natal, para cumprir um contrato de dois anos com o Laval. (Foto: D.R./C.P.Marítimo)

    O advogado de Tamuzo, Éric Lanzarone, considera haver espaço para dúvidas sobre se, de facto, as vacinas estão na origem dos problemas físicos do futebolista. O advogado, que é especialista em direito público e direito da saúde e membro da Ordem dos Advogados de Marselha, disse à France Bleu que “nos últimos dois anos, meu cliente esteve num limbo médico e ninguém expressou qualquer dúvida sobre os efeitos adversos da vacina”. “Embora saibamos que eles existem hoje, ninguém pode negá-lo. E à medida que estes problemas foram surgindo, François-Xavier foi consultar especialistas em medicina interna que acabaram por manifestar essa dúvida. Tem de ser levantada”, afirmou.

    Tamuzo procurou um especialista em imunologia e infecciologia, considerando a possibilidade que os seus problemas físicos que se revelaram fatais para a sua carreira foram causados pela vacina.

    O jogador pretende obter pelo menos uma compensação financeira e também analisa um projecto de conversão profissional relacionado com o futebol. Tamuzo chegou a reunir com responsáveis do Laval para se manter ligado profissionalmente ao clube em outras funções, mas, apesar de os executivos “terem apoiado bastante a ideia” inicialmente, o presidente do clube acabou por rejeitar essa possibilidade, num contacto com o advogado do atleta.

    3 clear glass bottles on table

    A covid-19 é uma doença que tem como grupos de maior risco os mais idosos e pessoas com comorbilidades graves. Ainda assim, a toma da vacina foi imposta em diversos países, nomeadamente aos atletas profissionais de alta competição no activo, um grupo onde a taxa de mortalidade causada pelo SARS-CoV-2 foi virtualmente zero. As sequelas da COVID-19 em atletas são também fenómenos raríssimos. As vacinas contra a covid-19 podem causar reacções adversas, como qualquer medicamento. Entre os efeitos adversos constam miocardites, coágulos sanguíneos, AVC e tromboses, sindrome de Guillain-Barré e herpes zooster.

    As autoridades de saúde têm, porém, insistido de que os efeitos adversos da vacina contra a covid-19 são raros e que existem vantagens na vacinação, apesar da generalidade dos países ter excluido a necessidade de reforços na população jovem, incluindo obviamente atletas de alta competição.

    A pressão para os atletas se vacinarem foi enorme a nível mundial. Por exemplo, na NBA, os basquetebolistas não podiam jogar sem comprovativo vacinal. Entre os atletas de alta competição que se abstiveram de tomar a vacina contra a covid-19, o caso mais célebre é o de Novak Djokovic, que teve de enfrentar a proibição de participar em competições, como o Open da Austrália de 2022. O tenista manteve a sua decisão, mesmo tendo perdido dinheiro e sido ostracizado como negacionista, além de ter perdido a liderança no ranking ATP naquele ano, chegando a descer para oitavo lugar.

    Djokovic regressou à Austrália no ano seguinte, já sem qualquer restrição, para vencer categoricamente esta prova. Aos 36 anos recuperou já a liderança do ranking ATP, desde Setembro do ano passado, estando à frente do italiano Jannik Sinner (22 anos) e do espanhol Carlos Alcaraz (20 anos). Já o espanhol Rafael Nadal, que no auge da polémica do Open da Austrália criticou Djokovic por não se vacinar – e era o seu grande opositor competitivo (número 2 do ATP) – está em fim de carreira, ocupando agora o lugar 512 no ranking do ténis mundial.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Gestão da pandemia agravou cobertura médica hospitalar na população vulnerável

    Gestão da pandemia agravou cobertura médica hospitalar na população vulnerável

    Ate 2019, o crescimento do número de médicos hospitalares era evidente e compensava o aumento da população mais idosa, aquela que mais necessita de cuidados em urgência e internamento. Mas com a pandemia, entre os anos de 2020 e 2022, com a decisão política de suspender consultas e cirurgias programadas, e com o incentivo a não se usarem os hospitais a não ser para a covid-19, inverteu-se o rejuvenescimento do corpo clínico enquanto a população com mais de 65 anos continuou a aumentar. Através de novos dados, relativos a 2022, divulgados ontem pelo Instituto Nacional de Estatística, o PÁGINA UM analisou a evolução do corpo clínico dos hospitais e confrontou com o aumento da população mais vulnerável. Resultado: entre 2013 e 2022 – e por via do triénio da pandemia – só se registou um aumento de 3.246 médicos hospitalares (+14,8%) para cuidar de um país que viu a população idosa aumentar 20,1%, isto é, mais 416 mil pessoas. A região Centro teve a pior evolução, e o Alentejo apresentou uma melhoria significativa, mas continua a ser a parte do país onde os idosos dispõem de menos médicos hospitalares.


    A estratégia governamental durante a pandemia de incidir as prioridades na covid-19, desinvestindo em todos os outros sectores da Saúde Público, tem mostrado agora efeitos desastrosos. Os dados revelados ontem pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) mostram que, durante o triénio da pandemia (2020-2022) houve reduções significativas na ‘procura hospitalar’– leia-se, dias de internamentos por todas as causas, no decurso da decisão de suspender cirurgias programadas –, pelo que se inverteu o crescimento do número de médicos hospitalares e se agravou assim a prestação de cuidados de saúde à população potencialmente vulnerável.

    De acordo com os mais recentes dados do INE, divulgados ontem no site desta entidade, apesar de um ligeiro crescimento do número de médicos nos hospitalares entre 2021 e 2022 (passando de 24.648 para 25.163), ainda se está aquém dos valores contabilizados no ano imediatamente anterior à pandemia. Em 2019 estavam contabilizados 25.783 médicos hospitalares em todo o país. Apesar deste número já ser ligeiramente inferior ao de 2018 (26.901 médicos), mantinha-se uma tendência de crescimento desde 2013. No período de 2013 e 2019, o crescimento nacional até tinha sido relevante: 17,7%, atingindo os 37,9% no Algarve (681 para 939), os 21,5% na Madeira (409 pata 497), os 20,3% na região Centro (4.256 para 5.119) e os 19,6% na região Norte (7.871 para 9.412). Nenhuma região registou qualquer decréscimo, embora no Alentejo o crescimento tivesse sido ténue (3,7%).

    side view of man's face

    Com a chegada da pandemia, inverteu-se por completo a tendência. A menor procura hospitalar – em função da suspensão de cirurgias e de consultas, bem como do activo incentivo das autoridades de Saúde para que não se fosse às unidades de saúde excepto por covid-19 – implicou um menor grau substituição dos médicos que se foram reformando.

    Assim, entre 2019 e 2022, apanhando o triénio da pandemia, o saldo foi de perda de 630 médicos hospitalares a nível nacional, um decréscimo relativo de 2,4%, apresar de crescimentos na Madeira (14,9%, com mais 74 médicos), nos Açores (14,4%, com mais 64 médicos), no Alentejo (11,2%, com mais 101 médicos) e no Algarve (5,5%, com mais 52 médicos). A região Centro foi, na verdade, a principal responsável pelo decréscimo verificado neste triénio, perdendo 620 médicos (12,1%). A Área Metropolitana de Lisboa perdeu 150 (-1,8%) e a região Norte 151 (-1,6%).

