Categoria: Recensões

  • Em busca (e destruição) do Planeta B

    Em busca (e destruição) do Planeta B

    Título

    O homem ilustrado

    Autor

    RAY BRADBURY (tradução: Paulo Tavares)

    Editora (Edição)

    Cavalo de Ferro (Junho de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Ao ler determinado tipo de livro e/ ou autor, fica-se com a sensação de que há pessoas muito à frente do (e no) seu tempo. Como se tivessem acesso a informações a que a generalidade dos mortais não tem, e provavelmente não quer ter e, diríamos até, tem raiva de quem tem.

    Pois bem, este O homem ilustrado é uma espécie de premonição, com tantas histórias passadas em Marte, com tantos cenários apocalípticos e com tantas censuras e restrições ao pensamento e à leitura.  De tal modo assim é que ficamos na dúvida quanto à data da sua publicação.

    O autor de Fahrenheit 451 e de Crónicas marcianas vai remetendo alguns episódios de O homem ilustrado para essas obras, sendo que a ideia dos livros a banir perpassa uma série de capítulos.

    Também a fuga e a busca por planetas alternativos são uma constante, daí que nos interroguemos acerca da intensidade e amplitude de tal criatividade, se é que se pode dizer isto. Como se o autor tivesse escutado vozes e as tivesse transcrito… quem sabe seja mesmo o caso.

    Na verdade, o autor não está sozinho, convoca outros tantos génios e/ ou “hereges”, como Huxley, Orwell, Dickens e até Hitchcock para nos demonstrar que estamos a perder hábitos de leitura. Pior do que isso, o autor como que nos alerta para o perigo de “vida” dessas obras que são consideradas, tal como em Fahrenheit 451, obstáculos ao bom funcionamento e ordem da “paz” social.

    Não obstante, é a guerra, a escassez, o caos e a ausência de “humanidade” que pintam um cenário num futuro que, infelizmente, parece mais próximo e real do que o género de ficção científica, no qual este livro se integra.
    Original de 1951, nesta obra, agora, reeditada pela Cavalo de Ferro, Ray Bradbury recorre ao artifício de um homem todo tatuado para nos contar uma série de pequenas narrativas, que só na aparência o são.

    Até nisso o escritor foi audaz, uma vez que, no fundo, o conjunto se pode compreender como uma grande narrativa – a da fuga da humanidade de si própria…

    Para quem se quer distanciar das teorias da conspiração fica a questão: qual o propósito desta reedição? Preparar-nos para um futuro (quase presente) ou provocar-nos e incitar-nos para que revisitemos a História?

    Bom, está visto que a Humanidade não consegue aprender com o passado, pois os tempos em que vivemos só nos demostram que somos cada vez mais idiotas – e quando dizemos idiotas é mesmo isso, imbecis. Só tanta imbecilidade e falta de reflexão justifica a hipótese de se prolongar uma guerra como a que está a decorrer (mesmo que haja uns poucos a lucrar com isso), e de se acreditar que há vida em Marte e que vamos ser muito mais felizes lá, depois de destruirmos o que cada vez menos resta da Terra.

    Se o leitor está a fechar o dispositivo ou a clicar para mudar de página depois de tanto pessimismo, fica o desafio: leia O homem ilustrado e descubra as diferenças de mentalidades, desejos e esperanças (vãs) de alguns dos personagens.

  • Da ditadura à democracia: a revolução necessária

    Da ditadura à democracia: a revolução necessária

    Título

    Revolução portuguesa: 1974-1975

    Autores

    VÁRIOS (AAVV) – Coordenação: Fernando Rosas

    Editora (Edição)

    Tinta da China (Maio de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    A publicação e edição do livro Revolução Portuguesa – 1974-1975, pela Tinta da China neste ano de 2022, vem na sequência do Seminário de História Contemporânea – 2021, organizado pelo Instituto com a mesma designação, sob a coordenação de Fernando Rosas, professor emérito da Universidade Nova e catedrático jubilado pela FSCH/Nova.

    No ano em que se iniciam as comemorações dos 50 anos do fim da ditadura, o coletivo de nove autores que a obra congrega assegura, desde logo, enorme qualidade e grande rigor aos textos incluídos.

    O texto de Fernando Rosas, coordenador do seminário e da sua publicação, “Do golpe militar à revolução”, ajuda-nos a identificar e a compreender os principais acontecimentos que terão dado origem ao golpe militar de 1974.

    Maria Inácia Rezola, professora adjunta da Escola Superior de Comunicação Social e investigadora do Instituto de História Contemporânea (IHC), foi recentemente nomeada Comissária Executiva da Estrutura de Missão do 50.º aniversário da Revolução do 25 de Abril de 1974, em substituição do actual ministro da Cultura (Pedro Adão e Silva), é a autora do segundo capítulo. Com o texto, “Definindo o poder político-militar (do 25 de Abril ao 11 de Março)”, a autora procurou retratar as estruturas e centros de poder dos primeiros meses depois da Revolução, ajudando-nos, assim, a entender a importância e papel das Forças Armadas nas primeiras etapas da revolução.

