Categoria: Saúde

  • Uma em cada cinco famílias portuguesas está em “pobreza energética”. Em Boticas chega a ser três em cinco

    Uma em cada cinco famílias portuguesas está em “pobreza energética”. Em Boticas chega a ser três em cinco

    Quase 20% das famílias portuguesas está a receber descontos na factura da electricidade por ter rendimentos muito baixos. Uma análise detalhada do PÁGINA UM identificou as regiões e concelhos com as maiores carências, quase todas no Norte e Centro do país, onde faz mais frio no Inverno. Será que as famílias mais carenciadas aguentarão a prevista escalada de preços por força da galopante inflação?


    Uma em cada cinco famílias estará a beneficiar de tarifa social de electricidade (TSE) – um apoio automático do Estado que, na verdade, revela uma situação de grande debilidade financeira que coloca a população portuguesa numa das piores situações europeias em relação à denominada pobreza energética. Com a aproximação do Inverno e a galopante taxa de inflação, a probabilidade de um impacte na Saúde Pública pode ser brutal, tendo em conta que os internamentos e a mortalidade aumentam com o frio.

    De acordo com cálculos do PÁGINA UM, 19,3% das famílias portuguesas encontram-se abaixo de um limiar de rendimentos que as levam a necessitar de apoio estatal.

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    A situação mostra-se mais grave nas regiões Norte e Centro do país, atingindo os 32,4% – quase uma em cada três famílias – no distrito de Vila Real, e estando acima dos 20% nos distritos de Bragança (27,9%), Viseu (25,0%), Guarda (24,5%), Viana do Castelo (23,0%), Braga (21,2%) e Porto (20.9%).

    As regiões com menor percentagem de aglomerados familiares com direito a TSE são, curiosamente, o Alentejo (Évora, Beja e Portalegre), e os distritos de Lisboa e de Faro.

    Face ao desconhecimento do número de contratos de consumo doméstico por concelho por parte da Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), o PÁGINA UM considerou, para o cálculo das estimativas, o número de contratos beneficiários de TSE – disponibilizados para o mês de Junho – e o total das famílias apuradas pelos Censos de 2021.

    Por concelho, três integrados no distrito de Vila Real se destacam em termos de percentagem de famílias a necessitarem de apoio estatal para pagar as contas de electricidade: Boticas (60%, com 1.225 contratos de TSE num total de 2.057 famílias), Montalegre (52%, com 2.042 contratos de TSE num total de 3.943 famílias) e Valpaços (48%, com 3.079 contratos de TSE num total de 6.472 famílias).

    Percentagem de famílias com tarifa social de electricidade por distrito em Junho de 2022, calculado em função do número de beneficiários por 100 famílias. Fonte: DGEG e INE. Análise: PÁGINA UM. Mapa: © João Cláudio Martins.

    Acima dos 33% encontram-se ainda 15 municípios: três do distrito de Viseu: Vila Nova de Paiva (44%), Sátão (39%) e Resende (38%); mais três de Vila Real: Mondim de Basto (38%), Chaves (35%) e Santa Marta de Penaguião (33%); quatro de Bragança: Vila Flor (36%), Alfândega da Fé, Vimioso e Macedo de Cavaleiros (todos com 34%); um de Braga: Celorico de Basto (35%); três da Guarda: Sabugal (35%), Aguiar da Beira (34%) e Vila Nova de Foz Côa (33%); e ainda um do Porto: Baião (34%).

    De entre os concelhos com menores percentagens de família com TSE salientam-se Castanheira de Pêra (9%), Penela (10%), Odemira e Alcoutim (ambos com 11%) e Arronches, Figueiró dos Vinhos, Santiago do Cacém, Estremoz, Coruche e Alcácer do Sal (todos com 12%).

    Dos concelhos de maior dimensão, Lisboa tem 14% das famílias com TSE (34.944 contratos em 242.618 famílias), Sintra conta 21% (32.174 contratos em 153.234 famílias), Vila Nova de Gaia 20% (24.305 contratos em 121.311 famílias), Porto tem 18% (18.316 contratos em 102.227 famílias) e Cascais 16% (13.783 contratos em 86.497 famílias).

    Recorde-se que desde Julho de 2016, o acesso ao benefício da tarifa social da energia eléctrica e também de gás passou a ser concretizado por um mecanismo de reconhecimento automático, através da Autoridade Tributária e Aduaneira e da Segurança Social.

    São beneficiários os titulares de contratos domésticos que recebam complemento solidário para idosos, rendimento social de inserção, prestações de desemprego, pensão social de velhice ou invalidez ou o agregado familiar com um rendimento anual igual ou inferior a 5.808 euros, acrescido de 50% por cada elemento que não tenha qualquer rendimento, até ao máximo de 10.

    No caso da TSE, o benefício consiste, actualmente, num “desconto de 33,8 % sobre as tarifas transitórias de venda a clientes finais de eletricidade, excluído o IVA, demais impostos, contribuições, taxas e juros de mora que sejam aplicáveis”.

    Apesar da perda generalizada de rendimentos durante a pandemia, até houve uma redução global de beneficiários do TSE. De acordo com os dados da DGEG, a TSE reduziu-se de 780.255 contratos no final do primeiro trimestre de 2020 para 766.930 em Junho deste ano, ou seja, uma diminuição de 1,7%.

    Percentagem de famílias com tarifa social de electricidade por concelho em Junho de 2022, calculado em função do número de beneficiários por 100 famílias. Fonte: DGEG e INE. Análise: PÁGINA UM. Mapa: © João Cláudio Martins.

    Em 25 de Agosto passado, Duarte Cordeiro, ministro do Ambiente e Acção Climática, anunciou, a pretexto do aumento do preço dos combustíveis e electricidade, um conjunto de medidas de mitigação da inflação, nomeadamente a possibilidade de transição para o mercado regulado, a colocação de um preço máximo do gás doméstico e do apoio da Bilha Solidária. Além disso, O Governo alterou o IVA da electricidade de 23% para 6%, mas apenas para os primeiros 100 KWh, o que, de acordo com a DECO, resultará “numa poupança média mensal de 1,08 euros”.

    O impacte nos próximos meses da subida do preço da electricidade pode ser significativo se o Inverno for particularmente frio, agravando assim os efeitos da denominada “pobreza energética” de Portugal, com consequências tanto no conforto como mesmo da taxa de mortalidade.

    Nos últimos anos, de acordo com uma análise de Luísa Schmidt e Ana Horta, investigadoras do Instituto de Ciências Sociais, os preços da eletricidade para os consumidores domésticos em Portugal têm sido dos mais elevados da União Europeia, muito por via dos impostos.

    Em 2019, o Eurostat indicou que os impostos e taxas incluídos nas faturas da eletricidade dos portugueses constituíram 55% do preço final. “Assim, num contexto sociocultural em que se considera normal ter frio em casa no inverno, muitos portugueses optam por reduzir ao mínimo os custos com aquecimento”, salientam as duas investigadoras.

    Alguns dos indicadores compilados pelo Instituto de Ciências Sociais mostram que Portugal se encontrava já numa situação complexa do ponto de vista do conforto energético, com 18,9% dos portugueses incapazes de manterem a casa adequadamente quente, valor que confronta com 7% na União Europeia. As investigadoras consideraram também que, além do problema de rendimento das famílias, também se coloca o óbice da “literacia” energética, ou seja, as pessoas ignoram, em muitas situações, quais os tarifários mais adequados e outras medidas de poupança e de eficiência energética.

  • Vacinação em jovens adultos: por cada hospitalização evitada, há entre 18 e 98 casos de reacções adversas graves

    Vacinação em jovens adultos: por cada hospitalização evitada, há entre 18 e 98 casos de reacções adversas graves

    Estudo coloca em causa imposição da vacinação em universidades norte-americanas, concluindo que os prejuízos potenciais no grupo etário dos 18 aos 29 anos são superiores aos benefícios. Este “sacrifício” nem sequer traz vantagens para as comunidades mais vulneráveis face ao rápido decaimento da eficácia das vacinas na protecção contra a infecção, asseguram os autores, que pertencem a conceituadas universidades da América do Norte e Reino Unido.


    Se a vacina contra a covid-19 se chamasse emenda, e soneto fosse o SARS-Cov-2, então poder-se-ia aplicar o rifão português para sintetizar as conclusões de uma análise de 11 investigadores norte-americanos e britânicos divulgado esta semana: será pior a emenda do que o soneto se se insistir na vacinação de jovens adultos.

    O estudo – com 50 páginas e 125 referências bibliográficas –, ainda se encontra em avaliação pelos pares (peer review), sendo da autoria de 11 investigadores de diversas universidades, entre as quais a de Oxford, Harvard e Edimburgo. Alguns destes cientistas publicaram em Maio passado um artigo científico na prestigiada revista BMJ Global Health onde arrasaram a gestão política e mediática da pandemia, invocando sobretudo questões éticas.

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    Nesse artigo era salientado que a adopção dos certificados digitais, como passes sanitários para o acesso a determinados locais, tinha “colidido com os direitos humanos e promovido a polarização social afectando a saúde e o bem-estar”, acabando por ser usado com um fito “inerentemente punitivo, discriminatório e coercitivo.” Defendiam então uma reavaliação “à luz das consequências negativas.”

    Agora, no artigo intitulado “Covid-19 vaccine boosters for young adults: A risk-benefit assessment and five ethical arguments against mandates at universities”, os investigadores mostram-se mais taxativos, chegando a quantificar o risco dos efeitos adversos de um reforço vacinal nos jovens dos 18 aos 29 anos em confronto com o risco de hospitalização sem vacinação.

    Na análise risco-benefício, os autores estimam que, nos Estados Unidos, para se evitar uma hospitalização naquele grupo etário será necessário vacinar entre 22 mil e 30 mil adultos, uma vez que as complicações em caso de infecção de não-vacinados é sempre rara. Este risco da não-vacinação entra em confronto com o que se conhece sobre efeitos adversos das vacinas.

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    Ora, de acordo com os dados do Centers for Disease Control and Prevention (CDC) – a agência norte-americana de Saúde –, referidos pelos autores, esse número de vacinados, para prevenir apenas uma hospitalização, resulta em 18 a 98 casos de reacções adversas graves, incluindo 1,7 a 3,0 casos de miocardite, e ainda entre 1,37 e 3,23 casos sérios de reactogenicidade capaz de interferir com tarefas diárias.

    Por esse motivo, e porque os investigadores consideram que já existe, naquele grupo etário, uma elevada prevalência de imunidade adquirida por infecção, dizem que, nessas circunstâncias, o perfil de risco-benefício se torna ainda menos favorável. E, nessa medida, criticam a política de imposição da vacina em muitas instituições de ensino superior norte-americanas. Recorde-se que, em Maio passado, pelo menos mil universidades e campus universitários dos Estados Unidos exigiram a vacinação contra a covid-19, e mais de três centenas requereram agora a dose de reforço para aceitar matrículas. 

    Os investigadores relembram ainda que “a vacinação em massa foi promovida como a forma de terminar a pandemia”, mas tal nunca sucedeu, porque a eficácia na protecção contra a infecção decai muito rapidamente.