    Mesmo nas regiões que registaram ligeiros aumentos na pandemia, a evolução do quadro clínico hospitalar desde 2013 não conseguiu acompanhar, bem pelo contrário, o aumento da população potencialmente mais vulnerável, isto é, dos mais idosos. Com efeito, o envelhecimento populacional – que, numa perspectiva favorável significa que há cada vez mais pessoas a alcançarem e a superarem a idade da reforma – tem estado em crescimento significativo, mesmo com o impacte da covid-19 e da gestão da pandemia. Por exemplo, considerando os números apontados pelo INE, entre 2019 e 2022 a população com mais de 80 anos aumentou 4,2% (mais 29.405 pessoas), enquanto no grupo etário dos 65 aos 79 anos registou-se um crescimento bem superior: 7,9%, que resultou de mais 128.229 pessoas neste intervalo de idade.

    Evolução por região do número de médicos hospitalares e da população com mais de 65 anos entre 2013 e 2022. Fonte: INE.

    Caso se confronte, no período entre 2013 e 2022, a evolução da população com mais de 65 anos com a evolução do corpo clínico hospitalar, constata-se um evidente agravamento causado pelos anos de gestão pandémica. Se entre 2013 e 2019 o aumento relativo de médicos hospitalares (+17,7%) superava o crescimento relativo da população idosa (+12,5%), sendo assim um sinal bastante positivo, os anos subsequentes (2020, 2021 e 2022) inverteram completamente essa tendência. Assim, de acordo com os dados do INE, entre 2013 e 2022 – e por via do triénio da pandemia – só se registou um aumento de 3.246 médicos hospitalares (+14,8%) para, em certa medida, cuidar de um país que viu a população com mais de 65 anos aumentar 20,1%, tendo passado de 2,07 milhões de pessoas para cerca de 2,48 milhões, isto é, mais 416 mil idosos.

    Analisando em detalhe, por região, somente o Alentejo, o Algarve e a Madeira registaram um aumento dos médicos hospitalares superior ao aumento da população idosa. No Alentejo, os médicos nas unidades hospitalares cresceram 15,3% no período de 2013-2022, com a população idosa a aumentar apenas 3,1%, enquanto no Algarve esses aumentos relativos foram, respectivamente, de 45,5% e 26,1%, e na Madeira foram de 39,6% e 27,9%. Convém, contudo, salientar que o Alentejo continua a ser a pior região em termos de rácio de cobertura médica hospitalar: em 2013 havia somente 476 médicos por 100 mil idosos (44,9% da média nacional), e em 2022 subiu para 523 (51,6% da média nacional).

    A região Centro foi aquela onde se observa um maior agravamento da cobertura hospitalar face à população idosa, uma vez que o aumento do número de médicos entre 2013 e 2022 foi de apenas 5,7%, o que confronta com um aumento dos maiores de 65 anos de 16,6%. Nesta região, a população idosa cresceu quase 88 mil pessoas, enquanto os médicos aumentaram apenas em 243. Significa isso que o rácio de cobertura médica hospitalar em função da população potencialmente mais vulnerável (mais de 65 anos) se agravou significativamente: em 2013 era de 808 médicos por 100 mil idosos (76,2% da média nacional), e em 2022 cifrava-se em 732 por 100 mil idosos (72,3% da média nacional).

    Evolução da cobertura médica hospitalar em função da população potencialmente vulnerável (número por 100 mil idosos). Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Nas duas regiões mais populosas – Área Metropolitana de Lisboa e Norte –, o agravamento da cobertura médica hospitalar é inferior, mas também evidente. No caso da região que engloba a capital, o rácio em 2022 situava-se em 1.310 médicos por 100 mil idosos, ligeiramente abaixo dos 1.360 registados em 2013, mas bastante abaixo dos 1.596 por 100 mil idosos em 2018, o que demonstra a fraca aposta em dotar os hospitais com uma realidade previsível: incremento da população potencialmente mais vulnerável. Na Área Metropolitana de Lisboa havia em 2022 mais 91 mil pessoas idosas do que em 2013 (+16,8%), mas somente mais 924 médicos.

    No caso da região Norte, o crescimento de 1.389 médicos (+17,6%) entre 2013 e 2022 fica aquém do necessário para um incremento da população idosa, nesse período, de 28,6%, devido a um aumento de 186 mil pessoas na faixa etária acima dos 65 anos. Por isso, o rácio de cobertura hospitalar passou de 1.208 por 100 mil idosos em 2013 para 1.105 em 2022.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • IGAS ‘protege’ Gouveia e Melo, deputado Miguel Guimarães e ministra Ana Paula Martins

    IGAS ‘protege’ Gouveia e Melo, deputado Miguel Guimarães e ministra Ana Paula Martins

    Em Janeiro do ano passado, a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) abriu formalmente um “processo de esclarecimento” sobre a vacinação contra a covid-19 de quase quatro mil médicos não-prioritários em Fevereiro de 2021, no decurso de uma combinação, ao arrepio das normas da Direcção-Geral da Saúde, entre o almirante Gouveia e Melo e o então bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. O acordo envolveu também um pagamento de mais de 27 mil euros ao Hospital das Forças Armadas, mas apesar da factura ter sido emitida em nome da Ordem dos Médicos, o pagamento saiu de uma conta pessoal co-titulada por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, que geriram, numa contabilidade paralela e pejada de ilegalidades, cerca de 1,4 milhões de euros doados sobretudo de farmacêuticas. Catorze meses depois do início do “processo de esclarecimento”, aproximando-se uma prescrição, e face ao silêncio do inspector-geral Carlos Carapeto, o PÁGINA UM entrou com uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para saber que ‘investigação’ a IGAS andou a fazer. Ou a não fazer.


    A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) está a esconder as conclusões de um “processo de esclarecimento”, aberto há 14 meses, sobre a forma pouco ortodoxa como Miguel Guimarães – antigo bastonário da Ordem dos Médicos e actual deputado do PSD – e o agora almirante Gouveia e Melo – antigo líder da task force durante a pandemia e actual Chefe de Estado-Maior da Armada – combinaram a vacinação contra a covid-19 de médicos não-prioritários desrespeitando as normas em vigor da Direcção-Geral da Saúde. E o caso também envolve indirectamente a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, uma vez que foi ela que, no âmbito de uma campanha de solidariedade, concedeu autorização para um pagamento às Forças Armadas para compensar pela ajuda na administração das vacinas fora dos procedimentos legais.

    O processo de esclarecimento é uma das quatro tipologias inspectivas da IGAS, sendo a fase prévia que pode avançar, consoante os casos, para processo disciplinar, processo de inquérito ou processo de inspecção. No ano passado, segundo o mais recente relatório da IGAS, foram abertos 28 processos de esclarecimentos, que têm um prazo de 18 meses para conclusão, de contrário beneficiam de uma prescrição automática. Deste modo, o processo de esclarecimento às vacinas prescreverá, se não for arquivado ou avançar para outra fase, no próximo mês de Julho.

    Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force e permitiu vacinações em Fevereiro de 2021 ao arrepio de uma norma da DGS. O Hospital das Forças Armadas beneficiou do esquema.

    O desbloqueio de mais uma obstrução à transparência por parte da IGAS está agora nas mãos do Tribunal Administrativo de Lisboa, por via de uma nova intimação do PÁGINA UM com vista a obrigar o inspector-geral Carlos Carapeto a libertar todos os documentos produzidos sobre esta matéria desde 15 de Janeiro do ano passado, data em que “foi determinada a abertura de um processo de esclarecimento, com o objectivo de avaliar se existe matéria que deva e possa ser avaliada”. Saliente-se que é a terceira vez que o PÁGINA UM tem de recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa para que a IGAS faculte documentos administrativos em assuntos politicamente comprometedores.