    Com Manuel Loff, professor associado do Departamento de História e Estudos Políticos Internacionais da FLUP e investigador/coordenador do IHC, e o seu contributo, “A Revolução, do 11 de Março ao 25 de Novembro de 1975: Impulso, Auge e Refluxo”, compreendemos a notoriedade e a importância da revolução portuguesa no contexto internacional. Com efeito, o tardio colapso da colonização portuguesa era um estudo de caso para os cientistas políticos (do mundo ocidental), estando sob forte vigilância por parte de países como Estados Unidos e Rússia, devido às questões do armamento e da Guerra Fria.

    Albérico Afonso Costa, professor coordenador no Instituto Politécnico de Setúbal, reporta-se ao caso particular de Setúbal para discutir a “Disputa política-ideológica nas Comissões de Moradores e Trabalhadores”.

    Quem melhor para nos situar em relação à “Política Agrícola e Reforma Agrária, 1975”, do que Fernando Oliveira Baptista, então ministro da Agricultura e Pescas (IV e V Governos Provisórios, de 26 de Março a 19 de Setembro de 1975) e professor catedrático do Instituto Superior de Agronomia/Departamento de Economia Agrária e Sociologia Rural?

    Com o capítulo, “Economia e Socialismo: o antiplano de Mário Murteira”, Ricardo Noronha, investigador do IHC, procura analisar as intervenções de diversos protagonistas no âmbito da construção de um novo modelo de desenvolvimento económico no Portugal pós-25 de Abril, “do qual ‘socialismo’ foi o nome mais frequente”.

    Hugo Castro, investigador do Instituto de Etno-Musicologia, com o texto intitulado “A canção de protesto na Revolução dos Cravos”, além de trazer uma dimensão cultural à obra, analisa a importância instrumental e repercussão de “Grândola, Vila Morena”, que lhe valeu diversos atributos, entre os quais: “senha da liberdade”, “canção da liberdade” e “hino da revolução”. A sua importância é de tal ordem, que continua a ser uma canção emotiva para a generalidade dos portugueses (com mais de 47 anos, pelos menos).

    “Descolonização: o colapso do Império” é o título da intervenção de Pezarat Correia, oficial general reformado que se doutorou aos 85 anos, com uma dissertação sobre a descolonização. A sua experiência e a sua tese de 500 páginas dão-lhe autoridade para se dedicar aos designados três ciclos do império português, focando-se, aqui, no derradeiro ciclo africano, aquele que encerraria “o próprio projeto colonial”.

    Finalmente, Pedro Aires Oliveira, professor associado no Departamento de História da FSCH/Nova e investigador integrado do IHC, fecha com o desejo de mudança veiculado à Revolução, com o texto: “A esfera do possível: política externa e diplomacia na transição para a democracia (1974-1976)”. O livro termina, assim, com a relevância e influência do contexto internacional, nas suas lutas políticas e sociais do período, na política externa do Estado democrático emergente em Portugal.

    Pelo exposto, podemos perceber a dimensão e importância que esta obra detém na compreensão da História recente de Portugal. Quase 50 anos volvidos, é possível ter um olhar um pouco mais distante e quase objectivo sobre o 25 de Abril, que, como refere Maria Inácia Rezola, recorrendo a José Medeiros Ferreira, é um acontecimento que “marca uma era e divide a sociedade em antes e depois”.

  • O caminho faz-se caminhando

    O caminho faz-se caminhando

    Título

    Lincoln Highway

    Autor

    AMOR TOWLES (tradução: Tânia Ganho)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Julho de 2022)

    Recensão

    A Lincoln Highway é a estrada transcontinental mais antiga e a primeira construída para veículos motorizados, ligando as costas leste e oeste, dos Estados Unidos da América. O livro inclui, logo nas páginas iniciais, o seu mapa. É este percurso que Emmett Watson e o seu irmão Billy se propõem fazer, até à Califórnia, tentando fugir do passado e tentando encontrar a mãe que os abandonou, quando ainda eram crianças.

    Emmett Watson, o irmão mais velho, cometeu um crime, e pagou um preço por isso. Tem 18 anos e acaba de ser libertado da instituição de reabilitação, onde cumpriu a pena. Regressa à quinta onde cresceu, no Nebraska, e tenciona juntar-se ao irmão mais novo, Billy, uma vez que, entretanto, o pai de ambos morreu, falido e na iminência de perder a quinta, penhorada pelo Banco.

    À sua espera, Emmett, para além do irmão, tem o seu Studebaker Land Cruiser, de 1948 e para sua surpresa um envelope, com um valor considerável em dinheiro, deixado pelo pai, acompanhado por uma carta em que lhe pede que recomecem a vida noutro lugar. É isso que tencionam fazer, mas o destino troca-lhes as voltas.

    Por peripécias várias, nomeadamente o facto de outros dois jovens, Duchess e Woody, a cumprir pena na mesma instituição, se terem escondido no porta-bagagem do carro do diretor, e aparecido, de surpresa, a um Emmett estupefacto, antes de lhe roubarem o carro.

    Assim, em vez de rumarem à Califórnia, os dois irmãos fazem a viagem, de comboio, no sentido inverso, e vão para Nova Iorque, destino provável dos dois amigos.

    Aquilo que prometia ser um romance on the road transforma-se, então, noutra coisa, e essa é apenas a primeira surpresa que nos reserva o autor.
    O livro transporta-nos pela América dos anos 50, onde acompanharemos as várias personagens/narradores durante dez dias.

