Temos pois um Portugal com gente com má saúde. A saúde oral é um estado calamitoso. A saúde mental é uma amargura. A nutrição é a rainha de uma epidemia multipatológica, que envolve os excessos de hidratos de carbono, a falta de verdura, a má confecção de alimentos, e claro, a obesidade como fonte da diabetes, da hipertensão, da obstipação, da dor nos joelhos, das doenças psiquiátricas, das doenças inflamatórias intestinais.
A falta de exercício, a ausência de incentivo ao desporto, quer escolar quer nas instituições, carrega consigo inúmeros problemas como ausência de incentivo à elegância postural, ausência de formação para carregar pesos, ausência de conhecimento mínimo sobre as consequências de uma má cadeira, de um computador mal colocado, um esforço mal doseado ou medido, uma tarefa em posição viciosa. As baixas por dores são inúmeras, as de inadaptação psíquica estão a aumentar, os males da alma, e as teimosias dos trabalhadores também não ajudam.
Retrato do Midjourney imaginando um hospital caótico em Portugal.
Tudo isto, que é do domínio da prevenção, da educação e da formação pré-hospitalar; aquilo em que o Partido Socialista menos tem investido, e que mais lucros traria ao país e à população, foi até agora deixado ao Deus dará – Diz que Deus diz que dá, mas para já… demagogia.
Com toda esta patologia, os doentes procuram diagnóstico e tratamento e poderiam recorrer a vários lugares – consultórios médicos (como em França e no Luxemburgo, onde o dinheiro segue o doente), clínicas, centros de saúde, medicina de proximidade.
Esta podia ter a possibilidade de activar meios complementares de diagnóstico céleres e também próximos. Podia ainda ter facilidade de encaminhar para resolução em clínicas aquilo que não é grave, mas é urgente pois condiciona dor, grande desconforto, apesar de não colocar a vida em risco.
Esta opção de não usar recursos privados ou das misericórdias, ter construído um cem número de dificuldades à pratica livre da Medicina e Enfermagem, foi a estratégia socialista contra os pequenos. Um tema que não vem ao caso, mas que importa recordar: matar a farmácia, a loja, a mercearia, o consultório é uma ideologia em favor dos negócios, dos grandes donos do mundo actual, que tem certificações, taxas, exigências ao nível do absurdo, entidades e administrações a comprometer a via aérea dos pequeninos. Claro que não respiram.
Esta realidade veio com a estratégia de reduzir camas, destruir a assistência pública de proximidade – os tribunais nos Concelhos, os hospitais das comarcas, os postos de atendimento permanente e as escolas das aldeias. Em favor de uma escala maior, que tem obviamente vantagens e desvantagens. Em Saúde as desvantagens estão a descoberto – não tendo onde ir vai-se à urgência. A urgência de hoje é como ir “ao Inter” ou ao Pingo Doce.
Os próprios doentes, desprovidos de qualquer limite, utilizam indevidamente um recurso que agora começa a queimar–lhes o futuro. Fechando urgências grandes, vai morrer primeiro “gente pequena”. A “gente grande” tem recursos para outros voos, numa fase inicial. É por isto que o Estado deve ter estratégias, perceber os sistemas reguladores, as lideranças que identificam os problemas e os tentam equilibrar.
Os primeiros passos para reduzir este afluxo desmesurado está na coabitação público-privada, na colocação de taxas de utilização, na construção de melhores fluxogramas de atendimento e protocolos de orientação. Formação de médicos para urgência é importante também.
O fim das parcerias público-privadas (PPP) foi uma catástrofe para Loures, Vila Franca de Xira e Braga. Os centros hospitalares reduziram camas, aumentaram listas de espera, afastaram dos cuidados milhares de doentes. A aposta nos cuidados continuados é uma das grandes falácias que empurra os doentes para unidades onde não há qualquer tratamento de situações agudas, retirando o cuidar das famílias, transferindo para “lares caros” internamentos eternos e nas mãos de negócios, esgotando recursos válidos do lugar onde deviam estar.
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Primeiro, acordar claro. Ou adormecer, dependendo de quando nos assalta, em vagas, em assombros, ondas de uma aflição inexplicável que nos corta o ar (e corta ao meio), punho firme que nos agarra e segura violentamente pela cavidade torácica.
Uma explosão, um disparo, paredes a esburacar e a poeira, a poeira, a poeira, a misturar-se com o nosso suor e uma lágrima confusa (doeu), a guerra, a guerra, a guerra (tantas guerras).
Alguém fez a pergunta: porquê tantos homens em idade e corpo de soldados, ali a arrochar nas costas do Mediterrâneo? Exauridos (os homens fugindo da guerra, a guerra fugindo dos homens), e as mulheres que carregam filhos nos braços e rasgam os joelhos na fuga?
Ver é um exercício. Tomamos como certo que nos é dado, pronto, sem necessidade de aperfeiçoamento ou silêncio.
Ver.
Primeiro, tudo.
Conhecer o corpo ao nosso lado, deixar que um coração ouça o outro a bater. Cheiros, gestos, respirações e a alma dos intestinos a regurgitar medos. Conhecer a casa da alma, desenhar os contornos de memória e saber onde vive cada espaço. Que cor tem cada sala.
E ouvir. Saber que tonalidade de acorde segura as notas atrás das paredes (edifica-me, eu sou música e tu não sabes ler pautas) que tormenta, tormenta, tormenta… (e o punho firme a trepar a pescoço).
Voltamos aos ângulos mortos, mais uma urgência.
A diferença entre torres (colmeias) de casinhas empilhadas e as almas ali, todas encaixotadas como no cemitério, confusas de tantos corações a bater, tantos corações a gritar, tanto ar a quitar-se (urgência) e as casas deitadas a repousar ossos cansados na terra, a descarregar na fornalha nuclear do mundo, os mundos todos que nos habitam, povoam, infernizam (dorme, vai a casa e dorme, não passes só por lá, toca alguém no caminho, não vivas sozinho).
Não tenho opiniões. Talvez tenha lamentos. Desculpem, não tenho, já chega de opiniões. Passaram a ser tantas, tantas, tantas (e a guerra, a guerra, a guerra).
Que vorazes as máquinas estão, a devorar as nossas palavras, a sugarem-nas até já nascerem sem significado, aguadas, finas, ruído de estática em fundo. A sobranceria da era dos andróides que fingem ser meninos de verdade.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
O Orçamento de Estado é, indiscutivelmente, um dos principais documentos políticos, elaborado pelo Governo, para posterior análise e aprovação da Assembleia da República.
Nele são definidas as grandes prioridades do Executivo e é a sua leitura que permite saber, com exactidão, quais as reais prioridades de quem nos governa pois ali são discriminadas todas as verbas destinadas a cada um dos sectores da nossa vida em comum.
A leitura atenta e a análise profunda, são uma obrigação óbvia dos políticos de todas as tendências, mas também dos empresários, sindicalistas, economistas, jornalistas e, de um modo geral, de todos quantos se preocupam com o dia-a-dia do País.
A verificação, até ao mais ínfimo pormenor, que pode até ser considerada científica, é uma obrigação para quem tenha como intuito uma carreira política.
Até porque, é sabido, o Orçamento de Estado é analisado, com toda a minúcia, também na Comunidade Internacional, em geral, e na Europeia em particular.
A Oposição espera, com ansiedade, a divulgação do documento.
De um modo geral para poder demonstrar as divergências que tem com o Executivo na escolha dos principais objectivos e nas verbas a atribuir a cada área.
A população, nomeadamente a mais esclarecida, fica a aguardar as explicações do Governo, que tentará provar o rigor e a correção das suas opções, mas também, as críticas da Oposição indicando eventuais más escolhas nas preferências do Executivo.
A apresentação do Orçamento para 2024 não fugiu à regra.
Logo após a entrega na Assembleia da República, e distribuído pelos Grupos Parlamentares, o Orçamento começou a receber todo o género de críticas.
A primeira surpresa veio da velocidade com que os deputados conseguiram ler um documento extenso e que, como ensinam na Faculdade, “contém três documentos essenciais: a Lei do Orçamento do Estado, o Relatório Descritivo e os Mapas de Previsões”, sendo que “cada um destes documentos desempenha uma missão fundamental para a rigorosa e organizada gestão das finanças nacionais, sendo alvo do escrutínio e análise das diferentes instituições democráticas. O conjunto de todos os documentos, com diferentes graus de detalhe, reúne não só informação analítica relacionada com o Orçamento, mas também várias definições estratégicas e políticas que estão na sua base.”
Nada que deputados, e líderes políticos, não tenham conseguido apreender em poucos minutos.
Ouvi, atentamente, os representantes de todos os partidos na Oposição.
De um modo geral foram muito críticos aos autores do documento e prometendo, desde logo, um inócuo voto contra a aprovação do mesmo.
Inócuo porque, tendo o Partido do Executivo uma maioria absoluta no Parlamento, o Orçamento será, evidentemente, aprovado.
Ainda assim, ouvi com interesse e toda a atenção, as críticas sendo que, com muitas delas, estava de acordo.
Aguardei, com pouca expectativa, reconheço, a análise do líder da Oposição que, por enquanto, ainda é o Presidente do PSD.
Por absoluta deficiência da qualidade da imagem do meu televisor, apareceu um catraio, vestido com um fato de treino, com um palito ao canto da boca, que definiu , deste modo, o documento:
“É assim uma espécie, mais uma vez, de um orçamento pipi, de um orçamento que aparece bem vestidinho, muito apresentadinho, mas que é só aparência, é assim muito betinho.”
Os responsáveis de Escolas e Universidades, Hospitais e Centros de Saúde, Polícias e Forças Armadas, Investigação, Cultura, Desporto, Prevenção e Combate aos Incêndios, Transportes Públicos e Justiça ficaram esclarecidos sobre a alternativa ao Governo actual.
Este candidato a Primeiro-Ministro de Portugal já tinha aparecido, há dias, nas televisões, para dar a sua opinião sobre as diferenças políticas entre o Partido Socialista e o Chega.
Dizia o rapaz de fato de treino e palito ao canto da boca, que António Costa e André Ventura eram “um casal de namorados que andavam aos beijinhos um ao outro” só para fazerem ciúmes ao seu Partido.
Como ninguém tem coragem para o impedir de se chegar a um microfone só espero, para bem de todos, que este Governo tenha, no momento do debate sobre o Orçamento para 2025, um outro líder de Oposição e que esse não se veja forçado a descer de um andaime de obras para falar em nome do seu Partido.