    De acordo com a lei, mesmo em processos não concluídos, como será este o caso, o acesso por terceiros ” acesso aos documentos administrativos preparatórios de uma decisão ou constantes de processos não concluídos “pode ser diferido até à tomada de decisão, ao arquivamento do processo ou ao decurso de um ano após a sua elaboração, consoante o evento que ocorra em primeiro lugar”. Ora, muitas das diligências já terão mais de um ano, se é que foram feitas.

    O anúncio em Janeiro do ano passado deste processo de esclarecimento por parte da IGAS surgiu após a investigação do PÁGINA UM à gestão de uma campanha de solidariedade publicamente dinamizada pelas Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos, mas minada de ilegalidades, que envolveu cerca de 1,4 milhões de euros da indústria farmacêutica, sendo a contabilidade feita de forma paralela, com facturas falsas e outras ilegalidades fiscais, através de uma conta pessoal co-detida por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde. Foi no decurso dessa investigação que o PÁGINA UM detectou na documentação – cuja consulta foi possível somente após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa – que, em Fevereiro de 2021, Miguel Guimarães e Gouveia e Melo reuniram e conversaram várias vezes para contornar a Norma 002/2021 da Direcção-Geral da Saúde (DGS).

    Ana Paula Martins e Miguel Guimarães foram os co-titulares de uma conta pessoal que geriu 1,4 milhões de euros de uma campanha de solidariedade pejada de irregularidades e ilegalidades, incluindo facturas falsas e fuga ao Fisco. Também serviu para pagar ao Hospital das Forças Armadas uma factura passada em nome da Ordem dos Médicos pelo serviço de vacinação.

    Esta norma, publicada em 30 de Janeiro de 2021, determinava então que na Fase 1 deveriam ser vacinados apenas os “profissionais de saúde diretamente envolvidos na prestação de cuidados a doentes”, os profissionais de lares (ERPI) ou de instituições similares e da rede de cuidados continuados, as pessoas com 80 ou mais anos, as pessoas de mais de 50 anos com determinadas comorbilidades e ainda “os profissionais das forças armadas, forças de segurança, serviços críticos e titulares de órgãos de soberania e altas entidades públicas”. Para a Fase 2, que então não estava ainda a decorrer em Fevereiro de 2021, estava prevista a vacinação do grupo etário dos 65 aos 79 anos e pessoas dos 50 aos 64 anos com determinadas comorbilidades. Somente no final da Primavera de 2021 começaram a ser vacinados os menores de 50 anos, quando já não se colocavam problemas de escassez de doses. Essa ‘hierarquia’ não agradava ao actual deputado do PSD que, não conseguindo como bastonário convencer a DGS a alterar a norma, encontrou em Gouveia e Melo, que geria a disponibilização das vacinas, alguém mais prestimoso. Aliás, meses mais tarde, Gouveia e Melo seria homenageado pela Ordem dos Médicos pelo “novo fôlego” que deu à campanha de vacinação que, obviamente, incluiu a violação da norma da DGS para benefício dos médicos não-prioritários.

    Assim, no seguimento dessas conversações em Fevereiro de 2021 – para as quais Gouveia e Melo não detinha então sequer competências para as fazer – , acabou por se acordar a disponibilização de vacinas (entregues por ordem do agora almirante) e a sua administração em instalações militares para cerca de quatro mil médicos não-prioritárias, dos quais 1.382 no pólo do Porto do Hospital das Forças Armadas, 2.004 no de Lisboa, 623 no Centro de Saúde Militar de Coimbra e 189 no centro hospitalar do Algarve. Em vésperas do processo de vacinação destes médicos não-prioritários – e que deveriam aguardar pela vacina em função da idade –, Miguel Guimarães até quis que a comunicação social acompanhasse toda a operação, mas esta acabou por se realizar de forma discreta. Foram vacinados quase 3.700 médicos. Obviamente, as vacinas tiveram de ser “desviadas” do circuito oficial num período então de grande escassez.

    Este processo paralelo, e perfeitamente irregular – uma repetição de situações ocorridas no Hospital da Cruz Vermelha, que causara a demissão de Francisco Ramos, substituído em Gouveia e Melo –, teve ainda contrapartidas financeiras que beneficiaram as Forças Armadas. Apesar das vacinas serem gratuitas, e a sua administração ser assegurada pelo Serviço Nacional de Saúde, somente foram disponibilizadas contra a cobrança unitária de 3,7 euros para supostamente suportar custos do Hospital das Forças Armadas. No Portal Base não consta que esta entidade tenha contratado quaisquer serviços externos para vacinar os médicos. Recorde-se que, apesar de liderar a task force, Gouveia e Melo continuava com altas funções na hierarquia das Forças Armadas – e não na Marinha, de onde provinha –, uma vez que acumulava então as funções de Adjunto para o Planeamento e Coordenação do Estado -Maior-General das Forças Armadas, mostrando-se tecnicamente improvável desconhecer as contrapartidas financeiras envolvidas nesta vacinação à margem das normas da DGS.  

    Carlos Carapeto, inspector-geral das Actividades em Saúde. Pela terceira vez, o PÁGINA UM recorre ao Tribunal Administrativo para consultar documentação.

    A factura do Hospital das Forças Armadas, num total de 27.365 euros – pela administração de 7.396 doses – foi emitida em 18 de Julho do ano passado para pagamento pela Ordem dos Médicos, e a forma como este pagamento foi processado e pago tem contornos de ilegalidade, neste caso envolvendo mesmo a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins. De facto, a Ordem dos Médicos quis ficar com os louros de vacinar associados não-prioritários, mas também com o dinheiro nos seus cofres. E assim, em 26 de Abril de 2021, a tesoureira do Conselho Nacional, Susana Garcia de Vargas, escreveu um ofício aos gestores do fundo e titulares da conta bancária (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves) pedindo-lhes 30.000 euros para custear o processo de vacinação aos médicos não-prioritários. Era expectável que o pedido fosse aceite – por via do próprio bastonário da entidade que pedia apoio ser uma das três pessoas que decidia se era concedido –, e assim sucedeu.

    Porém, como a factura passada pelo Hospital das Forças Armadas pelas operações de administração estava em nome da Ordem dos Médicos, deveria ter sido esta entidade a proceder ao pagamento, e depois receber o donativo de 30.000 euros da conta solidária. Porém, não foi isso que sucedeu.

    Na verdade, apesar de a factura se manter na Ordem dos Médicos, e em seu nome, o pagamento ao Hospital das Forças Armadas proveio do fundo “Todos por Quem Cuida”, de acordo com o pedido de operação bancária assinado em 4 de Agosto do ano passado pela actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e por Eurico Castro Alves, como co-titulares da conta pessoal (e não institucional). Mais tarde, a Ordem dos Médicos tratou de passar declarações a quatro farmacêuticas, entre as quais a Gilead – onde então já trabalhava Ana Paula Martins – como se estas tivessem feito donativos directos para a vacinação. Estas declarações são absolutamente falsas, porque nunca houve qualquer transferência bancária das quatro farmacêuticas para uma conta titulada pela Ordem dos Médicos.