    Numa contagem decrescente, o livro começa no capítulo dez e termina no um.  Com uma arquitetura narrativa muito original o narrador, em cada um dos capítulos, é diferente e várias vezes vemos as mesmas circunstâncias narradas de maneira diferente e com perspetivas diferentes dependendo de o narrador ser Emmett, Billy ou algum dos outros personagens como os dois amigos, Woody e Duchess ou Sally, a vizinha da casa do lado, que tem uma paixoneta por Emmett e tratou de Billy na ausência do irmão.

    Esse é um dos aspetos mais fascinantes do livro: os capítulos têm uma impressão digital; o tom, a abordagem dos assuntos e até o sentido de humor são pessoais e, ao fim de alguns capítulos, começamos a identificar facilmente o narrador.

    As aventuras alternadas dos vários narradores que deixam sempre um fio solto e que é retomado no capítulo seguinte criam uma sinfonia empolgante com muitas notas diferentes, de caóticas a assustadoras (um vagabundo, ameaça atirar Billy do comboio abaixo) a maravilhosas (a primeira visão de Manhattan, de Emmett, quando chegam a Nova Iorque), por exemplo.

    Billy é uma criança maravilhosa: um misto de mágico e filósofo fascinado por um livro que leva na mochila “Compêndio de Heróis, Aventureiros e Outros Viajantes Intrépidos”, de Abacus Abernathe, e que já leu, como faz questão de repetir, vinte e cinco vezes, funciona como o deus ex machina; não apenas desencadeia acontecimentos como também tem uma habilidade quase mágica de criar a história certa para os estranhos que vão encontrando ao longo do caminho.

    É ele que convence o irmão que o tal “recomeço de vida” deve ser feito em San Francisco onde ele acredita que a mãe está e tem sempre um pretexto para voltar ao livro que o faz acreditar que os grandes descobridores científicos podem viajar ombro a ombro pelos reinos do conhecido e do desconhecido aproveitando ao máximo a inteligência e a coragem, mas também serem ajudados por feitiçarias e encantamentos e a intervenção ocasional dos deuses.

    Quem ler a Lincoln Highway vai adorar a viagem por cerca de seiscentas páginas, que se leem com o prazer da evasão, algo que apenas alguns livros nos proporcionam.

  • O mar que tanto tem para contar

    O mar que tanto tem para contar

    Título

    Fainas épicas do mar português

    Autor

    Álvaro Garrido

    Editora (Edição)

    Clube do Colecionador dos CTT (Junho, 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Depois de vários títulos dedicados às pescas em Portugal, Álvaro Garrido (n. 1968), professor catedrático e director da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, regressa agora com uma visão sobre as três fainas épicas portuguesas: a pesca do bacalhau, do atum e da baleia.

    Para o autor, o presente “livro justifica-se pelo seu argumento original, pela relevância cultural e científica do tema e pelo fascínio histórico das três grandes fainas” que seleccionou, uma vez que as três “têm em comum a dureza do trabalho e a memória mítica que delas ficou”.

    Através desta abordagem, “na inclusão de memórias do trabalho humano associado às grandes fainas do mar e na sua ligação com os seus territórios matriciais: Açores (pesca/caça da baleia); portos da costa ocidental portuguesa (pesca do bacalhau); praias do Sotavento algarvio (atum)”, Álvaro Garrido apresenta estes patrimónios cuja presença ainda permanece bastante arreigada no imaginário nacional, “precisamente porque as três fainas épicas do mar português se tornaram lendárias à escala internacional durante o período final do seu próprio apogeu”.

    Apesar de Portugal ser um país virado para o mar, “a memória social de todo esse universo humano é frágil, e pouco trabalhada, apesar da retórica tecnocrata de ‘regresso de Portugal ao mar’ e de redescoberta da vocação oceânica do país.” De acordo com o autor, “não são muitos os museus marítimos em Portugal e costumam ser escassas, quando não ausentes, as referências à cultura do mar e aos imaginários marítimos nos programas culturais e educativos que partem de iniciativas do Estado e das grandes instituições públicas e privadas.”

    Este livro vem colmatar essas lacunas e propor um novo olhar, não só científico como humano, sobre “as fainas épicas nos seus aspetos singulares: origens; organização económica e social; relações de trabalho; representações ou imagens culturais.”

    Embora a linguagem adoptada pelo autor seja, em alguns momentos, bastante académica, em outros apresenta descrições apelativas e literariamente curiosas. A recolha de alguns excertos de autores reconhecidos é bastante pertinente, e permite verificar como estas fainas foram marcando presença na literatura portuguesa ao longo do tempo.

    O livro está recheado de pequenas e grandes histórias, oferecendo um verdadeiro pitéu para todos aqueles que apreciam aquelas curiosidades que a História tende a esquecer. Uma delícia para quem gosta de descobrir e aprender.

    O capítulo dedicado à pesca do bacalhau é, sem dúvida, o mais recheado, também fruto da sua importância na história e cultura portuguesa, de onde podemos destacar, por exemplo, a história sobre os navios portugueses que, por volta de 1585, foram atacados “por uma esquadra inglesa comandada pelo lendário corsário Francis Drake”. A pesca do bacalhau, como escreveu o etnógrafo poveiro Santos Graça, “era ‘áspera, dura, tremenda, quase heroica’, uma verdadeira ‘epopeia dos humildes’.”