    Neste contexto, estes investigadores consideram que vacinar jovens adultos com uma dose de reforço, se mostra antiético. Primeiro, porque ainda “não existe nenhuma análise formal de risco-benefício para este grupo etário”; segundo, porque “a imposição da vacina pode resultar num malefício acumulado superior aos benefícios para os mais jovens”; terceiro, porque a redução de infecções nos jovens por via vacinal não acarreta significativos benefícios para a sociedade; quarto, porque a obrigatoriedade da vacina “viola o princípio da reciprocidade”; e por fim, a obrigatoriedade de vacinação tem consequências sociais profundas.

    Em Portugal, a vacinação nunca foi obrigatória, mas a pressão política e mediática para os jovens adultos se vacinarem foi enorme ao longo do ano passado, tanto mais que o acesso a determinados locais esteve condicionado à apresentação de certificado digital.

    De acordo com os mais recentes dados da Direcção-Geral da Saúde (DGS), virtualmente toda a população com mais de 25 anos fez a vacinação completa, enquanto na faixa dos 18 aos 24 anos se atingiu os 98%. No entanto, o reforço (geralmente, a terceira dose) teve menor adesão: 67% receberam-na no grupo dos 25 aos 49 anos, descendo para apenas 54% entre os 18 e os 24 anos.

  • Evolução da pandemia: SARS-CoV-2 está agora muito mais transmissível, mas muitíssimo menos letal

    Evolução da pandemia: SARS-CoV-2 está agora muito mais transmissível, mas muitíssimo menos letal

    O PÁGINA UM pegou nos dados possíveis, aqueles poucos que o obscurantismo do Ministério da Saúde deixa escapar a contragosto, e revela como evoluiu a pandemia em Portugal, desde Março de 2020 até Junho de 2022. E mostra como não faz sentido andar a contar ondas (seis, dizem), e que é mais importante olhar para a forma como evoluíram as taxas de internamento e o risco de morte. E identifica ainda o momento exacto em que tudo mudou, para melhor: Novembro de 2021. Foi por causa das vacinas? Foi por causa da Ómicron? Não decida. Deixe a Ciência ter a palavra, embora seja conveniente que essa seja diferente daquela que maioritariamente se viu, desde 2020, a lançar “certezas” e conjecturar previsões à moda dos búzios e de relatórios-fantasma.


    A Direcção-Geral da Saúde (DGS) não responde nem comenta. O Ministério da Saúde luta, afincadamente, no Tribunal Administrativo de Lisboa para não ceder documentos e bases de dados, nomeadamente as do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) e do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO). As autoridades de Saúde e de Estatística manipulam dados, de sorte que o cruzamento da pouca informação disponível se mostra complexa ou mesmo impossível.

    Veja-se, por exemplo, o intencional desfasamento dos grupos etários em diversas bases de dados, para assim impedir o cálculos de indicadores epidemiológicos por entidades e pessoas independentes.

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    E neste cenário, last but not the least, ainda tivemos a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) a expurgar, durante meses, a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar (BDMMH), por estar, a dita base de dados, a comprometer uma certa “narrativa oficial” sobre o desempenho oficial do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

    Entretanto, “regressou” a dita base de dados, há uns poucos dias, depois de muita pressão e denúncia do PÁGINA UM. Mas com dados estranhos, como a estranha diminuição abrupta dos internamentos e mortes hospitalares sobretudo nos últimos meses.

    Porém, acreditando que estamos perante dados oficiais credíveis – até prova em contrário ou admissão de “martelanço” –, a ressuscitada BDMMH permite, em cruzamento com alguns dados básicos da DGS relativos à covid-19, estabelecer uma evolução da pandemia em Portugal, desde Março de 2020 até finais de Junho deste ano, em diversos indicadores relevantes: incidência, risco de internamento, risco de morte (taxa de letalidade) e também de mortalidade hospitalar.

    Nesta análise deixaremos a mortalidade hospitalar associada à covid-19 para outra oportunidade.

    Uma questão relevante em Epidemiologia, sobretudo quando se trata de doenças causadas por vírus, é a assumpção de que um agente ou uma doença não são imutáveis. No caso do SARS-CoV-2, e pese embora todo o alarmismo que o rodeou – em que esteve sempre omnipresente o receio de sempre surgir uma variante pior do que a anterior, mesmo se a História mostrava o contrário noutras situações –, seria, na verdade, mais do que expectável que a sua transmissibilidade e letalidade do vírus evoluísse nestes dois domínios.

    E, nessa medida, a covid-19 de 2020 fosse diferente da covid-19 de 2021, e esta fosse diferente da covid-19 de 2022, até estabilizar numa fase endémica.

    Será que foi?

    Vejamos.

    Observando em detalhe a evolução mensal dos casos positivos – e sem prejuízo das sempre criticáveis políticas de testagem, que se tornaram um negócio –, mostra-se evidente que, do ponto de vista da incidência, e numa perspectiva holística, nunca se poderá falar de seis ondas – o número que a generalidade dos “especialistas”, políticos e imprensa contaram desde Março de 2020. Na verdade, nem cinco tivemos, nem quatro; quando muito, houve duas ou, no máximo, três.

    Evolução da incidência por mês (casos positivos) de covid-19 desde Março de 2020 até Junho de 2022. Fonte: DGS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Por exemplo, a dita “primeira onda” que começou em Março de 2020 e se estendeu até Maio daquele ano contou apenas um total de cerca de 33 mil casos, ou seja, pouco mais de 10 mil por mês. Ora, essa média mensal na, incorrectamente chamada, primeira onda é praticamente similar à média diária em Abril de 2022, o mês do primeiro semestre deste ano com menor incidência cumulativa.

    Se considerarmos os casos positivos de Janeiro de 2022 (cerca de 1,3 milhões), praticamente todos da variante Ómicron, verificamos também que foram em maior número do que os casos contabilizados em todos os longos meses em que dominaram as outras variantes.

    Nessa perspectiva, nem os surtos do Inverno de 2020-2021 – que se destacam dos períodos imediatamente anteriores e posteriores – se mostra comparável à verdadeira onda registada no primeiro semestre de 2022, onde cerca de 37% da população portuguesa foi “infectada”, o que dá uma média mensal de 6%. Só em Janeiro passado, chegou a mais de 12%.

    Nos 22 meses anteriores (desde Março de 2020 até Dezembro de 2021) tinha sido “infectada” cerca de 14% da população, dando assim uma média mensal de 0,6%. Mesmo as “infecções” registadas em Janeiro de 2021, que se destacou de todos os outros meses anteriores a 2022, somente “atingiram” 3% da população.  

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    Deste modo, mostra-se difícil defender agora a existência de mais do que duas ondas de “casos positivos” (Inverno de 2020-2021 e primeiro semestre de 2022), e quando muito três, se se admitir que no primeiro semestre de 2022 se conseguem identificar duas.

    A evolução da pandemia veio, na verdade, demonstrar que olhar para “ondas de casos” – ou “pandemia de testes”, como se chegou a chamar, com propriedade – foi um absurdo, uma vez que nunca houve nem uma correlação entre casos e internamentos nem entre casos e óbitos (entre internamentos e óbitos, já lá iremos…)

    De facto, observando a evolução do número de internamentos por mês atribuídos à covid-19, de acordo com a BDMMH, a mediana rondou os 1.800 – ou seja, em metade dos 28 primeiros meses da pandemia (Março de 2020 a Junho de 2022) nunca se ultrapassou aquele número. Por outro lado, a média mensal ficou um pouco aquém dos 2.500 internamentos.

    Se considerarmos a fasquia dos 3.000 internados, somente no período de Novembro de 2020 até Fevereiro de 2021 se registou um fluxo muito mais significativo de internamentos: acima dos 6.000 nos dois últimos meses de 2020 e acima dos 10.000 nos dois primeiros meses de 2021.

    Evolução do número de internamentos por mês por covid-19 desde Março de 2020 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Nessa medida, a definirem-se “ondas de internamentos” (que significam, além de um indicador da agressividade do vírus, picos de pressão hospitalar), então apenas houve uma em Portugal: iniciada em Outubro de 2020 (2.312 hospitalizações) e que findou em Março do ano seguinte (2.760), tendo causado hospitalizações acima dos 6.000 internamentos em Novembro e Dezembro e atingido o auge em Janeiro e Fevereiro de 2021 (com mais de 10.000 internamentos em cada mês).

    A essa onda única sucedeu uma relativa estabilidade nos internamentos, quase indiferente aos casos positivos. No último ano com dados, entre Julho de 2021 e Junho de 2022, contabilizam-se seis meses com internamentos entre os 1.700 e os 2.000, havendo apenas dois meses (Janeiro e Fevereiro) excedendo aquela fasquia.

    Convém, contudo, salientar que Janeiro e Fevereiro deste ano tiveram uma incidência de infecções por SARS-CoV-2 cinco vezes superior ao período invernal homólogo do ano anterior (1,97 milhões de casos positivos vs. 384 mil)

    No caso da evolução da mortalidade, embora ainda seja necessário a DGS esclarecer muitos aspectos – por exemplo, a elevada fracção de óbitos registados fora das unidades hospitalares (8.549 mortes, no total) e o contributo de comorbilidades relevantes para a causa de morte –, a covid-19 foi efectivamente uma causa de morte muito relevante em determinados períodos, se comparada, por exemplo, com as doenças respiratórias “associadas” à gripe.

    Evolução do número de óbitos por mês atribuídos à covid-19 desde Março de 2020 até Junho de 2022 nos hospitais do SNS e fora dos hospitais. Fonte: DGS e BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM. Nota: A DGS indica os óbitos totais e a ACSS os óbitos apenas ocorridos nos hospitais do SNS; pela subtracção obtém-se os óbitos fora dos hospitais. Em dois meses (Abril e Maio de 2021), o valor indicado pela ACSS (hospitais) foi ligeiramente superior ao indicado pela DGS (total), daí o valor negativo para os óbitos fora dos hospitais.

    No início da pandemia (Abril de 2020), a mortalidade atribuída à covid-19 pode ser considerada bastante relevante por ser superior à expectável face à pneumonia, mas foi no período de Outubro de 2020 a Março de 2021 que a situação assumiu um cenário mais grave.

    Neste último período, a mortalidade associada ao SARS-CoV-2 foi, sem dúvida, anormalmente elevada, em especial nos meses de Janeiro e Fevereiro de 2021, mesmo tendo em conta a estação do ano (Inverno). Em todo o caso, dever-se-ia encontrar uma explicação plausível para se contabilizarem, naqueles dois meses, respetivamente 2.557 e 1.066 óbitos fora de unidades hospitalares do SNS.

    Após Março de 2021, a mortalidade atribuída à covid-19 não deve ser considerada anormal do ponto de vista da Saúde Pública, se atendermos que esta doença veio “substituir”, em grande medida, uma parte das doenças respiratórias – sendo disso prova a redução abrupta e persistente dos internamentos e óbitos associados a pneumonias e outras doenças similares.

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    Comparando o primeiro semestre dos três anos de pandemia (2020-2022) com o primeiro semestre dos três anos imediatamente antes (2017-2019), as mortes por doenças do aparelho respiratório diminuíram 24% (14.445 vs. 22.567 óbitos, ou seja, menos 8.131 mortes).