    Uma vez que ao fim de mais de 14 meses desde o anúncio do início do processo de esclarecimento, a IGAS nada comunicou ao PÁGINA UM – e ignorou um pedido formal no mês passado –, a intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa visa a libertação dos documentos para conhecer as diligências tomadas por esta entidade agora tutelada por Ana Paula Martins. Tal como sucedeu com um processo disciplinar ao pneumologista Filipe Froes – que acabou arquivado em vésperas de prescrição, com diligência medíocres ao longo de quase ano e meio –, a probabilidade de este “processo de esclarecimento” ter ficado em ‘banho-maria’ desde Janeiro de 2023 é bastante elevada.

    Na verdade, o incómodo político e judicial sobre esta matéria tem-se mostrado patente também no facto de, ao longo de mais de um ano, a Procuradoria-Geral da República não ter jamais respondido às solicitações do PÁGINA UM sobre esta matéria e sobretudo sobre a gestão da campanha ‘Todos por uma Causa’, pejada de facturas falsas, fuga ao fisco, abuso de benefícios fiscais e contabilidade paralela.  


    N.D. Amanhã comemora-se os 50 anos da Revolução dos Cravos, que concedeu, antes de mais, a Liberdade e, por consequência, a liberdade de imprensa (e de expressão), ao qual estaria também associado o acesso à informação. Pode-se comemorar uma efeméride, em números redondos ou quadrados, ou de outra configuração geométrica, mas não existem muitos motivos para festejar uma efectiva liberdade de acesso à informação quando um jornal tem, para aceder a documentos detidos por entidades públicas, de recorrer mais de duas dezenas de vezes nos últimos dois anos ao Tribunal Administrativo, que ainda por cima é lento nas decisões. O caso da IGAS é um paradigma: é a terceira vez que o PÁGINA UM apresenta uma intimação para obter documentos. Não é admissível que tal suceda numa democracia. Talvez o objectivo seja cansar o PÁGINA UM (que é o único órgão de comunicação social que recorre por sistema aos tribunais face a uma recusa no acesso à informação), mas não nos cansaremos enquanto, do lado dos nossos leitores, nos derem força e apoios financeiros através do FUNDO JURÍDICO.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Debate sobre Tratado Pandémico fez subir a temperatura no Parlamento

    Debate sobre Tratado Pandémico fez subir a temperatura no Parlamento

    Os ânimos exaltaram-se, ontem, no Parlamento, durante um debate sobre o plano de preparação para pandemias que está a ser negociado pelos países no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS). Acusações de “negacionismo” e discussões entre bancadas dos partidos, evitou um debate profundo sobre o Tratado. O tema chegou ao Parlamento por força de uma petição e também de um Projecto de Resolução do Chega, que defendia a não adesão de Portugal ao Tratado, mas que teve apenas o apoio da Iniciativa Liberal. Já os partidos da esquerda acusaram os peticionários de serem negacionistas – um dos insultos que foi muito usado durante a pandemia de covid-19. A autora da petição, a médica dentista Marta Gameiro, lamentou os insultos aos peticionários, mas disse estar “contente” porque a iniciativa “foi um sucesso”, já que forçou os partidos a debater o plano pandémico da OMS, que sofreu profundas alterações últimos dois meses. Afinal, os direitos humanos e as liberdades fundamentais já não vão ser ‘riscados’ do plano pandémico, o qual poderá ser adoptado pelos países já no final de Maio, se não houver um adiamento.


    Muita parra e pouca uva. Ainda não foi desta que houve no Parlamento um debate profundo sobre o plano de preparação para pandemias que está a ser negociado no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS). O debate agendado para ontem descambou em insultos e altercações, com o presidente da Assembleia da República a ter de dar vários ‘puxões de orelhas’ aos deputados.

    Os deputados foram ontem obrigados a debater o chamado Tratado Pandémico da OMS por força de uma petição, da autoria da médica dentista Marta Gameiro, que pedia um referendo para decidir a adesão de Portugal ao plano. Também foi debatido um Projecto de Resolução do partido Chega que recomendava ao Governo a não adesão ao Tratado e que só mereceu o apoio da Iniciativa Liberal.

    Num clima aceso e intenso, geraram-se discussões cruzadas entre deputados de diferentes bancadas, mostrando que está hoje ainda bem viva a polarização observada na pandemia de covid-19, cuja gestão acabou por ser politizada, nem sempre com a imposição de medidas fundamentadas em pressupostos científicos. O ruído e desordem obrigaram à intervenção do presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, que teve de impor ‘ordem na casa’, chegando mesmo a levantar o tom de voz para conseguir acalmar os ânimos, que estavam exaltados.

    O presidente da AR (ao centro), num dos momentos em que se viu forçado a intervir para impor ‘ordem’ no Parlamento. (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

    “Senhores deputados: apelo ao sentido de autodisciplina e de auto-responsabilidade para que não tenha de ser o presidente da Assembleia da República a ter que fazer o condicionamento do uso da palavra, que eu não desejo, não gosto e não sou assim”, afirmou Aguiar-Branco após uma das altercações entre bancadas.

    “Mas, se vossas excelências me obrigarem a isso, eu tenho que ir para outro tipo de intervenção que é aquela que vai ao encontro sequer da minha personalidade para que nesta Assembleia possamos fazer um debate democrático e fazer um debate democrático tem como pressuposto ouvir os outros”, salientou.

    Mas, afinal, para quê tanta celeuma em torno do chamado Tratado Pandémico? Em causa está um plano da OMS que tem vindo a ser negociado pelos diversos países e envolve duas partes – alterações ao Regulamento Sanitário Internacional e a criação de um Tratado para pandemias. As últimas versões do plano já excluem as propostas mais extremistas e polémicas, como a eliminação do conceito de direitos humanos e das liberdades fundamentais do Regulamento, tal como o PÁGINA UM noticiou na segunda-feira.

    A petição de Marta Gameiro, que foi assinada por cerca de 7.500 pessoas e já tinha sido debatida em sede de comissão da Saúde, foi criada antes das alterações recentes ao plano da OMS.

    Os apoiantes da petição que pedia um referendo sobre a adesão de Portugal ao Tratado Pandémico preencheram simbolicamente de ‘branco’ as galerias da Assembleia da República durante o debate. (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

    O debate começou com a deputada Rita Matias do Chega a apresentar a proposta do seu partido. A deputada aproveitou para criticar a gestão da pandemia de covid-19 em Portugal, dizendo, nomeadamente, que “falta fiscalizar, falta apurar, falta escrutinar a má gestão da pandemia, o excesso de mortalidade”. “Acima de tudo, falta julgar a passadeira vermelha para a corrupção e para o tráfego de influências que foi estendida durante a pandemia”, disse na sua intervenção.

    A Iniciativa Liberal indicou que votaria favoravelmente a proposta do Chega, mas foi o único partido a fazê-lo.

    Dos partidos que formam o actual Governo, do lado PSD, o deputado Miguel Guimarães, antigo bastonário da Ordem dos Médicos, evitou o tema em concreto do debate, preferindo promover o plano “One Health” da União Europeia, que visa uma abordagem mais abrangente do que é a saúde humana.

    O deputado do CDS-PP foi a voz da moderação. João Pinho de Almeida defendeu que “temos que estar preparados” para uma pandemia e que “a discussão sobre isso deve ser feita com um princípio fundamental que é o princípio do bom senso, não extremarmos posições, não negarmos evidências e não enfiarmos a cabeça na areia para não assumirmos responsabilidades”.

    white and black printer paper
    A gestão da pandemia na maioria dos países – com excepção da Suécia – causou graves danos na população, incluindo um enorme excesso de mortalidade, e também na economia e muitas das políticas não tinham fundamentação na evidência científica. Além disso, foi censurada informação verdadeira, nomeadamente em torno de temas como imunidade natural, máscaras e vacinas contra a covid-19.