    Sobre a pesca ou caça à baleia, Álvaro Garrido aponta que a “prática da baleação a partir de pequenos portos e varadouros açorianos não partiu do impulso das comunidades locais. Nasceu sobretudo da escala de baleeiras americanas no porto da Horta”. Com o tempo, a fama dos caçadores de baleias açorianos tornou-se lendária, motivando Herman Melville a escrever algumas linhas sobre eles no romance Moby Dick (1851).

    Quem dedicou especial atenção ao atum foi o rei D. Carlos, “o Rei-pintor, grande amante dos mares e estudioso dos fenómenos bio-oceanográficos das pescarias portuguesas”, tendo sido dos primeiros a estudar o comportamento dos atuns na costa algarvia, publicando em 1899 um relatório intitulado A Pesca do Atum no Algarve em 1898.

    Embora a pesca do atum na costa do Algarve fosse uma actividade muito antiga, a mesma também se realizou em outras “zonas da costa portuguesa, em especial junto a Sesimbra e a Cascais», com recurso a armações fixas, as antigas almadravas, «mas foi na costa algarvia que ela ganhou maior expressão.”

    Nas palavras do autor, “este livro pode interessar a um público muito diverso: comunidades marítimas, colecionadores, cientistas do mar, professores, agentes de turismo e cultura. Creio que interessa aos Portugueses, em geral.” Um livro que pode e deve “inspirar outras formas de imaginar o património marítimo português”, pois, como finaliza Álvaro Garrido, “importa descobrir e valorizar, num registo multicultural, a cultura marítima portuguesa — os grandes empreendimentos humanos das pescas e da navegação comercial, as pescas longínquas e costeiras, a vida marítima nas comunidades litorâneas.”

  • Um manual de influência e persuasão

    Um manual de influência e persuasão

    Título

    Aprenda a influenciar pessoas

    Autor

    JOÃO FERNANDO MARTINS

    Editora (Edição)

    Manuscrito (Maio de 2022)

    Editora (Edição)

    14/20

    Recensão

    Psicólogo de formação, com licenciatura no ISMAI, em 2008, e especialista em Análise Comportamental, João Fernando Martins tem dedicado a sua vida ao estudo – continua a sua formação como doutorando na Universidade de Santiago de Compostela, depois do mestrado em Medicina Legal no Instituto Abel Salazar da Universidade do Porto (ICBAS).

    Não é estranho, portanto, que a sua vontade em escrever e partilhar a sua experiência como psicólogo e como formador e especialista (implicando actualização e estudo constantes) tenha vindo à tona aquando dos confinamentos resultantes da situação pandémica provocada pela covid-19.

    Não foi o único a aproveitar esse recolhimento, conforme outros livros aqui comentados, como este e este. É possível que muitos outros estejam prestes a surgir.

    Quanto ao livro agora publicado pela Manuscrito, Aprenda a influenciar pessoas, está enquadrado nas prateleiras de auto-ajuda em diversas livrarias, sendo, com efeito, mais um manual com ferramentas e estratégias para melhor lidar com as pessoas.

    Os contextos são diversos, como variadas são as dimensões em que nos movemos no palco da vida, como diria Erving Goffman. O representante do interacionismo simbólico foi um dos primeiros estudiosos da interação social, comparando-a com papéis interpretados consoante o palco em que actuamos.

    Dizemos mais um manual, dado que este livro está na mesma linha de outro recentemente recenseado no PÁGINA UM – Aprenda a ser carismático –, ainda que tentando ser mais específico. Neste que tratamos, o autor dedica-se, sobretudo, às técnicas de persuasão, enquanto técnicas que podem ser aprendidas, como um papel que pode ser estudado por um actor.

    Para isso, contextualiza e esclarece o leitor quanto às dimensões implicadas na comunicação, designadamente, a sua componente fisiológica, psicológica, espácio-temporal, não verbal e verbal. A sua divisão tem a ver com a necessidade que temos em categorizar e classificar, para mais rapidamente apreendermos a realidade. O que, na verdade, está associado ao modo como impressionamos as pessoas num primeiro momento (ou somos impressionados). Razão pela qual este e outros livros têm tido algum sucesso. Numa sociedade tão preocupada com as aparências, o impacto da primeira impressão ganha cada vez mais importância.

    Por essa razão, este é um livro interessante para aqueles que têm curiosidade por temas como o modo como os gestos e posturas corporais podem auxiliar, ou, pelo contrário, dificultar ou mesmo impedir primeiros contactos frente-a-frente. Também pode ser bem acolhido pelas pessoas que querem aprender a influenciar, persuadindo o seu público-alvo a obter os seus produtos e/ou serviços.

    A redacção é simples e acessível (ainda que a revisão pudesse ser mais cuidada quanto à repetição de determinados termos), podendo, no entanto, ser mais sucinta em alguns momentos, nomeadamente em finais de capítulo, enunciando de forma mais sistematizada as “Ideias a reter”.