    Os óbitos atribuídos à covid-19 no período invernal de 2021-2022 – um total de 3.554 mortes entre Novembro de 2021 e Março de 2022 – já não parecem assumir valores anormais, considerando o quase desaparecimento da época gripal (e das mortes a si associadas). A mortalidade nos meses seguintes pode classificar-se como elevada em função da época do ano, mas, como já referido, deveria ficar esclarecida se a elevada fracção de óbitos atribuídos à covid-19 que ocorreram fora dos hospitais do SNS não “inflacionou” os efeitos do SARS-CoV-2.

    Em todo o caso, a evolução dos números da mortalidade atribuída à covid-19 (em meio hospitalar e fora dos hospitais) apresenta tendência para estabilizar, em termos absolutos, desde Dezembro do ano passado.

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    Contudo, nos quatros meses em que se mostra possível comparar três anos sucessivos (Março a Junho), verifica-se que 2022 (já com vacinação plena, incluindo reforços, em quase toda a população “vacinável”) foi aquele com maior número de óbitos por covid-19 (3.063), contrastando com os 750 óbitos em 2021 (contudo, após o morticínio de Janeiro e Fevereiro) e com os 1.579 óbitos de 2020 (no início da pandemia).

    Esta análise da evolução dos casos positivos, das hospitalizações e dos óbitos serve, na verdade, sobretudo como base para a criação de indicadores epidemiológicos que, de forma simples, ajudam a demonstrar que a covid-19 não é hoje, em 2022, a mesma de “antanho”. E também permite aferir, à falta de transparência do Ministério da Saúde em disponibilizar dados discriminados do SINAVE e do SICO, os momentos-chaves da mudança.

    Em suma, identificar os períodos em que a covid-19 deixou de ser um problema de Saúde Pública.

    Um dos indicadores mais interessantes que deveriam ser disponibilizados pela DGS – e nunca o foram – é o do risco de internamento, para o qual basta uma análise fina aos dados do SINAVE, de modo a saber, em cada período, a probabilidade de um infectado ser hospitalizado.

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    Perante o lamentável obscurantismo da DGS – e a demora do Tribunal Administrativo em responder à intimação apresentada pelo PÁGINA UM –, pode-se, em todo o caso, “caçar com gato”, e estimar um valor próximo através do cálculo da razão entre internamentos e casos positivos (infelizmente, apenas para a população em geral, uma vez que os grupos etários para os casos são diferentes dos que se referem aos internamentos).

    Referia-se que existe um enviesamento neste indicador calculado desta forma – fazendo com que não constitua um risco efectivo de internamento –, porque existe um deferimento entre a infecção e o internamento (e a eventual morte). Deste modo, os infectados de um período podem ser os internados do período seguinte. Ora, apenas com o SINAVE se poderá apurar esse indicador com rigor.

    Colocadas estas premissas, mesmo assim o indicador que se calcular constitui uma aproximação bastante interessante da realidade, permitindo identificar cinco períodos distintos ao longo da pandemia.

    Na primeira fase da pandemia, até Agosto de 2020, o risco de internamento dos “infectados” (medido pelo número de casos positivos) foi relativamente elevado, sobretudo em Abril e Maio, quando se atingiu um risco de 14,2% e 18,6%, respectivamente. Neste último mês atingiu-se o valor mais elevado de risco de internamento ao longo de toda a pandemia, embora se deva considerar que, neste período, se optava pela hospitalização, por prudência, mesmo em casos não demasiado graves.

    Evolução do risco de internamento (internados por casos positivos, em percentagem) por mês por covid-19 desde Março de 2020 até Junho de 2022. Fonte: DGS e BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Depois deste período, o risco de internamento situou-se entre os 3% e os 6% no período de Setembro de 2020 a Janeiro de 2021, aumentando depois, num terceiro período, para 13,2% em Fevereiro de 2021 e para 15,9% no mês seguinte.

    Um quarto período começou em Abril – ainda de transição, com o indicador a baixar para 6,1% –, estendendo-se até Outubro de 2021, com o risco de internamento a variar entre os 2% e os 5%. Tendo em consideração que, neste período de Maio até Outubro de 2021, a taxa de vacinação abrangia já praticamente toda a população mais vulnerável (acima dos 65 anos), parece evidente advir daí uma redução no risco de internamento: foi de 2,8%, que confronta com os 5,6% do período homólogo do ano anterior (ainda sem vacina). Porém, dir-se-á sempre que essa redução do risco entre estes períodos homólogos (com e sem vacina) é de 50%.

    De facto, somente a partir de Novembro de 2021, e especialmente a partir do mês seguinte, o risco de internamento diminuiu fortemente. Em Dezembro do ano passado situou-se apenas nos 0,7% – ou seja, em cada 1.000 infectados, somente sete necessitaram de internamento –, estando assim pela primeira vez abaixo de 1%. Ao longo de 2022, este rácio esteve sempre inferior a 0,6%.

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    Pergunta-se: foi por causa da vacina ou foi a menor agressividade da variante Ómicron? – eis a questão dos milhões de euros que a pandemia ainda faz rodar em negócios.

    Certo é que, se for a vacina, os seus benefícios custaram muito tempo a chegar; se não tiver sido a Ómicron a constituir o game changer, então foi uma coincidência extraordinária as vacinas se terem tornado eficazes (em evitar o risco de internamento) no exacto mês em que aquela nova variante surgiu e se tornou rapidamente dominante (e muito mais transmissível).

    Em todo o caso, a evolução da pandemia, mesmo antes do surgimento da Ómicron, evidencia que as vacinas contra a covid-19 tiveram um efeito benéfico, embora temporário, na redução significativa da letalidade.

    Com efeito, e com similares premissas às que se apresentaram para o risco de internamento – e face à impossibilidade, por causa da política de obscurantismo da DGS, de analisar a evolução por faixa etária –, pode-se estimar também a taxa de letalidade global (para toda a população), através do cálculo do rácio óbitos por infectados em cada mês.

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    Esse indicador permite confirmar, atendível a estratégia de testagem, que a taxa de letalidade – ou o risco de morte em caso de infecção – foi bastante elevada (acima de 1%) até Março de 2021, com alguns períodos com valores preocupantes: Março a Maio de 2020 e Dezembro de 2020 a Março de 2021.

    A partir de Abril de 2021, a taxa de letalidade ficou sempre abaixo de 1%, o que apenas sucedera no primeiro ano da pandemia num curto período (Setembro e Outubro de 2020).

    Contudo, a partir de Abril de 2021 – com o processo de vacinação em “velocidade de cruzeiro” –, assistiu-se, aparentemente, a uma progressiva redução do efeito protector das vacinas. Isto porque a taxa de letalidade aumentou sensivelmente a partir dos meses de Junho e Julho daquele ano (0,23% e 0,30%, respectivamente) a atingir os 0,86% em Outubro.

    E eis que a seguir, repentinamente, baixou de novo, quedando-se nos 0,49% em Novembro, e depois ainda se reduziu nos meses seguintes. Ao longo de 2022, a taxa de letalidade da covid-19 variou entre os 0,08% em Janeiro e os 0,22% em Junho.

    Evolução mensal da taxa de letalidade (óbitos por casos positivos, em percentagem) por covid-19 desde Março de 2020 até Junho de 2022. Fonte: DGS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Não havendo informação que permita, de forma expedita, calcular a taxa de letalidade por grupos etários, pode-se sempre dizer que para os mais idosos esse indicador será agora, certamente, inferior a 2%, quando nas primeiras fases da pandemia se situava nos 15%. Nos mais jovens continua irrelevante, porque sempre foi.

    Também para o risco de morte, a mesma pergunta: qual a causa desta favorável evolução? As vacinas – que começaram a ser administradas no final de Dezembro de 2020 e tiveram já vários reforços – ou a variante Ómicron, que surgiu exactamente na altura que a taxa de letalidade parecia ir disparar com a chegada do Inverno?

    Em tempos normais, a Ciência debateria essa questão de forma aberta, com base em hipóteses e com todos os dados (leia-se, informação oficial) em cima da mesa, sem truques, sem omissões sem necessidade de intervenção do Tribunal Administrativo para se aceder a informação oficial, sem tramoias de burocratas que “expurgam” bases de dados para satisfazer amigos governantes.

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    Mas, infelizmente, uma coisa esta pandemia nos demonstrou: a Ciência tornou-se maleável e submissa ao poder político, e, nessa medida, jamais desejará agora discutir abertamente alguns temas, que se tornaram tabu, porque comprometedores da sua independência e idoneidade.

    Quando se diz Ciência, estamos a falar dos cientistas que, por acção ou omissão, mandaram os seus princípios às malvas.

  • Paradoxo ou base de dados “martelada”: internamentos e mortalidade hospitalar caem a pique no primeiro semestre de 2022

    Paradoxo ou base de dados “martelada”: internamentos e mortalidade hospitalar caem a pique no primeiro semestre de 2022

    A Administração Central do Serviço de Saúde (ACSS) repôs a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar no Portal da Transparência do SNS, contendo já informação mensal até Junho deste ano, mas a análise do PÁGINA UM revela que os internamentos no primeiro semestre de 2022 desceram 30% face ao último quinquénio e os óbitos em meio hospitalar recuaram 27%. Enquanto isso, a mortalidade total este ano, dentro e fora dos hospitais, está bem acima do normal. Estará a base de dados do Ministério da Saúde a ser “manipulada” ou os portugueses moribundos estão agora a morrer longe dos hospitais? Uma incógnita. Até porque o Ministério da Saúde não comenta, como habitualmente.


    Os números de internamentos e de óbitos ocorridos em meio hospitalar nas unidades do SNS entraram em inexplicável queda abrupta no primeiro semestre deste ano, de acordo com uma análise detalhada do PÁGINA UM à base de dados de Morbilidade e Mortalidade Hospitalar (BDMMH), sob gestão da Administração Central do Serviço de Saúde (ACSS).

    Recorde-se que esta base de dados esteve inoperacional durante cerca de quatro meses, por iniciativa de Vítor Herdeiro, presidente da ACSS – e amigo de longa data da ex-ministra Marta Temido –, para impossibilitar assim a continuidade das análises que o PÁGINA UM estava a realizar ao desempenho do SNS durante a pandemia. Em 4 de Agosto passado, a ACSS colocaria, em substituição da BDMMH original, três bases de dados com informação completamente mutilada. As pressões do PÁGINA UM – que colocou, entretanto, um processo de intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa para consultar também uma base de dados com informação mais vasta – levaram a ACSS a recolocar a BDMMH original, com dados até Junho deste ano. Quando da retirada desta base de dados da Plataforma da Transparência do SNS, em Maio passado, apenas estava disponibilizada informação até Janeiro de 2022.

    red vehicle in timelapse photography

    Assim, com a informação agora já disponível para o primeiro semestre de 2022 (Janeiro a Junho), um paradoxo ressalta de imediato, através, saliente-se, de fonte oficial: apesar da mortalidade total em Portugal no presente ano estar praticamente ao nível do ano passado (actualmente, observa-se uma redução de 1,5%) e 6,7% superior à média do último quinquénio (2017-2021), a actividade hospitalar, medida pelos internamentos e óbitos aí declarados, está aparentemente em contra-ciclo. Ou então a BDMMH, disponibilizada novamente ao público, foi falseada.