Vítor Ilharco é assessor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Ora muito bem, eu conto-vos só esta e depois baixo os braços. Se por esta altura os “comentadores” e “analistas” de Portugal ainda disserem que a América está em crise por causa da guerra na Ucrânia, o que é que eu posso dizer mais? Posso sugerir-vos que não acreditem nas pessoas que supostamente estão ali para vos explicarem todos os movimentos de rotação da Terra em torno do seu eixo, e sei que é uma sugestão muito chata. O pior é que é verdadeira. A nuvem negra que paira hoje sobre a América não é uma invenção de Zelenski. Como se até o movimento de translacção da América em torno do Sol estivesse em risco, o que paira verdadeiramente sobre the home of the free and the land of the brave[1] é o fantasma eterno de Donald Trump. O seu, e o de todos os seus imitadores.
Lembram-se do Jair Bolsonaro?
Jair Bolsonaro, evangélico, indiferente ao COVID, e ex-presidente brasileiro, nem sequer fala inglês. Por isso, não sabemos se alguma vez alguém o acordou das suas fantasias de criança, e lhe revelou a triste realidade. Acontece que, excluindo os analistas políticos especializados em América do Sul, não existe nenhum americano, mesmo entre aqueles que sabem quem é o Neymar[2], que entenda seriamente quem foi o Jair Bolsonaro. E Donald Trump, que é um imbecil autocentrado, também não sabe. Durante quatro anos teve um wanna-be[3] na presidência do maior e mais populoso país da América do Sul, e nunca soube.
Se calhar os seus homens de mão fizeram de propósito para que ele não soubesse, e o facto de Bolsonaro nunca invocar o seu nome em público contribuiu para este jogo de sombras. Imaginem o que Trump poderia fazer se soubesse que tinha um aliado em Brasília. Um homem que, tal como ele, se estava bem a cagar para o ambiente porque o longo prazo não podia ser-lhe mais indiferente.
Como já vos disse, importante mesmo, para Bolsonaro, era o dinheiro vivo[4]. “Querem que eu proteja a Amazónia, porque é o pulmão de todo o planeta? Então porreiro, paguem-me para que eu a proteja!”
Agora imaginem que Donald Trump sabia disto.
Imaginem a aliança entre os dois ditadores, provavelmente negociada em grande secretismo porque o povo continuava estupidamente convencido de que o seu regime ainda era uma democracia.
Vamos lá, Jair, há prioridades.
Importante, mesmo, é envenenar já o tal de rio que corre pelo meio da Amazónia, e a que vocês chamam Amazonas porque não têm qualquer espécie de imaginação. Toda a gente me diz que aquela porcaria está cheia de piranhas. Há vídeos no YouTube em que aparecem uns porcos muito grandes da selva[5] que não passam de uma margem para a outra porque as piranhas os devoram pelo meio. Já vi uns filmes de uma série chamada PIRANHA! São piores do que os tubarões. Assim ninguém ia querer fixar-se ali.
Provavelmente, e com a benção de Bolsonaro, depois de afogadas todas piranhas[6] Trump teria mandado uns quantos batalhões de Forças Armadas para a Amazónia, com instruções para pilharem todas as riquezas da floresta e assassinarem todos os seus índios. A seguir, prontos para a jogada mais difícil de todas, juntavam-se aos colonos e boieiros brasileiros na tarefa árdua de deitarem fogo a todas aquelas malditas árvores com sete andares. “They’ll be met with fire and fury, the likes of which the world has never seen,” lembram-se[7]? Donald Trump adora dizer estas coisas. Agora poderia transformá-las numa realidade fantástica. Tanto fogo. Tanto fumo. Fogo e fúria nunca antes vistos, subitamente acesos como um sinal de alarme por uma floresta equatorial inteira que começou, por fim, a arder.
Os habitantes do mundo inteiro haviam de passar meses a ver auroras boreais nunca antes vistas, o Sol a e Lua a nascerem verdes ou azuis contra um céu completamente branco, seguido de riscas vermelhas, laranja, e amarelas, como aconteceu depois dos dois dias da erupção na Indonésia do vulcão Krakatoa em 1883, com um estrondo que se ouviu até à distância impensável de Alice Springs, mesmo no centro do outback australiano, e com uma violência que ainda perdura enquanto das maiores desde que existem registos. O abalo que esta erupção causou no mundo, todas aquelas cores impensáveis no céu, acabou por chegar à Noruega e levar Edvard Munch a pintar o famoso quadro O GRITO. Todas aquelas cores por trás do homem que grita, misturadas de lampejos de azul que por vezes tentavam repor a normalidade, eram as verdadeiras cores do céu sobre os fiordes.
“Foi como se uma espada de fogo em chamas arrombasse as portas do Céu,” recordou o pintor; “a atmosfera transformou-se em sangue – com línguas de fogo brilhantes – as montanhas ficaram de um azul profundo – entre as cores amarelas e vermelhas – as caras dos meus companheiros tornaram-se amarelas e brancas – senti qualquer coisa que era como um grito enorme – e ouvi, verdadeiramente, um grande grito.”
Pessoal, o Krakatoa era só um vulcão, e a sua erupção foi só de grau seis. Agora imaginem todas as árvores da Amazónia a arder, todas ao mesmo tempo: o Sol e a Lua estariam verdes e azuis durante meses e meses sem fim. O céu havia de tingir-se de laranja, vermelho, amarelo, e algumas brechas de azul, que chegariam até à Islândia, como chegaram as auroras boreais do vulcão. Num deserto qualquer, no alto de qualquer rocha, havia de reaparecer a imagem da Tina Turner rodeada de crianças. E haviam todos de cantar o WE DON’T NEED ANOTHER HERO, porque o planeta inteiro era agora a casa do Mad Max, Deus sabia, e encarregou-a de nos deixar um aviso sem margem para dúvidas.
Todos nós saberíamos que estávamos condenados à morte.
Entretanto, tranches enormes daquela terra incrivelmente fértil haviam de transformar-se em monoculturas intensivas, porque seriam distribuídas por agricultores e criadores de gado americanos. Talvez até fossem duplamente beneficiados nos impostos, em troca de ferramentas e de know-how com os seus pares brasileiros. Não estou a inventar grande coisa. A Amazónia só entrou no rol das enormidades proferidas pelo evangélico no seu último ano de mandato. Bastaria que tanto ele como o Trump tivessem sido reeleitos. Depois disso… bom, entre regimes ditatoriais é assim que se processam as trocas de favores. E, à época, nos dois países, a ditadura era para lá de um projecto. Era uma medida urgente a implementar desde logo, ou então ninguém se entendia. A democracia é o convite ao caos, como toda a gente sabe.
Os americanos podem não saber grande coisa sobre o Bolsonaro, mas foram treinados desde pequeninos para serem optimistas. Esse gajo, os brasileiros já correram com ele, não foi? Nós também corremos com o Trump. Então pronto. O caminho é para a frente, não é para trás.
E agora digam-me, com toda a franqueza: os americanos são umas bestas porque não sabem quem foi o Jair Bolsonaro?
Se calhar são. Mas, mas durante o segundo mandato de Barak Obama, quando eu estava a trabalhar na UMass, cantava gospel na Igreja Africana e fui com eles a todas as manifestações do BLACK LIVES MATTER a que consegui ir. Depois ligava o Messenger, ou chegava fisicamente a Lisboa, falava do BLACK LIVES MATTER e ficava toda a gente a olhar para mim.
BLACK LIVES MATTER?
O que é isso?
Acontece que “isso” foi muito mais importante para os desígnios do mundo do que a sanfona que acompanhou os discursos do Bolsonaro no auge da pandemia. Aliás, foi o início de uma crispação tão profunda que permitiu a eleição de Trump, porque, desta vez, os negros não foram votar. Para quê? Terem um presidente negro estava a virar-se contra eles. Houve um linchamento no Mississipi. Três dias depois, houve outro no Alabama. Embora alinhar na festa, pessoal?
Os polícias brancos, profundamente ressabiados por terem um preto na presidência do seu Grande País, não aguentaram a segunda eleição e divertiram-se a matar a tiro os putos negros que lhes aparecessem ao caminho. Em Cleveland, chegaram a matar a tiro um menino negro de doze anos que andava num parque público a brincar com uma bisnaga. Mataram, mataram, e mataram. Sempre polícias brancos. Sempre vítimas negras muito jovens.
Em última análise, este sangradouro acabou por inspirar um rapaz branco que, aos dezoito anos, recebeu como prenda do pai uma Beretta clássica, toda recuperada, toda a cintilar. Disse aos amigos que ia iniciar uma guerra civil, vestiu um blusão do antigo uniforme da Rodésia, entrou pela Igreja Africana adentro porque sabia que, àquela hora, naquele sítio, o pessoal estava reunido com o pastor a estudar a Bíblia – e, quando abriu fogo, matou dezoito pessoas, incluindo o pastor e a mulher.
Acontece que, desta vez, o pastor e a mulher eram mesmo amigos lá de casa da Michelle e do Obama.
Quando o Obama chegou e se ajoelhou ao lado do caixão do seu amigo assassinado, começou por dizer, “meu amigo, meu querido amigo, a quantos funerais ainda terei que ir, para dizer que o direito a porte de arma não pode ser tão indiscriminado, para que os americanos parem de se matar uns aos outros. E que queres tu que eu diga agora aos americanos?”
E logo a seguir, para grande surpresa de toda a gente, começou a cantar o AMAZING GRACE com a sua voz bem timbrada de quem já cantou muito gospel na vida.
Eu estava a ver aquilo com duas amigas da Igreja Africana, a mesma Igreja onde o puto tinha acabado dezoito pessoas que podíamos ser nós. E, como não podíamos fazer mais nada, cantámos também. Soprano, contralto, e tenor.
Foi por causa do BLACK LIVES MATTER que os fundamentalistas elegeram o Trump. Já andam para aí pretos a mais que querem mandar em nós, topam?
Ficámos a saber que a América rebenta pelas costuras de fundamentalistas, e é por isso que agora todos os políticos têm medo da ordem de acção que o Trump pode dar a seguir.
Falei de alguma coisa que tivesse a ver com a Ucrânia?
Separem as águas, pelo amor de Deus.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] “Casa dos livres, terra dos bravos”: último verso do hino nacional americano.
[2] E o Cristiano Ronaldo, e o Lionel Messi, claro. Mas esses não são brasileiros, por isso não constam para esta triste estatística.
