Categoria: Opinião

  • A terrível e (in)esperada visita do Cisne Negro

    A terrível e (in)esperada visita do Cisne Negro


    O termo Cisne Negro foi popularizado pelo livro The black swan, de Nassim Nicholas Taleb, que mostra como eventos raros e imprevisíveis e de consequências potencialmente graves são muito difíceis de prever, apesar de, quando ocorrem, se observa uma insistência generalizada de que as suas causas e consequências eram antecipadamente óbvias.

    Mas essa imprevisibilidade não significa improbabilidade; apenas significa que não sabemos quando, com exactidão, ocorrerá o evento repentino. Ora, mas se conseguirmos identificar sinais que concorram para esse evento raro e imprevisível, talvez continuemos a não conseguir prever o exacto dia em que irrompe um Cisne Negro por aí fora, mas podemos garantir que ele está a chegar; que a sua chegada é mesmo inevitável.

    white and blue labeled pack

    Qual será então o nosso próximo Cisne Negro?

    Uma crise financeira. E económica.

    E tudo começa pela política monetária implementada pelos bancos centrais após a crise iniciada pela falência do banco de investimento norte-americano Lehman Brothers, em Setembro de 2008.

    Como se sabe, essa política consistiu na compra de activos financeiros pelos bancos centrais directamente no mercado secundário por contrapartida da impressão massiva de dinheiro. O activo de eleição foi a dívida soberana, com consequências na taxa de juro implícita: a sua inexorável descida a valores próximos de zero, ou mesmo negativos, como aconteceu na Alemanha e outros países do norte da Europa. Uma “impossibilidade” teórica escrita em manuais de Economia.

    Como funciona este mecanismo? Os bancos comerciais que participam nos leilões de dívida pública estão plenamente seguros dos seus investimentos, dado que passou a existir um comprador com bolsos infinitos e dinheiro de monopólio: o Banco Central.

    No entanto, importa, em primeiro lugar, explicar a relação entre a taxa de juro implícita e o preço de uma obrigação. Vamos supor que uma obrigação proporciona um pagamento de 10 Euros todos os anos, como se mostra na figura seguinte.

    Análise do valor de uma obrigação com um cupão anual de 10 euros (valor actual vs. rendibilidade)

    Se o leitor investir apenas 100 euros na aquisição dessa obrigação, a taxa de juro que irá receber será 10%; se investir 200 euros será 5%; mas se investir 2000 euros será apenas 0,5%. Vamos resumir:

    1. O valor actual (hoje) dos recebimentos anuais futuros no valor de 10 euros descontados a 10% é 100 Euros;
    2. O valor actual (hoje) dos recebimentos anuais futuros no valor de 10 euros descontados a 5% é 200 Euros;
    3. O valor actual (hoje) dos recebimentos anuais futuros no valor de 10 euros descontados a 0,5% é 2 000 Euros.

    A uma taxa de juro mais elevada corresponde um valor actual menor e vice-versa. Para simplificarmos a nossa explicação, vamos suportá-la num exemplo:

    • os bancos comerciais participam num leilão de dívida pública, em que um dado estado deseja colocar 1000 milhões de Euros no mercado primário;
    • obrigação emitida pelo estado proporciona o tal cupão anual de 10 Euros;
    • no leilão determina que o preço da obrigação é 100 Euros, ou seja, uma rendibilidade implícita de 10%;
    • seguidamente, os bancos comerciais tentam vender a obrigação no mercado secundário;
    • dada a enorme procura do banco central por estas obrigações, o preço das mesmas sobe, estabelecendo-se um novo preço de 200 Euros por obrigação;
    • a nova taxa de juro implícita é 5%, em lugar de 10%, uma descida de 10 pontos percentuais.

    Isto foi precisamente o que aconteceu nos últimos 13 anos. Os Estados e os bancos comerciais passaram a estar seguros de que as suas obrigações eram sempre vendidas ao Banco Central; por essa razão, ocorreu a inexorável descida das taxas de juro implícitas nos últimos anos, em particular em 2020, ano em que ocorreu uma massiva impressão de dinheiro para responder à crise Covid-19.

    Evolução da taxa de juro implícita (%) das obrigações emitidas por Portugal com maturidade a 10 anos. Fonte: Yahoo Finance (análise do autor)

    A pressão compradora do BCE provocou a subida do preço das obrigações, levando à redução da taxa de juro implícita. Na figura anterior, podemos observar que no final de 2021, com a subida da inflação, a taxa de juro implícita está a subir consideravelmente, ainda que de forma controlada.

