Categoria: Opinião

  • Luc Montagnier, Edgar Caetano e outros infames jornalistas: a podridão a boiar, à deriva

    Luc Montagnier, Edgar Caetano e outros infames jornalistas: a podridão a boiar, à deriva


    Quem é o Edgar Caetano, pergunta-me o leitor.

    Eu respondo por ele, citando-o: “Encontrei o equilíbrio que sempre procurei entre as letras e os números quando, há 16 anos, me tornei jornalista ligado à Economia e, em especial, aos Mercados Financeiros. Nascido em Águeda e licenciado em Jornalismo pela Universidade de Coimbra, trabalhei quatro anos com a delegação em Lisboa da agência Dow Jones Newswires. Passei, depois, mais quatro anos na secção de Mercados do Jornal de Negócios, onde acompanhei de perto a crise da dívida da zona euro. Estou no Observador desde setembro de 2014 e, além da Economia, da Banca e dos Mercados, interesso-me pelas áreas da Tecnologia e da Inovação – tema de uma newsletter que assinei no Observador entre 2016 e 2019. Obrigado por me ler.”

    Eu leio o que escreve o Edgar Caetano; e li o que Edgar Caetano e muitos outros jornalistas escreveram durante a pandemia, metendo foice em seara alheia, tocando rabecão sem sequer serem sapateiros, e contribuindo assim para uma certa narrativa única, para um afunilar de supostas verdades factuais, dogmáticas e inquestionáveis, pouco importando se, no meio disto, ostracizavam, silenciavam e difamavam.

    Luc Montagnier (1932-2022)

    O Edgar Caetano surge aqui como exemplo; mas há muitos mais, que poderiam ser citados – e que, às tantas, terei um dia de os elencar, a todos, porque mostra-se fundamental ser conhecida e discutida uma lista de nomes. A podridão tem de ser libertada para que novos ares pairem sobre a nobre função do Jornalismo.

    Mas centremo-nos, por agora, no Edgar Caetano, que hoje, no Observador – tal como muitos outros media mainstream – fez eco da “convicção de Christopher Wray, diretor do norte-americano FBI, que acredita que poderá ter havido um ‘incidente’ num laboratório e que o regime chinês ‘tem feito o seu melhor para ofuscar’ os esforços para identificar a origem do vírus”.

    E o ‘nosso’ Edgar Caetano acrescenta ainda que o The Wall Street Journal avançou este fim-de-semana a existência de “um estudo classificado, referente a 2021, do Departamento de Energia dos Estados Unidos, e que foi fornecido à Casa Branca por legisladores americanos”, que também aponta para a criação em laboratório do SARS-CoV-2.

    Aquilo que Edgar Caetano, e tantos outros (supostos) jornalistas se esqueceram foi de, à laia de post scriptum (vulgo, P.S.), fazer um mea culpa – de culpa inteira – sobre o seu papel na campanha de desinformação e de difamação que alimentou o público durante os últimos três anos.

    Foram eles – e com redobradas responsabilidades, atendíveis as suas funções de jornalistas – mais perniciosos na criação de fake news e de manipulação do que os teóricos das conspirações estapafúrdias (que também os há) atrelados (sempre, claro) à extrema-direita (que também os há, e cada vez mais, como falência democrática).

    Mas vejamos o caso concreto do ‘nosso’ Edgar Caetano – e a razão, vista está, da minha fúria.

    Em 19 de Abril de 2020 – está agora a fazer quase três anos –, o mesmíssimo Edgar Caetano escrevinhou uma “peça” – chamemos-lhe assim como sinónimo de asco – de pura difamação sobre um notável virologista, recentemente desaparecido, Luc Montagnier – e que, mesmo agora morto, perceberá mais de Ciência do que este ‘nosso’ Edgar Caetano com uma overdose de Memofante.

    Reza assim essa infame “peça” de Edgar Caetano: “A teoria circula há vários meses e já foi desmentida por vários cientistas. Mas um controverso virologista francês laureado com o prémio Nobel pela pesquisa sobre o HIV, Luc Montagnier, acredita que o vírus saiu de laboratório em Wuhan e defende que a explicação mais consensual – uma transmissão com origem num ‘mercado vivo’ da cidade chinesa – é uma ‘história da carochinha’. A declaração está a causar polémica, com outros investigadores a descredibilizar Montagnier, considerando que o investigador premiado tem estado ‘em decadência acelerada nos últimos anos’.”

    Notícia de Edgar Cardoso usou tweet de obscuro estudante de doutoramento, Juan Carlos Gabaldon, como prova de uma suposta decadência física e mental de Luc Montagnier.

    Para “confirmar” a tal “decadência acelerada nos últimos anos” de Luc Montagnier, Edgar Caetano não encontrou melhor ‘prova’ do que um tweet de um estudante de doutoramento de doença das Chagas, um tal Juan Carlos Gabaldón.

    E para confirmar o suposto desmentido de “vários cientistas”, Edgar Caetano remeteu simplesmente para um artigo da Nature de 17 de Março de 2020, cujo autor principal é o dinamarquês Kristian G. Andersen, de um instituto de investigação (não-universitário) norte-americano, que a partir daquele singelo artigo coleccionou financiamentos federais, a começar pelo de 8,9 milhões de dólares do National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID), então liderado por Anthony Fauci.

    Em Outubro do ano passado foram mais 2,5 milhões de dólares do Centers for Disease Control & Prevention (CDC) para desenvolvimento de software para rastrear a evolução e disseminação geográfica das variantes do SARS-CoV-2. Para Andersen, o SARS-CoV-2 tornou-se um maná.

    Note-se que, através de e-mails “vazados”, e verídicos, soube-se, entretanto, e o próprio The New York Times destacou, que Kristian G. Andersen até suspeitara inicialmente da origem manipulada do SARS-CoV-2. Tal como Luc Montagnier.

    Na mesma linha, e usando exactamente o mesmo tweet do obscuro estudante de doutoramento para sustentar o descrédito de Montagnier, seguiu a jornalista Teresa Campos, da revista Visão, em 20 de Abril de 2020. Descredibilize-se o mensageiro para descredibilizar a mensagem – eis a receita infalível dos cretinos.

    [Sou apologista de descredibilizar a mensagem para descredibilizar o mensageiro; este editorial tem essa função]

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Enfim, foi assim, com os Edgares Caetanos de certa vida airada do jornalismo, que se criou rapidamente uma Narrativa. Tudo inquestionável. Tudo facilmente descartável se fosse diferente. Tudo menorizado, se fosse controverso. Tudo tachado de “falso”, se soasse a crítica.  Tudo feito, alegre e diligentemente, por acríticos escribas, a maioria sem qualquer formação científica, sem qualquer capacidade crítica, sem quaisquer princípios deontológicos.

    Isolar, misturar e conspurcar – foi esta a estratégia. Isolar da comunidade científica quem fugisse da narrativa. Misturar essa pessoa com as mais estapafúrdias teorias (que as há) para a tornar menos racional. Conspurcar a sua credibilidade, bastando escribas de serviço para lhes colocar epítetos, deficiências e outras demais maleitas, servindo tudo para escarmento dos demais.

    [Vejam no dicionário o significado de escarmento, se não souberem, porque era termo muito usado pela Inquisição – onde muitos jornalistas desta geração se sentiriam bem como esbirros –, de sorte que uma punição não servisse apenas para o castigado.]

    Em três páginas apenas, acompanhadas por um gráfico, o artigo de Kristian Andersen “oficializou” a origem natural como causa do surgimento do SARS-CoV-2, refutando todas as hipóteses, que a imprensa mainstream tratou de descredibilizar. O artigo tem, neste momento, 5.599 citações científicas. E agora?

    Aliás, quando Luc Montagnier questionou a origem do SARS-CoV-2, lestos foram os fact-checkers (em Portugal e por esse mundo fora) a analisarem afirmações – nunca confirmadas – de um outro Prémio Nobel, Tasuku Honjo – para sobretudo denegrirem o virologista francês e garantir a irrefutável certeza da origem natural do vírus atribuída pelo agora afortunado (no sentido monetário) investigador dinamarquês.

    O Polígrafo, por exemplo, foi em Portugal um dos ponta-de-lança mais activos nesta campanha, “desenterrando” muitas vezes, teorias da conspiração – quanto mais estapafúrdias melhor – para negar a possibilidade de debates sérios. Veja-se o caso de um fact-checking de Gustavo Sampaio de 20 de Março de 2020, onde a pretexto de uma hipotética e absurda tese (vinda de um simples post de origem não identificada das redes sociais) de alguém ter criado um vírus para matar 1% da população (como se houvesse essa possibilidade de “programação”), se insiste na irrefutável origem natural do novo coronavírus.