    Com efeito, comparando o primeiro semestre de 2022 com os períodos homólogos entre 2017 e 2021, bem como com a média deste quinquénio, mostra-se espantosa a descida no número de internamentos. De acordo com a BDMMH, entre Janeiro e Junho deste ano foram contabilizados 274.385 hospitalizações, o que contrasta com os 360.837 internamentos em 2021. No último quinquénio, 2017 tinha sido o ano com mais internamentos no primeiro semestre, com mais de 430 mil. Em termos relativos, a redução dos internamentos no primeiro semestre deste ano foi praticamente de 30% face à média do último quinquénio.

    Internamentos hospitalares no SNS no primeiro semestre (Janeiro-Junho) entre 2017 e 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Para o período em análise, em todos os grandes grupos de doenças responsáveis pelos internamentos se constatam fortes decréscimos entre 2022 e o último quinquénio, exceptuando a covid-19 que apenas contabiliza hospitalizações desde 2020. As doenças do aparelho respiratório são aquelas que mais desceram, tanto em termos absolutos (-23.909 internamentos, embora quase em linha com 2021) como em termos relativos (-50,2%).

    Também muito relevante – até por ser o grupo de doenças que mais contribui para a entrada em hospitais – se mostra a redução dos internamentos por problemas de saúde relacionados com o aparelho circulatório. No primeiro semestre deste ano, a BDMMH contabilizou 35.002 internamentos, menos 20.893 do que a média do quinquénio. Face ao ano passado, o ano de 2022 contou entre Janeiro e Junho com menos 17.006 hospitalizações.

    Mesmo nas neoplasias – que muitos especialistas receavam vir a ter um recrudescimento face à gestão seguida pelo Governo em suspender diagnósticos e exames durante a fase pandémica –, a serem verídicos os dados da BDMMH, então algo inexplicável se passa. Comparando com a média do último quinquénio (39.861 internamentos), em 2022 registaram-se menos 14.711 hospitalizações, uma queda de 37%.

    Para os grupos de doenças com mais de 10 mil internamentos em média (no quinquénio 2017-2021) para o primeiro semestre, apenas as doenças do aparelho osteomuscular e do tecido conjuntivo registaram uma redução inferior a 20%.

    Na mesma linha, segundo a BDMMH, a redução de óbitos declarados nos hospitais do SNS ao longo do primeiro semestre de 2022 são significativos, e pouco compagináveis com um ano de excesso de mortalidade. No período em análise, enquanto no último quinquénio se contaram 25.900 mortes nas unidades de saúde do sector público, este ano registaram-se, segundo a base de dados do Ministério da Saúde agora novamente disponível, “apenas” 18.898 óbitos. Ou seja, uma descida de 27%.

    Confrontando 2022 com 2021 – e, sabendo-se que a mortalidade total em Portugal entre estes dois anos é quase similar –, observa-se, contudo, uma diferença de 10.324 óbitos a menos. Seguindo a mesma linha dos internamentos, em todos os grupos de doenças se observam descidas acentuadas entre 2022 e os anos transactos.

    No caso das doenças do aparelho respiratório, a variação é de 47% face ao último quinquénio e de 25% face a 2021, que já fora um ano pouco mortífero, uma vez que as pneumonias virais e bacterianas se reduziram com o surgimento da covid-19.

    Óbitos declarados nas unidades do SNS no primeiro semestre (Janeiro-Junho) entre 2017 e 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Também nas doenças do aparelho circulatório, a BDMMH indica uma queda surpreendente no primeiro semestre de 2022 face aos cinco anos anteriores (-35%, correspondentes a menos 1.785 óbitos), o mesmo sucedendo para as neoplasias (-43%, correspondentes a menos 2.058 óbitos). Em nenhum grupo de doenças – de entre aqueles que, em média no último quinquénio, registaram mais de mil óbitos no primeiro semestre – se observou uma queda nos primeiros seis meses deste ano inferior a 20%.

    A estranheza suscitada pela comparação entre o primeiro semestre de 2022 e os períodos homólogos desde 2017 ainda aumenta mais quando se observa a evolução cronológica contínua tanto nos internamentos como nos óbitos.

    Em termos globais, verifica-se que, desde Janeiro de 2017 – a partir do qual a BDMMH disponibiliza informação –, o mês de Junho de 2022 é o mês que regista o menor número de internamentos (34.487) e o menor número de óbitos (2.394), segundo uma tendência fortemente decrescente a partir de Dezembro do ano passado.

    Total de internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. ACálculos e análise: PÁGINA UM.

    Em relação aos internamentos, confirma-se mais uma vez, a considerar verídica a BDMMH, que a pandemia terá causado, indirectamente, um “esvaziamento” dos internamentos hospitalares. Com efeito, se antes do surgimento da pandemia praticamente todos os meses registavam mais de 65 mil internamentos, a partir de Março de 2020 nunca mais nenhum mês ultrapassou essa fasquia, mesmo quando o SNS colapsou no Inverno de 2020-2021.

    Contudo, mostra-se surpreendente que a queda do número de internamentos tenha sido em Maio e Junho deste ano mais baixo do que em Abril de 2020, quando, no início da pandemia, houve uma debandada dos hospitais públicos.

    Na mesma linha, e no caso dos óbitos totais em meio hospitalar, também os últimos meses apresentaram uma evolução atípica. Se o Inverno de 2020-2021 foi particularmente mortífero nos hospitais (com um recorde inédito de 8.438 óbitos em Janeiro de 2021), já o mais recente Inverno foi anormalmente pouco letal com o máximo a ser atingindo em Dezembro do ano passado com “apenas” 4.227 mortes.

    person walking on hallway in blue scrub suit near incubator

    Antes da covid-19, na época gripal geralmente o número de óbitos em meio hospitalar situava-se entre os 5.000 e os 6.000. Porém, a partir de Janeiro deste ano, a mortalidade hospitalar foi descendo sempre, em todos os meses, com Junho a ser o valor mais baixo: 2.394. De acordo com a BDMMH, antes da pandemia, o mês com menor mortalidade hospitalar foi Setembro de 2018 com 3.684 óbitos.

    Em concomitância com os dados globais, também a evolução mensal dos internamentos e mortes nos grupos de doenças mais letais em meio hospitalar apresenta um perfil atípico.  

    No caso das doenças do aparelho respiratório, a chegada da covid-19 resultou numa descida abrupta nos internamentos, sobretudo no período invernal de 2020-2021 e 2021-2022. Até neste último período, o pico de internamentos pouco suplantou o que era norma nos Verões pré-pandemia. Em todo o caso, a mortalidade no Inverno de 2020-2021 foi relativamente elevada (embora muito mais baixa do que o habitual antes da pandemia), porque a taxa de sobrevivência foi fortemente afectada pelo colapso do SNS em Janeiro de 2021. Mais estranha, porém, é a tendência contínua de descida dos óbitos a partir de Janeiro deste ano. No último mês de Junho, a BDMMH apenas registou 435 óbitos por doenças do aparelho respiratório.

    Doenças do aparelho respiratório – internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Em relação às doenças do aparelho circulatório, se a pandemia não teve grande impacte no número de internamentos até finais de Dezembro de 2021 – com excepção de Abril de 2020, por causa da fuga dos hospitais –, já a partir de Janeiro a descida se mostra surpreendente, sobretudo porque contraria um padrão epidemiológico. Com efeito, antes da pandemia, os internamentos por doenças do aparelho circulatório – que incluem os enfartes e os AVC’s – situavam-se, por norma, entre os 8.000 e os 11.000, enquanto os óbitos variavam em função da época do ano: em Janeiro (geralmente o mês mais frio) ultrapassavam os 1.000, descendo até um mínimo próximos dos 600 no auge do Verão.  

    Contudo, no último Inverno, as mortes hospitalares “só” atingiram, segundo a BDMMH, um máximo de 786 óbitos (Dezembro do ano passado), descendo sistematicamente a partir daí. Em Junho passado, a base de dados do Ministério da Saúde aponta as 378 mortes por este grupo de doenças, o que não só se mostra anormal do ponto de vista epidemiológico como não aparenta fazer sentido num ano com excesso de mortalidade total.

    Doenças do aparelho circulatório – internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    No caso das neoplasias, a situação também se mostra anormal, mas aqui desde o início da pandemia. É certo que em 2020 e 2021 já se verificara uma redução com alguma relevância (sobretudo em determinados períodos) no número de internamentos e de mortes pelos diversos cancros, mas essa descida tornou-se colossal a partir de Dezembro do ano passado.

    Se antes da pandemia os internamentos por neoplasias rondavam, sem grandes flutuações, os 7.000 em cada mês, em Junho deste ano quedaram-se abaixo dos 3.000. No que diz respeito aos óbitos, antes da pandemia geralmente situavam-se, em cada mês, entre os 800 e os 1.000, durante os anos de 2020 e 2021 passaram a situar-se entre os 700 e os 800, para agora em Junho deste ano – depois de contínua retracção – se terem contabilizado apenas 326 óbitos por cancros em meio hospitalar.

    Neoplasias – internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Obviamente, deve-se salientar, mais uma vez que estas mortes se referem às contabilizadas nas unidades do SNS, podendo esta descida apenas significar que há muitos mais doentes terminais com neoplasias que morrem fora dos hospitais.

    A evolução das doenças do aparelho digestivo ao longo da pandemia teve um padrão quase normal até final de 2021, se se exceptuar duas quedas abruptas nos internamentos, em Abril de 2020 (devido à fuga dos hospitais) e no Inverno de 2020-2021. No entanto, a mortalidade até se manteve estável, e dentro dos padrões normais pré-pandemia, até Dezembro do ano passado. A partir desse mês, a mortalidade por este tipo de doenças caiu significativamente, tendo a BDMMH contabilizado “apenas” 125 óbitos. Antes da pandemia, o valor mais baixo, desde 2017, ocorreu em Setembro de 2018 (263 mortes).

    Doenças do aparelho digestivo – internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    Por fim, no caso das doenças infecciosas e parasitárias – agrupadas no grupo A e B da classificação de doenças da Organização Mundial de Saúde –, o número de internamentos também desceu com a chegada da pandemia, mas quase regressou a valores pré-pandémicos no Verão de 2021. Porém, também para este grupo vasto de doenças – cuja taxa global de mortalidade hospitalar se situa geralmente acima dos 20%, mas que quase atingiu os 40% em Janeiro de 2021 –, o número de internamentos e de óbitos registados nas unidades do SNS quebrou a partir do início do presente ano.

    Segundo a BDMH, em Junho passado, apenas foram internadas 953 pessoas por causa deste grupo de doenças, registando-se 222 óbitos – os valores mais baixos desde 2017 para ambos os indicadores.

    O PÁGINA UM tentou obter um comentário do Ministério da Saúde sobre estas matérias, enviando mesmo o gráfico da evolução dos internamentos e óbitos em meio hospitalar relativo às neoplasias, de modo a ficar mais claro aquilo que estava em causa. Não obteve resposta.