    E qual o impacto desta política no mercado de acções?

    Vamos agora imaginar que um investidor tem as seguintes expectativas para a empresa ABC, tal como ilustrado na figura seguinte: hoje, perde muito dinheiro, mas, num futuro longínquo, supõe-se que irá ganhar imenso dinheiro. Isto é o que acontece, regra geral, com as empresas tecnológicas. No arranque perdem imenso dinheiro – Amazon, Tesla, Netflix e Uber –, com o propósito de ganhar uma enorme quota de mercado, e depois consolidam a sua posição, podendo vender a preços mais elevados e gerar enormes lucros.

    Expectativa para os resultados da empresa ABC (unidade: euros)

    Nesta figura podemos ver que no primeiro ano a empresa perde 250 Euros; ao longo do tempo, espera-se que vá diminuindo as perdas, até que no 9º ano começa a apresentar resultados positivos, passando, a partir daí, a crescer todos os anos a 0,5%.

    Qual o valor actual dos resultados futuros caso sejam descontados com diferentes taxas de juro? Se descontarmos a 10%, 5% e 4%, trata-se de um investimento não interessante, tal como podemos observar na próxima figura.

    No entanto, para valores inferiores a 4%, o valor actual passa a ser positivo; quando se aproxima dos 0%, o valor actual começa a subir de forma exponencial. Trata-se precisamente do fenómeno que acontece com os mercados financeiros da actualidade. Esta é a explicação para as valorizações estratosféricas a que assistimos recentemente!

    Os estímulos dos bancos centrais durante a crise Covid-19 são paradigmáticos desta situação.

    No início de 2020, o índice Nasdaq 100 situava-se em 8.000 pontos e a taxa de juro implícita das obrigações do tesouro norte-americano a 10 anos situava-se em torno de 2%.

    Quando o Banco Central norte-americano decidiu emitir dinheiro e comprar obrigações do tesouro norte-americano, o preço destes activos financeiros disparou, provocando a descida da taxa de juro implícita para 0,5%.

    Repare-se que ao mesmo tempo o Nasdaq 100 subia de 8.000 para 16.000 pontos, praticamente duplicando de valor em resultado de tal “estímulo monetário” – um eufemismo para denominar a impressão de dinheiro.

    Valor actual de uma empresa com vários cenários de taxas de juro (%)

    Note-se que a partir do final de 2021, com a subida da inflação – a consequência da enorme impressão de dinheiro durante a crise Covid-19 -, os bancos centrais passaram a estar pressionados para reduzir a impressão massiva de dinheiro e a subir os juros.

    Desse modo, o índice Nasdaq 100 não recuperou do máximo histórico ocorrido no final do ano transacto, estando em correcção desde então.

    Em resumo, o valor dos activos financeiros depende da taxa de juro que se aplica aos fluxos financeiros futuros, tal como sobredito no presente artigo.

    O valor de uma obrigação depende do valor do cupão (fluxos financeiros futuros), da capacidade do devedor pagar – se existem dúvidas, o valor da obrigação desce e os juros sobem, como foi o caso da última bancarrota em Portugal – e da taxa juro que se aplica para descontar os cupões.

    Tal como vimos no exemplo no início deste artigo, se o preço da obrigação sobe por pressão compradora do Banco Central, a taxa de juro implícita desce, e vice-versa.

    No caso das acções, estas funcionam igual às obrigações, mas com uma diferença relevante: os fluxos financeiros futuros não são conhecidos, pois numa obrigação o pagamento dos cupões e do capital estão calendarizados desde o início, enquanto os lucros futuros dependem da gestão, do mercado onde a empresa actua e da situação económica em geral.

    Em relação ao Bitcoin (BTC) ou ao Ouro (PAXG), esta relação não se aplica: ou seja, não existe qualquer rendimento – dividendos, cupões, lucros, etc. – associado à sua detenção, dado que a procura por estes activos deriva da sua situação de reserva de valor. São activos com oferta escassa – no caso do Bitcoin, 21 milhões – e não dependentes dos “caprichos” dos bancos centrais.

    Qual então o Cisne Negro a que podemos assistir em breve?