    Lembrou que na covid-19 “vivemos limitações à liberdade que nunca imaginámos viver e mal é que não questionemos sobre a pertinência e a adequação das mesmas”, salientando que “ninguém no seu perfeito bom senso pode dizer que todas as limitações foram perfeitamente justificadas e que não temos que debater nada sobre isso”.

    Recordou que “houve muita gente prejudicada, houve muitas empresas prejudicadas, houve muitas famílias desfeitas, houve pessoas que não se puderam despedir dos seus familiares que morreram nesse período” e questionou: “nós não nos questionamos sobre essas limitações à liberdade? Claro que temos de questionar”. Defendeu que “quando discutirmos soluções para eventualmente lidarmos com estas situações no futuro nós temos que estar preparados para saber o que é mais ou menos adequado”, tendo sempre “o princípio da liberdade” presente.

    Na conclusão da sua intervenção, o deputado centrista lembrou que o Tratado Pandémico não está aprovado na OMS mas, “se disser aquilo que é dito na petição e se disser aquilo que vem no projecto do Chega, vai muito para além daquilo que á aceitável do ponto de vista da soberania nacional”. Disse que “o que temos de fazer é manter o bom senso e pronunciarmo-nos no momento próprio e, sobretudo, não entrarmos em limitações de liberdade nem limitação do escrutínio, sem ter a responsabilidade e sem se ser avaliado”.

    Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, tem pressionado para que o plano pandémico seja assinado pelos países mas as dúvidas têm vindo a crescer e nos últimos dois meses as propostas mais polémicas acabaram por cair, incluindo a tentativa de eliminação dos direitos humanos e liberdades fundamentais do Regulamento Sanitário Internacional. (Foto: D.R.)

    A postura moderada do deputado do CDS-PP contrastou com a de outros partidos e o clima tenso. Os partidos da esquerda foram unânimes no uso do ‘chavão’ habitual na pandemia de covid-19, acusando de “negacionismo” os peticionários. Sentada na galeria, Marta Gameiro teve ainda de ouvir a deputada Isabel Pires do Bloco de Esquerda a tentar ‘colar’ os peticionários a movimentos ‘anti-vacinas’. A deputada bloquista dedicou boa parte do seu discurso a enumerar a evolução da aplicação de vacinas em Portugal, sem, contudo, endereçar os aspectos concretos em causa na negociação do plano pandémico da OMS.

    A deputada do Bloco acabou por lançar ‘farpas’ ao Chega, dizendo tratar-se de um debate de “mentiras e hipocrisia” e acusou o partido de André Ventura de ter ficado do lado das farmacêuticas na covid-19, por ter chumbado uma iniciativa do Bloco que propunha ‘levantar’ as patentes das vacinas. Isabel Pires defendeu que “as vacinas não deviam ser um negócio milionário”, que a “saúde não devia ser um negócio milionário” e que a “Pfizer não devia ter lucros de 22 mil milhões de euros à custa da vacina”.

    O deputado único do Livre, Rui Tavares, também mencionou o tema das vacinas e não fez referências específicas ao que está na mesa de negociações na OMS.

    Marta Gameiro, médica dentista, defensora da medicina baseada na evidência científica e autora da petição, esteve na comissão de Saúde a defender a petição. A médica organizou já dois congressos internacionais, em 2022 e 2023, um sobre a gestão da pandemia e outro sobre saúde mental e propaganda durante a covid-19.
    (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

    O deputado socialista João Paulo Correia elogiou a gestão da pandemia que foi feita pelo seu partido quando era governo e criticou a petição e a proposta do Chega.

    Outros deputados recorreram ao termo pejorativo “negacionismo”, incluindo o deputado do PCP António Filipe e a deputada única do PAN, Inês Sousa Real. “De facto, o negacionismo e o populismo têm alguns aspectos curiosos, é que negam as evidências científicas”, disse Sousa Real no início da sua intervenção, sem, contudo endereçar o conteúdo concreto da petição ou as propostas que estão na mesa na elaboração do plano da OMS.

    No final do debate, foi a vez de André Ventura, presidente do Chega, reagiu às críticas e insultos de alguns deputados. “Se fosse transparência, senhor deputado Rui Tavares, nós hoje sabíamos onde estão aquelas vacinas encomendadas e pagas pelo Estado português, (…) sabíamos onde foram parar os ventiladores que pagaram com o dinheiro dos contribuintes e nunca aqui puseram em Portugal, (…) sabíamos porque é que a presidente da Comissão Europeia não dá à polícia as mensagens sobre a compra de vacinas em toda a União Europeia, como lhe foi pedido”.

    Dirigindo-se ao deputado socialista, Ventura afirmou que “não deixa de ser caricato que o PS termine a sua intervenção dizendo o mundo precisa “deste Tratado Pandémico”. “Senhor deputado, tenho uma grande novidade para si, olhos nos olhos: não é o mundo que precisa de um Tratado Pandémico, são os grandes grupos económicos que dominam o mundo, que querem encher as carteiras à custa da liberdade dos cidadãos”, concluiu.

    white apple watch box on brown wooden table
    Marta Gameiro alertou que está a ser criada uma “indústria de pandemias” focada na venda de produtos e medicamentos a nível global. (Foto: D.R.)

    O debate terminou com algumas manifestações por parte de pessoas presentes nas galerias, o que gerou mais um aviso de José Pedro Aguiar-Branco, que também acabou por ser um recado para os deputados: “as galerias não se podem manifestar e se nós, enquanto deputados, dermos o exemplo disso, seguramente não se manifestarão”.

    Apesar de ter de assistir aos insultos contra os peticionários, Marta Gameiro mostrou-se satisfeita com o resultado alcançado. “Estou contente. A petição acabou por ser um sucesso porque teve de haver um debate”, afirmou ao PÁGINA UM, após o debate. Lamentou os insultos e que não se tivesse antes discutido em concreto o que está em causa no plano da OMS. Respondendo à deputada do Bloco, disse que o que fez foi “extrapolar” e usar referências a vacinas que constam da petição para “atacar injustamente o mensageiro” em vez de debater o plano pandémico.

    Questionada sobre como vê os insultos e o uso da palavra “negacionismo”, Marta Gameiro disse que “de certa forma, já estava à espera”. Mas “esperava também ouvir dos deputados argumentos mais baseados em evidências”. Acusou alguns deputados de viveram “numa bolha” e não entenderem que hoje, a OMS “está focada em vender produtos, como testes, medicamentos, vacinas, apps de rastreio”. Disse ainda que não é “contra tratados internacionais”, mas criticou “a urgência” que está a haver para adopção do plano pandémico da OMS. “O que está a ser criada é uma indústria de pandemias”, afirmou.

    Na sua ida ao Parlamento, Marta Gameiro foi acompanhada de apoiantes da petição, vestidos de branco, incluindo Joana Amaral Dias, psicóloga e candidata às eleições europeias pelo partido ADN, bem como Bruno Fialho, presidente deste partido que foi uma das surpresas das últimas legislativas.