    Doenças infecciosas e parasitárias (códigos A e B da CDI-OMS) – internamentos (esq.) e óbitos (dir.) em meio hospitalar do SNS por mês desde Janeiro de 2017 até Junho de 2022. Fonte: BDMMH / ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    O processo de intimação que o PÁGINA UM apresentou no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar a ACSS a divulgar documentos administrativos, incluindo a BDMMH, ainda decorre. A ACSS alegou, junto do juiz, ter já cumprido o solicitado pelo PÁGINA UM, mas tal não corresponde à verdade.

    No pedido, que recorde-se foi formalmente feito em 21 de Julho, além da BDMMH, solicitava-se o “acesso presencial e/ou eventual cópia digital da Base de Dados central do GDH (Grupos de Diagnósticos Homogénos), vem como do denominado BI-MH (Bilhete de Identidade para a Mobilidade Hospitalar.” Estas duas bases de dados são, na verdade, as “mães” da BDMMH disponibilizada pelo Ministério da Saúde no Portal da Transparência do SNS, sendo assim consideradas documentos administrativos se os registos dos doentes forem anonimizados.

    Contudo, ao contrário da BDMMH – que integra já um tratamento estatístico mais técnico (e eventualmente político) dos dados recolhidos por cada hospital –, a base de dados do GDH e do BI-MH não são tão facilmente manipuláveis, porque individualizados. Daí o interesse do PÁGINA UM em analisá-las para conferir o rigor e exactidão da BDMMH que se encontra no Portal da Transparência do SNS.

  • Metade dos óbitos atribuídos ao SARS-CoV-2 estão agora fora dos hospitais. Mortes são por ou com covid-19?

    Metade dos óbitos atribuídos ao SARS-CoV-2 estão agora fora dos hospitais. Mortes são por ou com covid-19?

    Apesar da elevada imunidade vacinal – por ser um dos países do Mundo com maior taxa de vacinação –, e também natural – por mais de metade da população ter tido contacto com o vírus –, Portugal apresentou nos últimos meses um número de óbitos muito mais elevado do que nos períodos homólogos de 2020 e 2021. Mas também ressalta uma percentagem absurda de óbitos atribuídas à covid-19 que se registaram fora das unidades hospitalares do SNS. A Direcção-Geral da Saúde não explica por que razão metade das vítimas da covid-19 dos últimos meses (que seriam, assume-se, casos graves desta doença) não mereceu tratamento hospitalar, morrendo aparentemente sem assistência médica adequada.


    Entre Março e Junho deste ano, metade dos óbitos atribuídos à covid-19 registados pela Direcção-Geral da Saúde ocorreu fora dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), de acordo com uma análise do PÁGINA UM, que cruzou dados oficiais da Direcção-Geral da Saúde (DGS) com a base de dados da Morbilidade e Mortalidade no Portal da Transparência, entretanto “ressuscitado” (ver N.D., em baixo).

    Esta situação recoloca assim mais dúvidas sobre se os certificados de óbito para os casos fora das unidades hospitalares fazem directa referência ao SARS-CoV-2 como causa de morte, ou se optam por outras causas mais relevantes e a contabilização para as estatísticas da covid-19 se devem apenas ao facto de as pessoas falecidas estarem com teste positivo ao coronavírus.

    person in white jacket wearing blue goggles

    Embora a percentagem de óbitos por covid-19 fora das unidades do SNS – por exemplo, em lares ou em residências – tenha sido sempre relevante desde o início da pandemia, e nunca explicado pela DGS, a informação retirada da mais recente versão da base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, gerida pela Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), mostra uma subida ainda mais inexplicável nos últimos meses.

    Esta situação pode indiciar um de dois problemas; ou ambos: os óbitos atribuídos à covid-19 estão exagerados, por incluírem mortes fora das unidades hospitalares sem mais qualquer diagnóstico para além de um teste positivo ao coronavírus; ou há doentes-covid em situação grave a morrerem fora dos hospitais sem tratamento devido.

    Óbitos atribuídos à covid-19 em Portugal por mês, com certificado nos hospitais e fora dos hospitais. Fonte: DGS e ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    De facto, uma elevada fracção de mortes atribuídas à covid-19 fora dos hospitais não é aspecto despiciendo, uma vez que a esmagadora maioria dos casos graves desta doença, que resultam em morte apresenta previamente um quadro clínico de insuficiência respiratória ou outros sintomas que recomendariam um internamento hospitalar.

    Por outro lado, recorde-se que esta doença foi considerada de elevadíssima infecciosidade.

    Portanto, coloca-se aqui saber se estas mortes se deveram mesmo à acção directa e letal do SARS-CoV-2 – e, portanto, uma elevada percentagem de doentes graves não teve apoio médico especializado que pudesse evitar a sua morte – ou se as mortes em causa ocorreram devido a outras comorbilidades relevantes e os óbitos acabaram por ser atribuídos à covid-19 apenas porque a vítima estava positiva naquela altura.

    Certo é que, estranhamente, a mortalidade atribuída à covid-19 pelas autoridades de Saúde tem estado bastante superior em 2022 face aos períodos homólogos de 2020 (quando não existiam vacinas e a população estava naive) e de 2021.

    Entre Março e Junho deste ano, a DGS diz terem morrido 3.063 pessoas por covid-19, enquanto no período homólogo do ano passado foram 720 e em 2020 atingiram os 1.036.

    Ora, mas se se descontar aos óbitos atribuídos à covid-19 pela DGS entre Março e Junho deste ano aqueles que foram observados nos hospitais – pela consulta da base de dados da ACSS –, constata-se que terão morrido 1.531 pessoas fora dos hospitais, ou seja, 50% do total. No ano passado, no período homólogo esse valor tinha rondado os 6,4% (48 óbitos) e em 2020 atingiu os 34,4% (543 óbitos)

    Ao longo da pandemia, o rácio óbitos fora / dentro do SNS foi sempre bastante variável, mas apenas esporadicamente alto em Maio de 2020 e no Inverno de 2020-2021, quando então os hospitais do SNS colapsaram, mas não tão persistente e elevado como em 2022.

    Aliás, em Maio passado, o PÁGINA UM já noticiara que até Dezembro de 2021 uma em cada três vítimas atribuídas à covid-19 tinha falecido fora dos hospitais do SNS, mas esse rácio ainda aumentou mais este ano.

    Evolução mensal da percentagem de óbitos atribuídos à covid-19 e ocorridos fora das unidades do SNS. Fonte: DGS e ACSS. Cálculos e análise: PÁGINA UM.

    A partir de Janeiro, somente em Março se registou uma percentagem de óbitos atribuídos à covid-19 fora do SNS abaixo dos 40%, chegando-se aos 57% em Junho (dos 999 óbitos, 429 ocorreram em hospital público e 570 fora dos hospitais públicos).

    Sobre estas matérias, o PÁGINA UM pediu comentários e esclarecimento à DGS, com conhecimento para o Ministério da Saúde, mas não obteve (ainda) qualquer resposta.


    N.D. O PÁGINA UM apresentou uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa contra a Administração Central do Sistema de Saúde por ter eliminado, e depois reposto de forma mutilada, a base de dados da Mortalidade e Morbilidade Hospitalar que constava no Portal da Transparência do SNS. Esta base de dados, que então tinha informação até Janeiro de 2022, servira para o PÁGINA UM publicar um conjunto de trabalhos de investigação sobre o desempenho do SNS durante a pandemia.

    Entretanto, sem sequer informar o PÁGINA UM, a AACS indicou ao Tribunal Administrativo de Lisboa que já repusera a base de dados da Mortalidade e Morbilidade Hospitalar no Portal da Transparência do SNS, indicando que o fizera no passado dia 12 de Agosto.

    Esta data, cuja prova da veracidade não foi apresentada, é em todo o caso posterior à notícia do PÁGINA UM a denunciar as ligações de amizade entre o presidente da ACSS, Vítor Herdeiro, e a ex-ministra da Saúde Marta Temido (12 de Julho), e à notícia sobre a apresentação das bases de dados “mutiladas” (5 de Agosto). Aliás, a ACSS apenas comunicou ao PÁGINA UM, por ofício de dia 4 de Agosto, que disponibilizara três bases de dados (as mutiladas), e nunca mais nada comunicou, e devia.

    O PÁGINA UM lamenta, aliás, a postura e a estratégia da ACSS, não apenas pela tentativa de persistir na mutilação (voltando agora atrás) como estar a convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa de que toda a informação requerida foi disponibilizada (foi feito um pedido de inutilidade superveniente da lide). Não é verdade. O PÁGINA UM tinha também pedido à AACS “a consulta presencial e/ ou eventual cópia digital da Base de Dados Central do GDH (Grupos de Diagnósticos Homogéneos), bem como do denominado BI-MH (Bilhete de Identidade para a Morbilidade Hospitalar”, porque servirá para a aferir se os valores divulgados agora no Portal da Transparência são reais ou “martelados”.

    Como o PÁGINA UM revelará a partir de amanhã, pelo menos “estranhos” são.

    Saliente-se que os processos judiciais do PÁGINA UM, que têm constituído uma “frente de combate”em prol da transparência da Administração Pública, são financiados pelos leitores através do seu FUNDO JURÍDICO, que já envolveu 12 processos de intimação e uma providência cautelar.

  • Associação de médicos de Saúde Pública “lança-se nos braços” das farmacêuticas

    Associação de médicos de Saúde Pública “lança-se nos braços” das farmacêuticas

    Com a pandemia, a discreta Associação Nacional de Saúde Pública (ANMSP) foi ganhando projecção. Ricardo Mexia, presidente desde 2016, conseguiu com as suas aparições nos media alcançar um estatuto público que o ajudou a chegar a presidente da Junta de Freguesia do Lumiar. Já o seu substituto, Tato Borges, conseguiu algo que nunca tivera antes do cargo: já acumulou, desde Novembro, quatro apoios financeiros da Pfizer, incluindo uma viagem ao Canadá para um congresso. E a própria ANMSP está a atrair cada vez mais patrocínios do sector farmacêutico. A associação diz que está tudo dentro da lei e garante manter-se independente.


    Desde que assumiu a presidência da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP), Gustavo Tato Borges tem acumulado relações comerciais com a Pfizer, uma das farmacêuticas com maior facturação à conta da pandemia, através das vacinas Comirnaty e do antiviral Paxlovid.

    De acordo com a Plataforma da Transparência e Publicidade, este médico – que trabalha actualmente na Administração Regional de Saúde do Norte – não tinha qualquer registo de recebimento de financiamentos de farmacêuticas entre 2013 e finais do ano passado, mas tornou-se “apelativo” ao assumir a liderança desta associação há exactamente um ano, quando substituiu Ricardo Mexia, entretanto eleito líder presidente da Junta de Freguesia do Lumiar, em Lisboa.

    Ricardo Mexia, à esquerda, durante o último congresso da ANMSP em Novembro do ano passado, em Amarante.