  • Os dias últimos de Nicolau Coelho

    Os dias últimos de Nicolau Coelho

    Título

    A última curva do caminho

    Autor

    MANUEL JORGE MARMELO

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Fevereiro de 2022)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    Nicolau Coelho, um reformado professor de Filosofia e escritor está a preparar-se para morrer. Anda na casa dos 80 anos e muda completamente a vida:  abandona a sua rotina citadina, separa-se da mulher, Alba, que não o quer acompanhar porque “Parecia um plano perfeito, mas não fui capaz de prever que Alba se recusaria a morar na vila, longe dos centros comerciais e dos salões de beleza, dos ginásios e do peeling ultrassónico, das amigas e dos hipermercados, do design de sobrancelhas e das sessões de alexandrite. Demasiado tarde compreendi que ela não abdicaria das ambições, da comodidade e dos projetos que tem, das viagens que ainda pretende fazer, talvez de um amante ou dois e da vertigem que já não lhe proporciono…” e vai viver para a vila da sua infância tentando reencontrá-la e, com isso, reencontrar-se a si.

    Cada capítulo conta uma história, num ritmo diacrónico que nos leva desde a infância, em África: “Vivíamos, o meu pai, a minha mãe e eu, como instalados numas férias perpétuas e sem maiores aborrecimentos do que os impostos pela necessidade de vigiar os pretos para que não se entregassem à preguiça e à vadiagem. Creio, por isso, que fui feliz em África, na fazenda onde o meu pai era capataz”, até às recordações da avó Adalgisa que foi viver para casa de Nicolau quando enviuvou e com quem aprende ladainhas e orações (há várias na íntegra em vários capítulos) e histórias de família e de antepassados que ele só conhece através das palavras da avó e ainda, no presente, as conversas com o Dimas, o dono da papelaria, “um homem amistoso e enérgico. Aprecio bastante cavaquear com ele, o que faço, sem falta, de cada vez que se me acaba o fumo e o pretexto para ir à varanda tomar um pouco do ar puríssimo e frio que nesta altura do ano sopra do lado da serra. Encontro-o quase sempre à porta do estabelecimento onde passa a maior parte do tempo, saudando quem passa e sorrindo para as raparigas novas.

    É um misto de poeta e filósofo e no livro há vários diálogos deliciosos entre os dois. “Entendemo-nos perfeitamente, o Dimas e eu. Se o cumprimento com alegorias do Evangelho de Nicodemo, ele responde com paráfrases de Álvaro de Campos” e a tentativa de compreender a história da sua prima Delfina que tinha sido internada num hospício por, durante meses, ter transportado o cadáver do pai, num carrinho de mão, para ir levantar a reforma, no posto dos Correios, com o uso das impressões digitais da “mão morta, mas ainda útil” numa descrição simultaneamente tétrica e divertida: “Os habitantes da vila estavam habituados a que Delfina chegasse à praça acartando Estanislau num carrinho de mão. Ela transpirava ofegante de quase correr, com o rosto encarnado e os músculos retesados pelo esforço de erguer e empurrar a carreta. O velho vinha lá deitado com as pernas abertas e parecia satisfeito: acenava com o cajado e mostrava um grande sorriso quase sem dentes.”

    A inspiração para continuar a escrever não chega e Nicolau Coelho confessa: “Vim para a vila sem Alba – para recordar, mas também para morrer ou escrever, consoante o que acontecesse mais depressa. Mas não escrevo nada. Encaramo-nos de perto, cada vez mais próximos, o meu computador e eu. Opomos um ao outro as respetivas folhas em branco, a minha e a sua, como gémeos ciclópicos jogando ao sério.”

    Há também um mergulho nas redes sociais e nas notícias online para compensar o afastamento da cidade e das suas relações de uma vida. O livro aborda ainda a questão da inteligência artificial naquilo que interessa ao narrador: uma máquina que escreva livros. Pondera como seria uma máquina que escrevesse por ele romances, que tivesse na sua inteligência artificial um catálogo de milhares de livros para se guiar e lhe fosse possível redigir uma obra.

    Deixa de ter pressa e habitua-se aos ritmos do interior em abandono, reconstruindo memórias e protagonistas da história da sua família. Algumas personagens são inesquecíveis: Henrique Damião Coelho, o Cricas, o Quim pila de ouro, o Tronquinhas, o Fura Pitos, cada um deles a viver situações que nos prendem à narrativa e nos divertem e enternecem.

    A memória da mulher permanece sempre presente e esperança que ela apareça também. Nunca acontece. O desfecho é inesperado. A vida deixa de fazer sentido e, para o leitor, fica uma sentença do protagonista: Agora já não tenho necessidade de me justificar.

  • Um buffet de dicas saudáveis

    Um buffet de dicas saudáveis

    Título

    Seja um super-humano

    Autor

    MANUEL PINTO COELHO

    Editora (Edição)

    Oficina do Livro (Maio de 2022)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    Para a maioria dos portugueses, Manuel Pinto Coelho dispensa apresentações. Muitos, pelo menos, terão já ouvido o seu nome, ou visto o seu rosto, na televisão, na estante de uma livraria, ao folhear uma revista ou um jornal, ou até em podcasts no Youtube.

    Nos últimos anos, este clínico com uma experiência de meio século de prática tornou-se numa cara conhecida da praça pública, amiúde associado a declarações controversas no seio da comunidade médica. Sorridente e bem-disposto, causou burburinho as suas posições sobre, por exemplo, a exposição solar desprotegida e a utilização de estatinas.  