    Evolução do índice Nasdaq 100 (pontos) e da taxa de juro implícita (%) das obrigações do tesouro norte-americano com maturidade a 10 anos. Fonte: Yahoo Finance (análise do autor).

    Nada mais nada menos que o final da bolha da dívida que se iniciou desde o final de Bretton Woods em 1971.

    Desde o início dos anos 80, em que o então presidente da Reserva Federal norte-americana subiu os juros acima de 15%, a política tem sido uma redução sistemática dos juros, através da impressora dos bancos centrais, provocando a subida sistemática da dívida no sistema. Esta situação agravou-se a partir de 2008 e particularmente com a crise Covid-19 em 2020.

    A impressão massiva de dinheiro para aquisição de obrigações emitidas pelos estados do Ocidente elevou a dívida pública à estratosfera, e poderá ser o Canto do Cisne da enorme bolha que é hoje o mercado de dívida – pública, privada e empresarial.

    Se, nos próximos meses, a taxa de juro implícita das obrigações norte-americanas com maturidade a 10 anos subir de forma descontrolada – isto é, atingir os 3% e continuar a subir rapidamente –, poderá advir daí uma visita do Cisne Negro, que porá um fim à bolha de dívida que tem caracterizado a Economia ocidental.

    O dinheiro, tal como o poder, ocupa sempre o vazio.

    Se toda massa monetária “fugir” do mercado de dívida – pois ocorre uma venda descontrolada de obrigações do tesouro norte-americano, e do mercado de acções –, terá inevitavelmente de ir para algum lado.

    Esse lado, na minha opinião, será o das Criptomoedas – em particular, o Bitcoin –, o Ouro e as matérias-primas. Ou seja, activos reais não dependentes de bancos centrais.

    Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Sonae como exemplo de uma mentalidade

    A Sonae como exemplo de uma mentalidade


    A conversa de aumento de salário indexado à produtividade, repetida até à exaustão, é uma narrativa que me enerva. Como tal, acaba em texto.

    Já todos perceberam esta parte, e por isso avancemos para o cerne da questão, como diria Pacheco Pereira, o mais famoso comunista nos quadros do PSD.

    Apesar dos lucros estratosféricos, a Sonae recebeu um apoio do Estado como forma de compensação para o aumento do salário mínimo nacional. Gente que fez a contas reporta que, com apenas 0,15% dos lucros do último ano, a Sonae conseguiria sem qualquer ajuda pública pagar o aumento envergonhado do salário mínimo.

    Cláudia Azevedo, CEO da Sonae

    Ao mesmo tempo, a companhia divulgou um aumento no salário da sua CEO na ordem do meio milhão de euros. Arredondando, chegamos mais ou menos ao apoio recebido do Governo.

    Liberais, apoiantes do Chega, saudosos do Passos Coelho e os quatro apoiantes do Nuno Melo dizem: “Qual é o problema? Uma empresa remunera a sua Administração como bem entender.”

    Permitam-me discordar.

    Uma empresa privada faz o que quer na sua gestão, desde que não receba fundos públicos de apoio.

    Depois, e esta é uma opinião arriscada que assumo, não podem as empresas continuar com este eterno modelo de salários miseráveis na base da pirâmide; e, depois, sem qualquer problema ético ou moral, continuarem a premiar os gestores de topo. Estes recebem salários anuais de milhões; cá em baixo, uma operadora de caixa do Continente luta para sobreviver com 750 euros mensais.

    Se é este o modelo ad aeternum dos empresários portugueses, assumamos todos que queremos um país de mão de obra barata, onde os mais qualificados procuram a porta da emigração e se recusam a viver na pobreza, mesmo trabalhando 40 horas semanais.

    Esse é o drama nacional: ser possível trabalhar 160 horas por mês em Portugal e ser pobre.

    Este é um conceito que, na tal comunidade ocidental, que se resume a 10% dos países mundiais, já não existe. Uma pessoa que trabalhe um horário regular tem, a troco da sua força laboral, a recompensa suficiente para uma vida digna, confortável e digna.

    Não é pobre, não tem que alugar uma casa até à velhice, e, luxo dos luxos, até se pode dar ao desplante de ver um bocadinho do Mundo que a rodeia.

    Numa frase simples, pode viver sem a angústia de escolher entre a conta da luz, os livros escolares dos filhos. Ou o bife de vaca, que a Jonet já nos avisou, há uns anos, não poder ser um hábito, enquanto nos continua a carpir que compremos para o seu Banco Alimentar latas de atum e esparguete para os pobrezinhos no Continente, aumentando os lucros da Sonae e engrossando as receitas de IVA do Estado.