    [Já agora, o “artigo” de Gustavo Sampaio teve o ”Alto Patrocínio” da Direcção-Geral da Saúde e do Facebook, o que convém sempre destacar. E também convém relembrar que o Polígrafo participou num projecto de suposto jornalismo colaborativo denominado CoronaVirusFacts Alliance, uma união de fact-checking para “verificar” (aspas minhas) a veracidade das informações colocadas a circular online]

    grey and black metal tool

    Também sobre o tema da origem laboratorial do SARS-CoV-2, o Observador até fez, na altura, dois fact checkings, em 9 de Fevereiro e em 18 de Março de 2020, sempre pela jornalista Marta Leite Ferreira – mais uma ponta-de-lança do jornalismo português para a criação da dogmática narrativa oficial da pandemia – que, agora, a devia fazer corar de vergonha, se a vergonha fosse atributo que ela reconhecesse.

    A forma como a diligente imprensa mainstream, através de jornalistas sem coluna vertebral e sem princípios deontológicos, tratou supostos “dissidentes” da narrativa pandémica – na origem do vírus, na eficácia das máscaras, nos certificados digitais como estratégia de controlo da transmissão, na necessidade de vacinação de menores e jovens saudáveis, na “justeza” da discriminação de não-vacinados, na recusa de debater efeitos secundários das vacinas, etc. – ficará como uma Página Negra (que digo!, uma enciclopédia inteira) do Jornalismo.

    Veja-se ainda, por exemplo, o que, a páginas tantas, a jornalista Clara Barata, do Público, escreveu recentemente, em 12 de Janeiro, à laia de obituário de Luc Montagnier, com uma passagem completamente infame:

    black and gray microphone on black stand

    “E continuou [Luc Montagnier] a avançar com as suas ideias controversas. Por exemplo, em 2020, afirmou numa entrevista a um site e depois na televisão CNews (uma espécie de Fox News francesa) que o vírus SARS-CoV-2, que causa a covid-19, teria sido fabricado em laboratório a partir do vírus VIH-sida. ‘Não é natural, é um trabalho de profissional, de biólogo molecular, de modificar as sequências [genéticas]. Com que objectivo? Não sei (…) Uma das minhas hipóteses é que queriam fazer uma vacina contra a sida’, disse na televisão.

    A tese de Luc Montagnier – que não convence a comunidade científica – era muito parecida com a de um estudo indiano publicado online, sem ter sido submetido a avaliação pelos pares, e muito contestado pelos especialistas, relata o Le Monde. O artigo evocava ‘uma semelhança estranha’, ‘que tem poucas hipóteses de ser fortuita’ nas sequências de aminoácidos de uma proteína do SARS-CoV-2 e outra do VIH-sida.

    Apesar de desacreditado pelos cientistas, este artigo fez sucesso entre os aficionados das teorias da conspiração, e correu muito pelos sites sensacionalistas, antes de ser retirado pelos próprios autores. Aquelas sequências de aminoácidos eram afinal banais, e podem ser encontradas em inúmeras proteínas.”

    Em 13 de Março de 2020, numa famosa homília que deveria envergonhar um jornalista, Rodrigo Guedes de Carvalho disse: “Aos vossos avós foi-lhes pedido para irem à guerra. A vocês pedem-vos para ficar no sofá. Tenham noção“.

    Aquilo que Clara Barata merecia agora, se fosse cientificamente possível, era uma visita fantasmagórica de Luc Montagnier para levar com uns calduços.

    Enfim, depois disto, espero que Edgar Caetano, Gonçalo Sampaio, Marta Leite Ferreira, Clara Barata e tantos outros aqui não citados (mesmo merecendo), “tenham noção”, como disse, num também infame contexto, Rodrigo Guedes de Carvalho. Aliás, este, por tudo aquilo que fez e disse, nem perdão merece. Apenas asco.

  • O mito que tudo omite

    O mito que tudo omite

    Como referência à morte do antigo ministro das Finanças, João Salgueiro, relembramos o mito da eleição de Cavaco Silva em 1985, frente ao falecido ex-ministro, no congresso do PSD da Figueira da Foz. Antes que os mitos de Cavaco se tornem na verdade histórica. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    A notícia do falecimento do economista e antigo ministro das Finanças social-democrata, João Salgueiro, no passado dia 17, lembrou um mito esquecido na política portuguesa e que remonta ao congresso do PSD em 1985 e à eleição “inesperada” de Cavaco Silva.

    Antes disso, lembre-se que João Salgueiro era uma personalidade que não surgira na política portuguesa pós-25 de Abril de 1974 propriamente do nada, pois tinha a experiência governamental do tempo do Estado Novo, onde trabalhou directamente com o ditador Marcello Caetano, como subsecretário de Estado do Planeamento Económico. João Salgueiro também não era aquilo que podemos qualificar como um “homem do regime”, pois até esteve na fundação da associação cívica SEDES.

    João Salgueiro (1934-2023)

    Tendo sido vice-governador do Banco de Portugal, aderiu ao PSD após a morte do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, em Dezembro de 1980. Uma decisão emotiva. Naquela altura, o sucessor do primeiro-ministro morto no alegado atentado de Camarate foi Francisco Pinto Balsemão, que não contou com o então ministro das Finanças, Aníbal Cavaco Silva, para continuar no governo.

    João Salgueiro era vizinho de Balsemão, na Rua Ribeiro Sanches, à Lapa, e o novo primeiro-ministro queria-o para o seu executivo. Só que o economista rejeitou o convite por razões pessoais e, considerando ainda a recente adesão ao partido, que o vissem como um oportunista. Balsemão teve de se contentar com o centrista João Morais Leitão para o cargo anteriormente ocupado por Cavaco. Mas, em Setembro de 1981, após a resolução de uma crise governamental, Balsemão formou novo governo e, finalmente, levou o vizinho João Salgueiro para as Finanças, cargo que o economista conduziu até Junho de 1983.

    A marca imprimida por João Salgueiro levou-o depois a ser considerado como o principal candidato à liderança do PSD após a morte de Mota Pinto, em 1985. E é aqui que entra um mito da política portuguesa: João Salgueiro foi derrotado no congresso social-democrata da Figueira da Foz, em Maio de 1985, pelo antigo ministro das Finanças do governo de Sá Carneiro, Cavaco Silva, que só estava presente no congresso porque tinha ido fazer a rodagem do seu novo carro e saiu vencedor de forma “inesperada”.

    João Salgueiro, em entrevista na RTP em 1990.

    A margem eleitoral entre Cavaco e Salgueiro foram 57 votos e, depois do que aconteceu na Figueira da Foz, já se sabe: Cavaco tornou-se primeiro-ministro até 1995 e ainda chegou a ser Presidente da República. Fica sempre, para o reino da ficção alternativa, como seria Portugal caso João Salgueiro tivesse chegado a ser ele o primeiro-ministro em vez de Cavaco Silva.

    Ao ver as notícias da morte de João Salgueiro percebe-se como o mito inventado por Cavaco Silva está hoje bem enraizado na história recente da política portuguesa e, como estes textos estão escritos debaixo da designação “Histórias que eu sei”, sou levado a ter de recordar, nesta hora em que desaparece um homem que fez parte desta história, aquilo que sei.

    Sei que Cavaco Silva, que sempre disse ser um economista e que nunca se assumiu como político profissional, é o melhor político que este país conheceu. E se há muita gente que não gosta dos políticos portugueses, então é a Cavaco que o devem, pois o melhor político é aquele que nem sequer pode ser acusado de ser político. E Cavaco conseguiu criar esse mito à sua volta.

    O primeiro mito de Cavaco é ter-nos feito acreditar que, após a morte de Sá Carneiro, não tinha hipóteses de se manter no governo. Que até estava cansado e queria sair após um ano em funções, entre Janeiro de 1980 e Janeiro de 1981, altura em que Balsemão se preparava para se sentar na cadeira de S. Bento.

    Notícia do jornal Tempo de Julho de 1982.

    É falso: logo após a morte de Sá Carneiro, a 13 de Dezembro, o semanário Expresso, propriedade de Pinto Balsemão e dirigido interinamente pelo actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, dizia em primeira página que o nome de Cavaco Silva estava a ser ponderado dentro do PSD como “hipótese forte” para ficar à frente do executivo, enquanto Balsemão ocuparia o cargo de presidente dos sociais-democratas.

    Será modéstia de Cavaco não reconhecer que o seu nome era o mais forte para suceder a Sá Carneiro em 1980?

    Ou será que foram as condições por si impostas a Balsemão que não agradaram ao único dos três fundadores originais do PSD que ainda estava vivo e filiado no partido? Talvez ajude relembrar aqui as declarações de Balsemão ao Diário de Notícias de 1 de Janeiro de 1981 que, a propósito do projecto de Cavaco Silva, afirmou: “Estou convencido de que nunca vingarão em Portugal projectos de poder pessoal, porque o povo português ao escolher quem quer para governar escolhe um conjunto de medidas, um modelo de sociedade, e não o cidadão A ou B”, tendo acrescentado esta frase fatal: “Santa Comba Dão em 1980, em Portugal, não é concebível”.