    Tato Borges, que era então vice de Mexia, começou a capitalizar o interesse da Pfizer, que lhe pagou 1.000 euros por um dia de consultadoria. Este ano, entretanto, a farmacêutica norte-americana consolidou a parceria com o médico, por três ocasiões: primeira, no 15º Encontro Pfizer Vacinas, que se realizou em 7 e 8 de Maio em Tróia, no valor de 553 euros; segunda, por uma palestra no Encontro Pfizer 2022, no valor de 1.000 euros; e a terceira, mais substancial: um cheque de 5.757 para custear a participação num congresso internacional de doenças pneumocócicas entre 19 e 23 de Junho na cidade canadiana de Toronto.

    Mas não tem sido só pessoalmente Tato Borges a beneficiar deste interesse da Pfizer. Também a ANMSO – criada em 1987 e que mantém a sua sede na Ordem dos Médicos, na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa – tem começado a ser olhada com maior interesse pela indústria farmacêutica, sobretudo as empresas com interesses comerciais em redor da pandemia.

    Exemplo paradigmático foi o último congresso desta associação, que se realizou em Novembro do ano passado em Amarante: contou com o apoio financeiro da Merck Sharp & Dohme (produtora do antiviral molnupiravir), Pfizer (vacina e antiviral Paxlovid), Gilead (antiviral remdesivir), Johnson & Johnson (vacina, através da subsidiária europeia Janssen) e Roche (esta a única sem interesses relevantes no combate ao SARS-CoV-2).

    Tato Borges começou a facturar da Pfizer logo a seguir a assumir a presidência da ANMSP. Uma “coincidência”, diz a associação.

    Entre este congresso e pagamento de outros eventos – como seja em concreto o pagamento de 7.800 euros para uma acção descrita como “Apoio realização de trabalhos no âmbito da vacinação” (sic) –, a ANMP recebeu no ano passado 17.800 euros. Já contabilizados este ano encontram-se apoios da AbbVie (11.070 euros), da Janssen Cilag (3.000 euros), Merck Sharp & Dohme (10.990 euros), Pfizer (8.000 euros), Gilead (3.690 euros) e Roche (5.000 euros).

    Em oito meses de 2022, a ANMSP já recebeu assim 41.750 euros, um valor que contrasta com montantes muito mais modestos no primeiro ano da pandemia (15.900 euros, em 2020) e sobretudo antes da pandemia: entre 2013 e 2019 somente conseguiu “atrair” da indústria farmacêutica um total de 11.530 euros, uma média de 1.650 euros por ano.

    Contactado por e-mail pelo PÁGINA UM, Tato Borges respondeu através da Direcção da ANMSP, em que esclarece que “os apoios recebidos da indústria farmacêuticas estão enquadrados em normativos legais definidos para promover a transparência”, vincando ser esta associação uma “sociedade científica privada e independente”.

    Agradecimento na página do Facebook da ANMSP aos parceiros que financiaram o seu congresso, entre as quais quatro farmacêuticas com fortes negócios em redor da pandemia.

    Quanto ao facto de os apoios financeiros da Pfizer a Tato Borges terem começado a fluir apenas após o início da liderança da associação, a ANMSP diz tratar-se de uma “coincidência e [que] qualquer leitura para além desta é falaciosa”.

    A ANMSP diz também que os apoios da Pfizer atribuídos a Tato Borges como médico, e não como dirigente associativo, “não condicionam a sua actividade profissional ou associativos, nem têm impacto nas actividades desta associação”.

    Em todo o caso, saliente-se que Tato Borges tem sido particularmente activo na defesa de medidas não-farmacológicas contra a covid-19, como o uso de máscaras na actual fase endémica do vírus, e tem contribuído para a manutenção de uma tensão de permanente alarme, nomeadamente na população estudantil, onde em Portugal a covid-19 jamais foi um problema de Saúde Pública. 

    Recorde-se que, no nosso país, morreram sete pessoas com menos de 25 anos (que representam cerca de 2,5 milhões de habitantes) por covid-19, a última das quais em Janeiro deste ano (uma jovem entre os 15 e os 24 anos).

    E saliente-se ainda que, na sua resposta ao PÁGINA UM, a ANMSP diz ainda que “não pode deixar de lamentar que o Sr. Jornalista [Pedro Almeida Vieira] tenha procurado esclarecimentos no próprio dia em que vai publicar uma determinada matéria, pois isso revela que não pretende esclarecer estes assuntos, mas sim poder afirmar que as entidades foram questionadas e não responderam, sem intenção de apurar a verdade”.


    N.D. Efectivamente, o PÁGINA UM enviou um e-mail às 01:14 de hoje para a ANMSP, e um segundo e-mail para o endereço profissional de Tato Borges pelas 09:42 horas, onde além das questões se referia o seguinte: “Alerto que, independentemente dos seus esclarecimentos, que desde já muito agradeço, e uma vez que estamos perante factos públicos, escreverei sobre esta matéria nesta terça-feira.” A resposta da ANMSP chegou às 10:52 horas, e obviamente foi incluída, por ter sido sempre esse o objectivo inicial.

  • Mortes de adolescentes e jovens adultos em forte tendência crescente desde Outubro

    Mortes de adolescentes e jovens adultos em forte tendência crescente desde Outubro

    Agregando em Portugal cerca de um milhão de pessoas (10% da população), os adolescentes e jovens adultos da faixa dos 15 aos 24 anos estão na “flor da vida” e são raras aqueles que se deixam levar pela morte, socialmente bastante sentidas. A pandemia da covid-19 não teve qualquer impacte directo neste grupo etário, mas algo está a suceder para que se esteja com um desvio de 22% da mortalidade face à média (2017-2021). Além disso, os números da mortalidade estão em tendência crescente desde o Outono passado. Agosto foi o mês mais letal desde que há registos diários (a partir de 2014). O Governo sobre nada disto fala.


    Agosto de 2022 foi o mês mais mortífero para os adolescentes e jovens adultos, da faixa etária dos 15 aos 24 anos, desde que o Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) começou a carrear informação detalhada, em 2014.

    De acordo com a análise do PÁGINA UM, no mês de Agosto, terminado na passada quarta-feira, contabilizaram-se 45 óbitos, tendo havido mesmo três dias (7, 10 e 22) em que se registaram quatro mortes neste grupo etário.

    A taxa de mortalidade nestas idades – abrange cerca de um milhão de pessoas – é extremamente baixa, mas certo é que, desde 2014, somente outros dois meses (Janeiro de 2017 e Julho de 2020, ambos com 43 óbitos) tinham ultrapassado a trágica fasquia dos 40 óbitos.

    silhouette of jumping people

    Porém, mais do que esse recorde, que poderia ser fruto da conjugação de diversos infortúnios, o passado mês de Agosto enquadra-se numa tendência crescente de mortalidade nesta faixa etária que se iniciou em Outubro do ano passado, sem mostrar sinais de inversão.

    Actualmente, considerando a evolução da média móvel da mortalidade anual – ou seja, o somatório dos óbitos nos últimos 12 meses anteriores –, Agosto de 2022 está num pico e sem dar sinais de abrandamento: 360 óbitos. Há um ano, em Agosto de 2021, encontrava-se nos 304.

    Em Outubro do ano passado chegou aos 297, mas a partir daí tem estado sempre a subir, mostrando uma evolução preocupante. A mortalidade acumulada nos oito meses de 2022 está cerca de 22% acima da média de 2017-2021, conforme divulgou ontem o PÁGINA UM.

    Evolução da mortalidade anual (12 meses) desde Dezembro de 2014 até Agosto de 2022 na faixa etária dos 15 aos 24 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Embora não haja um padrão sazonal de mortalidade para esta faixa etária – como sucede com os mais idosos, onde as doenças de maior letalidade “atacam” mais no Inverno –, antes da pandemia a evolução da mortalidade anual manteve-se relativamente estável entre os 300 e os 355 óbitos.

    Com a chegada do SARS-CoV-2, observou-se de imediato um acréscimo na evolução da taxa de mortalidade anual, que passou de 301 óbitos em Fevereiro de 2020 para 345 em Outubro daquele ano.

    No entanto, jamais se pode argumentar que se deveu directamente à covid-19. Até Outubro de 2020 apenas tinha falecido uma pessoa com covid-19 na faixa etária dos 20 aos 29 anos. Na verdade, a hipótese mais provável será o efeito da fuga aos hospitais nos primeiros meses da pandemia ou o agravamento de determinadas doenças ou problemas que afectam mais esta faixa etária.

    Mortalidade acumulada até Agosto nos anos de 2014 a 2022 na faixa etária dos 15 aos 24 anos. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Causas concretas ignoram-se, porque as causas de morte discriminadas para 2020 nesta faixa etária não se encontram disponibilizadas de forma inteligível pelo Instituto Nacional de Estatística, e o Eurostat somente tem dados detalhados da mortalidade sobre Portugal até ao ano de 2019.

    Em todo o caso, a partir de Outubro de 2020, a mortalidade nos adolescente a partir dos 15 anos e jovens adultos até aos 24 anos teve uma evolução bastante favorável, a caminho de uma situação normal. Em Junho de 2021, a taxa de mortalidade anual encontrava-se num valor bastante baixo (294), mantendo-se num nível estável (e reduzido) até Outubro. A partir daí, não parou a mortalidade nesta faixa etária de subir.

    Causas de morte (por grupo segundo o CDI da OMS) na faixa etária dos 15 aos 24 anos em Portugal nos anos de 2014 a 2019. Fonte: Eurostat. Análise: PÁGINA UM.

    Todas as especulações sobre esta inusitada subida para níveis recorde são possíveis, porque, na verdade, o Ministério da Saúde mantém a recusa em disponibilizar os dados do SICO de 2020, 2021 e 2022 para conhecer quais foram as causas dos óbitos, o que permitiria, no caso do grupo etário dos 15 anos 24 anos, conhecer com rapidez quais os maiores desvios, através da comparação com anos anteriores.

    Saliente-se que, de acordo com os dados do Eurostat, entre 2014 e 2019, os acidentes de transporte foram a primeira causa de morte na faixa etária dos 15 aos 24 anos, mas apesar de se considerar que tem um peso muito relevante, representam porém apenas 24,8% do total (465 óbitos em 1.877). Bastante relevantes são as neoplasias que, apesar de raras nestas idades, são a causa de morte em 16,1% dos óbitos totais, seguindo-se os suicídios com 11,2%

    Acima dos 5%, estão as doenças do sistema nervoso (9,4% do total), do sistema circulatório (6,8%) e as quedas, afogamentos e outros acidentes (6,1%).


    N.D. O PÁGINA UM considera fundamental que o Ministério da Saúde revele os dados das causas de morte registadas no SICO, uma vez que permitem, de forma rápida, identificar os desvios que estão a ocorrer tanto no grupo etário dos 15 aos 24 anos como nos idosos, sobretudo a partir dos 85 anos. A manutenção de um injustificável obscurantismo, além de constituir uma inaceitável postura antidemocrática, possibilita todo o tipo de especulações. É a falta de informação fidedigna do Governo que, infelizmente, tem promovido a desinformação. O PÁGINA UM tem processos de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa no sentido de obrigar tanto o Ministério da Saúde como a ACSS a disponibilizar o SICO e a base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar.