[3] O termo “wanna-be” usa-se para uma pessoa que quer ser igual a outra, portanto usa o mesmo corte de cabelo, a mesma roupa, o mesmo verniz para as unhas, e por aí fora. A desgraçada da Jackie Kennedy teve milhares de wanna-bes. Depois do assassínio do marido em Dallas, andavam todas com o mesmo chapéu e o mesmo tailleur cor-de-rosa que ela tinha vestidos na altura do tiro. Isto é tão comum que até a Michelle Pfeiffer fez de wanna-be da Jackie no dia fatídico de Dallas – e o resto do enredo não tinha absolutamente nada a ver com isso.
[4] Claro que não sabemos quanto desse dinheiro ele meteria directamente ao bolso. Mas não devia ser pouco.
[5] Trump está a referir-se às capivaras. As capivaras não são porcos.
[6] Ah-ah-ah! Como se fosse possível extinguir as piranhas no rio com o maior volume de água do mundo. Pura e simplesmente, mudavam de sítio e ficavam à espera. O que há mais na Amazónia é capivaras.
[7] Na altura era um aviso à Coreia do Norte, mas poderia ter sido a qualquer outro que não fosse a Rússia: “Vão encontrar fogo e fúria como o mundo nunca viu antes!”
“No passado, muitos déspotas e governos quiseram fazê-lo, mas ninguém compreendia o suficiente sobre biologia, e ninguém tinha meios computacionais e dados para hackear milhões de pessoas. Nem a GESTAPO, nem o KGB podiam fazê-lo. Mas, em breve, pelo menos algumas corporações e governos serão capazes de hackear sistematicamente todas as pessoas. Nós, humanos, temos de nos habituar à ideia de que já não somos almas misteriosas”. Estas sinistras palavras são do (também sinistro) historiador e escritor israelita Yuval Noah Harari – conhecido por best-sellers como Sapiens – numa reunião anual do World Economic Forum em 2020.
Mesmo com todos os progressos científicos, não sei se é verdade que já não sobra qualquer réstia de mistério ao ser-humano, mas, em todo o caso, parece-me que estas declarações são essenciais para entendermos a realidade actual e das últimas décadas. Desde logo, porque as palavras de Harari, proferidas no palco da elite que controla o Mundo a seu bel-prazer, mostra-nos – para quem queira ver e ouvir, em vez de enfiar a cabeça na areia – o futuro distópico que os nossos overlords têm planeado para nós. Não há como dizer que é teoria da conspiração; é abertamente assumido.
Mas a frase “nós, humanos, temos de nos habituar à ideia de que já não somos almas misteriosas” ecoou em mim, sobretudo porque é um ponto nevrálgico do monstro com que nos defrontamos. Sublinhe-se: quem manda em nós – Governos, grandes corporações, elites – conhece-nos de “ginjeira”. Para eles, somos como marionetas que manipulam habilmente através da propaganda, da comunicação social (por vezes, confundem-se), enfim, das acções que encabeçam. No fundo, há muito que já fomos manietados e “hackeados” por meio de técnicas sofisticadas de manipulação psicológica. Fazem de nós gato-sapato, levam-nos a caminhar em direcção ao precipício, sem que nos apercebamos, enquanto mantêm em nós a ilusão de que estamos a agir de livre vontade. Mas o nosso livre arbítrio é o mesmo dos habitantes da caverna da Alegoria de Platão, que julgam conhecer a realidade, quando apenas têm poder de vislumbrar as sombras.
Hoje, não há necessidade de instaurar uma ditadura no Ocidente. As mentes estão controladas, e por isso, as pessoas também. Julgamos eleger quem nos representa, mas o leque de candidatos que nos oferecem não representa os nossos interesses. Aqueles que estão na política para, de facto, servir o país, não têm grande margem de manobra – ou se portam bem e se conformam, ou são afastados. O poder apenas pode cair nas mãos de quem convém, e é isso que acontece, com a preciosa ajuda de uma comunicação social corrompida que os promove.
Os candidatos a governantes já foram há muito empacotados e estão prontos a servir no dia das eleições. A máquina de propaganda já tratou de os “vender”, para que possamos exercer a nossa “escolha”. Os exemplos deste processo são vários.
Mas olhemos para o nosso “pequeno mundo”, para o caso de Portugal.
Do lado do PSD, não parece arriscado apostar que Carlos Moedas sucederá a Luís Montenegro. Quanto ao Partido Socialista, ainda esta semana Pedro Nuno Santos inaugurou o seu espaço de comentário na SIC. O caminho rumo ao “trono” que António Costa ainda ocupa faz-se, assim, ao colo de supostos “jornalistas”. Na verdade, os mesmos que permitiram que o actual primeiro-ministro “açambarcasse” o poder com laivos ditatoriais, sem que fosse por isso mal visto – primeiro a António José Seguro, e depois a Pedro Passos Coelho. Na sua governação, pouco mais fez do que destruir o país, em uníssono com os interesses de organizações supranacionais.
António José Seguro, que de acordo com várias “fontes”, como se diz em ‘jornalês’, é uma pessoa (inconvenientemente) honesta, foi obliterado antes de ter sequer chance de se tornar primeiro-ministro. Chegou, aliás, a denunciar, numa entrevista, a existência de um “partido invisível na sociedade portuguesa, que tem secções em todos os partidos, fundamentalmente nos partidos do Governo”, e acrescentou que “é este poder fáctico que precisa de ser escavacado, de ser destruído”. Será que a sua posição sobre este “poder fáctico” teve algum peso no seu afastamento abrupto?
Porventura, o antigo líder socialista seria demasiado bom para governar – pelo menos, para a elite parasitária que se move nas sombras, para a comunicação social vendida, e para desgraça dos portugueses que, em vez de um político vertical, ficaram com um manipulador exímio que não olha a meios para atingir fins e que conseguirá dormir descansado enquanto vê o país a definhar e a apodrecer.
Talvez hoje, tenhamos perdido o “direito” de escolher um líder que, independentemente da sua ideologia, coloque os interesses colectivos à frente dos seus. Fala-se muito de uma “alternativa” ao Partido Socialista, e é verdade que parece não existir, nem à esquerda nem à direita. Nem tão pouco, arrisco dizer, nos partidos sem assento parlamentar. Mas, tendo em conta estes poderes fácticos que corroem a democracia, quem procura apenas uma alternativa ao Partido Socialista, falha o alvo.
Urge uma alternativa à corrupção e à subversão e que grassa em todos os partidos e demais agremiações de poder. Dito de forma simples, é preciso que o povo desperte do torpor, e que, pegando na afirmação de Harari que citei no início, devolva a “tirada” aos poderes instalados, e lhes diga: “têm de se habituar à ideia de que já não são um mistério para nós, e já não nos conseguem manipular”.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Desde segunda-feira, dia em que escrevi o primeiro texto sobre o mais recente episódio do conflito israelo-árabe, que tenho tentado acompanhar a situação através de meios de comunicação portugueses e estrangeiros. É extraordinariamente difícil perceber o que se passa no terreno porque sobram ideologias onde se espera informação. Não há a mais pequena dúvida sobre como este conflito é descrito pelo Ocidente. Com raras excepções, estamos perante terroristas que atacaram uma democracia. Ponto final. Toda a análise que se pode ou deve fazer a partir daí passa para segundo plano.
Eu não consigo, por mais que tente, ver um conflito de um dos lados e muito menos no caso da Palestina. Não se trata de ideologia, trata-se de um simples conhecimento da história e, já agora, de ver e conhecer as condições de vida daquele povo nos territórios ocupados.
Há uns meses um leitor dizia-me, a propósito de um texto onde defendi as negociações em vez da escalada de violência na Ucrânia, que não se pode negociar enquanto o adversário está numa posição vantajosa, de força. Ou seja, há que o enfraquecer (com balas), e depois negociar. Esta é uma posição mais ou menos consensual em relação à invasão russa do Donbass. Primeiro é preciso “cortar-lhes um pouco as pernas” e depois sentar à mesa. Notem que o mesmíssimo raciocínio desaparece quando se fala de Gaza ou da Cisjordânia. Aqui já não se pode enfraquecer o invasor porque passa a barbárie.
Também já ouvi, em horário nobre, que é normal que a nossa simpatia seja maior com o povo ucraniano por estes serem mais “parecidos connosco”. Louros, brancos e de olhos azuis. Para quê aprender história quando os conflitos do mundo se podem resolver com uma boa dose de racismo? Como sou mais parecido com um árabe do que com um norueguês, achei por bem tentar perceber o que por ali se passava e andei a vaguear, no terreno, atravessando os muros entre territórios ocupados e as zonas (teoricamente) controladas pelos palestinianos. É relativamente importante ver para compreender o que se discute.
Dou-vos um exemplo. Ontem, Benjamin Netanyahu, disse que tinha ordenado um cerco à Faixa de Gaza, corte de água e luz, até que os reféns fossem libertados. Ao mesmo tempo, o exército israelita acampou às portas do território, esperando pela luz verde para entrar a atirar para tudo o que mexe.
A ironia aqui está na ordem para “cercar Gaza”. Deixem-me falar-vos sobre Gaza, uma pequena faixa de terreno com 60 quilómetros, cercada pelo mar, pelo Egipto numa pequena porção de terreno (zona de Rafah) e por um gigantesco muro, com os mesmos 60 quilómetros, que separa 2 milhões de pessoas dos territórios ocupados por Israel. Um muro com torres de guardas a cada 150 metros, armas automáticas ligadas a sensores, arame farpado, placas de betão subterrâneas para evitar túneis e todo o tipo de video-vigilância que possa detectar qualquer movimento perto da zona de fronteira. Portanto… o primeiro-ministro de Israel mandou cercar o quê? Quando é que Gaza não esteve cercada nos últimos 30 anos? O muro começou a ser construído em 1994 e ainda estamos a discutir, em 2023, como se os habitantes de Gaza fossem livres de decidir os seus movimentos?
Se percebermos que eles vivem numa prisão desde que nascem, talvez seja mais fácil analisar o ódio pelos seus carcereiros. E é essa honestidade que devemos ter quando discutimos este conflito. É que dou por mim a ver gente, que é vista por uns quantos milhares na televisão, a falar no ataque do Hamas como se tivessem partido de um jardim de flores e iniciado uma guerra nova. Israel colhe os frutos das suas ocupações e criações, a começar pelo próprio Hamas.
Outra coisa que me está a fazer alguma confusão é o relato apaixonado e dramatizado dos sequestros. Há conferências de imprensa com famílias que pedem a devolução dos seus entes queridos por estes não terem qualquer relevância para o conflito.
A primeira coisa que gostaria de dizer é que não imagino o sofrimento de ver um familiar raptado e escondido algures por guerrilheiros. Não consigo perceber sequer, felizmente, o que estão aquelas famílias a sentir. Mas não é verdade que não tenham relevância. Isto não é particularmente simpático de se dizer agora mas, quando alguém aceita mudar-se para uma zona que estava habitada por um povo, entretanto aprisionado a poucos quilómetros dali, devia saber que está a correr riscos e que a sua liberdade significa, literalmente, a prisão de outro ser humano.