    Sim, Balsemão comparou directamente Cavaco Silva ao ditador Salazar. E isto, seis anos após o 25 de Abril, era visto como um enorme insulto político. Hoje, alguns diriam ser uma medalha, mas foi também no tempo em que Balsemão ainda não participava nas reuniões internacionais do Grupo Bilderberg e acreditava-se que Camarate tinha sido um acidente.

    O segundo mito de Cavaco é o de que se manteve de fora da política activa até à altura em que chegou a líder do PSD. Afinal, recusou ser deputado e só falava publicamente quando lhe pediam a opinião.

    Falso: Cavaco encabeçou uma lista para o Conselho Nacional do PSD no primeiro congresso do partido após a morte de Sá Carneiro, no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa – actual Pavilhão Carlos Lopes –, em Fevereiro de 1981, tendo feito aí o seu primeiro discurso em congressos. Estava na política activa. E pior: era activamente contra o líder do seu partido e primeiro-ministro, Pinto Balsemão.

    Uma pessoa que topou bem essa nova esperança no futuro do PSD foi então um jovem jornalista do semanário Tempo, chamado Paulo Portas, que assinou uma entrevista com Cavaco Silva a 4 de Junho de 1981. Portas perguntou a Cavaco se, ao estar activo dentro do partido, não estaria a fazer um “tirocínio partidário” e se não colocava de lado a hipótese de poder ser chamado a funções mais elevadas. A resposta do economista Cavaco foi a resposta de qualquer político: “O PSD precisa de todos”.

    Um ano depois, Cavaco assinava, com Eurico de Melo, uma carta aberta contra Balsemão. Aquilo não caiu bem, tanto mais que havia eleições autárquicas em Dezembro e, viu-se, o mau resultado do PSD – coligado desde 1980 com CDS e PPM, na AD –, levou à demissão de Balsemão.

    Notícia do jornal Tempo de Maio de 1985.

    No discurso de despedida da liderança do PSD, em Março de 1983, em Montechoro, Balsemão deixa um recado ao interior do partido dizendo que não se poderia aceitar que viessem a ser recompensados aqueles que “nos últimos dois anos, só se distinguiram por se colocarem fora do sistema, por desrespeitarem as resoluções dos órgãos próprios do partido, por se refugiarem calmamente em sua casa ou no seu escritório e se limitarem a falar de quando em quando para os jornais ou a escrever cartas abertas publicadas nas piores ocasiões”. Está-se mesmo a ver quem era o alvo: o maior dos políticos.

    O terceiro mito de Cavaco e o maior de todos, é aquele em que ele diz que foi “inesperadamente” eleito líder do PSD no congresso da Figueira da Foz, em 1985, vencendo João Salgueiro, candidato apoiado por Pinto Balsemão. É certo que teve uma diferença de 57 votos, mas não se pode dizer que Cavaco Silva só foi ao congresso para fazer a rodagem do carro e dizer o que tinha a dizer e, depois, vir embora.

    A falsidade do argumento é desmentida, primeiro, pela manchete do Expresso a 11 de Maio de 1985, uma semana antes do congresso, que se realizaria entre os dias 17 e 19 de Maio: “Distritais avançam nome de Cavaco Silva”. Eram as letras gordas da primeira página do Expresso, acompanhadas de um ante-título, com letras mais pequenas, a dizer: “Com candidatura de Salgueiro quase certa no PSD”.

    João Salgueiro em 2010, sendo recebido por Cavaco Silva, então Presidente da República. Imagem RTP Arquivos.

    Outro semanário bem informado sobre os passos de Cavaco na preparação para o congresso, era o Tempo – uma escola para o futuro director do Independente, Paulo Portas. A manchete de sexta-feira, dia 17 de Maio, à abertura do congresso, tinha a foto de um sorridente Cavaco e, em letras gordas: “Discurso de Cavaco vai ser decisivo”. E com isto, ainda nos querem fazer acreditar na rodagem do carro? E no “inesperado”?

    Cavaco conseguiu ser eleito e João Salgueiro nunca mais exerceu qualquer outro cargo político, e este é agora o País que temos. Não sei se seríamos diferentes caso o resultado do congresso de 1985 tivesse sido favorável a João Salgueiro, mas uma coisa tenho a certeza que nunca haveria: os factos omitidos para a criação do mito de Cavaco Silva.

    Que a morte de João Salgueiro nos permita desfazer um pouco disto antes que se tornem para sempre na verdade em que todos acreditarão.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Kuwait, o que celebrais?

    Kuwait, o que celebrais?


    Sempre que consigo, faço desvios em viagens aéreas para ir a outros sítios que, de outra forma, não me levariam a sair de casa propositadamente. Assim, para quem for à Índia, partindo da Europa, como foi recentemente o meu caso (ver texto anterior sobre o casamento do meu amigo Rohit), os países do Golfo Pérsico são um excelente ponto de paragem e uma forma de conseguir ligações mais baratas.

    Porquê? Acho que lhe podemos chamar o mercado da oferta e da procura. Com milhões de indianos espalhados entre o território que vai do Kuwait ao Dubai, passando pelo Qatar e Bahrain, é normal que exista uma enorme oferta de voos para as principais cidades indianas e a um baixo custo, pois a procura é muita.

    Por isso, acabei por dar por mim no Kuwait, um pequeno país do tamanho do Alentejo, entrincheirado entre o Iraque e a Arábia Saudita. No meu imaginário, o Kuwait era aquela estrada, no meio do deserto, cheia de tanques destruídos com a passagem da Operação Tempestade no Deserto. Gosto de visitar sítios onde a História se fez. Era o meu principal passatempo até ao início dos confinamentos, e tento agora, três anos depois, continuar onde parei.

    Ainda não tinha saído do aeroporto e já estava a ter um daqueles momentos de “o que faço eu neste fim de Mundo?”. Acontece-me muito. Consigo encontrar interesse em absolutamente qualquer recanto deste planeta, mas, não raras vezes, quando lá chego questiono-me por que saí sequer de casa.

    Um polícia no aeroporto começa a virar a minha mochila e encontra Xanax. Pede-me pela receita médica que, obviamente, não tenho – e pergunta-me então se tenho ataques de pânico. Digo-lhe que sim, no ar. Ele diz que aquilo é ilegal no Kuwait e que posso ser mandado parar na rua e ir para a prisão.

    É bom lembrar que estou num país onde drogas e álcool dão pena de prisão e, em alguns casos, sentença de morte. Explico-lhe que se me tirar os comprimidos sobram-me duas hipóteses. Ficar no Kuwait o resto da vida, ou arranjar um autocarro que atravesse o Iraque em direcção à Europa. No avião é que não entro sem aquilo. Ele sorri. É um gordinho de barba, com aspecto de quem está na primeira semana de trabalho e quer mostrar obra feita ao seu superior.

    Eu procuro as saídas do humor, é sempre por aí que vou. Certo dia um militar ucraniano, na fronteira com a Polónia, apontou-me uma metralhadora e pediu dinheiro para me deixar seguir. Eu bati nos bolsos e disse-lhe que não tinha notas, e perguntei-lhe se aceitava cartão.

    Na impossibilidade de disparar a 100 metros da linha da União Europeia, ele lá me deixou ir sem achar piada ao meu material de comédia. O mesmo sucedeu na fronteira do Egipto e Israel, com três egípcios a dizerem-me que sem pagar extra ia ficar muito tempo ali parado, ao que respondi que por mim tudo bem, podia ficar ali com eles e fazer adeus ao israelita que ainda me conseguia ver na barraca a 50 metros dali. O mesmo israelita que me tinha feito 100 perguntas, entre as quais se eu falava árabe.

    Não sei bem por que razão me meto sempre nestas alhadas, mas parece que devo gostar, porque vou sempre lá cair. Ando há meses a ver se convenço alguém a vir comigo a Minsk e, surpreendentemente, ninguém acha a ideia apelativa.

    Por fim, o polícia novato lá me deixou sair do aeroporto, depois de falar com o superior hierárquico, que não se quis chatear por quatro Xanax. Quando cheguei cá fora, pensei que uma cervejinha é que era, para aliviar aquele stress, mas lá está, também é ilegal, pelo que bebi antes um café com caramelo, no Starbucks que estava ali em frente. Ah pois… os americanos não deixaram apenas as mangueiras para sugar petróleo quando estavam a “trazer democracia”.

    Reparei que as ruas estavam cheias de fervor patriótico. As cores da bandeira por todo o lado, monumentos fechados, carros com bandeiras, crianças com camisolas que diziam “Free Kuwait”. Uma semana de feriados para comemorar o Dia Nacional, o Dia da Libertação, e de alguma forma isso tinha um toque de Carnaval, porque as pessoas faziam guerras de balões de água no meio do trânsito. Estava um pouco baralhado com a História e os parcos conhecimentos de inglês dos locais também não me ajudaram muito.

    Dei uma de Relvas… e fui estudar. Os dias 25 e 26 de Fevereiro marcam, respectivamente, o Dia Nacional e o Dia da Libertação do Kuwait. O primeiro comemora a chegada ao trono, em 1950, de um emir com cerca de dezassete nomes, que ficou famoso por ter assinado o tratado que acabou com o protectorado britânico. O segundo, como se perceberá pelo nome, regista o dia em que os americanos “devolveram a democracia” e correram com os iraquianos.