    Licenciado em Medicina e Cirurgia pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa em 1972, Pinto Coelho teve uma formação académica convencional, mas a doença neurodegenerativa (esclerose lateral amiotrófica) que, no final do ano passado, vitimou o seu filho Bernardo, levou-o a procurar novas formas de potencializar a saúde humana. Desde então, publicou diversos livros – alguns tornando-se best-sellers, como Chegar Novo a Velho, em 2015 – e fundou ainda a sua própria clínica.

    Seja um super-humano – 50 hábitos que vão mudar a sua vida para sempre é, como o título sugere, uma compilação de várias recomendações com vista à melhoria da saúde. É uma espécie de manual que aborda um pouco de tudo. Por se tratar de uma lista bastante extensa de sugestões, nenhuma é desenvolvida com profundidade. No entanto, o autor resume essas sugestões com argumentos médicos.

    Com 50 propostas ao longo de 367 páginas, e destinadas a uma grande diversidade de leitores, mesmo daqueles não familiarizados com temáticas médicas, o livro acaba, naturalmente, por ser de carácter bastante geral e abrangente. Não se trata, pois, de aconselhamento médico personalizado, nem esse é o propósito. O objectivo é ser um ponto de partida que proporcione ao leitor um aporte de informação que lhe permita, depois, explorar e ir implementando cada hábito conforme as suas próprias particularidades. É como um mapa para a saúde.

    Seja um super-humano – 50 hábitos que vão mudar a sua vida para sempre fala assim de uma “prosperidade física”, algo que, para se alcançar, requer mais do que apenas uma alimentação equilibrada. É necessária, também, uma atenção ao ar que se respira, aos pensamentos que se entretém, às emoções com que nos ocupamos. E é por isso que este livro parece querer ser um guia completo para um estilo de vida, que abarca as várias dimensões do ser-humano: a física, mental e emocional.

    Encontramos todo o tipo de conselhos, tão variados em tema como no grau de especificidade. Desde os que aludem ao que comemos ao exercício físico. Uns na linha de uma sabedoria ancestral, alguns de senso comum ou bom senso, como “Faça exames às principais patologias”, e outros mais irreverentes, como “Beba água do mar”.  

    Em suma, este é um interessante “manual” para quem queira aprender a cuidar melhor do seu corpo (físico) ou manter-se em homeostase. Independentemente do nível de conhecimento, o leitor poderá aqui, de decerto, encontrar, ou recordar, algo de útil para a sua vida. 

  • Ferramentas para cativar, brilhar e vencer

    Ferramentas para cativar, brilhar e vencer

    Título

    Aprenda a ser carismático

    Autora

    OLIVIA FOX CABANE (tradução: Isabel Pedrome)

    Editora (Edição)

    Casa das Letras (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Nascida em Paris, filha de pai francês e mãe norte-americana, Olivia Fox Cabane é de origem judaica. Esta circunstância, aliada à eventual inépcia social, fez com que fosse discriminada, estimulando a estudar e a provar as suas valias. As duas licenciaturas em universidades internacionalmente reconhecidas – Pantheon-Sorbonne e Ludwig Maximilian de Munique –  assim o comprovam. Entretanto, foi directora de liderança numa startup inovadora de Stanford, tendo-se tornado conferencista e assessora de muitos líderes de empresas da Fortune 500 — como a Google, a MGM e a Deloitte —, bem como professora em Harvard, Yale, no MIT e nas Nações Unidas.

    É autora do livro The net and the butterfly (editado pela Penguin em 2017), estando actualmente a escrever The genius myth: how anyone can learn to access their inner Einstein.

    Pelo seu currículo, desde logo se percebe que a autora tem experiência comprovada sobre o tema deste livro, Aprenda a ser carismático, agora publicado pela Casa das Letras. De facto, os seus exemplos decorrem da sua própria experiência adquirida na assessoria a muitos e reconhecidos empresários de sucesso.

    Neste livro, o leitor encontrará uma série de ferramentas e exercícios para aprender e aperfeiçoar técnicas com o objectivo de se tornar uma pessoa e /ou líder carismático.

    A primeira coisa que podemos desconstruir é a ideia de que o carisma é algo inato. Pelo contrário, o que a autora nos mostra é que, na verdade, podemos aprender a desenvolver uma série de comportamentos que nos conduzirão a adquirir uma personalidade carismática.

    Além de providenciar exercícios meditativos para nos tornarmos mais conscientes do momento que vivemos, ajuda-nos a focar na situação e nas pessoas com que nos defrontamos em cada momento.

    Os leitores familiarizados com as técnicas de meditação Vipassana (desenvolvida por S. N. Goenka, a partir dos princípios do Budismo) e Mindfulness (baseada na atenção plena) reconhecerão os exercícios de meditação sugeridos. Note-se, porém, que estes exercícios podem ser altamente profícuos não apenas para desenvolver uma personalidade ou comportamentos carismáticos, mas também para melhorar a concentração e o foco no essencial – algo tão importante nesta era dos dispositivos electrónicos e das notificações e distrações contínuas.