Um habitante do Kibutz de Be’eri dizia à CNN internacional que aquela comunidade era pacífica, próspera e que nada fazia prever o que aconteceu. O calmo e pacífico Kibutz de Be’eri está a pouco mais de 7 quilómetros dos muros de Gaza, a maior prisão do mundo onde 2 milhões de pessoas estão encurraladas, para que nas suas antigas moradas floresçam Kibutzs cheios de harmonia. Lamento mas não consigo pactuar com esta hipocrisia. Uma vida é uma vida e pouco me importa a sua origem, raça ou credo.
Os pedidos para que os reféns sejam devolvidos e as imagens das famílias em desespero, sempre com visibilidade em horário nobre nas televisões, também me faz pensar na forma como choramos por uns e desprezamos outros. Desde que Israel ocupou a Cisjordânia, Jerusalém e a Faixa De Gaza, em 1967, já prendeu cerca de um milhão de palestinianos (dados das Nações Unidas). Em detalhe, um em cada cinco palestinianos já foi preso com base em cerca de 1500 ordens militares que foram criadas para controlar o que podem e o que não podem eles fazer.
Ou seja, Israel decide as regras de comportamento com que brinda os invadidos e, sempre que estes não as cumprem, desaparecem. Por uns tempos ou para sempre. Não me lembro de ver, ao longo destas décadas, famílias em Londres, Nova Iorque ou Berlim, em directo à hora de jantar, a ter tempo de antena e comoção, para pedir o regresso dos seus entes queridos. Certamente que, entre um milhão de presos, algum deve ter uns familiares no estrangeiro que sintam a sua falta e consigam falar inglês para as câmaras.
Bem sei que este discurso será confundido com “apoio ao Hamas” quando, o que pretendo, é que mortes e crimes sejam encarados como tal. Venham de onde vieram. Para mim, a fuga da prisão do Hamas (e demais grupos, convém lembrar também que não estão sós na luta armada pela Palestina) não tem qualquer problema, não sou hipócrita. É uma prisão. Já o assassinato de pessoas que estão num concerto, é simplesmente um crime hediondo. O problema é que esse crime é tratado como tal se for feito por árabes e como “direito a resposta” se vier do lado de Israel.
Há aliás um conceito altamente interessante neste conflito, bem patente nas palavras do secretário de estado americano, Antony Blinken, quando disse “we have Israel’s back“. Traduzido para português corrente, significa que Israel pode arrasar com Gaza e país nenhum árabe pode ajudar aquela gente ou os Estados Unidos entrarão no conflito. E quando se fala em arrasar com famílias inteiras na Faixa de Gaza, já não há o problema ocidental das famílias de inocentes ou dos menores de idade.
Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel.
Ouvi alguns analistas portugueses que defendem que Israel deve aplicar o “olho por olho”, matar em quantidade suficiente para “trazer a paz de volta” (o famoso conceito das bombas do bem) mas não ultrapassar os limites para não ser bárbaro como o inimigo. Ora, esta é uma conta difícil de fazer. Quantos civis pode Israel matar em Gaza para meter o Hamas na ordem e, ao mesmo tempo, aparecer aos olhos do mundo como não-invasor e país civilizado? Eu respondo: tanto faz. Podem matar o que quiserem. Os Estados Unidos estão convosco, logo, a NATO está, a União Europeia também, e até algumas ditaduras árabes do bem (que nos dão uns barris), até são capazes de ficar do mesmo lado.
Já os russos, com um regime pouco recomendável, disseram ontem que no fim deste conflito tinham que finalmente criar os dois estados. Zelensky, por sua vez, vendo que a agenda noticiosa mudou de Kiev para Gaza, acusou Putin de apoiar o Hamas e o terrorismo em geral. E até por ter instigado a covid num morcego chinês qualquer.
Com os poderes todos alinhados e os lados escolhidos, agora resta aos habitantes de Gaza fazer o que fazem melhor. Morrer. E em silêncio.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Em menos de dois anos, um projecto jornalístico pessoal transformou-se, com o auxílio de um excelente punhado de vontades e colaboradores, naquilo que é hoje o PÁGINA UM: um jornal digital que (sobre)vive exclusivamente dos seus leitores, do valor (monetário) que os leitores lhe atribuem, e da sua credibilidade. Sem dívidas nem penhores. Não é pouco.
Como somos um órgão de comunicação social sem mecenas por detrás para arcar prejuízos; como não temos publicidade nem parcerias comerciais; como nascemos sem um investimento forte (o capital social da empresa que o gere, do qual sou sócio maioritário, é de apenas 10.000 euros, e não temos nenhuma autorização para darmos calote ao fisco de 11,4 milhões de euros); e como, ainda por cima, o jornal é de acesso livre, temos consciência de que desafiamos todas as regras da Economia. E desafiamos muito mais.
O nosso valor é o valor da nossa credibilidade. Vale o nosso sustento, periclitante, frágil, mas honrado, até porque é por tudo isto que o PÁGINA UM actua de forma desassombrada, assombrando muitos. Somos verdadeiramente livres, independentes, sem agendas escondidas, sem necessidade de agradar a gregos e a troianos, ou a dar uma no cravo e outra na ferradura. Enfrentamos, porque acreditamos estar ainda numa democracia, todos os poderes em pé de igualdade.
Denunciamos as situações anómalas da imprensa – mesmo sabendo que desagradamos a uma classe corporativista que, de forma viciosa, foi vendendo a alma ao diabo (não há mal em vender-se a alma ao diabo; convém é então não andar travestido de asas de anjinho).
Enfrentamos qualquer poder, quer seja político quer seja judicial, sempre que está em causa o acesso à informação e a transparência, usando as armas que a democracia nos concede: as leis e os tribunais. Ao longo de dois anos, interpusemos 18 intimações no Tribunal Administrativo de Lisboa, e mais se seguem. Perdemos alguns casos (poucos), ganhámos muitos, outros estão em kafkianos processos de decisão, com recursos e expedientes dilatórios da Administração Pública.
Fazemos um trabalho invisível mas muito árduo e desgastante, nesta linha, que mesmo os leitores mais fiéis do PÁGINA UM nem imaginam. Mas não desistimos. Como poderíamos se nem pejo tivemos de confrontar, com a lei, o Conselho Superior da Magistratura? E continuaremos. Ainda esta semana pediremos a execução de uma sentença por incumprimento integral de uma decisão do Tribunal Administrativo e de uma acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul. E iremos fazer novo pedido de consulta de outros processos, que terá nova intimação se não satisfeito. A lei tem de começar a ser cumprida pelos próprios magistrados.
Tudo isto é uma tarefa quotidiana árdua. Todos os dias sinto que a minha credibilidade é colocada em causa, não apenas por mim (e sou muito zeloso da minha credibilidade), não apenas pelos meus leitores, mas sobretudo pelos nossos detractores. E são muitos. E são facilmente identificáveis. Por isso, reajo de forma veemente quando se coloca em causa a minha credibilidade e a credibilidade do PÁGINA UM.
Ao longo destes quase dois anos, enquanto o PÁGINA UM anda a revelar e a denunciar sem parança – num estilo aguerrido, que, sabendo ser particular no novi-jornalismo dos tempos modernos, nem foge muito à linha daquilo que eram os meus artigos na saudosa Grande Reportagem, quando Miguel Sousa Tavares era seu director –, sei bem os incómodos que provoco, mesmo, ou sobretudo, nos meandros do jornalismo. Um mundo pequeno e que se tem mostrado pequenino.
Começou logo no início do PÁGINA UM com uma campanha lamentável da CNN Portugal, seguida por outros jornais, onde se destaca o Público, o Observador e o Expresso, onde aliás colaborei vários anos.
Continuou com a postura da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que não apreciou certas questões sobre transparência, e chegou a fazer um execrável comunicado contra mim por simplesmente eu estar a defender o acesso à informação. Os membros do Conselho Regulador anunciaram processos judiciais: sei que apresentaram duas queixas, que chegaram à fase de inquérito, mas desistiram antes de eu ser ouvido (não lhes custou os encargos dos advogados, pagos com dinheiros públicos). Malgrado isto, tem andado a ERC entretida a elaborar pareceres a pedido – já são quatro, e deverá haver mais –, contra o PÁGINA UM, incluindo notícias que até resultaram em processos na Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS).
Continuou com a Ordem dos Médicos, com “excelentes” relações com os media, que, perante pedidos de acesso a documentos administrativos a uma campanha de solidariedade que é um caso de polícia, decidiu apresentar uma queixa judicial contra mim (acompanhada pelo ex-bastonário, pelo inefável Filipe Froes e pelo pediatra Luís Varandas) numa tentativa de influenciar uma decisão num tribunal administrativo.
E continuou também na Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), que, depois de um conjunto de notícias desfavoráveis ao suposto mérito da actual presidente, veio a correr abrir os braços a uma queixa do almirante Gouveia e Melo, abrindo-me um processo disciplinar sobre notícias que, hélas, resultaram na abertura de uma inspecção pela IGAS. A mesma CCPJ fizera, no ano passado, uma lamentável recomendação censória para alegrar o presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, que, à conta de notícias do PÁGINA UM, teve um processo de contra-ordenação da IGAS e a perda do estatuto de consultor do Infarmed.
E talvez me esteja a esquecer de outros casos.
No meio disto, veio a terreiro recentemente uma “coisa” chamada Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CD-SJ) como novo braço armado para me pôr na linha. E digo “coisa”, com alguma dor de alma, porque fui membro por um ano nos idos de 2006 (salvo erro), até me demitir por me aperceber que havia questões mais de política e de conveniência do que de deontologia. Adiante que isto é história. Ora, o CD-SJ é, na verdade, uma “coisa” que existe mas não existe. Ao contrário da ERC e da CCPJ, não tem qualquer competência legal nem ligação directa ao Sindicato dos Jornalistas, nem tem um critério de actuação, nem tão pouco uma linha transparente de intervenção. Basicamente, no meio da deterioração geral da imprensa e dos atropelos constantes até das normas do Estatuto dos Jornalistas, o CD-SJ vai dando os bitaites, de quando em vez.