    Impecável do ponto de vista do sincronismo temporal a entrada do exército aliado no Kuwait, permitindo juntar duas datas importantes numa semana e reduzir assim os custos com as festas para as gerações vindouras.

    people walking on street during daytime

    Paradas militares, polícia por todo o lado, barcos a dar espectáculo com canhões de água, aviões de combate a executar manobras nos céus da capital. Uma demonstração de poder bélico algo patética, para quem perdeu o controlo do seu território em apenas dois dias e que, sem os poços de petróleo que normalmente ajudam às “devoluções de democracia”, seriam hoje mais um quintal anexado como aqueles no Terceiro Mundo que ninguém quer saber.

    Mas como tinham petróleo, já se sabe, passam a ser um “parceiro do Mundo Livre e Democrático”.

    Ainda assim compreendo a festa da libertação. Para os locais, mesmo sabendo que 1991 se resumiu a jogos de poder pela conquista de combustíveis fósseis, a consequência é que, de facto, recuperaram a sua independência. Não a liberdade ou democracia, que nunca as tiveram, mas livraram-se de um invasor assumido.

    Já a celebração pela ascensão ao trono do emir dos vários nomes é que não percebo bem.

    O que é que há para comemorar num regime onde a liberdade de expressão é controlada, os direitos (especialmente das mulheres) cada vez mais restringidos e o direito a governar nasce no berço?

    people on beach during daytime

    O que celebra uma sociedade absolutamente desigual, onde uma minoria de 1,5 milhões (os nativos do Kuwait) é controlada por uma família pornograficamente rica, e tudo o que cresce e se desenvolve é providenciado por um exército de três milhões de escravos da era moderna, entre os quais cerca de um milhão de indianos?

    O que comemora uma sociedade tão desigual como esta, tão desequilibrada e tão injusta?

    Os albaneses, em maioria no sul da Sérvia, reclamaram um país e surgiu o Kosovo.

    O Donbass vai pelo mesmo caminho.

    O argumento de maiorias que crescem num território e depois exigem a independência ou a anexação são clássicos da História. Tirando no caso dos curdos e dos palestinianos, normalmente este argumento colhe quando apoiado por algum império. Dei por mim a pensar que todos estes escravos, que já são a maioria nos países do Golfo Pérsico, ainda podem um dia servir de desculpa para a Índia os anexar.

    Era engraçado ver ditaduras a serem anexadas por democracias e os Impérios do Bem e do Mal a pensarem se alinhavam e repartiam o petróleo (ou “liberdade” como George Bush pai lhe chamou) ou se entravam em novas guerras pelo controlo total.

    rock formations

    O mundo seria bem melhor sem petróleo. Sem castas. Sem escravos.

    É nestas alturas que penso no pequeno mas existente elevador social em Portugal. Há hipótese, há alguma esperança, de se evoluir pelo trabalho.

    Ali, no Kuwait, não. Se nascem miseráveis, vão morrer miseráveis, e esgotados de trabalho até ao osso.

    Não sei se é isto a que se chama choque de culturas, mas sei que me ajuda a perceber a sorte que tive por nascer no lado certo do Mundo. Pelo menos isso.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • O dia em que pensei que a Argélia era a paragem final

    O dia em que pensei que a Argélia era a paragem final


    A minha mãe pergunta-me, com frequência, como é que passo o tempo no ar se tenho pânico de voar. Ao fim de duas décadas dentro de aviões, respondo-lhe quase sempre que, apesar desse medo, ainda maior receio tenho de, por isso, deixar de ver o Mundo.

    Por isso, arranjei uma série de rotinas – e que dariam longas sessões no divã de um psicólogo – para continuar a seguir o meu sonho, o sonho de conhecer o máximo possível do Planeta onde nasci.

    Dei assim por mim, a pensar nisto, com umas companheiras de viagem na pouco visitada Argélia, de onde vos escrevo agora. Tenho pouca paciência para países que dificultam a entrada com vistos aborrecidos ou idas a embaixadas, mas à medida que o Mundo vai encolhendo a esquisitice diminui.

    Por outro lado, tinha uma curiosidade enorme pelo rico património histórico da Argélia. Das cidades coloniais às ruínas romanas, passando pela abertura ao Mediterrâneo e a vastidão do deserto.

    A Argélia é o maior país de África, com uma dimensão que cobriria o território entre França e a Lituânia, de Este a Oeste, e entre a Suécia e Itália, de Norte a Sul. Não é um sítio para visitas rápidas, mas tentei chegar ao Norte, Este e Sul. Tentei. E não consegui.

    Argel, a caótica capital, parece uma cidade perdida no tempo, entre as decrépitas fachadas coloniais e a modernidade que só chegou no culto do divino.

    Nas ruas, vejo homens. Novos e velhos. A trabalhar ou a matar o tempo. Conto pelos dedos as mulheres. Há um conservadorismo que, apesar de tudo, ultrapassa as minhas expectativas iniciais.

    Há uma exaltação à Guerra da Independência contra os franceses, e memórias por todo o lado, com destaque para o horripilante monumento aos soldados caídos nessa luta, que do alto da encosta ensombra a cidade. Polícia no local assegura que ninguém lá passa por baixo, evitando uma ofensa que não compreendi.

    Um simpático dono de um café dizia-nos que o problema da Argélia eram os franceses, por investirem em Marrocos e na Tunísia, sabotando o turismo no país. A estranha incongruência de não querer o colono por perto, mas não se importar de receber uns Ibis.

    De facto, aqui não há grande turismo. Ao fim de quatro dias, não terei visto mais de dez estrangeiros. Nota-se um pouco por toda a parte a falta de hábito de lidar com turistas. Entre os mais velhos ainda se fala francês, já os mais novos parecem fazer a escola em árabe. Inglês é um problema. Andar sozinha, caso sejas uma mulher, também.

    Há lixo por todo o lado, menos na imponente e lindíssima Grande Mesquita. A maior de África e a terceira maior do Mundo, com uma beleza arrebatadora e um brilho cuidado que nos permitiria comer no chão. Fico sempre impressionado com as fortunas que países pobres, sejam eles quais forem, gastam na devoção religiosa. Seja qual for a religião, note-se.

    A Argélia começa a ficar interessante, verdadeiramente única, quando saímos da capital. A cerca de três horas de carro, para Este, está o complexo romano de Djemila. Uma escavação abandonada pelos franceses a meio da guerra colonial, na década de 60 do século passado, ainda com mais de metade das ruínas por descobrir.

    Ainda assim, uma área imensa, com casas, teatros, mercados e templos construídos entre os séculos I e V. Um património classificado pela UNESCO e deixado ao abandono, sem grande protecção para garantir a sua conservação. Casas com mosaicos, ainda intactos do século III são utilizadas como latrinas por visitantes aflitos.

    É ver enquanto não destruírem o que falta – foi esta a sensação com que me vim embora. Vi um turista no local.

    Constantine, um pouco mais a Este já me encheu mais as medidas. Uma das várias que ficou com o nome do imperador romano, pareceu-me menos caótica e mais acolhedora que a capital Argel. Construída entre dois lados de um desfiladeiro, ficou conhecida com a cidade das pontes suspensas.

    Um daqueles sítios onde gostaria de me sentar numa esplanada a contemplar a vista sem ter de beber um sumo cheio de açúcar.

    Esta malta sobrevive a laranjada e Coca-Cola, de manhã à noite. Não se degusta um tinto ou uma cevada líquida, nem que chovam canivetes. E como tem chovido, senhores.

    Saí do Este para apanhar dois aviões a caminho do deserto, numa zona a sul menos aconselhada para turistas, chamada Ghardaia. A polícia no aeroporto disse-me que não mostrasse aquele cartão de embarque até ser necessário. O sul da Argélia tem zonas de conflito com guerrilhas, e não é, ainda, absolutamente seguro para visita.

    No fim do primeiro percurso de avião, um velhíssimo ATR que avistava as montanhas e furava as nuvens como podia, senti-me como uma velha meia colada ao tambor da máquina de lavar. Enquanto ele, o piloto, teimava em não subir mais uns metro, e ia desfazendo nuvens à chapada, eu dizia em voz alta: “sobe esta merda, sobe esta merda!”

    Pensei que fosse desta que não chegaria inteiro para escrever o texto de segunda-feira.

    No fim, despedi-me da Air Algerie sem aquele abraço nostálgico, e deixei-os a chamar pelo meu nome no segundo voo – onde nunca entrei. Lá chegarei, ao deserto mais a sul, de carro, de camelo ou de bicicleta.