    Aquilo que a Sonae e outros grandes grupos deseja é algo verdadeiramente simples: maximização dos lucros através de baixos salários. Uma espécie de fado português, aqui e ali interrompido pela confederação dos patrões para nos explicar, como se fôssemos todos idiotas, não ser possível aumentar salários (começando pelo mínimo) se a produtividade não aumentar.

    Lembro-me sempre do modelo de negócio da Padaria Portuguesa, com incontáveis lojas em Lisboa e tão elogiada pela sua gestão. Até recordo, com algum carinho, um dos gestores de topo que dizia, numa reportagem qualquer, que o salário não era tudo; o amor que davam aos funcionários era mais importante.

    Compreende-se, porque olhando apenas para o salário mínimo, torna-se difícil sentir a chama da paixão.

    Ao fim de 15 dias de lockdown, por causa da covid-19, a empresa com lucros fabulosos e, uma vez mais, um mundo de distância entre a base e o topo da pirâmide, pedia ajuda ao Governo para pagar salários.

    Portanto, quando me dizem que uma empresa privada, como a Sonae, paga o que quiser aos seus funcionários, eu até sou, enfim, obrigado a concordar. E mesmo quando direccionam apoios estatais para o CEO, eu também, enfim, tenho de aceitar. São os mercados. As regras da gestão privada. Agora, não posso é continuar a engolir a argumentação da produtividade ligada a salários que não sejam de fome.

    Portugal tem uma faixa salarial que nos envergonha. Não está só na cauda da Europa civilizada como se aproxima, a passos largos, do Terceiro Mundo.

    A Sonae choca porque é um dos maiores empregadores, e mesmo assim escolhe, sem qualquer vergonha, a estrada da mais injusta distribuição de lucros entres trabalhadores.

    E se aceitamos, pacificamente, a imoralidade da distribuição dos lucros apenas no topo da pirâmide, estamos apenas a fazer um favor a quem vê nos trabalhadores portugueses uma fonte de rendimento de baixíssimo custo.

    Com o aproximar da data percebe-se que, afinal, talvez seja tempo de uma nova Revolução. Não pode um país, com mais de três décadas a receber fundos europeus, achar normal que 20% da população esteja na pobreza e, entre os que trabalham, mais de 70% traga para casa menos de 900 euros mensais.

    Viver é qualquer coisa mais. Em Portugal sobrevive-se. Sem contestação.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A importância da (verdadeira) Ciência

    A importância da (verdadeira) Ciência


    Num editorial publicado a 19 de Janeiro de 2022, no The British Medical Journal (The BMJ), e que o PÁGINA UM noticiou, a revista mais antiga de medicina do Mundo, Peter Doshi (editor sénior do The BMJ e da equipe News & Views, e professor associado na Escola de Farmácia da Universidade de Maryland), Fiona Godlee (editora-chefe do The BMJ de Março de 2005 até 31 de Dezembro de 2021) e Kamran Abbasi (editor-chefe do The BMJ, médico, professor visitante do Departamento de Atenção Primária e Saúde Pública do Imperial College de Londres e editor do Journal of the Royal Society of Medicine) chamaram a atenção para a urgência da partilha de dados brutos sobre as vacinas e tratamentos à covid-19.  “Devem estar total e imediatamente disponíveis para escrutínio público”, defenderam.

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    Começa o editorial por mencionar fatos históricos, de suma importância: “Nas páginas do The BMJ há uma década, no meio de uma pandemia diferente, veio à tona que governos de todo o mundo gastaram bilhões armazenando antivirais para influenza que não demonstraram reduzir o risco de complicações, internações hospitalares ou morte. A maioria dos ensaios que sustentaram a aprovação regulatória e o armazenamento governamental de oseltamivir (Tamiflu) foram patrocinados pelo fabricante; a maioria era inédita, os que foram publicados foram escritos por escritores pagos pelo fabricante, as pessoas listadas como autores principais não tinham acesso aos dados brutos e os académicos que solicitaram acesso aos dados para análise independente foram negados.”