    Os países irão decidir na 77ª Assembleia Mundial da Saúde, que começa no dia 27 de Maio, se adoptam ou não o texto do ‘Tratado Pandémico’, bem como as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional. Contudo, crescem os apelos para que a decisão sobre os dois textos seja adiada, para que os países possam ter tempo para rever as propostas que estão na mesa e construir textos mais sólidos.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • A Liberdade não tem preço, mas comemorá-la em Portugal não sai barato

    A Liberdade não tem preço, mas comemorá-la em Portugal não sai barato

    Poucas autarquias quiseram ficar arredadas das comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos, e por isso houve uma ‘corrida’ aos ‘músicos de intervenção’ ainda no activo, como Paulo de Carvalho, Sérgio Godinho, Fernando Tordo, Vitorino, Janita Salomé e Brigada Vitor Jara. Mas, visto em detalhe mais de uma centena de contratos, constata-se que quem recebe os maiores cachets são os ‘do costume’. O PÁGINA UM decidiu percorrer mais de uma centena de contratações já celebradas e inseridas no Portal Base associadas aos espectáculos que marcam os 50 anos de uma revolução que nos concedeu a Liberdade, hoje algo limitada. E mostra que, apesar de todos os eventos promovidos por autarquias serem ‘vendidos’ como gratuitos, a conta pública já está acima dos 2,4 milhões de euros. E ainda só lá cantam alguns dos contratos de 72 municípios e de três juntas de freguesia.


    Além das comemorações de Estado, protagonizadas por uma comissão específica, quase não vai haver autarca que queira passar à margem das festividades do meio centenário do 25 de Abril de 1974. Em cada município, pelas redes sociais, pela imprensa, de norte a sul, de este a oeste, surgem apetitosas agendas culturais com debates, exposições, teatro, música e pirotecnia. Praticamente todo oferecido aos cidadãos para lembrá-los que a Liberdade não tem preço, e deve ser mantida como o mais valioso dos bens pessoais e colectivos.

    Porém, em abono da verdade, tal como nunca há almoços de borla, também não há comemorações sem custos – neste caso, monetários. E beneficiários – neste caso, os músicos, embora alguns, admita-se, ate o sejam muitos justamente.

    A Revolução dos Cravos está intimamente associada à música – e, em especial, nas fases posteriores à música de intervenção. Zeca Afonso a e a sua (nossa) ‘Grândola Vila Morena’ tornou-se um Hino da Liberdade, mesmo mais do que “E depois do adeus’, de Paulo de Carvalho, que serviu de primeira senha para o início do golpe que fez cair a ditadura do Estado Novo.

    Não surpreende assim que abundem agora os concertos ‘saudosistas’ (no bom sentido do termo) – e, felizmente, com uma parte daqueles que foram intervenientes nessa esperançosa fase em que se cantavam os amanhãs – ou que os amanhãs cantavam. Os portugueses já há muito não contam com a presença de Zeca Afonso, que partiu em 1987, cinco anos depois de Adriano Correia de Oliveira. Também a pena de Ary dos Santos se perdeu cedo, e já não está entre nós um dos ‘príncipes da canção de intervenção’, José Mário Branco, falecido em 2019.

    Mas ainda estão no activo, e bem no activo, um bom punhado de cantores de intervenção, já todos septuagenários – e talvez já algo acomodados, diga-se. Aos 76 anos, Paulo de Carvalho é um deles. No próximo dia 26 dará um concerto em Vizela, com músicos convidados, pelo qual o município pagará 21 mil euros, mas tem estado particularmente activo este ano com espectáculos associados ao 25 de Abril contratados por autarquias, nomeadamente as de Gondomar (21.702 euros), de Grândola (109.705 euros, neste caso também por causa do cachet do seu filho Agir), de Loures (63.850 euros) e de São João da Madeira (7.000 euros).

    Paulo de Carvalho, em 1974, cantando ‘E depois do adeus’, que se transformaria na primeira senha para o avanço da Revolução dos Cravos.

    Fernando Tordo – autor de ‘Tourada’ e ‘Adeus tristeza’ – , com a mesma idade de Paulo de Carvalho, ainda aparenta estar mais activo, embora com cachets mais baixos. Não vai parar de amanhã até sábado em concertos, um por dia. Primeiro na Sertã (8.500 euros), segue-se Moimenta da Beira (10.420 euros), depois Coruche (9.465 euros) e finaliza na Azambuja (7.00 euros). O cantor parece ter recuperado nos últimos anos um certo élan – desde o início de 2023 conta 12 contratos públicos no Portal Base com autarquia que já ultrapassam os 100 mil euros –, tendo chegado a emigrar para o Brasil em 2014 durante o Governo de Passos Coelho. Regressou poucos anos depois, mas em 2022 ameaçou sair de novo se a direito ganhasse as eleições. Não aconteceu nesse ano, sucedeu agora.

    O ‘decano’ Vitorino (81 anos) e o seu irmão Janita Salomé (76 anos), em registo com raízes alentejanas, também cantarão Abril nos próximos dias, sobretudo o primeiro e, pelo menos numa ocasião, em conjunto. Amanhã, no Teatro José Lúcio da Silva, na cidade de Leiria, o concerto dois irmãos, acompanhados de Filipe Raposo e pela Orquestra Filarmónica das Beiras, vai custar ao erário público 25 mil euros. No sábado passado, os dois irmãos estiveram na Marinha Grande num concerto de antecipação ao 25 de Abril, pelo qual a autarquia não pagou muito: apenas 5.950 euros, ainda por cima por incluir orquestra. Aliás, segundo os contratos já inseridos no Portal Base, Vitorino vai dar mais dois concertos nos próximos dias com cachets mais apreciáveis: na Sertã (amanhã) por 12 mil euros e no dia 26 em Castelo de Paiva por 23 mil euros.

    Quem também se mostra imparável nesta fase é Sérgio Godinho que, aos 78 anos, tem estado na estrada com o seu projecto musical Liberdade 25, que já o levou duas noites em Março passado ao Coliseu de Lisboa, estando agora a aproveitar o interesse de muitos municípios para abrilhantar as comemorações do meio centenário do 25 de Abril. Amanhã, o autor do célebre ‘Liberdade’ e ‘Com um brilhozinho nos olhos’ vai estar na eborense Praça do Giraldo num concerto com “entrada livre”, porque a Câmara Municipal de Évora desembolsou 18.200 euros. No dia 25 vai estar em Loulé e depois no Auditório Municipal de Lousada no sábado, regressando a Lisboa no domingo. Estes três últimos concertos, que terão sido pagos por municípios, deverão ter custado valores entre os 10 mil e os 18 mil euros, intervalo que, por regra, o músico pratica, o que nem se pode considerar demasiado elevado tendo em conta os músicos que o acompanham.

    Sérgio Godinho continua a ser um dos músicos mais associados ao 25 de Abril.

    Aliás, ao nível dos cachets, os músicos e grupos associados directamente ao 25 de Abril até se mostram como os mais baratos. Por exemplo, os Brigada Vítor Jara levam á autarquia local pelo concerto de amanhã na Marinha Grande menos de 32 mil euros – e convém referir que este histórico grupo fundado em 1975 tem nove membros. Talvez por serem de Coimbra, fizeram um preço mais em conta para o concerto no próprio dia 25 de Abril, cobrando apenas 7.100 euros ao município.

    Também Carlos Alberto Moniz não cobra em demasia. Os dois contratos associados ao 25 de Abril, na Chamusca (amanhã) em Castelo Branco (na quinta-feira) custaram, respectivamente, 6.175 e 7.000 euros aos municípios, de acordo com os contratos publicitados no Portal Base. Um outro histórico, Jorge Palma, que vai estar em Pombal no próximo sábado, irá cobrar, por sua vez, 12 mil euros.