    O pânico vence uns rounds, é verdade, mas no fim, e aos pontos, a teimosia vence quase sempre a luta. Importante é seguir caminho. Seja ele qual for, só precisa de ser novo.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Comissão da Carteira Profissional de Jornalista: a arte de matar o mensageiro para manter promiscuidades

    Comissão da Carteira Profissional de Jornalista: a arte de matar o mensageiro para manter promiscuidades


    A Dra. Licínia Girão, actual presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), tem vindo a recusar o acesso a documentos administrativos ao PÁGINA UM, nomeadamente o acesso a processos e pareceres já concluídos ou iniciados há mais de um ano, às simples actas das reuniões do Plenário (integrando apenas jornalistas) – que não contêm sequer dados nominativos na acepção do Regulamento Geral de Protecção de Dados – e remunerações e senhas de presença.

    Além disso, a CCPJ tem fechado os olhos a um conjunto de denúncias sobre promiscuidades dos jornalistas e de grupos de media, considerando, por outro lado, que as notícias que temos publicado sobre a sua presidente – e o seu paupérrimo currículo face ao que a lei exige (jurista de mérito) – são uma perseguição.

    Licínia Girão, presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, eleita por supostamente ser “jurista de mérito”

    De entre esses documentos está, por exemplo, o processo iniciado em Dezembro de 2021, após denúncias do PÁGINA UM, ao jornalista-director e administrador da Global Media Domingos de Andrade por estar envolvido em contratos comerciais com autarquias. A CCPJ a contragosto aplicou já este ano uma multa irrisória de mil euros e nada mais. Parece que o Ministério Público vê agora infracções criminais, muito mais graves, do jornalista Domingos de Andrade, que candidamente ainda ostenta a carteira profissional.

    A CCPJ protege este tipo de jornalistas, este tipo de gente que conspurca a nobre função de jornalista, enquanto, na verdade, persegue quem denuncia as promiscuidades na imprensa mainstream.

    Por isso, a sanha da CCPJ e dos seus membros (todos jornalistas) ao PÁGINA UM e, particularmente, a mim.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Começou em Agosto do ano passado através de um vergonhoso parecer ou recomendação – aparentemente nunca feito para outro jornalista (essa é uma das questões que a CCPJ não pretende esclarecer, mesmo depois do parecer da CADA) –, assinado por Licínia Girão e Jacinto Godinho, a pedido de António Morais, presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia por causa de notícias publicadas pelo PÁGINA UM.

    A Dra. Licínia Girão e o Prof. Jacinto Godinho decidiram criticar o rigor e objectividade das notícias do PÁGINA UM, omitindo descaradamente que essas notícias por mim assinadas eram não apenas factuais como resultaram num processo de contra-ordenação e na destituição de António Morais de consultor do Infarmed.

    Eis o prémio da CCPJ ao jornalismo de investigação e incómodo, que denunciou a evidente e comprovada promiscuidade entre sociedades médicas e a indústria farmacêutica: uma “censura”. Feita a um seu par, que nem sequer quiseram ouvir e nem sequer o informaram previamente sobre aquilo que estavam a “cozinhar”.

    Jacinto Godinho, jornalista da RTP, professor de Comunicação Social na Universidade Nova de Lisboa e membro do Secretariado da CCPJ.

    Há patifes com mais ética.

    E continuou a CCPJ com as atitudes arbitrárias contra o PÁGINA UM e contra mim – em proporção aos contínuos casos de denúncias das promiscuidades na imprensa que temos revelado (vd. aqui este exemplo, mas há tantos mais) –, como seja a não aceitação de uma participação para a abertura de um processo (mesmo que, depois, justificadamente, o pudessem arquivar) contra os jornalistas da CNN Portugal que me difamaram – e difamaram o PÁGINA UM – logo nos primeiros dias de existência de um projecto independente, e por isso incómodo.

    Agora, poucos dias após um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos – que considera que tenho direito aos documentos que solicitei à CCPJ –, a Dra. Licínia Girão decidiu contra-atacar.

    E como?

    Apresentando uma queixa formal ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas. Leitura aprazível para quem acha que o Jornalismo ainda não desceu ao fundo do poço – e, por uma questão de transparência, deve ser publicamente conhecida.

    Primeira página da queixa de Licínia Girão enviada ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.

    O mais curioso no relambório de 16 páginas e 88 “quesitos” que constituem a douta queixa da Dra. Licínia Girão nem sequer será o facto de, em grande parte, remeter-se para notícias do PÁGINA UM de Agosto do ano passado, sobre matérias que, por duas vezes, nem sequer quis esclarecer.

    O mais curioso também nem sequer será o facto de o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas ter diligentemente já tratado da “acusação” – demorou 10 dias corridos – com questões sobre estilos de escrita, usos de adjectivação (produto de interpretação e qualificação de factos) e até uma capciosa pergunta sobre se eu “sabia ou procurou saber se existiria algum contexto que explicasse o desempenho da denunciante [Licínia Girão] nos referidos exames [do CEJ, em que “chumbou” com péssimas notas]?.

    Não. O mais curioso na queixa da presidente da CCPJ (que comprova, por si só, que de fecto, não pode ser uma jurista de mérito, porque isso pressupõe valores dos quais carece) são dois pormenores – que darão uma tese.

    Primeiro pormenor, a Dra. Licínia Girão quer usar o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas – e manipular uma entidade que se presta a fazer o jogo sujo. Por uma razão simples: este Conselho Deontológico tem uma relevância apenas de carácter censório, mas sem qualquer dever de cumprimento de normas procedimentais que garantam uma apreciação justa e equitativa. Se os membros do Conselho Deontológico me quiserem censurar de forma injusta, nada mais me resta do que eventualmente processar os seus membros por difamação.

    Mas uma censura – mais uma censura – é sempre uma tentativa de descredibilização do meu trabalho, do rigor e independência do PÁGINA UM, para que, desse forma, elimine as denúncias sobre as promiscuidades entre a imprensa mainstream (com muitos jornalistas a “venderem-se”) e o mundo político e empresas privadas. E não estamos a falar de uma denúncia ou outra. Foram dezenas, envolvendo praticamente todos os grandes grupos de media. E mais estão na forja. Todas de grande gravidade.

    Aliás, note-se bem: a estratégia de descredibilizar o PÁGINA UM com “processos”, “deliberações”, “recomendações”, “queixinhas” e quejandos já foi seguida, por duas vezes, pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). Já por duas vezes o regulador da comunicação social tomou deliberações contra o PÁGINA UM após publicarmos notícias que acabaram por dar processos instaurados pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde.

    A ERC, recorde-se, até já fez comunicados acusando-me de insultar os seus membros e de perseguir os seus funcionários – e fez passar isso na “imprensa amiga” – em vésperas de perder um processo no Tribunal Administrativo de Lisboa sobre acesso a documentos relacionados com a Transparência dos Media.

    Meteu a ERC depois a viola no saco – incluindo a desistência de uma queixa judicial por alegada difamação –, mas conseguiram denegrir-me. Ainda hoje, em pesquisas no Google, encontro referências ao suposto episódio de Agosto do ano passado na sede da ERC onde eu teria tido alegados comportamentos impróprios.

    Sede da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.

    Enfim, sei – todos sabemos – e conheço as tácticas de guerrilha para “matar” (denegrir) o mensageiro para que não exista mais mensagem…

    Mas voltando à vaca fria, isto é, à Dra. Licínia Girão – ou melhor dizendo, à queixa da Dra. Licínia Girão, não se vá dizer-se que lhe estou agora a chamar nomes –, deveríamos colocar-lhe uma questão: por que razão a CCPJ solicitou uma intervenção ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas quando, alegadamente, estarão em causa violações (minhas, presuma-se) do código deontológico com implicações disciplinares?

    É que, hélas, a CCPJ tem acção disciplinar sobre mim, conforme estabelece o Estatuto Disciplinar dos Jornalistas. Mas, nessas circunstâncias, a Dra. Licínia Girão ver-se-ia obrigada a seguir um procedimento detalhado, incluindo instrução, o que implicaria várias coisas.

    Implicaria a necessidade de explicitar e justificar em concreto as minhas supostas violações éticas e deontológicas.

    Implicaria conceder-me direitos de defesa.

    Implicaria eu poder indicar testemunhas e exercer muitos outros direitos.

    Uma chatice. A Dra. Licínia Girão arriscar-se-ia a, querendo tosquiar-me, sair tosquiada.

    Palácio Foz, sede da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista.

    Por isso, das duas, uma: ou o envio de uma queixa para o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas é uma assumpção da incompetência da CCPJ em me fazer um julgamento justo, ou então considera que existem melhores condições para me censurarem encontrando quem se predisponha ao frete de fazer jogo sujo.

    Na verdade, pelo tom pidesco com que me pediram já “comentários” – e aqui divulgo o “interrogatório” do dito Conselho Deontológico, também por transparência e para que se possa discordar da minha visão –, dá para perceber que estão disponíveis para executar a tarefa. Se me quiserem mesmo ouvir terá de ser presencialmente e tudo gravado – já lhes fiz saber. De contrário, façam todos bom proveito do frete.