Compreende-se: além de ser presidido pelo Provedor do Adepto do Rio Ave, especialista em vinho alvarinho e docente universitário, o CD-SJ integra ainda um jornalista da Trust in News (empresa que deve 11,4 milhões ao Fisco), outra do Observador (que nunca soube o que eram lucros e agora convive alegremente com parcerias comerciais de duvidosa deontologia e legalidade, além de já ter feito ataques soezes a mim) e uma outra jornalista da Lusa (o Pravda do actual Governo, no sentido de que para a agência noticiosa tudo o que sai do Governo é Verdade, e que, em tempos, publicou, como se fosse um relatório sério, algo que era um embuste sob a forma de “esboço embrionário, que consubstancia um mero ensaio para um eventual relatório”). Há um quinto elemento sobre o qual poucas referências detenho, excepto saber que terá andado em inquirições para descobrir os supostamente misteriosos, obscuros e tenebrosos financiadores do PÁGINA UM.
Aliás, eu nem sei como ainda não surgiu a “lenda” de eu ser um tipo a ser suportado com dinheiros da extrema-direita ou do Putin ou da… ia dizer China, mas isso são outros; deve ser pelo meu aspecto dar mais ares de extrema-esquerda. Ficam confusos e indecisos, certamente, por ser difícil colar o “cromo”.
Ora, mas de repente, esta “coisa” chamada CD-SJ acordou da letargia, embora já tivesse feito uma trapalhona tentativa de me lixar no início de 2022, malparida por um jornalista da CNN Portugal, ao ponto de terem então metido a viola no saco. Até Maio deste ano, com tanta porcaria a ser feita por tantos jornalistas e directores de supostamente respeitáveis órgãos de comunicação social, o CD-SJ tinha feito cinco pareceres. Mas nem sequer tugiu nem mugiu em concreto sobre a actuação de 14 ‘jornalistas comerciais’ detectados pela ERC, incluindo até um dirigente sindical (Miguel Midões), que assobiou para o ar e manteve o poiso no Sindicato. O CD-SJ também se borrifou para os jornalistas da Cofina que serviram de mestre-de-cerimónia em 12 emissões de telejornais da CMTV pagos por autarquias. Quis lá saber de um Reginaldo que faz programas como jornalista enquanto obtém patrocínios como empresário para o dito. Nem um ai deu perante directores que se vergam em sorrisos aos patrocinadores, em alguns casos da Administração Pública e do Governo, que lhes besuntam as mãos em eventos “vendidos” aos incautos leitores como simples notícias quando se trata de prestação de serviços. Mas, de repente, no meio deste pântano asqueroso, o CD-SJ e o Provedor do Adepto do Rio Ave acordaram nos últimos meses apenas para apanharem as supostas falhas deontológicas do PÁGINA UM.
Deram logo um ar da sua desgraça em Maio, quando decidiram acolher uma queixa da própria Presidente da CCPJ, mui incomodada com as notícias e perguntas do PÁGINA UM, e por um processo no Tribunal Administrativo de Lisboa (depois de vários pareceres da CADA) para acesso a informações (incluindo actas e contas), e que luta em prol do secretíssimo da sua actividade alegando uma suposta protecção da vida privada ao abrigo do Regulamento Geral da Protecção de Dados (RGPD). E isto na mesmíssima CCPJ (numa outra presidência que não a da ‘jurista de mérito’ Licínia Girão) defendia em 2018 que os jornalistas deveriam ser excluídos das restrições do RGPD. Enfim, coerências institucionais…
Mas sobre a condução (e conclusão) deste parecer, abjecto na forma como o CD-SJ recusou a minha defesa, aceitou acréscimos à queixa e atropelou regulamentos (aprovando o dito fora de uma reunião ordinária), já escrevi o que tinha a escrever, até porque sintetizei no título de um editorial aquilo que penso: “A deontologia de quatro crápulas, ou cronologia de uma patifaria“. É certo que não falei da atitude de silêncio corporativista e compincha da direcção do Sindicato dos Jornalistas, porque, enfim, sendo mais lamentável (há associados incómodos), ainda tenho esperança de que os seus dirigentes, alguns deles pessoas decentes, se envergonhem um dia das suas omissões. Talvez no dia em que, por falta de condições para se ser um jornalista livre em Portugal, lhes fecharem a porta do emprego de mangas de alpaca.
Tinha, aliás, sobre este parecer do CD-SJ relativo à queixa da presidente da CCPJ – entidade que, aliás, nada diz sobre o meu desafio para me abrir um processo disciplinar para que haja regras legais a cumprir pela acusação, o que não sucedeu até agora – uma decisão tomada: instaurar a cada um dos seus membros um processo por difamação.
Contudo, vou desistir desse intento. Não vale a pena. E por uma simples razão: o CD-SJ vai voltar à carga, ad aeternum per saecula saeculorum; não se vai cansar de me fustigar tentando caninamente descredibilizar-me. E conseguirá se eu lhes der mais trela.
Alias, a sanha pressente-se logo na inquirição, nem sequer disfarçando. Por exemplo, no assunto do seu e-mail para mim com as suas acusações, constava o seguinte: “HB vs PAV”, como se se tratasse de uma mera competição e quezília entre o Hospital de Braga (HB) e o jornalista Pedro Almeida Vieira (PAV), e não de uma investigação jornalística sobre a gestão de um hospital. Depois de uma reacção de mera repulsa em pactuar com palhaçadas, cai no erro de acabar a argumentar e a entrar em debate, porque deveria antever o que sucederia. Com efeito, o Conselho do Provedor do Adepto do Rio Ave manipulou e descontextualizou trechos dos meus argumentos, omitiu outros tantos, e interpretou tudo à sua maneira, de sorte a compor um chorrilho de disparates que transformou uma irrepreensível peça de jornalismo rigoroso e aguerrido numa suposta infame peça de pasquim.
Honra seja feita ao Provedor do Adepto do Rio Ave e mais ao seu CD-SJ, com seus compinchas: são bons seguidores do polaco Arthur Schopenhauer que, no século XIX, já nos explicava como vencer uma discussão mesmo sem ter razão. E, portanto, concedo ao Provedor do Adepto do Rio Ave a vitória: aqui está neste novo parecer, que até divulgo em primeiríssima mão.
Ainda há dias me questionei sobre o que diria o Provedor do Adepto do Rio Ave se a Dra. Edite Estela se tivesse queixado desta minha reportagem na Grande Reportagem de Julho de 1998. Como se pode admitir palavras como “intrigas”, “caótico”, “escandaloso” e “infelizmente” só numa chamada? Como se pode admitir tanta adjectivação opinativa?
Mas há uma altura em que tem de se dizer basta, ainda mais para gente ordinária. Como não vale a pena perder tempo com quem chateia e nem sequer detém um poder fáctico, como é o caso do CD-SJ, só deve receber o desprezo como taça. Eles nem existem, porque onde lhes falta credibilidade e competência, sobra-lhes em manipulação e manha. E nada existe sem honra nem credibilidade.
Se esperavam que, com reles pareceres, vergonhas deontológicas até em cada vírgula, vomitados por uma Santa Inquisição jornaleira, eu baixaria as orelhas, meteria o rabinho entre as pernas e ficaria bem-comportadinho e caladinho, desenganem-se: a caravana chamada PÁGINA UM seguirá, mesmo sobre trancos e barrancos, o seu caminho de rigor e independência, aguerrido e livre, com um estilo próprio (porque as palavras valem), enquanto os leitores quiserem e apoiarem. E assim, dedicando-me à jornada seguinte, virando a página, deixo para trás quem, já por duas vezes, me andou a rosnar invecticas. Ouvi a primeira, e nem tinha de os ouvir segunda vez, investidos às canelas. Já nem os ouvirei quando ladrarem terceira vez. Ponto final sobre este assunto.
Portugal tornou-se um circo; sem rebuço, a casta parasitária utiliza vezes sem fim a eterna fórmula: problema, reacção, solução. Tem como único propósito controlar-nos, ridicularizar-nos e assaltar-nos ainda mais, pois nunca nada é suficiente para satisfazer a sua voracidade.
Primeiro, fizeram-nos crer que existe um problema de habitação em Portugal – as barracas não foram erradicadas? –, atribuindo as respectivas responsabilidades aos proprietários de casas, aos empresários do negócio do alojamento local e dos estrangeiros com elevados rendimentos que procuraram o nosso país para viver, atraídos pelos incentivos fiscais que se lhes ofereceram: Vistos Gold, Residentes Não Habituais (RNH) e Nómadas Digitais.
Não nos esqueçamos da legislação “Mais Habitação”, um ataque sem precedentes à propriedade privada, congelamento de rendas, arrendamento coercivo, tributos extraordinários sobre o negócio do alojamento local e severas restrições ao seu licenciamento. Nada teve que ver com a recente escalada de preços.
E o que dizer do pedido ao Governo pelos órgãos de propaganda para que se evite uma actualização da rendas em 2024 de acordo com a taxa de inflação, tal como aconteceu em 2023, num novo roubo aos proprietários?
Nada disso, é o que nos diz o movimento Casa para Viver, o organizador da manifestação do último 30 de Setembro (a reacção); segundo o seu manifesto, tudo se deve à “ganância”, à “especulação desenfreada” e à inércia no combate “às alterações climáticas”, aparentemente a principal causa de toda esta desgraça.
Ao contrário das manifestações “negacionistas”, desta vez, os órgãos de propaganda encarregaram-se de promover a manifestação Pela Habitação ao longo da semana que a antecedeu, pois as “pessoas já não aguentam mais”. Isto depois de três anos de um “ai aguentam, aguentam” de fraldas faciais, distanciamento social, inoculações experimentais e prisões domiciliárias em nome de vírus.
E o que pediram as dezenas de milhares de pessoas que ocuparam as ruas de 24 cidades para lutar pelo “direito à habitação” e pela “justiça climática”? Para além de pedirem que não se construa – atenção, é mesmo assim! -, pois contribui fortemente para a “degradação climática”, esta era a sua lista de desejos: (i) fim dos despejos e das demolições sem alternativa de “habitação digna”; a (ii) descida, por via administrativa, das rendas; (iii) a renovação automática dos actuais contratos de arrendamento e, pasme-se!, (iv) a fixação do valor das prestações dos créditos para primeira habitação.
Vamos então traduzir isto por linguagem de crianças. Caso o inquilino não cumpra com as suas obrigações, isto é, deixe de pagar a renda, o proprietário não o pode expulsar e perde, na prática, a sua propriedade, claro está, se o indivíduo não encontrar uma alternativa “digna”! Só nos resta uma dúvida: quem define a alternativa “digna”?
O proprietário, para além de não poder expulsar o inquilino em caso de calote e de lhe ser imposto um valor de renda abaixo do tenebroso “mercado”, é obrigado a renovar eternamente um contrato de arrendamento, obrigando-se a arrendar para sempre a uma pessoa que não lhe paga de acordo com os termos do contrato livremente negociado.