  • Instituto Superior Técnico com processo no Tribunal Administrativo por recusar mostrar relatório alarmista sobre covid-19

    Instituto Superior Técnico com processo no Tribunal Administrativo por recusar mostrar relatório alarmista sobre covid-19

    É a 12ª recusa que o PÁGINA UM recebe de entidades públicas ou equiparadas quando solicita documentos administrativos sensíveis; e é o 12º processo de intimação que o PÁGINA UM faz entrar no Tribunal Administrativo de Lisboa. Desta vez, uma entidade universitária e científica decidiu que um (suposto) relatório alarmista fosse divulgado pela Lusa sem que ninguém mais o pudesse ver nem analisar. Além do processo por falta de transparência, este caso revela sobretudo o estado da Ciência nos tempos modernos.


    O PÁGINA UM avançou esta quinta-feira com um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar o presidente do Instituto Superior Técnico (IST), Rogério Colaço, a dar acesso ao relatório revelado pela Lusa em 28 de Julho passado sobre o alegado forte impacte negativo dos Santos Populares na transmissão da covid-19, bem como a todos os dados numéricos e informação metodológica que levaram à sua elaboração.

    Mas não só. O PÁGINA UM também pede o acesso a documentos e informação para escalpelizar a relação existente entre o IST e a Ordem dos Médicos, por via de um protocolo anunciado em Julho de 2021.

    Henrique Oliveira, Rogério Colaço, Miguel Guimarães e Filipe Froes na sede do Ordem dos Médicos, em Julho do ano passado, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia. O Instituto Superior Técnico recusa divulgar os estudos e os dados.

    Em causa está um suposto relatório – a que apenas a Lusa teve acesso, apesar do seu take ter sido difundido pela generalidade da comunicação social – com estimativas da transmissão causada pelo aglomerado de pessoas durante o mês de Junho nos Santos Populares (sobretudo Lisboa e Porto) e em festivais como o Rock in Rio.

    Recorde-se que as conclusões do alegado relatório do IST apontaram, segundo a Lusa – que nunca quis apresentar provas ao PÁGINA UM da existência do documento científico – que “houve cerca de 242 mil casos de covid-19 registados oficialmente devido às festividades dos santos populares e festivais como o Rock in Rio”. A notícia da Lusa salientava ainda, citando o alegado relatório, que “se juntarmos os casos não reportados oficialmente atinge-se o número de 340 mil”. E apontava ainda, expressamente, para as consequências: 790 óbitos devido ao levantamento das restrições e 330 óbitos associados apenas às festas populares de Junho.

    Mas, apesar da gravidade das conclusões do alegado relatório, o documento nunca foi tornado público e não foram divulgadas as bases em que os investigadores se fundamentaram para elaborar as estimativas noticiadas.

    Resposta de recusa do presidente do Instituto Superior Técnico ao PÁGINA UM, via e-mail, no passado dia 30 de Julho.

    As conclusões alarmistas do alegado estudo do IST não encontram respaldo nas evidências observadas durante o mês de Junho. Com efeito, enquanto decorreram as festas de Santo António, São João, Rock in Rio e outros festivais ao de Junho, os casos positivos de covid-19 foram sempre descendo.

    Por exemplo, para todo o país, no dia 1 de Junho a média móvel de sete dias estava nos 24.602 casos positivos para todo o país, no dia 8 tinha descido para 20.575 casos, no dia 15 já estava nos 15.368 casos positivos, no dia 22 baixou para os 12.939 casos positivos e no final do mês estava mesmo abaixo dos 10 mil casos.

    Durante o mês de Junho, os casos positivos de covid-19 aceleraram sempre mas na direcção da redução. Em Julho sucedeu o mesmo. De acordo com os dados do Worldometer para Portugal, no final de Julho contabilizavam-se 3.258 casos positivos (média móvel de sete dias). Em Agosto, os casos mantiveram-se sempre estáveis em redor dos 2.500 casos positivos.

    Esta acção em Tribunal surge depois de o PÁGINA UM ter solicitado o acesso ao relatório, tanto junto do IST, através do seu presidente e da assessoria de imprensa, como a um dos autores do dito relatório. O acesso ao documento e aos dados que supostamente serviram de base ao suposto relatório, foi sempre recusado. No dia 30 de Julho, um sábado, o próprio presidente do IST, Rogério Colaço,enviou mesmo, através do seu Galaxy, um e-mail reforçando a recusa: “O pedido formal ao presidente do IST está respondido e a resposta é negativa.”

    Festas populares em Lisboa este ano tiveram grande fluxo, sem máscaras, mas os casos regrediram face a Maio.

    Saliente-se que em outros relatórios, as análises do IST são sempre assumidas pelos investigadores Henrique Oliveira, Pedro Amaral, José Rui Figueira e Ana Serro, mas sempre sob supervisão do presidente daquela instituição, Rogério Colaço, engenheiro de materiais e professor catedrático na área da nanotecnologia.

    Na sua ação junto do Tribunal Administrativo – o 12º processo desde Abril, sempre por recusa de acesso a documentos administrativos – solicita-se que o IST seja mesmo obrigado a disponibilizar “o acesso, para eventual obtenção de cópia, de todo e qualquer documento considerado como administrativo na posse do Instituto Superior Técnico – por publicamente ter sido elaborado e/ou utilizado por investigadores desta instituição universitária – relacionados com a avaliação epidemiológica da covid-19 (ou do seu agente infeccioso, o SARS-CoV-2)”.

    Nesse lote, pede ao Tribunal o PÁGINA UM, deve constar, obrigatoriamente, os dois relatórios sobre estimativas de transmissão da covid-19 durante as festas populares e festivais de música, cujas conclusões foram divulgadas por órgãos de comunicação social em 8 de Junho e em 28 de Julho, bem como os ficheiros informáticos contendo os dados usados para a sua elaboração”, bem como documentos científicos sobre a metodologia usada.

    Rogério Colaço, presidente do Instituto Superior Técnico, vai ter de justificar ao Tribunal Administrativo as razões para esconder relatórios e dados científicos, ou então terá de optar por os disponibilizar ao PÁGINA UM.

    Solicita-se ainda a “cópia do protocolo ou outro qualquer documento assinado entre o Instituto Superior Técnico e a Ordem dos Médicos para a realização das análises / estudos iniciados em 14 de Julho de 2021, bem como documentos que atestem a eventual (ou não) contratualização com efeitos patrimoniais dos envolvidos, quer seja pagamento ao Instituto Superior Técnico quer aos seus investigadores”.

    O processo de intimação para a prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões – já identificado com o número 2683/22.1BELSB – foi intentado pelo PÁGINA UM no último dia do prazo, porque se aguardou, até ao limite, uma resposta voluntária do IST, como instituição científica (ainda por cima pública) com especiais responsabilidade na transparência e debate científico.

    Como nunca houve manifestação de abertura, o Tribunal acabou por ser o derradeiro recurso. O IST terá agora 10 dias úteis para obrigatoriamente justificar ao Tribunal Administrativo a causa da recusa, havendo depois uma decisão teoricamente urgente.


    N.D. – Os custos e taxas dos processos desencadeados pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo são exclusivamente suportados pelo FUNDO JURÍDICO financiado pelos seus leitores. Rui Amores é o advogado do PÁGINA UM neste e nos outros processos administrativos em curso. Até ao momento, estão em curso 12 processos administrativos, além de uma providência cautelar. Dois dos processos foram ganhos pelo PÁGINA UM em primeira instância, mas as duas entidades (Ordem dos Médicos e Conselho Superior da Magistratura) recorreram.

  • Adolescentes e jovens adultos estão a morrer (muito) mais. Gerontocídio continuou em Agosto

    Adolescentes e jovens adultos estão a morrer (muito) mais. Gerontocídio continuou em Agosto

    Análise exclusiva do PÁGINA UM revela que o excesso de mortalidade continua imparável no grupo dos mais idosos (acima dos 85 anos) e está agravar-se entre a população em idade de reforma. Mas há ainda outro grupo etário onde se observa um inaudito agravamento da mortalidade: os adolescentes e jovens entre os 15 e os 24 anos, que apresenta um desvio de 22% face à média (2017-2021). A situação tem piorado inexplicavelmente desde Março em termos globais: em média, segundo os cálculos do PÁGINA UM, tem havido em Portugal 42 mortes a mais por dia.


    9.280 óbitos: este é o número, ainda provisório, do mês de Agosto que terminou esta quarta-feira. Definitivo já, porém, é este ter sido o Agosto mais letal desde 2003, mantendo uma série negra de excesso de mortalidade que parece interminável, e já se mostra estrutural, e nada é de conjuntural.

    Apesar de o mês passado ter sido o primeiro desde Novembro de 2021 abaixo dos 10 mil óbitos, os sinais estruturais de debilidade da população portuguesa em termos de Saúde Pública continuam evidentes – e pior ainda, consolidaram-se nos últimos seis meses. Em cada mês.

    photo of person reach out above the water

    Conforme já destacado anteriormente pelo PÁGINA UM, o excesso de mortalidade observa-se sobretudo nos grupos etários mais elevados, mas detectam-se agora também, de forma indesmentível do ponto de vista estatístico, no grupo etário dos 15 aos 24 anos. O número de óbitos de adolescentes e jovens adultos é, particularmente este ano, e sobretudo desde Março, completamente inusitado, e nunca abordado ao longo deste ano pelo Governo e autoridades de Saúde.

    E, no entanto, tudo isto sucede no presente ano, 2022, que até aparentava vir a ser de alívio após dois anos de pandemia.

    De acordo com os dados preliminares do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), os meses de Janeiro e Fevereiro deste ano foram relativamente calmos: em comparação com a média (2017-2021) houve menos 2.374 óbitos. Mesmo excluindo da comparação o ano de 2021 (que registou mortalidade absolutamente anormal, no pico da pandemia), os dois primeiros meses de 2022 ficaram assim em níveis de letalidade dentro do expectável.

    Contudo, de repente, o excesso de mortalidade surgiu com a entrada do tempo primaveril, mantendo-se elevado pela época estival, e não dá sinais de parar. O Ministério da Saúde anunciou, no mês passado, um estudo a ser concluído em 2023, mas nem sequer é certo que inclua o período a partir de Março deste ano. Recorde-se que não são ainda conhecidas, em detalhe, todas as causas de morte discriminadas relativas ao ano de 2020 e de 2021.

    two men playing chess

    Mantendo-se o intencional mistério alimentado pelo Governo sobre a causa das mortes, porém os números totais não enganam: há um gravíssimo problema de Saúde Pública em Portugal, uma “herança” deixada pela pandemia e, muito provavelmente, pela gestão política do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que secundarizou o diagnóstico e tratamento das outras doenças. De igual modo, o Governo e as autoridades de Saúde não colocam sequer a hipótese de se estudar a existência de qualquer relação causal entre os processos de vacinação contra a covid-19 e a prevalência de doenças letais sobretudo nos mais idosos.

    Certo é que as análises estatísticas do PÁGINA UM revelam um imparável aumento da mortalidade a partir do fim do Inverno: entre Março e Agosto, o excesso de mortalidade em 2022 foi de 7.769 óbitos face à média do período homólogo de 2017-2021.

    No período em análise, o ano de 2022 foi o primeiro em que se ultrapassou os 60 mil óbitos desde 1980 (ano com dados estatísticos acessíveis com facilidade). Para o presente ano, o SICO indica um total de 61.621 mortes entre Março e Agosto, ou seja, cerca de 335 mortes por dia.