    Não é a primeira vez, como se viu em Janeiro do ano passado, quando o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, através de um então seu membro (Filipe Caetano, da CNN Portugal, estação que vilmente difamara o PÁGINA UM), me quis também levantar um processo por violação do código deontológico.

    Na primeira vez, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas meteu a viola no saco. Mas há sempre uma segunda vez…

    Domingos de Andrade, o primeiro de muitos “casos de polícia” da imprensa mainstream portuguesa.

    Enfim, estar a CCPJ, com as competências que detém, a apresentar uma queixa contra mim ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas seria o mesmo que um juiz de um tribunal criminal se queixar de mim à Provedoria da Justiça.

    Por fim, o segundo pormenor interessante da queixa da Dra. Licínia Girão.

    No final de um vasto rol de “acusações”, que ela me atira, até sobre aspectos que nunca antes quis esclarecer, desfere ela – ou tenta desferir – um fino ferrete sobre mim nesta época de wokismo e de #MeToo.

    No ponto 87 da sua extensa queixa, escreve a Dra. Licínia Girão, à laia de epílogo, o seguinte: “Ou seja, os conteúdos desonrosos, fantasiosos, falsos e ofensivos sobre a peticionária queixosa [ela, claro] começaram a surgir três meses depois de a denunciante assumir funções na CCPJ e depois de uma outra jornalista ter desempenhado as mesmas funções.”

    grayscale photo of woman doing silent hand sign

    Portanto, o Pedro Almeida Vieira é um misógino! É isso? Claro. Fogueira com ele, portanto, não é? Claro. Que sirva eu de escarmento para os demais que critiquem e exponham a insindicável Dra. Licínia Girão, que lhe descubram incongruências, as chico-espertices e as inaptidões para uma função de inegável interesse para o jornalismo, mas que ela tão maltrata por acção e inacção.

    Por alguma razão – aliás, por muitas – acusei Licínia Girão e Jacinto Godinho, seu compagnon de route no Secretariado da CCPJ, de serem os carrascos do Jornalismo. Esperemos que os casos de polícia, que agora se iniciam com o caso de Domingos de Andrade, não se amontoem até terem de chegar um dia às portas do Palácio Foz, à sede da CCPJ.

  • Afinal as torres são de porcelana

    Afinal as torres são de porcelana


    No cimo da torre caminham monstros entre dois mundos. Monstros que se diriam marinhos, viscosos e pesados, que estremecem os pisos inferiores em cada salto aéreo, planando sem dificuldade pela construção de mitos cá em baixo, enquanto tocam flauta.

    Mitos cá em baixo e coletes fluorescentes que rasgam o asfalto e respiram escapes a caminho de si próprios (precisamos de caminhar para algum lado).

    Postes de alta tensão e antenas multiplicam-se e atravessam as rotas (fecha os olhos, não olhes para cima e não as vês, baixa a cabeça e olha para o ecrã).

    black metal frame with glass roof

    Enquanto isso os deuses incumbem sacerdotes de rasgar os peitos de discípulos e oferecer corações em sacrifício, ainda a pulsar (somos muitos, somos demais, salvem os gatinhos, esterilizem-nos e não os deixem ir para a varanda).

    Se os pensamentos já são fugidios e ainda, para além de os tentarmos apanhar, temos que os ordenar para encontrar sentido nesta história, a quem é que afinal sobra tempo para transmutar a torre dos monstros em castelo de porcelana (rachou, ali já rachou).

    Vejam bem o que sobra dos esqueletos de edifícios feitos por estes monstros. Nem ruir sabem com dignidade (a quem sobra tempo?)

    Mas o tempo acelerou tanto que só nos sobra caminhar por entre os escapes rumo a uma promessa.

    time lapse photography of tunnel

    E que dor que é. Porque o facto é que somos bichos e precisamos de tempo e as nossas mentes precisam de o ver (o tempo) para o transmutar em porcelana.

    Não, não pode ser só nascer, entrar na fotocopiadora e sair a preto e branco algures na vertigem da maturidade, produzir mais dejectos e entretanto morrer algures no limiar da nossa inutilidade produtiva. Do nosso abrandar inexorável.

    Há mais em nós. Há mais em ti.

    Por isso se marcava o tempo, a cada ano, a cada degrau da torre. Para chegarmos lá acima e limparmos o caminho de monstros marinhos e viscosos que se atreveram a voar e ensombrar os nossos dias.

    A fartura nunca educou ninguém, mas começaram a imprimir e a copiar folhas vazias de alma, as fichinhas, para supostamente ensinar os miúdos mais depressa, como quem carregava no botão da impressora e lá saía mais um garoto pronto a consumir (pronto a produzir).

    girl using VR goggles

    Deixamos de criar guerreiros e guerreiras, passamos a engordar a tribo e a cortar o cabelo de formigas submissas às ordens de tiranos que nunca tiraram uma vida (e como poderiam?) e que não sabem o valor de uma vida (de uma morte) e que não têm assombrações (e assombros) que os guiem enquanto guiam homens, de cabelo já cortado, rapado pela raiz, sem mais ritual de transição do que o da humilhação e subjugação.

    Houve outrora pavões orgulhosos que encheram o peito para conquistar um lugar, agora todos depenados em aviários, confinados a caixas todas iguais com vernizes de cores diferentes, a pintarem as unhas para pôr ovos que vão ser chacinados, devorados, desperdiçados.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Não me diga que não sabia

    Não me diga que não sabia

    É provável que este todo contenha um significado muito difícil de descodificar, porque Deus trabalha de formas misteriosas.

    Stephen Jay Gould

    QUESTIONING THE MILLENNIUM


    A partir de Fevereiro de 1989, quando Salman Rushdie se refugiou em diversos esconderijos londrinos depois do Ayatollah Khomeini o ter condenado à morte em todo o universo muçulmano[1] pelas infâmias e ofensas contidas no seu livro VERSÍCULOS SATÂNICOS[2], é evidente que um grande número de ingleses bem-intencionados se dispuseram a correr riscos muito sérios para lhe darem, no mínimo, algum apoio moral. Aquele que eu nunca hei-de esquecer foi o do correspondente do THE NEW YORKER que o levou ao cinema numa matiné. Infelizmente, as escolhas do multiplex não eram muitas nem grande coisa, de maneira que acabaram os dois sentados na sala que passava o filme QUATRO CASAMENTOS E UM FUNERAL. Ao fim de quinze minutos, era absolutamente incontornável que estavam rodeados por uma multidão deleitada, constituída por pessoas de todas as idades e feitios que não tinham precisado assim de tanto tempo como isso para se apaixonarem perdidamente pela película – fenómeno que muito indignou o correspondente do THE NEW YORKER, que seleccionara aquele filme convencido pela crítica da sua própria revista que se trataria de um trabalho interessante, no mínimo. “Mas porquê? Já reparou? Como é que é possível que esteja toda a gente a gostar tanto desta chachada?”, sussurrou, furioso, para o seu amigo perseguido e anónimo.

    Rushdie nem moveu um músculo da cara.

    “Porque as pessoas têm mau gosto,” respondeu, tranquilamente, ao seu benfeitor. “Ah, por favor, vamos lá – não me diga que não sabia!”


    Esta historinha de perfeito tiro ao alvo vem, ainda, a propósito do tal já mencionado comediante português sem escrúpulos sobre quem nunca ninguém lançou uma fatwa[3] mas que bem a merecia. De cada vez que alguém mete ao bolso rios de dinheiro para mentir aos portugueses[4], que são tão crédulos como qualquer outro povo ocidental e portanto acreditam mesmo na publicidade[5], está a aceitar comprometer-se com um crime tão vil que merece certamente um castigo duro, mesmo que não seja uma pena de morte.

    CPC em 1998, completamente a fazer-se ao mau gosto
    Ai isso é assim? Então depois não te queixes, minha filha.

    Quando falo de casos como este costumo nunca mencionar os nomes das pessoas, nem da “chachada” falante a que pertenciam quando disseram a sua frase ofensiva, nem da localização geográfica em que esse grupo reunia. Faço isto por uma razão muito simples: o que me interessa é o caso em que si, e não a distracção dos leitores com o nome próprio dos protagonistas, que não é, de todo, o que interessa para o que a história nos oferece de mais revoltante, de mais louvável, ou passível de mais perturbação. Desta vez, no entanto, vários colegas do PÁGINA UM insistiram para que eu falasse do comediante por nome e apelido[6], desmistificando a suposta piada da criatura, e rematando, com curiosa frequência,

    Detesto esse gajo!

    É boa, também eu. Mas tu detestas o gajo porquê?

    Porque ele não tem qualquer espécie de graça! Só diz piadas destinadas a chincalhar outras pessoas. Isso nem sequer é humor, é mau gosto puro e simples!