    Acrescentam ainda os autores que “os erros da última pandemia estão a ser repetidos. As memórias são curtas. Hoje, apesar do lançamento global de vacinas e tratamentos contra a covid-19, os dados anonimizados de participantes subjacentes aos testes para esses novos produtos permanecem inacessíveis a médicos, pesquisadores e ao público – e provavelmente permanecerão assim nos próximos anos. Isso é moralmente indefensável para todos os ensaios, mas especialmente para aqueles que envolvem grandes intervenções de saúde pública.”

    Já sabemos da tendência perniciosa que a História tem em se repetir, mas a História não é autónoma neste feito!

    A repetição fica a cargo daqueles que mais lucram e se beneficiam das nossas curtas memórias, das memórias que tão facilmente são substituídas por novas catástrofes que nos desviam a atenção de um assunto que não deve ser esquecido, negligenciado, ou tido de menor importância – a nossa saúde pública.

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    A mesma saúde pública que durante quase três anos esteve no epicentro de discursos políticos e mediáticos que banalizaram a ciência como se esta fosse do domínio e do entendimento de qualquer cidadão, passível de ser utilizada de forma corriqueira, em debates televisivos que em muito se assemelhavam a conversas de café.

    “É a ciência”, fartamo-nos de ouvir das bocas daqueles que dela, tal como a maioria de nós, percebe muito pouco. E a culpa não é nossa, não somos obrigados a saber de tudo, para isso existem os especialistas, os formados na matéria, os entendedores. E esses, infelizmente, não são os políticos, a big pharma, os médicos, ou os filantropos, todos cheios de boas intenções, as mesmas que, segundo reza o ditado popular, está o inferno cheio.

    Digo infelizmente porque só nos foi dado acesso a estas opiniões, destas mesmas pessoas sem qualificações para tal, que teimam em silenciar ou ignorar os verdadeiros entendidos na matéria: “Deram-nos acesso às publicações, mas negaram-nos o acesso aos dados subjacentes mediante solicitação razoável. Isso é preocupante para os participantes do estudo, pesquisadores, médicos, editores de periódicos, formuladores de políticas e o público”, afirmaram Doshi, Godlee e Abbasi.

    E acrescentaram ainda que “os periódicos que publicaram esses estudos primários podem argumentar que enfrentaram um dilema embaraçoso, entre disponibilizar rapidamente os resultados resumidos e defender os melhores valores éticos que apoiam o acesso oportuno aos dados subjacentes. Na nossa opinião, não há dilema; os dados anonimizados de participantes individuais de ensaios clínicos devem ser disponibilizados para escrutínio independente.”

    Não pretendo questionar o porquê desta falta de transparência na partilha de dados científicos que a todos nós dizem respeito, até porque somos nós, não só os recetores do produto em questão, mas somos também os seus financiadores, enquanto contribuintes.

    Não pretendo também desmotivar ninguém de se vacinar, pois, acredito que em matérias de saúde, como em qualquer outra que diga respeito à liberdade de cada um, a cada um cabe decidir, livremente.

    Também não pretendo afirmar que as vacinas são ineficazes ou prejudiciais, porque isso não sei.

    Mas gostaria muito de saber, gostaria muito de ter acesso à verdadeira Ciência, à Ciência que serve aos interesses de todos nós, e não de apenas alguns; à Ciência que é feita com transparência, sem interesses sub-reptícios, sem agendas escondidas, e essa só é possível de ser feita e avaliada por especialistas independentes, em tempo útil, o que não está ainda, a acontecer.

    “O principal teste de vacina contra a covid da Pfizer foi financiado pela empresa e projetado, executado, analisado e criado por funcionários da Pfizer. A empresa e as organizações de pesquisa contratadas que realizaram o teste detêm todos os dados.”, pode ler-se no mesmo editorial.

    person holding orange and white toothbrush

    E acrescentavam ainda: “Entre os reguladores, acredita-se que a Food and Drug Administration (FDA) dos EUA recebe a maioria dos dados brutos, mas não os liberta proactivamente. Após um pedido de libertação de informação à agência para os dados da vacina da Pfizer, a FDA ofereceu libertar 500 páginas por mês, um processo que levaria décadas para ser concluído, argumentando no tribunal que a divulgação pública de dados era lenta devido à necessidade de redigir primeiro informações confidenciais.”

    Confidenciais?! Agora os nossos dados de saúde, que a nós nos dizem respeito, devem ser de nós escondidos? Para proveito de quem? Para nos proteger do quê? Com que intenção?