    Depois de percebermos que podemos desenvolver comportamentos e práticas – para ultrapassar os obstáculos, bem como a criar estados mentais mais adequados ao carisma –, a autora apresenta quatro tipos de personalidade carismática. Deste modo, podemos adquirir e aperfeiçoar as estratégias conforme o contexto.

    Com efeito, daqui podemos reter dois ensinamentos: o de que os tipos de personalidade não são estanques, e de que cada pessoa pode aprender e aplicar cada um deles em função dos desafios a superar.

    A ideia de que está nas mãos do leitor essa mesma aprendizagem perpassa toda a obra, sendo, por isso, um livro com um potencial enorme para quem quer ser bem-sucedido no mundo dos negócios.

    Mas não só. A empatia, a linguagem corporal e a afectividade (q.b.) podem ser ‘armas’ infalíveis para alcançar objectivos pessoais e profissionais que dependam de alianças, cooperação e coparticipação – formas de viver e trabalhar no mundo contemporâneo.

    Pelo exposto, é possível afirmar que todos têm a ganhar em ler este livro que nos ajuda a estabelecer relações pessoais e profissionais de forma mais consciente, harmoniosa e, até, calorosa.

    Atrevemo-nos a dizer que este livro é essencial para pessoas que têm ocupações como a de ‘influencer’ ou ‘lobista’, no qual encontrarão inúmeras ferramentas para se tornarem mais influentes e inspiradores. Mas, como referido, este livro pode e deve ser lido por todos aqueles que cuidam e lidam com muita gente, pois, nele encontrarão, por exemplo, formas para gerir o desconforto e situações difíceis.

    Excerto (página 56): “Lidar habilmente com qualquer experiência difícil é um processo em três etapas: afastar o estigma associado ao desconforto que essa experiência provoca, neutralizar e reinventar a realidade”.

  • Crónicas de uma cidade que se passeia

    Crónicas de uma cidade que se passeia

    Título

    Lisboa: indo e vindo

    Autora

    FILOMENA MARONA BEJA

    Editora (Edição)

    Parsifal (Abril de 2022)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Não tendo a pretensão de se tornar um guia e muito menos um livro técnico, Lisboa: indo e vindo consegue levar-nos a passear pela cidade e a ensina-nos Arquitectura, História e Arte sem que, para isso, sejam necessários conhecimentos prévios. Podia até ser mais uma no meio de tantas outras obras sobre a capital portuguesa, mas o ritmo, o tom e o estilo convidam a experimentar uma outra forma de conhecer a cidade dos alfacinhas.

    A escritora Filomena Marona Beja, num roteiro bem organizado e num estilo peculiar, junta memórias da capital portuguesa à História. No conjunto, revelam-se verdadeiros tesouros de curiosidades. Quem conhece a cidade, facilmente se recordará dos espaços descritos neste livro, e quem ainda não a conhece virá certamente a querer visitá-la.

    Como acontece em qualquer lugar habitado pelo Homem, também as cidades sofrem mudanças diárias. Os ritmos de vida, a evolução e o crescimento obrigam à construção de novos prédios, à inauguração de novas ruas e à demolição de edifícios. Por isso, não é tarefa fácil conhecer a génese dos espaços e das gentes, assim como não é fácil acertar no essencial da vida da comunidade, na vida quotidiana.

    Para o conseguir isso é preciso viver, gastar tempo, passar pela experiência da cidade. Filomena Beja faz tudo isto com competência e simplicidade. Contrariando outras obras menos credíveis, quiçá mais mercantilistas, desperta os sentidos do leitor e descreve cada lugar de forma expressiva, cristalina. Conta histórias, revela particularidades honestamente sustentadas.

    Neste conjunto de escritos a autora foge ao seu estilo habitual. Dedica-se a falar do Poço do Bispo, do Tejo, do Hospital de São José, do Jardim Zoológico, dos cafés lisboetas… Mas, porque estamos a falar de uma cidade tão vasta e tão rica, podemos perguntar: onde estão os outros lugares icónicos como o Campo Pequeno, o Jardim da Estrela, a Feira Popular ou tantos outros espaços que compõem e harmonizam o ritmo da cidade? Sabemos a resposta. Não estão. Não podiam estar. Não tinham que estar. Ainda que tenham feito parte dos 78 anos de vida da autora – e fizeram certamente – contribuir com demasiada informação seria correr o risco de transformar a obra num livro pesado, maçador.

    Livros como este são úteis. Neles se guardam memórias pessoais e coletivas. Fixam-se histórias. 

    Por isso, a crónica, estilo que Filomena Beja adoptou, foi uma excelente opção para deixar saudade a uns, matar a curiosidade de outros e despertar a vontade de passear pela cidade aos demais. São cento e quarenta páginas de equilíbrio e sobriedade. De Lisboa.

  • De Cuba para o mundo, sem filtros

    De Cuba para o mundo, sem filtros

    Título

    Como poeira ao vento

    Autor

    LEONARDO PADURA (tradução: Helena Pitta)

    Editora (Edição)

    Porto Editora (Abril de 2022)

    Cotação

    19/20

    Recensão

    Cubano de Havana, nascido em 1955, Leonardo Padura, além de escritor, tem trabalhado como guionista e jornalista. O detective Mário Conde é uma personagem sobejamente conhecida dos seus romances policiais, que, além de estarem traduzidos para muitas línguas, são vencedores de importantes prémios literários, como o Prémio Café Gijón 1995, o Prémio Hammett em 1997, 1998 e 2005, o Prémio do Livro Insular 2000, em França, ou o Brigada 21 para o melhor romance do ano.  