    Na verdade, independentemente de ainda estarem no activo muitos dos músicos e cantores que vivenciaram a passagem da Ditadura para a Liberdade, os tempos são como são, e quem tem os maiores cachets são aqueles com maior popularidade actual.

    De acordo com a pesquisa feita hoje pelo PÁGINA UM aos contratos já celebrados e inseridos no Portal Base – e nos últimos dias têm-se somado muitos –, o espectáculo com o maior orçamento realizar-se-á em Lisboa e tem como cabeça de cartaz Rodrigo Leão, embora de forma virtual. Produzido pela empresa Idade das Ideias, e tendo como adjudicante a empresa municipal EGEAC, a Praça do Comércio será o palco para a Orquestra Sinfonietta de Lisboa, o Coro de Santo Amaro de Oeiras, o Coro da Escola Artística do Instituto Gregoriano de Lisboa e vários solistas interpretarem canções de José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Fausto, Adriano Correia de Oliveira, Fernando Lopes Graça e Carlos Paredes. Além de um videomapping composto por fotografias de Alfredo Cunha e música de Rodrigo Leão, haverá ainda um espectáculo piromusical. Tudo gratuito, apesar de a empresa do município liderado por Carlos Moedas ter de pagar, com dinheiros públicos, um total de 271 mil euros.

    people walking on street near white concrete building during daytime
    Praça do Comércio onde esta quarta-feira se pagará a maior factura por uma noite de comemorações.

    Sem especificar em concreto os gastos de forma discriminada, a factura das comemorações em Almada também não fica barata: 146 mil euros para um conjunto de eventos culturais que tem o apogeu amanhã à noite com um concerto de Dino d’Santiago. O músico algarvio de ascendência cabo-verdiana levará, porém, uma pequena parte deste montante, uma vez que os seus cachets em concertos individuais situam-se entre os nove mil e 13 mil euros.

    Bem mais elevados são os cachets de Rodrigo Leão, que amanhã se apresentará ao vivo num concerto em Matosinhos. A autarquia socialista fez dois contratos para este espectáculo: um para pagar directamente a actuação do ex-membro dos Madredeus, no valor de 51.297 euros, e outro para pagar um espectáculo multimédia em si mesmo, no valor de 66 mil euros. Ou seja, uma noite de comemorações em Matosinhos a custar mais de 117 mil euros. Se somarmos o concerto no dia 26 de Salvador Sobral com a Orquestra Jazz de Matosinhos, a conta pública alimenta mais 47.614 euros.

    Em todo o caso, e talvez sem surpresa, os nomes grandes da música portuguesa levam os maiores cachets, independentemente de se tratar de comemorações em redor da liberdade ou não. Na lista de concertos nos próximos dias, os Xutos & Pontapés são reis & senhores na hora de desembolsar dinheiros públicos. Para o seu concerto de amanhã em Santiago do Cacém cobram 57.650 euros; no dia seguinte, descendo para a vizinha Odemira, levam um pouco menos: 42.385 euros. O município de Odemira, apesar de contar menos de 30 mil habitantes, ainda vai pagar 28 mil euros pelo concerto de amanhã de Richie Campbell, e mais 25.500 euros à banda de hip hop Wet Bed Gang, que foi escolhida em votação pela população local, e 12.500 euros aos Capitão Fausto.

    Xutos & Pontapés: são os mais bem pagos, sempre.

    Por sua vez, Pedro Abrunhosa também não se pode queixar de Abril. Nem de Isaltino de Morais. A autarquia de Oeiras já celebrou o contrato de 40 mil euros para o seu concerto da noite desta quinta-feira. Também aqui o concerto é considerado “gratuito”. Para contratar Mariza Liz, António Zambujo e os Wet Bed Gang a autarquia de Setúbal teve de desembolar, em pacote, cerca de 104 mil euros.

    Na lista entretanto inventariada pelo PÁGINA UM constam mais nomes de peso com cachets relevantes, destacando-se Rui Veloso (32 mil euros pelo concerto de amanhã em Alcácer do Sal) e José Cid (30.100 euros pelo concerto de amanhã no Portimão Arena). Abaixo dos 30 mil euros, D.A.M.A. e Bandidos do Cante repartem os 28.250 euros que a Câmara de Beja vai gastar num concerto na noite de quinta-feira, enquanto Luís Represas, que se notabilizou nos finais do século passado como vocalista dos Trovante, vai receber 23.250 euros por um concerto na Moita, um pouco mais do que os 18.675 euros que cobrará por similar apresentação em Moura. Pelo concerto em Arronches, no próximo sábado, Represas receberá um cachet de um pouco menos de 16 mil euros. Por sua vez, os Anjos levam para casa 20 mil euros depois de actuarem em Aljustrel na noite de amanhã.

    Já abaixo da fasquia dos 20 mil euros estão outros músicos ou grupos conhecidos como os GNR (concerto em Odivelas por 19.500 euros), The Gift (concerto em Alcochete por 18 mil euros), Quinta do Bill (concerto na alentejana vila de Cuba por 17 mil euros), Carminho (concerto em Sernacelhe por 16 mil euros), David Fonseca (concerto em Leiria por 13.250 euros). Gisela João (concerto em Amarante por 12.500 euros), João Gil (concerto em Carnide por 12.425 euros), Ana Bacalhau (concerto em Silves por 12.000 euros), Sofia Escobar (concerto em Montalegre por 11.900 euros. em parceria com o cantor FF), Cristina Branco (concerto na Póvoa de Varzim por 11.500 euros, a que acresce outro, no valor de 10 mil euros, na Covilhã), Camané (concerto em Castro Verde por 11.000 euros) e os históricos Taxi (concerto nos Olivais por 10.500 euros, a que acresce outro, no valor de 9.250 euros, em Castelo Branco).

    round black vinyl disc on vinyl player

    Além destes espectáculos musicais, o PÁGINA UM detectou outros eventos culturais – onde se destaca uma estranha ópera para jovens escrita pelo humorista Diogo Faro, pela qual a autarquia de Palmela pagou quase 37 mil euros – e também um vasto conjunto de contratos para serviços exclusivamente de pirotecnia, isto é, fogo de artifício. Para já, são oito – Setúbal, Almada, Oeiras, Moura, Beja, Castro Verde, Cuba, Vila Viçosa – que totalizam quase 185 mil euros. Na parte da logística são, por agora, uma dezena, que chegam aos 116 mil euros.

    Assim, estando ainda a procissão no adro – ou seja, ainda haverá muitos contratos em falta no Portal Base –, a conta das comemorações apurada até hoje á noite pelo PÁGINA UM para eventos sobretudo musicais das comemorações do meio centenário da Revolução dos Cravos ultrapassa os 2,4 milhões de euros, estando apenas contabilizadas despesas de 72 municípios e de três juntas de freguesia.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Tratado Pandémico: Propostas mais polémicas caem mas risco de ‘cheque em branco’ mantém-se

    Tratado Pandémico: Propostas mais polémicas caem mas risco de ‘cheque em branco’ mantém-se

    O plano de acção em futuras pandemias, em discussão na Organização Mundial de Saúde (OMS), sofreu novas e profundas alterações na semana passada, a segunda vez nos últimos dois meses. As novas propostas para as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional incluem importantes cedências aos defensores dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Mas, em compensação, o texto do chamado Tratado Pandémico ‘chuta’ para o futuro muitas definições, o que está a ser visto como perigoso, por ser um ‘cheque em branco’ à OMS. Se não houver adiamento, as propostas podem ser adoptadas já em Maio. Em Portugal, este tema vai ser alvo de apreciação em reunião plenária no Parlamento, por força de uma petição que forçou os deputados e os partidos a debater publicamente um tema que vai afectar todos os portugueses no futuro. Por agora, só o Chega tomou uma posição contrária ao polémico Tratado Pandémico, propondo a não-assinatura pelo Governo português.