Por fim, a cereja no bolo: os bancos passam a ter de conceder crédito a uma taxa de juro abaixo do seu custo de financiamento. Será que o movimento Casa para Viver está disposto a pagar do seu bolso novas falências bancárias? Como todos sabemos este sector é “especial”: se há lucros, é dos accionistas; se há perdas, é do povo.
Nos dias seguintes, os órgãos de propaganda rejubilavam com o sucesso da manifestação, com vários avençados do regime a pedir sangue, pois a crise da habitação tinha atingido o “limite do suportável”. Também nos davam conta dos cartazes que por lá proliferaram; destaco dois: “Senhorio não é profissão” e “Morte aos Ricos”. Parece-me perfeito, na era da inclusividade e do cancelamento do discurso de ódio.
Depois do problema e da reacção, era agora a vez da solução. Esta veio com a entrevista na última Segunda-Feira. E qual foi o grande anúncio? Os residentes não habituais (RNH) iam acabar. Aparentemente, estrangeiros que investem em Portugal em casas de milhões de Euros são os bodes expiatórios de toda esta “crise”. Até tivemos uma professora de uma prestigiada escola de negócios que comentava desta forma a decisão: “Acaba mesmo a pouca-vergonha?”
O número de circo não terminava por aqui, depois do palhaço rico era agora a vez dos palhaços pobres. Na Terça-Feira, tivemos um corte da Segunda Circular, em Lisboa, pela organização Climáximo, felizmente resolvido com prontidão e eficiência pelos populares.
O que pretende esta organização? Apresenta-se como um colectivo anticapitalista, que defende a nacionalização da habitação – tal como um regime comunista, as casas são do Estado! -, o fim da polícia e do exército e empresas “democráticas”, em que as condições salariais são definidas pelos trabalhadores, em lugar do indivíduo que lá pôs o seu dinheiro. Deixo à consideração do leitor estabelecer a ligação entre isto e o combate “às alterações climáticas”.
Nessa mesma Terça-Feira, num debate chamado “Sem Moderação” – atenção, não vejo -, José Eduardo Martins, membro da nossa “direita”, brindou-nos com esta intervenção, comentando um dos famosos cartazes da manifestação “Senhorio não é profissão”: “…o paradigma do senhorio português é o desgraçado que veio para Lisboa trabalhar, poupou, aforrou, ficou com uma dúzia de casas, e é essa dúzia de casas que arrenda. E, portanto, sim, é uma profissão!”.
Para além de ficarmos a saber que a sua mãe é empresária, também pudemos constatar que os seus pais, em apenas uma geração, lograram sair da província, vir trabalhar para Lisboa, e construir um império imobiliário. Esta prodigiosa ascensão económica aproxima-se do milhão de contos depositados num cofre da mãe do famoso engenheiro, que até hoje não sabemos como foram convertidos em Euros. Sem dúvida que o Estado Novo afinal não foi a miséria e a escravidão que nos venderam, mas uma miríade de oportunidades económicas, bastando apenas o esforço de um qualquer meijengro para se obter uma fortuna.
Infelizmente, a “direita”, da qual José Eduardo Martins faz parte, que governa o país há quase 50 anos com a “esquerda”, não consegue proporcionar tais oportunidades às novas gerações, nem tão pouco qualquer segurança jurídica, pois do que aforrou a mãe do José Eduardo Martins foi para comprar propriedade, “porque um país onde nada é seguro, nem os certificados de aforro, a pedra tinha valor”. Ou seja, apenas se indignam com a insegurança jurídica do país quando a mãezinha vê a sua propriedade ameaçada. Eis a nossa “direita”!
A semana não se ficou por aqui. Também tivemos o partido socialista 3, mais conhecido por Chega – pede por mais Estado a toda a hora – e com um fetiche por ciganos, a pedir ao Presidente da Assembleia da República a condenação das agressões aos deputados do Chega que participaram na dita manifestação. Obviamente, que este não condenou, pois a encenação para eliminar o partido socialista 2, mais conhecido por PSD, tem de continuar.
No final da semana, o circo apresentava o seu último número: a eleição de uma mulher transgénero – no meu tempo travesti – como Miss Portugal! Palmas para as feministas, pois conseguiram que um homem humilhasse as mulheres naquele que seria o seu ponto mais forte: a beleza! Até nisso vencemos as mulheres.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Ouvi o embaixador Seixas da Costa a definir o Hamas como uma organização terrorista porque, e cito de cabeça, as Nações Unidas assim o dizem e a organização palestiniana faz ataques a civis no seu combate a partir da Faixa de Gaza. Este é um tema que daria para escrever um livro e, honestamente, nem sei bem por onde começar mas vou por aqui: o Hamas não é propriamente um grupo recomendável e até acho que prejudica mais a causa palestiniana do que para ela recolhe apoios, mas meus amigos, quem é que ajuda a luta da Palestina?
A definição das Nações Unidas sobre o Hamas é absolutamente irrelevante. Neste ou em qualquer assunto. Uma organização que aceita, durante 50 anos, um bloqueio a Cuba assente em dois votos favoráveis (Estados Unidos e Israel) contra 180 de nações que o rejeitam consecutivamente, não tem para mim qualquer legitimidade. As Nações Unidas servem para condenar (veemente, por norma) os ataques que o Governo de Washington mandar condenar. De resto, são como um garfo num prato de sopa.
Seixas da Costa dizia, nessa análise (de Domingo, julgo) que tinha toda a simpatia pela causa da Palestina mas que existiam limites para a barbárie. Outra analista, agora não me lembro qual, dizia que a solução dos dois Estados para o conflito israelo-árabe ficava agora mais distante. Não vou agora escrever que palavras me saíram quando ouvi estas análises, mas julgo, para o leitor, não serão difíceis de adivinhar, sabendo que ficam mal numa mesa de jantar com os avós.
Claro que existem limites para a barbárie, claro que atacar civis é condenável e claro que, mesmo uma guerra, tem regras. Mas porque é que toda essa solidariedade e compreensão só acontece, na comunidade internacional, para o lado de Israel? A Faixa de Gaza é bombardeada constantemente e o que vemos na comunidade internacional? Algumas palavras de ocasião, as habituais justificações de que se trata de uma resposta a um rocket que não matou ninguém.
Andamos há anos a ver uma luta entre David e Golias onde guerrilheiros de scooter desafiam um dos mais poderosos exércitos do mundo. Por cada morto no lado israelita há dezenas do lado da Palestina. Militantes do Hamas, civis, mulheres, crianças. O que estiver à frente, importa pouco. Quando morre um israelita estamos perante uma barbárie, quando morrem 10 palestinianos em Gaza foi porque o Hamas os usou como escudo. Andamos há décadas com estes dois pesos e duas medidas.
Quando nos dizem que AGORA a solução dos dois estados fica mais difícil, eu pergunto, quando é que estiveram mais próximas? Os 70 anos anteriores ainda não foram tempo suficiente para se chegar a uma solução? Quem é que acredita que algum dia existirá uma solução quando as decisões e imposições israelitas são secundadas e protegidas pelo maior exército do mundo (o americano).
Eu acho até um pouco revoltante esta condenação generalizada pela luta armada de um povo invadido há décadas. Ou neste caso já não se aplica o direito a defender a integridade territorial? Não sei se alguma vez visitaram os territórios ocupados da Palestina e viram, por exemplo, a humilhação diária por que passam os habitantes da Cisjordânia para irem trabalhar do outro lado do muro.
Perceber que os milhões de palestinianos na Cisjordânia e, especialmente, em Gaza, vivem numa prisão a céu aberto com os passos controlados pelas forças de segurança israelita, é meio caminho andado para se discutir o conflito com alguma inteligência. Não são dois países independentes a disputar uma fronteira. É um povo invadido que tenta fugir de uma prisão há décadas, com o Ocidente todo contra eles. E não vale a pena dizer que “sou a favor da causa da Palestina mas isto de raptar pessoas não pode ser”.
Meu amigos, há décadas, não são meses, são décadas, aquele povo espera alguma ajuda enquanto é cercado e bombardeado repetidamente. Ninguém, que não sejam eles, percebe aquilo por que passam e a luta que travam sozinhos contra as potências do Mundo. Ninguém quer saber daquela gente, ninguém. Não suporto ouvir dirigentes a afirmar, o politicamente correto, apoio à Palestina. Se apoiam, condenam a invasão de Israel e fazem o que podem para libertar um povo que vive em condições desumanas. É uma invasão. Também ali se trata de uma invasão mas com regras de apoio bem diferentes das concedidas à Ucrânia.
Desta vez levaram a guerra para território inimigo e surpreenderam toda a gente. É daí que vem a condenação geral. Morreram israelitas, muitos. Normalmente não chegam aos dedos de uma mão. A espectacularidade militar da accão foi tal que, de imediato, os Estados Unidos destacaram um porta-avião para a zona de forma a refrear os ânimos de intervir por parte do Hezbollah.
Reparem nas diferenças para a situação Ucraniana. Ali a Europa e os Estados Unidos aliam-se para fornecer armas e dinheiro, de forma a combater o invasor. Em Gaza, ninguém vê problema algum de 2 milhões de pessoas viverem entre muros numa faixa de 60 km. E também ninguém se aborrece se de vez em quando lá deixarem cair umas bombas. Quase 70 anos disto e continuamos a fingir que é normal. A cada tentativa de sair da prisão, a cada rocket que atinge um prédio (maior parte deles ficam no Iron Dome), lá vai o exército israelita matar 10 vezes mais. E a comunidade internacional segue impávida e serena a pactuar com um erro histórico do pós-guerra mundial.
Mas no dia em que guerrilheiros palestinianos pisam solo israelita, as Nações Unidas cortam o financiamento aos projectos humanitários na zona, o exército israelita ganha ordem para matar indiscriminadamente e os Estados Unidos entram em menos de 24 horas no conflito.
Há claramente invasores do bem e invasores do mal. Do lado dos dirigentes judeus, devem por estes dias andar a amaldiçoar aquele momento, no século passado, em que ajudaram a formar o Hamas, para combater a Organização de Libertação da Palestina (OLP) de Yasser Arafat. Mesmo assim, que jeito deu a Netanyahu este conflito para desviar as atenções das reformas judiciais tão contestadas pelos povo israelita.
Acredito na repressão brutal do exército israelita e, enquanto escrevo, ouço os bombardeamentos a Gaza. Não acredito no envolvimento de outros países árabes e imagino que no fim, tenhamos novamente um número desproporcionado de mortos de um lado e a comunidade internacional a venerar o invasor. A solução dos dois estados não ficou mais longe porque não estava sequer perto. A única coisa real era, e é, a humilhação diária de um povo mártir e aprisionado na sua própria casa.