    Como escrevi em outro texto aqui no PÁGINA UM, a minha existência pauta-se mais por dúvidas do que por certezas, mas mantenho a esperança de que, neste assunto em particular, não esteja sozinha neste questionamento e exigência da verdade científica.

    E espero que as nossas memórias não continuem a ser curtas, para que não cometamos o gravíssimo erro de deixar, uma vez mais, a História repetir-se.

    Professora universitária


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Um novo Hotel Ruanda

    Um novo Hotel Ruanda


    Poucas coisas se comparam à emoção de ter um texto pronto a enviar, e ver o computador entregar a alma ao Criador antes de o gravar.

    Quer isto dizer que o caro leitor apanhará um texto novo sobre outra temática, produzido quando me passar a neura?

    Não, não senhor.

    O estimado leitor que apoia este jornal vai ler o mesmíssimo texto, mas elaborado com as palavras que a minha memória guardou. Não prometo grande coisa, porque a minha memória apresenta-se, taco a taco, ao nível dos conhecimentos de Excel da doutora Graça Freitas. Mas, convenhamos, o Colombo também não sabia o caminho, e tentou. Vamos a isto.

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    Volto a uma forma particular de argumentação que me enerva: a de que apenas podemos discutir um assunto de cada vez, para não cairmos em whataboutismo. Coisas que me enervam são, aliás, a minha maior fonte de escrita, e felizmente o mundo nunca me desilude.

    Sempre que ouço ou leio a redução mental de “então és um whataboutista“, se, por audácia, discutirmos Palestina, Iémen ou Afeganistão entre um ou outro morteiro no Donbass, fico na dúvida se terei perdido algo nos últimos anos? Nomeadamente no que concerne ao envio de arroz para o Iémen e no acolhimento de afegãos na União Europeia.

    Ouvindo quem recusa o alargamento do debate, parece que estávamos todos imbuídos numa solidariedade monstruosa com as guerras em África, Ásia e Médio Oriente, e, de repente, com um conflito mais próximo, interrompemos os esforços para nos concentrarmos na ajuda aos ucranianos.

    Ora, como se percebe, nada disso alguma vez aconteceu. Os conflitos que geram refugiados há décadas nunca nos mereceram particular interesse, e quem agora inventou essa idiotice do whataboutismo precisa apenas de um escape argumentativo que justifique o racismo encapotado.

    Não é preciso andarmos com voltas e mais voltas, é preferível chamarmos os bois pelos nomes, usando aqui algum português técnico.

    Tedros Ghebreyesus, presidente da Organização Mundial de Saúde, disse esta semana que é importante continuar a ajudar a Ucrânia, mas que, e cito, o “Mundo não presta a mesma atenção às vidas de negros e brancos “. O pobre Tedros não sabe que, por esta altura, em Portugal, já é considerado whataboutista (usou um “mas” no discurso), um comunista e um pró-Putin. Nada mau para uma manhã de trabalho.

    Mas o nosso TG não está só na afirmação. Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido, anunciou esta semana um acordo assinado com o Ruanda para alojamento de refugiados com destino a terras de Sua Majestade. Em abono da verdade, Party Boris não está a ser muito original.

    Já no ano passado, a Dinamarca iniciou um protocolo semelhante com o mesmo Ruanda e outros países africanos. A ideia é simples e pretende desocupar as fronteiras do Reino Unido. Quem ali chegue vindo do Magreb, do Médio Oriente ou de outras paragens problemáticas, em busca de um futuro seguro, será gentilmente recambiado para o Ruanda. Entre fugir de uma guerra na Ásia Central ou desembarcar no Ruanda, julgo que toda uma nova equação de vida se coloca.

    Passei esta semana em Londres, e ouvi diariamente na BBC as críticas e os apoios a esta medida. Um parlamentar dizia que o Reino Unido gastava uma fortuna em hotéis para alojar todos os refugiados que por cá apareciam, e que, como se percebe, o modelo não era sustentável.

    Já enviar essa malta para longe, algures no centro de África, parecia, segundo este deputado, uma medida com futuro. Aliás, para quem sabe um bocadinho de História, os hotéis no Ruanda costumam ser um porto seguro, se não aparecer um machete maroto aqui ou ali.

    Curiosamente, estas medidas não se aplicam a refugiados ucranianos. À primeira vista, comentar esse facto poder-vos-ia parecer um ligeiro whataboutismo, mas, se pensarmos bem, é só uma colocação do referencial no sítio certo.