    Pois é. E então, como nos ensinou Salman Rushdie, batam no peito e reconheçam as vossas culpas: as piadas deste senhor correm-lhe bem, e as pessoas acreditam nele tal como acreditam na publicidade, porque as pessoas têm mau gosto. A culpa não é dele: é das vastas maiorias que lhe acham graça. E, enquanto não sairmos deste atoleiro, bem podemos dizer uns aos outros que “detestamos o gajo”, bem podemos lançar-lhe fatwas intelectuais[7], que nada sairá do seu lugar. O nosso verdadeiro desafio é este: como é que podemos ajudar na cruzada para que que as pessoas não tenham mau gosto – e, por decorrência, não acreditem na publicidade?

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Os editores do livro também foram condenados por ajudarem a difundir uma mensagem herética, mas com muito menos alarde. Se um castigo deste tipo, que se mantém em vigor nos nossos dias, é ou não um exemplo de fatwa, bom – isso tem sido debatido de forma muito aguerrida pelos académicos do islamismo desde 1989, e continua a sê-lo.

    [2] A propósito, vocês leram o livro? É que eu, por acaso, li – naqueles seis meses que decorreram ainda antes de a obra se transformar numa moda que era um exemplo de coragem depois da condenação à morte do seu autor. Confesso que foi uma desilusão, levada até ao fim só mesmo por teimosia, e talvez por qualquer esperança pateta de que a luz surgiria precisaria no fundo do túnel. Quer dizer, se é pela sua literatura que um homem vai ser universalmente condenado à morte, então que seja por um trabalho verdadeiramente grandioso. Não é minimamente o caso. Perturbantes, estranhos, dignos de serem lidos e relidos, só mesmo os versículos propriamente ditos. Mas esses, ao que nos dizem, são da autoria do Profeta. Tudo o resto fica muito aquém. E é pena.

    [3] Nem todas as fatwas são penas de morte, mas todas são penas severas.

    [4] E aqui a mentira era extremamente grave, porque se destinava a garantir aos portugueses que não havia que ter medo de manter contas a prazo no BES, que afinal veio a falir uns quantos meses mais tarde. Milhares de portugueses ficaram depauperados de um dia para o outro sem a menor compaixão nem do Estado nem do Banco de Portugal. E o director desta trama infeliz, que entretanto tinha desviado centenas de milhares de euros que não lhe pertenciam para uma conta em Singapura onde ninguém pode tocar-lhes, continuou a passear-se por aí, protegido por dois guarda-costas com todo o ar de terem acabado de sair das fileiras da MOSSAD, e com um ar que era de tudo menos de compaixão. 

    [5] Porque é que as pessoas acreditam na publicidade? Bom, isso é tema para psicanalistas e eu remeto-me à minha insignificância. Mas nunca hei-de esquecer o fascínio com que os portugueses acompanhavam as aventuras da vida de uma tal Raquel, uma jovem e bonita grande profissional com marido e filhos, que conseguia resolver todos os seus problemas quando o país sufocava nas garras da troika porque fazia todas as suas compras no Continente. Isto é pérfido. Muito pérfido. O Continente sabe, tal como sabia quem quer que fosse que pagou ao comediante para dizer num falso debate televisivo que tinha uma conta a prazo no BES e estava descansado da vida. Se fôssemos inspeccionar o caso agora, provavelmente nem nunca teve lá conta nenhuma.

    [6] Depois de muita reflexão, não, não, e não! Tenho um estilo, e vou respeitá-lo.

    [7] Bastava nenhuma editora aceitar os livros dele, com aquelas fotos tipo Adam Sandler na capa. Já era um favor enorme.

  • Fechar tribunais!

    Fechar tribunais!


    A Tomada de Posse dos novos elementos do Conselho Superior da Magistratura teve um momento inesperado.

    O novo Vice-Presidente, Conselheiro Luís Azevedo Mendes, garantiu que iria interditar todos os Tribunais que não reunissem as condições para funcionar.

    Pensei, de imediato, em mudar de profissão.

    Luís Azevedo Mendes, vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura.

    Montaria uma empresa de taipais, contrataria uns milhares de funcionários e, dentro de poucos meses, estaria rico.

    É só imaginar o número de janelas e portas de tribunais que haveria a tapar ao longo do País!

    Não sei, mesmo, se algum continuaria aberto, se levadas a sério as intenções do novo Vice-Presidente.

    Com a continuação do discurso percebi que o senhor Conselheiro se referia, somente, à falta de condições físicas, equipamentos e meios de trabalho dos tribunais, deixando de lado o que se refere à competência de magistrados, funcionários e outros profissionais que os enchem diariamente.

    Reduzindo desse modo, substancialmente, o número de potenciais encerramentos.

    Ainda assim, talvez se justificasse o investimento necessário à abertura da tal empresa.

    Até porque esta exigência, do Senhor Conselheiro, poderia fazer escola e levar a que responsáveis de outras áreas, igualmente carenciadas, lhe seguissem o exemplo.

    brown wooden tool on white surface

    Imaginemos o encarregado da Saúde a percorrer hospitais e postos médicos do país. Quantos consideraria ele que reuniriam as condições necessárias, em espaços físicos e equipamentos, para continuarem abertos?

    E o da Educação, que ideia faria das falhas nas escolas e liceus deste país?

    O responsável da Segurança Social, fará ele a mais pequena ideia do que se passa nos lares de idosos, explorados (e nunca uma palavra foi tão bem aplicada) por gente a quem só o lucro interessa?

    Saberá ele das condições, à margem da Lei, em que vivem os nossos “mais velhos”, muitos deles depois de dezenas de anos de trabalho intenso?

    Se em todas as áreas fossem seguidas as pretensões que o Senhor Conselheiro tem em relação a alguns tribunais, as cidades portuguesas passariam a ter dezenas de edifícios encerrados, a sete chaves, por falta de condições.

    Não querendo sair da área da Justiça, poderíamos pedir, ao Senhor Conselheiro, que fizesse idênticos reparos e exigências, às falhas físicas e equipamentos noutras casas ligadas ao sector, embora não frequentadas pelo Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura.

    Desde logo, as esquadras policiais e postos da GNR.

    Saberá como trabalham estes homens?

    Como são os espaços físicos que ocupam, os equipamentos e viaturas que utilizam.

    Algum vez, mesmo na campanha eleitoral (que, parece, foi o momento em que detectou os problemas nos tribunais), entrou nos espaços destinados a agentes e militares que ali têm que pernoitar.

    E as prisões?

    Visitou alguma?

    Sabe como vivem os cidadãos em reclusão?

    Acreditará que, na prisão da capital (o Estabelecimento Prisional de Lisboa), situado numa zona nobre da cidade, ao cimo do Parque Eduardo VII e ao lado de um dos Tribunais mais concorridos do País, há reclusos que vivem em celas sem vidros, com os fios eléctricos descarnados, com a água a escorrer pelas paredes, com um buraco ao fundo da cama, no lugar onde antes havia uma sanita, e que o recluso tem que tapar, de noite, com uma garrafa de água, para as ratazanas não entrarem, por ali, no seu espaço?

    Mesmo os que pensam que os reclusos devem ser tratados como cidadãos de segunda não deixarão de reconhecer que as prisões em Portugal estão ao nível da época medieval.

    Compreendo que o Senhor Conselheiro queira tribunais mais eficazes mas, para tal, deveria ter ido mais longe e exigir aquilo que realmente seria importante. Que, para além da melhoria de equipamentos e instalações se exigisse uma selecção mais rigorosa para magistrados e funcionários judiciais.

    Para que tal pudesse acontecer, como é lógico, haveria que melhorar, em primeiro lugar, o nível de quem nos dirige.

    A começar pelo Governo, claro.

    Tarefa difícil atendendo às alternativas.

    Ainda se pudéssemos fazer como os responsáveis das equipas de futebol, quando sentem a necessidade de as melhorar, e ir buscar alguns Ministros e Secretários de Estado, já não digo a países como a Inglaterra ou à Alemanha, mas mesmo à Serra Leoa ou ao Burkina Faso…

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O circo da estabilidade, por Marcelo Rebelo de Sousa 

    O circo da estabilidade, por Marcelo Rebelo de Sousa 


    Terminei a minha coluna de opinião de quinta-feira passada apostando que Marcelo, na sua comunicação ao país, diria, essencialmente, nada. Bem sei que não é preciso ser um Zandinga de Cacilhas para prever os movimentos do previsível e calculista Presidente da República. Ainda assim, tinha a secreta esperança que o mais famoso comentador do país usasse o segundo mandato para agir mais e olhar menos para barómetros.

    É um dado adquirido que Galamba mentiu e não tem, de qualquer ponto de vista, o mínimo aceitável para se manter em funções. Mas não é só este caso que deveria ter feito Marcelo ganhar alguma coragem. O PS, com uma maioria que anunciava estabilidade, anda a saltar de escândalo em escândalo e a passar à opinião pública (e publicada) que manda e gere o país como um senhor feudal.

    O PS governa sem dar contas, sem se preocupar com quem os elegeu, sem sequer ter alguma vergonha na gestão dos escândalos. É uma espécie de bar aberto, à boleia da TAP, onde o país se senta para discutir membros do Governo e jogos políticos de bastidores, em vez de abordarmos os problemas que nos afectam.