O resto é a pura hipocrisia do chamado Ocidente, que tanto declara solidariedade com a invasão israelita ou trata como democracia a sanguinária ditadura saudita. Que se choca porque um milionário morre a caminho do Titanic, mas dispensa apenas um rodapé de notícia para milhares de africanos que se afundam no Mediterrâneo. Já não tenho paciência ou estômago para tanta hipocrisia ou indiferença pela vida humana, consoante a cor da pele, credo ou tipo de negócio que nos proporciona. A nós, os tais civilizados do mundo bom.
Acabo como comecei: não acho que o Hamas traga uma grande vantagem à causa palestiniana. Mas não tenho qualquer dúvida que, com Hamas ou sem Hamas, eles, o povo da Palestina, já esperaram e em condições miseráveis, por alguém que lhes desse a mão. Ninguém os tirou daquela prisão. Ninguém. E não se pode dizer que tenham esperado pouco.
Aos ucranianos bastaram dois meses para terem o Mundo a combater os invasores. Na Palestina, não tarda, chegamos a um século sem uma solução que lhes traga, pelo menos, um cartão para sair da prisão.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
OK, é verdade. Não gosto de puxar nos galões, mas acredito na voz da experiência. Para o melhor e para o pior, eu passei vinte anos na América, fui casada com um cientista americano de quem ainda hoje sou muito amiga, e sei que o que eu quero contar-vos é mesmo como eu quero contar-vos. Querem voltar a dizer-me que os americanos são uns broncos ignorantes que passam todo o seu tempo livre a beber Budweiser e a comer demais usando apenas as mãos enquanto assistem aos jogos de baseball da televisão? Porreiro, podemos ir ainda mais longe. Os americanos são os cidadãos daquele país com trezentos milhões de habitantes em que 35 por cento da população é obesa e 75 por cento tem armas, e muitas dessas armas são semi-automáticas, como se alguém precisasse de uma AK47 para caçar veados. São os imbecis que nunca tiveram um passaporte na vida[1], uma vez que ninguém precisa de passaporte para ir ao Canadá comprar as suas bebidas por preços realmente competitivos, assim como não precisa dele para ir a Puerto Rico, ao Hawai passar uma semana de férias salutares pelo meio da neve dos seus Invernos. E não hesitam em dizer que preferem este tipo de férias porque “têm medo” de vir à Europa, e se nós perguntarmos porquê respondem logo, com toda a franqueza, “sei lá, toda a gente diz que aquilo é muito perigoso”.
Tudo bem.
Agora, querem ver-se ao espelho? Isto é tudo verdade, mas vamos lá com calma: nós podemos ter os passaportes cheios de carimbos de todos os lugares remotos do mundo que percorremos à boleia e com a mochila às costas, podemos ler muitos livros e falar muitas línguas, que isso não nos faz menos broncos ou menos ignorantes. E esta nossa nova cegueira nocturna não poderia ridicularizar-nos melhor: então agora tudo o que está a passar-se na política americana, em alguns casos pela primeira vez desde que a América existe, está a passar-se por causa da Ucrânia?
Ai por favor, desculpem.
Provincianos.
Vai daqui um alerta sentido, tanto ao povo português como a toda a coorte de “comentadores”, “observadores”, “peritos”, e outras pessoas assim, que supostamente deviam explicar estas situações ao povo português. Detesto armar-me em boa e detesto fazer inimigos, mas francamente. Quando é que alguém aparece na televisão pública – ao menos – a explicar-nos com clareza que a guerra na Ucrânia é só um estrago colateral no triste contexto daquilo que está realmente a acontecer na América?
Muito pelo contrário, e muito em concordância com o espírito importado do Halloween que vamos ter que aturar por estes dias, até ao momento em que a Câmara dos Representantes fica sem Alto Representante, e assim sendo o governo deixa de ser governável… bem, não. Desculpem, vou repetir-me mas há que martelar bem estas sílabas. Isto a que temos assistido não tem a ver com o apoio americano à guerra na Ucrânia.
Tem a ver com os piores dos perigos que podem vir a ter que ser enfrentados em democracia.
A demissão do Senador McCarthy, e tudo o que aconteceu antes que não lhe deixou outra saída, faz antes parte de uma crise da política interna americana que entrou em rota de colisão consigo própria desde que o Colégio Eleitoral deu a vitória a Donald Trump depois de Hillary Clinton ter ganho as eleições pelo voto popular.
Aliás, aconteceu exactamente o mesmo na corrida de Al Gore contra George W. Bush, portanto já sabemos que estas vitórias por uma unha negra são perigosíssimas. Gore teve a maioria popular, Bush foi eleito pelo Colégio. Sempre que as margens de êxito são assim tão frágeis, as democracias precisam de um amor e carinho muito especiais para não irem ao fundo. Infelizmente, “amor e carinho” não é linguagem que um, republicano americano entenda. George W. decidiu invadir o Iraque, e, em consequência, deixou-nos um Mundo em que o Califato degolava as pessoas em directo e ao vivo correndo pelo deserto em tanques americanos e a Arábia Saudita usava recursos americanos para eliminar do mapa um povo inteiro no pesadelo da Guerra do Iémen.
Depois de tudo isto, ainda houve o Afeganistão. Que ideia foi aquela, se até a todo-poderosa URSS já tinha ido antes estampar-se naquelas montanhas inexpugnáveis[2]? Foi qualquer coisa, porque até o nosso homem Obama, por muito que tenha ganho o Nobel da Paz como incentivo, não conseguiu acabar com essa guerra, assim como não conseguiu cumprir uma das suas promessas eleitorais mais importantes e acabar mesmo com a prisão política de Guantánamo, muito embora tenha assumido a clarividência de dar a ver a todos os americanos, e aos povos do mundo inteiro, a realidade sobre o que lá se passava[3].
Toda a gente sabe que Donald Trump teve uma panóplia impressionante de consequências funestas sobre a democracia. De tudo o que fez mal no seu país, o pior ainda há de ter sido transformar a corrupção no novo normal da presidência americana – razão pela qual ainda não parou de andar de tribunal em tribunal em julgamentos horrorosos de falsificação de declarações de rendimentos e outros documentos oficiais entregues quando era presidente, em tribunais que devem ser tão corruptos como ele[4], porque nunca mais o mandam prender por forma a acabar de vez com este terrível drama de Shakespeare. E a sua péssima influência estendeu-se, como se sabe, às democracias de todo o mundo – veja-se, entre muitos que poderiam agora vir à baila, o exemplo de Jair Bolsonaro, que decalcou todos os actos mais significativos da sua presidência do que entretanto ia acontecendo em Washington DC. E estes actos incluíram não lutar contra a pandemia até já ser tardíssimo, encorajar a destruição do Amazonas[5], e ver com bons olhos a invasão selvagem do Senado em Brasília depois de perder a Presidência para Lula da Silva.
Claro que o pior acto destrutivo de Trump, no que diz respeito ao seu próprio país, não tem nada a ver com presidentes evangélicos corruptos de terceira categoria. Tem a ver, acima de tudo, com o que foi sempre, e desde sempre, aquele seu enorme fascínio pela figura inalcançável de Conde Drácula corporizada em Vladimir Putin. Se houve algum sentimento que Trump nunca disfarçou, desde o princípio da sua campanha eleitoral, foi o sentimento do menino pequeno, imediatamente antes de começarem as aulas, que quer desesperadamente vir a ser o melhor amigo do aluno mais cool lá da escola, aquele puto que manda em tudo e em todos, que aterroriza os professores, os pais, e a direcção, e que se chama Vladimir Putin.
A bem da frutificação dessa amizade, que ao fim de quatro anos nunca chegou a dar qualquer espécie de fruto, Trump deixou a guarda avançada de Putin invadir os computadores americanos de forma nunca antes vista, por forma a manipular dados, falsificar estatísticas, difundir notícias falsas, e passar para o exterior uma imagem lamentável do soi-disant “País Mais Poderoso do Mundo”. As alamedas que se abriram nessa altura continuam abertas, pelo que os Estados Unidos continuam expostos ao pior que há; mas ao menos agora os americanos sabem com o que é que estão a ter que viver e contam com isso todos os dias. É um grande rombo, mas ninguém pode acusar os americanos de não serem flexíveis.
São tão flexíveis que, entre escolher a presença desagradável de Hillary[6] e a loucura levada ao rubro de Trump, os habitantes de todos os trailer parks[7] apinhados de white trash[8], completamente fartos de nunca terem ninguém que falasse por eles, reconheceram “um dos nossos”, compareceram em peso nas urnas, e votaram em Trump.
Mas atenção, que só lhe deram quatro anos – à experiência.
Durante o período de experiência verificaram que o indivíduo não queria saber deles para nada, não podia ser mais insultuoso para com as mulheres esquecendo-se de que existiam mais mulheres do que homens no seu eleitorado, estava casado com uma modelo de sotaque balcânico que lhe deitava olhares de puro ódio, e, tanto quanto se percebia, o que realmente lhe importava naquela presidência era poder exibir-se a comer BigMacs com talheres de prata no seu jacto privado. Como é que um gajo vai MAKE AMERICA GREAT AGAIN[9] se não tem planos e só diz disparates?
Motherfucker.
Ao fim de quatro anos, perante todos os estragos do gajo, voltaram a passar a bola aos democratas e elegeram Joe Biden, que por seu turno escolheu Kamala Harris, uma mulher que é mestiça[10] e isso vê-se bem, para vice-presidente.
Vocês podem nunca mais ter ouvido falar destes dois, mas é por todas as razões certas. É porque Biden, de facto, não gosta de gastar energias desnecessariamente, e fala baixo tanto quanto lhe é possível. Se lhe tem sido possível, so much the better[11]. É um democrata sólido e um político profissional com a vida inteira dedicada à causa. Os americanos não precisam de partilhar as convicções dele para classificarem a sua prestação enquanto excelente.
Toda a gente sabe que, em democracia, é muito difícil fazermos seja o que for exactamente como Joe Biden tem feito: de forma excelente.
E, em democracia, isto da excelência mede-se mesmo ao nível traiçoeiro do preso por ter cão e preso por não ter. A maioria absoluta do Partido Socialista de António Costa, e a maneira como as suas hienas têm vindo a devorar os cadáveres que as águias de cabeça branca e os leões de Sofala[12] deixam atrás de si, recorda-nos, todos os dias, que é quase impossível um partido sentar-se no poder com uma maioria absoluta e não resvalar tão depressa quanto possível para o abuso desavergonhado do poder[13].