    Será bom demais para ser verdade. É assim que defensores dos direitos humanos e das liberdades fundamentais estão a ver as recentes cedências que constam das propostas para a criação de um plano que visa preparar o mundo para futuras pandemias e crises de saúde públicas.

    Se as novas propostas para as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional, originalmente criado em 2005, traduzem um forte recuo nas polémicas intenções iniciais – e mantêm os direitos humanos e liberdades individuais -, já o novo texto para aprovar um ‘Tratado Pandémico’ – uma espécie de plano de acção concreto – mostra-se vago e perigoso por deixar eventualmente os países sujeitos à ‘politização’ de medidas, que podem ser mesmo adicionadas ‘à la carte’.

    Os receios em torno das propostas que estão na mesa surgem numa era pós-covid-19, em que medidas que foram impostas na generalidade dos países – com a excepção da Suécia – deixaram um rasto de danos e desconfiança. Medidas como confinamentos, fecho de escolas, imposição ou pressão para a vacinação e adopção de um passe de ‘segregação’ deixaram um rasto de excesso de mortalidade e outros efeitos negativos na população, sobretudo os mais frágeis, além dos danos causados na economia.

    Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, tem pressionado para que o Tratado e as emendas ao Regulamento sejam aprovados já em Maio, mas há dúvidas sobre as propostas que estão na mesa e sobre a pressa na sua aprovação.

    As novas propostas ao texto do Tratado, saídas das reuniões do ‘Intergovernmental Negotiating Body’ da OMS, foram colocadas ‘preto no branco’ a 13 de Março. Este organismo está encarregue de negociar e definir o texto do futuro Tratado que, por agora, é denominada “Convenção da OMS, Acordo ou outro Instrumento de Prevenção, Preparação e Resposta a Pandemias”. A ideia deste Tratado surgiu no auge da pandemia e já foram realizadas nove reuniões formais, sendo que a última reunião foi suspensa e será retomada na próxima segunda-feira, prevendo-se a sua conclusão em 10 de Maio.

    Em todo o caso, apesar de alguns recuos em propostas iniciais que davam demasiado poder à OMS – um organismo não-democrático e permeável aos lobbies farmacêuticos, políticos e de financiadores e investidores –, mantêm-se as críticas ao novo texto. “É, na prática, um cheque em branco que é passado à OMS”, defendeu Marta Gameiro, autora da petição que pede um referendo à adesão de Portugal ao Tratado, e que será amanhã debatida em plenário no Parlamento português.

    Curiosamente, mesmo a indústria farmacêutica aponta críticas ao texto. “Temos três preocupações chave que podem levar a incerteza e iriam beneficiar de critérios claros científicos e de evidência científica para evitar politização”, afirmou hoje a International Federation of Pharmaceutical Manufacturers and Associations (IFPMA) em comunicado. Entre as suas preocupações, esta federação considera, por exemplo, serem “excessivamente vagas” as definições de conceitos como “Pandemias”.

    person in white jacket wearing blue goggles

    Quanto às novas propostas de alteração ao Regulamento, foram conhecidas apenas na passada quarta-feira, dia 17, sendo que durante esta semana decorrerá a última reunião do Grupo de Trabalho que se debruça sobre o novo texto do Regulamento.

    Das alterações propostas são evidentes algumas cedências, como a manutenção de conceitos como os “direitos humanos” e “liberdade fundamentais das pessoas”, nomeadamente no Artigo 3º. Por outro lado, fica garantido que as recomendações da OMS serão “não vinculativas” (‘non-binding’) para os países. Ou seja, cada país mantém a autonomia de aceitar as recomendações do organismo nacional sem temer quaisquer penalidades se definir uma estratégia própria – como, aliás, fez a Suécia na pandemia da covid-19.

    Contudo, o actual texto em discussão mantém diversas propostas polémicas, nomeadamente a necessidade dos países reforçarem “capacidades” para prevenir e combater riscos para a saúde pública, onde são incluídos “riscos de comunicação” e “desinformação”, não se sabendo sequer quem define o rigor científico que por definição, é dinâmico.

    Recorde-se que, durante a pandemia de covid-19, foram classificados como sendo ‘desinformação’ factos e estudos científicos verídicos e foi censurada informação verdadeira, incluindo em torno de temas como a imunidade natural ou a vitamina D. Por isso, alguns críticos ficam de pé atrás e aplicam o ditado ‘gato escaldado de água quente tem medo’, já que, numa futura crise ou pandemia, consideram que pode ficar aberta a porta a uma nova politização da crise e a perseguição e repressão de informação verídica, mas que não é ‘aprovada’ pela OMS ou ou outras autoridades de saúde ou governos.

    red and white UNKs restaurant

    Ainda há outros temáticas que levantam celeuma, nomeadamente em torno de questões como financiamento específico, incluindo aos países mais pobres. Os críticos da medida falam em ‘novo colonialismo’ e desconfiam da ‘bondade’ na disponibilização de dinheiro para a aplicação de recomendações na área da saúde. “No fundo, teme-se que estas alterações venham, sobretudo, permitir às farmacêuticas criar um gigante mercado, usando fundos públicos para escoarem os seus produtos”, disse Marta Gameiro.

    Os países irão decidir na 77ª Assembleia Mundial da Saúde, que começa no dia 27 de Maio, se adoptam ou não o texto do ‘Tratado Pandémico’, bem como as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional. Contudo, crescem os apelos para que a decisão sobre os dois textos seja adiada, para que os países possam ter tempo para rever as propostas que estão na mesa e construir textos fundamentados e sólidos.

    Para já, em Portugal, onde a questão do Tratado Pandémico e o poder da OMS pós-pandemia da covid-19 passou ao lado do debate eleitorial nas recentes legislativas, tem sido a sociedade civil a obrigar os políticos a falarem deste assunto. Amanhã será, aliás, apreciada em reunião plenária na Assembleia da República uma petição para referendar a adesão de Portugal ao Tratado Pandémico da OMS, uma iniciativa dinamizada pela médica dentista Marta Gameiro e que contou com quase 7.500 assinaturas. Esta petição foi analisada na comissão de Saúde, no Parlamento, em 16 de Fevereiro do ano passado, então com fraca adesão dos deputados. Apesar disso, Marta Gameiro defende que “o objectivo da petição foi cumprido, porque queríamos ver os partidos a debater o tema” e isso foi atingido”.

    Nos últimos meses, o Chega tem mostrado um maior interesse sobre estas matérias, e na próxima quarta-feira será mesmo debatido um seu projecto de resolução para “recomendar que o Estado português não adira ao Tratado Pandémico. André Ventura até prometeu constituir uma comissão de inquérito sobre os efeitos da pandemia e o excesso de mortalidade, embora já não possa ‘obrigar’ tão depressa o Parlamento a ‘concordar’, através de um direito potestativo, uma vez que já gastou até ao próximo ano essa possibilidade com o caso das gémeas luso-brasileiras.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.