    Há um exército de insatisfeitos que vão prometendo votos na extrema-direita. Há professores em luta pela reposição dos direitos, há meses e meses, sem conseguirem chegar a bom porto nas conversações com o governo.

    Ouvem-se novas promessas de crise no sector imobiliário, e mais famílias a perder a casa. 

    A inflação baixa lentamente, apesar dos cortes a direito do Banco Central Europeu, e ir ao supermercado continua a ser uma aventura.

    10 and 20 banknotes on concrete surface

    A inflação nos produtos alimentares continua nos dois dígitos. Os salários, para quem teve aumentos, não subiram mais dos que 2% ou 3%.

    Continuamos em perda, a empobrecer todos os meses e a viver de subsídios ou ajudas sociais pontuais. 

    Costa gere crises e navega a nau sem grande rumo à vista. Gasta os créditos da estratégia em lutas internas, mas não parece ter um plano para o país.

    Era isto que devíamos estar a discutir e não o membro A ou B do Governo. Não são os jogos políticos que importam ou sequer quem deles sai mais fortalecido no xadrez eleitoral.

    A vida das pessoas não é um braço-de-ferro entre Belém e São Bento. 

    brown deer on green grass field during daytime

    António Costa foi a jogo e pediu a Marcelo que mostrasse as cartas. Marcelo encolheu-se e perdeu. A algazarra deu para comentários nas televisões e homílias sobre o novo estadista descoberto no Largo do Rato.

    Entretanto, chegou segunda-feira e todos os problemas, os reais, continuam por resolver. Marcelo disse que queria ser um garante de estabilidade, mas, como podemos ver, um Governo de maioria não significa necessariamente estabilidade.

    No caso do PS, este Governo de António Costa é apenas um garante de arrogância, quero, posso e mando. 

    Estamos agora a pagar as políticas desastrosas da pandemia, com atrasos na formação dos alunos, salários congelados, empresas encerradas e uma dívida externa que aumentou. Uma carga fiscal recorde e cada vez menos serviços públicos em troca.

    a large circus tent with lights around it

    O país está um pântano, um caos, um atoleiro de empobrecimento. A única estabilidade que Marcelo garantiu foi esta: seguirmos no mesmo lamaçal.

    Quando chegarmos a eleições serão, contudo, os mesmos a conseguir o poder, mas Marcelo não verá o seu nome associado. Pois bem. Era, para além de ir ao Santini, o que verdadeiramente lhe interessava.

    Esperamos agora a ida do adjunto de Galamba à comissão de inquérito para um ajuste de contas e mais umas horas de debate.

    O circo da estabilidade pode continuar. As vidas reais e o sofrimento do quotidiano, que esperem mais um bocadinho, não é?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Do espírito de equipa (ou do Dia do Trabalhador)

    Do espírito de equipa (ou do Dia do Trabalhador)


    Em Outubro de 2017, à pergunta sobre os baixos salários na Padaria Portuguesa, respondia Nuno Carvalho, um dos donos da empresa, o seguinte:

    Apresentamos um plano de integração e de formação, damos oportunidades de carreira – vários chefes de fábrica entraram como operários a ganhar 580 euros e recebem três vezes mais agora. Também temos uma série de regalias. Fazemos investimento a sério nas pessoas: uma vez por ano juntamos todos os trabalhadores num arraial de verão e fechamos as lojas mais cedo. Mensalmente, reunimos com as equipas de gestão de loja, de forma absolutamente informal, fazemos um piquenique no jardim da Estrela, onde ouvimos inputs sobre o negócio, até mesmo sobre políticas salariais. Cada vez que nasce um bebé, oferecemos um creme e um babygrow e escrevo um postal de aniversário personalizado a cada um dos trabalhadores. Temos estes cuidados. Somos muito informais e tratamos as pessoas como pessoas. Criamos um espírito de equipa que vale muito mais do que a remuneração base.

    people building structure during daytime

    Esta resposta, só por si, explica a miséria laboral em que se tornou Portugal. Quase seis anos depois, nada mudou – e mais, até fez escola. Postais personalizados, espírito de equipa, cremes e piqueniques: tudo menos um salário digno e justo. O sucesso das empresas em Portugal – lembremo-nos que a Padaria Portuguesa era apontada como um caso de sucesso e de inovação – assenta essencialmente em foguetório e em baixos salários. Palavras-chave de motivação (ou keywords cheias de team spirit, como nos diria o amigo Nuno) que levem as pessoas a gostar e vestir uma camisola de quem as explora.

    O primeiro de Maio, Dia do Trabalhador (não do colaborador) é, ainda, um momento de luta que não devemos desperdiçar ou sequer ignorar. É o dia em que nos lembramos de quem perdeu a vida em nome dos direitos que hoje damos como garantidos. E é o dia em que, olhando em redor, percebemos o que falta fazer nas relações laborais. É um dia que deve ser de tomada de consciência colectiva perante o assalto a que a classe trabalhadora tem sido sujeita.

    A Função Pública perde poder de compra há mais de 10 anos e, no sector privado, recém-licenciados trabalham por autênticas esmolas. Há um sector da população que trabalha sem conseguir sair da pobreza, um conceito surreal num país de Primeiro Mundo, e outros que se limitam a produzir a troco de um salário que lhes permite somente pagar as contas.

    Isto não é viver – quando muito é sobreviver, é subsistir, é não desistir. É resignar-se.

    Portugal é hoje, visto de fora, como um sítio de mão de obra qualificada de baixo custo. Aliás, já um ministro dos Negócios Estrangeiros nos publicitou dessa forma, procurando atrair investimento numa visita oficial de Estado a um país rico.

    De cada vez que se fala em aumentar o salário mínimo, lá aparece o presidente da CIP ou os CEOs dos grandes grupos com a habitual lengalenga: “o salário mínimo tem de ser indexado à produtividade”. Este é um mantra que se aplica a quem trabalha, a quem depende de um salário para viver. Não se aplica a gestores de topo ou a accionistas parasitas que recebem dividendos dê por onde der. Lembremo-nos do BES, há mais de uma década a receber dinheiro do Orçamento de Estado, e ainda há pouco tempo nas capas dos jornais pelos prémios fabulosos que repartia pelos seus administradores.

    O primeiro de Maio devia recordar à classe trabalhadora que ela é a maioria – que, sem ela, nada se faz, nada se transforma, nada se produz. Abusos como aqueles que vemos diariamente, com tentativas constantes de validar baixos salários, deveriam ser contestados nas ruas. Sempre que um liberal nos diz que as empresas é que geram emprego, alguém lhe devia gritar, com um megafone aos ouvidos, que os trabalhadores é que criam as empresas. Uma empresa sem trabalhadores chama-se prédio. Normalmente vazio. Produz, quando muito, pó.

    a large room with pillars

    Não é fácil perceber que, em Portugal, praticamente oferecemos a nossa força de trabalho. E isso é particularmente grave para quem tem nela, na força de trabalho, a única moeda de troca e o único garante de sustento. Há muito que ultrapassámos os padrões mínimos de dignidade e, por mais que tentem, não há justificação para tamanha precariedade e pobreza ao fim de 35 anos na União Europeia. Não há. São precisos vários Governos de uma incompetência atroz para que. hoje, trabalhar em Portugal seja um exercício de masoquismo.

    Reconheço não ser fácil perceber esta realidade quando nos comparamos com os nossos amigos, colegas, familiares. Todos na mesma cidade, todos mais ou menos dentro do mesmo sistema capitalista de exploração e lucro à custa dos baixos salários. É preciso sair da zona de conforto, ver outras realidades e perceber que é possível gerar riqueza e distribuí-la por patrões, funcionários e Estado de uma forma mais equilibrada. É possível trabalhar e viver bem. A classe média devia ser o nosso ponto de partida, não o objectivo final.

    A pressão para o aumento do salário mínimo destes últimos anos é uma alavanca essencial para a defesa dos trabalhadores. Se quem investe não percebe que, a longo prazo, o modelo das baixas remunerações tem os dias contados – porque o capital procura sempre um povo ainda mais pobre –, então é o Estado que deve meter essas barreiras. Em vez de aumentar impostos, deve, isso sim, criar as condições para que o salário mínimo permita uma vida digna. Coisa que hoje, apesar do esforço de alguns partidos de esquerda, ainda não existe.

    man in white shorts carrying a child in white shorts

    O trabalho é a nossa contribuição para o Mundo. Seja qual for, onde for, mais ou menos elaborado, todos somos necessários. Não existem profissões menores ou trabalhadores dispensáveis. Aquilo que existe, e muito, é uma falta de consciência da classe trabalhadora. Do seu poder, da sua importância, da sua força.

    Com um mundo em transformação, depois do ataque aos direitos básicos durante a pandemia e, agora, a continuação da perda de direitos laborais e capacidade de poder de compra, nunca a união entre trabalhadores foi tão necessária.

    Tenhamos consciência colectiva e ninguém, absolutamente ninguém, nos poderá vencer nesta guerra. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.