Por o outro lado, os confins estreitos da organização política americana, inventados há dois séculos pelos Founding Fathers para impedir todo e qualquer abuso de poder na Pátria da Livre Iniciativa, complicam a vida dos políticos até os deixarem atados de pés e mãos. O Governo está dividido entre dois órgãos separados, o Senado e a Câmara de Representantes, e ambos precisam de, simultaneamente, satisfazer o seu eleitorado e dar satisfações ao Presidente. Neste momento, o Senado está sob um controlo mínimo dos democratas, enquanto que a câmara dos representantes está sob um controlo mínimo dos republicanos. E isto quer dizer que ambas as facções têm que ser capazes de negociar compromissos uma com a outra antes de entrarem sequer em qualquer género de negociação com o Presidente.
Isto foi tudo desenhado friamente a régua e esquadro para proteger a democracia e estimular a maturidade daqueles que a representam perante o povo americano, e muitos parabéns. Com maturidade de ambos os lados, seria um belíssimo conceito.
O drama é que estamos a viver num Mundo em que, já de si, a maturidade não existe em lado nenhum do Planeta porque as pessoas a deixaram todas em casa, muito bem escondida por detrás da internet. E, entre os republicanos americanos, a maturidade deixou de existir desde que o white trash pôs Donald Trump no poder e exigiu – aos berros, com chapéus de Daniel Boone, e de armas na mão – que ninguém tentasse, nunca mais, mandar nele ou exigir-lhe o pagamento de impostos, ou tirar-lhe a carta de condução por violação repetida e furiosa do limite de velocidade. Estas pessoas não exigem muito mais porque nunca estudaram e não pensam assim tanto como isso, mas são extremamente raivosas em relação àquilo que exigem. Vim para esta cidadezinha criar os meus filhos, portanto – quem é que falsificou as eleições, para de repente o presidente da Câmara ser negro, quando nós já dissemos tantas vezes que não queremos cá negros?
Adenda: nem negros em particular nem estrangeiros em geral, estão a ouvir-nos, hey, DC? Mais uma pessoa morena com um sotaque esquisito e eu puxo da minha Beretta. Sou mãe solteira de quatro filhos loiros, e todos eles vêm treinar comigo à carreira de tiro aos sábados de manhã. A Ruth só tem cinco anos? E então? Sabe abrir as pernas para se equilibrar melhor, agarrar na Magnum 38[14] com as duas mãos para não disparar para cima com o coice, e acerta nos alvos tão bem como os irmãos mais velhos. Temos que estar preparados. Holy shit, a América não é dos estrangeiros. Take a good look at us, you stranger. Somos o artigo genuíno. O say does that star-spangled banner still wave…[15]
Depois de tudo isto, e com esta base eleitoral toda ainda aos berros, os republicanos não têm grande escolha. Podem não ter nada a ver com aquilo, mas não podem ignorar que aquilo existe. Podem perder todo o seu eleitorado de um dia para o outro se escolherem olhar para o outro lado e seguir em frente como dantes, porque a fragilidade da direita americana, depois de chegar a este ponto, nunca mais desceu deste ponto – e chama-se a isto a Força da Inércia, e é uma Lei da Física, e nenhum mero mortal consegue modificar uma Lei tão abrangente como a Lei da Gravitação Universal[16]. Dá a ideia de que basta um toque e a Terra salta mesmo do seu eixo. Vive-se no medo, e as decisões de McCarthy durante esta última semana são o espelho perfeito disso mesmo. O que é que eu devo fazer para não ficar sem o poder?
É por isso que, quando Donald Trump diz aos seus fanáticos que bloqueiem a guerra na Ucrânia uma vez que tem por Putin uma idolatria sem limites[17], eles se atirem à tarefa com unhas e dentes e cheguem ao ponto de chamar “traidor” ao Presidente, até que a manutenção do financiamento à Ucrânia, já aprovada antes deste Cheque ao Rei, tenha que saltar fora até ao Thanksgiving para existir um qualquer orçamento que assegure a viabilidade dos Estados Unidos.
Entretanto, Biden declarou, com todas as letras, que ia tratar com o financiamento à Ucrânia “separadamente”.
Em última análise, o Presidente dos Estados Unidos tem sempre uma caneta de tinta permanente que lhe permite aprovar sozinho toda a legislação e orçamento que muito bem entender.
E é verdade, pelo menos no que toca aos Estados Unidos a democracia é um jogo a doer.
Consegue ser ainda mais violenta do que o Futebol Americano propriamente dito.
E, de facto, não há grande coisa nesta triste história que tenha realmente a ver com a Ucrânia.
Mas a história continua, uma vez que faltam aqui vários capítulos.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] A estatística ainda não mudou desde que eu fui trabalhar no meu doutoramento para Buffalo, NY, em 1989: só 10% dos americanos possuem passaportes.
[2] Ainda alguém se lembra do filme RAMBO IV, o último da série RAMBO? Passa-se no Afeganistão, onde os maus estão escondidos algures entre os ocupantes soviéticos. Depois de uma quantidade sedativa de cenas intermináveis de porrada, e de alguns beijos trocados com a heroína local, o filme acaba com Silvester Stallone a galopar sem sela no meio da tribo afegã com quem tem lutado, enquanto um lápis mágico vai escrevendo sobre a imagem, a tinta dourada, “a equipa de RAMBO IV agradece e encoraja o corajoso povo afegão que continua a lutar pela sua liberdade face ao invasor soviético.” QUE VERGONHA, não é? Mas é a História. Como está sempre a repetir-se, torna-se frequentemente uma grande vergonha.
[3] Eu estava lá a viver nessa altura, e aqueles primeiros dias depois de aparecerem na televisão as primeiras imagens de Guantánamo são inesquecíveis. As pessoas mal olhavam umas para as outras na rua. Os americanos têm-se em tão alta estima que não suportaram ver-se a torturar um único perigoso talibã que fosse. Transformaram logo a palavra “tortura” nas duas palavras “interrogatório intensivo.” Ficaram com a consciência tão tranquila que ainda hoje me pedem, se acham que estou a fazer-lhes demasiadas perguntas, “oh, Clarinha, please, stop waterboarding me!” Claro que o Peter, do FAMILY GUY, já interrogou intensivamente o Brian através de waterboarding. Estavam à espera de quê? Não há mais ninguém como eles, em matéria de golpe de rins.
[4] EU NÃO SEI, nem ninguém sabe. Donald Trump está a ser julgado em 34 processos-crime diferentes movidos por muitos tribunais diferentes; e, mesmo nos Estados Unidos, a Justiça não pode deixar de ser minimamente lenta para ser maioritariamente fiável. É só que já toda a gente está traumatizada e começa a ver corrupções em toda a parte – e, à custa destes processos, o senhor tem agarrado no microfone a bem dizer em todos os dias úteis do último ano.
[5] “Ora, ora! Se querem que eu proteja a Amazónia, então paguem-me para isso!” Poucas vezes ouvi uma coisa assim tão boçal e assustadora. E atenção, que eu sei o que digo. Claro que me lembro do Dr. Salazar, mas francamente. Salazar, ao menos, não era boçal – e era um ditador católico contrário ao Vaticano II, a braços com uma guerra colonial travada já fora de tempo, portanto podia ser o que muito bem lhe apetecesse sem incorrer em riscos tão estúpidos como o de perder eleições.
[6] Mandar a Hillary Clinton para a frente depois de já ter perdido contra um negro que ninguém conhecia e que se chamava Barak Obama e isto nem sequer é um nome normal, ainda por cima numas eleições de solução tão dramática como estas, deve ter sido o maior tiro no pé alguma vez registado nos anais da democracia americana. O pessoal tem várias óptimas razões para não gostar dela. Eu também não gosto. Hei de falar mais sobre o assunto quando vier ao caso.
[7] Parques de estacionamento de casas em atrelados, conhecidas como Recreational Vehicules, que de recreational só têm o nome.
[8] Pessoas brancas que são autêntico lixo. Caracteristicamente gordas, mal vestidas, de cabelo oleoso e com a pele maltratada, sempre aos berros, sempre a beber cerveja, sempre a arrotar, e sempre a fumar, num país onde já mais ninguém fuma. A Kim Basinger fez o papel de uma destas pessoas no filme biográfico 8 MILE, que conta a história da subida ao estrelato do Eminem. Sempre no seu trailer a cortar cupons de desconto dos jornais, sempre a calar-se enquanto o namorado manda vir, sempre a beber cerveja, veste a pele de mãe do Eminem. ALÔ? A KIM BASINGER? A fazer de white trash? E depois quem é que explicava aos meus filhos porque é que mais de metade das rimas do Eminem são a dizer mal da mãezinha?
[9] “FAZER A AMÉRICA GRANDE OUTRA VEZ”, era o slogan da primeira corrida de Trump para a Casa Branca. Comentário dos galinheiros, onde o mexilhão é o mesmo em todo o mundo: “Ora ora, à primeira qualquer um cai.”
[10] Tretas. “Mestiça” digo eu, tendo em conta a sua ascendência maioritariamente caribenha. Os americanos, muito mais directos, limitam-se a dizer que ela é “preta.”
[11] Qualquer coisa como “pois então ainda bem,” mas em inglês a expressão é bastante mais enfática.
[12] Sobre a escolha criteriosa destas águias e destes leões: para cada uma das raças, são os maiores do mundo.
[13] José Sócrates e os seus necrófagos também nos deixaram uma memória extremamente amarga disto mesmo, mas ao menos, no tempo de Sócrates, tanto o chefe como os boys and girls se preocupavam mais com a questão de esconder o jogo. Agora mostram-nos tudo. E ainda ficam a rir depois de desligadas as câmaras.
[15] Início da última quadra do hino nacional dos Estados Unidos.
[16] Por alguma razão raciocinou Isaac Newton que a Força da Gravidade era a face visível de Deus. E todo o Século das Luzes concordou com ele, numa euforia de optismo sem precedentes na civilização ocidental.
[17] Claro, ou é por isto mesmo – o que já seria suficientemente grave – ou é porque Putin está de posse de documentação relativa a Donald Trump de tal forma incriminatória de Crimes Contra a Pátria, e outros, que faz dele o que muito bem lhe apetece – o que, a confirmar-se, seria deveras horrível. Em qualquer uma das duas versões da narrativa, Trump já é bastante pior do que Richard Nixon, uma vez que já é culpado de tirar todo o seu país do sério. E o seu país é muito grande e muito poderoso, mas não é a guerra na Ucrânia.