    No ano passado não chegara, no período homólogo, aos 53 mil óbitos, e a média (2017-2021) ronda os 54 mil, isto é, uma média diária de 293, mesmo assim “puxada” pelos dois primeiros anos da pandemia (2020 e 2021). Assim, entre 1 de Março e 31 de Agosto, todos os dias tem, em média, ocorrido mais 42 mortes do que seria expectável. Todos os 184 dias.

    Mortalidade por grupo etário entre Janeiro e Agosto para os anos de 2017 a 2022. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM. Visualizar melhor, aqui.

    A dimensão dos números de 2022 é tão avassaladora que jamais se pode justificar com base na covid-19, em ondas de calor ou envelhecimento populacional. Aliás, devido à pandemia e ao quase contínuo excesso de mortalidade nos mais idosos, o grupo etário dos maiores de 85 anos até terá diminuído face ao período pré-pandemia.

    Embora em número total, 2022 ainda não tenha ultrapassado o morticínio de 2021 – marcado pelos meses de Janeiro e Fevereiro anormalmente letais, no pico da pandemia –, no caso dos maiores de 85 anos a situação deste ano tem sido absolutamente aterradora. Um autêntico gerontocídio, sobretudo por ser silenciado. Comparando com o período de 2017 a 2021 (que inclui, portanto o pico da pandemia), a mortalidade dos mais idosos (acima dos 85 anos) em 2022 já ultrapassa largamente a média: 37.538 vs. 33.273 óbitos, ou seja, mais 4.262. Mesmo face ao ano passado, os números de 2022 já o superam em 731 mortes.

    Se se considerarem apenas os últimos seis meses (Março a Agosto), a diferença entre 2022 e 2021 é avassaladora: mais 5.535 óbitos. Ou seja, entre 1 de Março e 31 de Agosto registaram-se este ano, em comparação ao ano passado, mais 30 cerimónias fúnebres por dia apenas de pessoas com mais de 85 anos. Todos os dias.

    Mortalidade por grupo etário entre Março e Agosto para os anos de 2017 a 2022. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM. Visualizar melhor, aqui.

    Este acréscimo de mortalidade na faixa dos maiores de 85 anos reforça-se pelo desvio relativo (face à média), em especial quando se restringe a uma análise aos últimos seis meses. Considerando o período de Janeiro a Agosto, a mortalidade neste grupo etário foi 12,8% superior à média (2017-2021), mas no período de Março a Agosto quase duplica, atingindo-se os 23,8%.

    Nos grupos etários imediatamente antecedentes, o acréscimo relativo é muito menor, embora também se observe uma intensificação nos últimos seis meses. No caso do grupo dos 75 aos 84 anos, contabiliza-se um acréscimo de 10,1% face à média no período de Março a Agosto, sendo de apenas de 2,3% se se incluírem os dois primeiros meses. No grupo dos 65 aos 74 anos o desvio é de 8,7% no período de Março a Agosto, e de 5,3% para todos os meses do ano. E no grupo dos 55 aos 64 anos o desvio é de 6,1% no período de Março a Agosto, embora somente de 2,9% se se incluir todos os oito meses.

    Note-se, contudo, que nestes grupos etários a mortalidade deste ano (Janeiro a Agosto) é ainda mais baixa do que a registada no ano passado, mas já é bastante superior se se analisar apenas o período a partir de Março, sobretudo nos maiores dos 65 anos, o que indicia que a tendência é 2022 vir a ser mais mortífero do que 2021.

    people holding shoulders sitting on wall

    Abaixo dos 55 anos, a situação deste ano – tal como ocorreu durante a pandemia – pode considerar-se normal. Ou seja, mortalidade dentro dos padrões normais quer comparando os anos de pandemia quer os anos de pré-pandemia. Mas com uma surpreendente e gravíssima excepção no grupo etário dos 15 aos 24 anos.

    Com efeito, se se comparar 2022 com o período 2017-2021 (tanto em termos médios como individualmente), os números de mortalidade geral abaixo dos 55 anos não surpreendem, se olhados em conjunto. Mesmo a mortalidade infantil deste ano, embora superior ao do ano passado (155 vs. 114), pode considerar-se “normal”, porque a subida se deveu a um número atípico (bastante baixo, mas difícil de manter) em 2021. De facto, o número de mortes de bebés em 2022 (até Agosto) é exactamente igual ao de 2020, e até bastante inferior aos anos de 2017 (163 óbitos), 2018 (200 óbitos) e 2019 (192 óbitos).  

    Mas se não existe um problema de Saúde Pública na mortalidade infantil – e até aos 14 anos –, nos adolescentes a partir daquela idade e nos jovens adultos (até aos 24 anos), já os números do SICO deveriam levar a tocar os sinos a rebate. Tanto mais que o padrão de mortalidade não se reflecte nos três grupos etários subsequentes (25-34 anos; 35-44 anos; e 45-54 anos) nem se mostra similar em dois dos três grupos precedentes (menos de 1 ano; e 5-14 anos) . No grupo dos 1 aos 4 anos, observa-se este ano um pequeno acréscimo absoluto face à média (4 óbitos), mas pouco relevante do ponto de vista estatístico, até porque se observam valores superiores em 2018.

    De facto, os alarmes devem ser dirigidos aos adolescentes e jovens adultos. Aqui há mesmo um problema incontornável. Segundo a análise do PÁGINA UM aos números do SICO, este ano (Janeiro a Agosto) registaram-se já 254 óbitos na faixa etária dos 14 aos 25 anos, o que contrasta com os 208 óbitos em média no período homólogo de 2017-2018. Estamos assim perante um desvio de 21,9%. Este ano morreram mais 46 jovens neste grupo etário do que em média. Face ao ano passado, essa diferença é de 48. Em relação a 2020 é de 21 óbitos, e comparando com 2018 é de 68.

    three men and one woman laughing during daytime

    Se se considerar o período a partir de Março, até Agosto, o desvio é ainda maior: 24,3% (mais 37 óbitos em seis meses) – e também contrasta com os valores dos grupos etários subsequentes (entre os 25 anos e os 54 anos) que registaram reduções da mortalidade face à média. Desde o início do Verão (21 de Junho) até finais de Agosto, o SICO regista a morte de 84 jovens (15-24 anos), o que contrasta com uma média de 69 para o mesmo período entre 2017 e 2021.

    Razões para esta dramática diferença – numa população na “flor da vida” – são desconhecidas. E continuarão se o Ministério da Saúde recusar divulgar os dados em bruto do SICO ao PÁGINA UM, para se conhecerem as causas de morte. E também se a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) mantiver online a “mutilada” base de dados da morbilidade e mortalidade hospitalar, impedindo assim de se perceber quais são as doenças que, de repente, estão a afectar (e a matar) mais na faixa dos 15 aos 24 anos.

    O PÁGINA UM tem processos de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa no sentido de obrigar tanto o Ministério da Saúde como a ACSS a disponibilizar essas bases de dados.

  • Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior desde 1980

    Previsão: mortalidade em Agosto ficará abaixo dos 10.000 óbitos, mas será o segundo pior desde 1980

    Apesar de um abrandamento, o excesso de óbitos continua ainda em Agosto. Os dias com menos de 300 óbitos tornaram-se mais frequentes, mas mesmo assim a média continua acima daquele patamar, o que se mostra intolerável face a um excesso de mortalidade que vem desde finais de Fevereiro. Com base na situação até dia 18, o PÁGINA UM prevê que este será o segundo mais mortífero Agosto deste século, apenas ultrapassado por 2003 que registou uma das piores onda de calor.


    Apesar de uma redução da mortalidade nas últimas três semanas, o presente mês de Agosto continua a estar com níveis muito acima do expectável. De acordo com a análise do PÁGINA UM, a partir do perfil e especificidades em anos anteriores e ao longo do mês em curso, será provável que a mortalidade total em Agosto de 2022 fique apenas abaixo da registada em 2003, quando uma onda de calor intensa no início daquele mês fez disparar os óbitos. Naquele ano, Agosto contabilizou 10.111 óbitos.

    Agosto de 2003 registou uma das mais inclementes ondas de calor de que há registo, que se iniciou em 30 de Julho e se prolongou até ao dia 15 daquele mês. Quando a população estava menos envelhecida, foi estimado um excesso global de 1.953 óbitos, sobretudo no interior. Nos distritos de Guarda, Castelo Branco, Portalegre e Évora a mortalidade foi superior a 80% face ao expectável.

    black and gray stethoscope

    Agora, sendo quase garantido que no presente mês de Agosto se interromperá a inédita série de nove meses, iniciada em Novembro do ano passado, com mortalidade total acima dos 10 mil óbitos, mostra-se muito provável, em todo o caso, que se fique bem acima dos 9 mil, mesmo assim um valor bastante elevado para esta época do ano.

    Até dia 18, de acordo com os dados disponível do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito terão morrido 5.447 pessoas, ou seja, 7% acima da média do último quinquénio.

    Desde 2009, no período homólogo apenas 2018 apresenta um número mais elevado (5.617), mas muito por força também de uma onda de calor que, no início de Agosto daquele ano, causou uma elevada mortalidade, mas à qual sucedeu uma queda acentuada na segunda quinzena.

    No caso de Agosto deste ano, a mortalidade continua bastante elevada, mesmo nas semanas em que as temperaturas estiveram mais amenas. Apesar do mês em curso ter tido 10 dias em mortalidade diária abaixo dos 300 óbitos – algo que somente acontecera em sete dias até finais de Julho –, a média continua elevadíssima (303 por dia), sobretudo porque o excesso de mortalidade tem estado omnipresente desde finais de Fevereiro.

    close-up photography of person lifting hands

    Nessa medida, e com o aumento da temperatura para os próximos dias, será expectável que a mortalidade diária continue a rondar os 300 óbitos, o que a confirmar-se significará que Agosto de 2022 será o segundo pior de sempre, a seguir a 2003. O PÁGINA UM prevê que a mortalidade do final de Agosto estará compreendida entre 9.300 e 9.500 óbitos.

    Recorde-se que o Ministério da Saúde prometeu apenas para 2023 revelar as conclusões de um estudo, do qual pouco se sabe, sobre as causas do excesso de mortalidade em Portugal, mantendo, por outro lado, a recusa em divulgar o acesso aos dados em bruto do SICO ao PÁGINA UM, uma questão que está a ser dirimida no Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Também a base de dados da Morbilidade e Mortalidade Hospitalar, que poderia dar indicações sobre as causas principais desse excesso, foi retirada pelo Ministério da Saúde do Portal da Transparência do SNS – e depois mutilada –, razão pela qual também ontem o PÁGINA UM intentou outro processo de intimação junto do Tribunal para obrigar a Administração Central do Serviço de Saúde a disponibilizar a versão original.


    N.D. Foi alterado o título e alguns pormenores do texto em 28 de Agosto, porque se constatou que, pelo menos até aos anos 40 do século XX, em grande parte devido à elevadíssima taxa de mortalidade infantil, os meses de Verão eram bastante mortíferos, ao contrário do que passou a verificar-se nos últimos 50 anos.