    Em 1993, Leonardo Padura recebeu o Prémio Nacional de Romance em Cuba, e em 2012 arrecadou o Prémio Nacional de Literatura pelo conjunto da sua obra. Em 2015 foi ainda galardoado com o Prémio Princesa das Astúrias das Letras.

    Em Portugal, podemos encontrar vários livros deste autor, entre os quais O Homem que gostava de cães, Hereges, A transparência do tempo, Quarteto de Havana I e Quarteto de Havana II, editados pela Porto Editora, que agora nos traz este Como poeira ao vento.

    Este é um daqueles livros que nos causa várias emoções e sensações. Desde logo, uma certa hesitação em avançar rapidamente na leitura. É que, com efeito, a urgência em prosseguir para conhecer e apreender mais acerca das personagens, e das ligações que as envolvem, não é compatível com a densidade e profundidade do enredo.

    Ler devagar é quase uma imposição para, desse modo, atentarmos e guardarmos cada pormenor dos contextos, das épocas, das personagens, das diferentes vias que se cruzam e teias que se entrelaçam.

    O equilíbrio é o que nos ajuda a avançar, com moderação, e assim desfrutar das mais de 600 páginas com que Padura nos presenteia, neste romance épico – creio que este adjetivo tão na moda se adequa a este romance cuidadosamente escrito.

    Sim, cuidado é um termo que se aplica na perfeição: somos encaminhados ao longo de várias décadas da História de Cuba por meio de personagens construídas de forma detalhada e escrupulosa, baseadas em pessoas, locais e situações reais – também, por isso, tão intenso.

    Contrariamente ao título, esta obra permanecerá e reverberará em cada leitor que seja apaixonado por Cuba, pela sua História, pelas suas geografias (afinal os cubanos alargaram as suas fronteiras) e, sobretudo, pelas suas gentes, ora mais conformadas, ora mais inconformadas, ora mais inquietas, ora mais revoltadas com tudo o que aconteceu desde o embargo dos Estados Unidos, em particular, durante o ‘Período Especial em Tempos de Paz’, ocorrido entre 1989 e metade da década de 1990.

    Uma época de restrições, de todo o tipo de restrições, em que até o livro ‘1984’, de George Orwell, é invocado. Não sem uma certa ambivalência, uma vez que para que para a maioria dos cubanos, de entre os quais, algumas das personagens, era inconcebível que o Estado fosse tão longe no seu regime totalitário e controlador.

    É, então, a história de um grupo de jovens – o Clã – que cresce em conjunto, desde a juventude até ao derradeiro desaparecimento de vários elementos. Jovens apaixonados pela vida, cuja evolução e prática profissional se torna cada vez mais difícil em face de tantos obstáculos e de tantas limitações. A busca pelo exílio, seja de forma legal, seja como fuga à incerteza, seja ainda pela infeliz constatação de que a liberdade para se ser é só uma palavra.

    O livro descreve de dentro, mas com um olhar limpo, sem ressentimento e quase factual, o sofrimento vívido de quem perde, um a um, os seus referentes mais íntimos.

    Em 2014, dois jovens de origem cubana apaixonam-se. Adela e Marcos conhecem-se em Miami sem saberem que as suas origens são as mesmas e que as suas mães haviam sido amigas íntimas, Elisa e Clara, respetivamente – as mulheres do Clã.

    Clara, a matriarca que segura e mantém o grupo, uma das personagens que nos comove pela resistência, pela força e pela coragem – aquela que não se rende; a última a deixar Cuba.

    Elisa, a british, filha de um diplomata que viveu em Inglaterra até ao fim da adolescência. Diferente, portanto, vivida, com uma visão mais ampla do mundo, além de Cuba. Algo que fascinava os amigos e a tornava quase idolatrada, não fora as suas atitudes a roçar a manipulação e “quase” mentiras.

    Darío, o primeiro a partir, deixa para trás a mulher (Clara) e dois filhos, com o intuito de prosseguir a sua carreira de médico e académico em Espanha, sem a limitação de um salário de três dólares. 

    Irving, o homossexual que vive no medo e que com medo não vive. Depois de torturado pela polícia durante vários dias, foge para Espanha, onde mais tarde se juntará o seu companheiro, Joel.

    Estas e outras personagens com vidas únicas e interligadas são ingredientes que nos mantêm e nos retêm em cada página folheada, numa escrita encantatória, que nos recorda Gabriel Garcia Márquez e que faz antever a atribuição do Prémio Nobel da Literatura.

    Destaco, por fim, um excerto (página 103): “A clausura física e mental de que sofriam, sem terem consciência até que ponto sofriam (exceto Elisa, a british), fazia-os ver o mundo exterior como um mapa de duas cores antagónicas: países socialistas (bons) e países capitalistas (maus). Nos países socialistas (para onde se podia viajar) construía-se arduamente o futuro perfeito (…) de igualde e justa democracia da ditadura proletária, atribuída à vanguarda política do Partido na fase de construção do comunismo, com cuja chegada se atingiria o apogeu da História, o mundo feliz”.