    Portanto, chega um ucraniano a Londres ou Copenhaga, recebe casa, comida e uma ajuda para voltar a organizar a vida. E ainda bem – já agora, convém dizer isto. Ainda bem.

    Chega um afegão a Gatwick ou um sírio a Kastrup, e, com sorte, acorda dali a uns dias em Kigali.

    No meio disto, aparece o Tedros a dizer que tem a sensação de andarmos a tratar a vida de forma diferente consoante a tonalidade da pele.

    Tedros, Tedros… vê se te acalmas. Ninguém suporta whataboutistas.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • A claque dos generais

    A claque dos generais


    Não tendo passado por qualquer teatro de guerra, nem sequer como soldadinho de chumbo, tenho apreciado com algum vigor os comentários aos comentários no que ao desfilar de militares nas televisões nacionais diz respeito.

    Aparentemente, também se está a formar uma claque de vila bajo e outra de vila arriba – publicidade dos anos 90, sinal primeiro de velhice – para puxar pelos nossos generais.

    Pelo que percebo, se dizem aquilo que achamos ser a lógica da guerra no momento, são as vozes da razão. Já se escorrem opiniões disparatadas, são uns energúmenos ao serviço de alguém. Note-se que somos nós, que nem o serviço militar fizemos, que decidimos o que faz sentido ser dito sobre o teatro de guerra.

    black megaphone pendant

    Jornalistas conceituados como, por exemplo, Fernanda Câncio, insultam generais no Twitter ridicularizando as suas opiniões. Classificando-as como disparatadas.

    Fernanda Câncio pode não detectar uma moscambilha, digamos, no próprio quarto ou no cofre de uma hipotética sogra, mas sobre invasões e reagrupamento de batalhões não pede meças a ninguém.

    Acho extraordinária a arrogância com que arriscamos entrar em campos desconhecidos. É algo muito português esta coisa da convicção na opinião. Não primamos pela busca do conhecimento, mas defendemos, com unhas e dentes, uma opinião pouco fundamentada. Até ao limite. Mesmo que tenhamos de insultar homens que andaram em cenários de guerra como observadores internacionais.

    Tudo porque, no decorrer de uma guerra, eles, os militares, não pensam como nós, que vimos todos os Rambos e até nos emocionámos com o Platoon.

    E nesta coisa das claques definimos logo que uns militares defendem cegamente a causa russa, outros estão pela Ucrânia. A poucos parece passar pela cabeça que aqueles homens, sentados em frente a uma câmara, se limitam a correr o risco de emitir uma opinião para que possam ser mais tarde ridicularizados pelos verdadeiros especialistas de sofá.

    Se afirmam que o exército russo é mais forte, são pró-Putin. Se observam na resistência ucraniana os novos barbudos da Sierra Maestra, logo são pró-Zelensky. Sofrem do delito de opinião e sujeitam-se ao julgamento da Câncio, do Milhazes ou do Rogeiro, que fala por interpostas pessoas com o Zelensky.

    Durante a pandemia tínhamos doutorados em Geologia a dar lições de Saúde Pública, e todos faziam ámen. Agora temos militares a falar sobre guerra e… dizem que todos estão ao serviço de uma agenda qualquer. Tenho a impressão de que o excesso de informação nos retirou a capacidade de raciocínio. Ou, pior, nos deixou com a sensação que sabemos mais do que nos ensinaram.

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    Hoje ouvi um militar na CNN, cujo nome não decorei, a dizer que na preparação da grande batalha do Donbass, as tropas russas estavam com o moral em baixo. A razão? Muitos reservistas vinham de longe, lá dos confins da Sibéria, mal preparados, sem saber bem o que iam fazer para o centro da Europa. Já os ucranianos, com os civis em grande forma e os drones a terem um papel decisivo, estariam em melhor posição para a fase decisiva do conflito.

    Com os afilhados de Putin a ganharem votos por toda a Europa civilizada – veja-se França, por exemplo –, a última coisa que precisamos é que a Rússia ganhe mais território em direcção ao Ocidente.

    De modo que, como nem sequer passei da recruta, espero que o general de hoje tenha razão. Na dúvida, vou ver o que a Câncio diz. Só para ficar esclarecido.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • PÁGINA UM lança FUNDO JURÍDICO para intimação de entidades públicas em prol da transparência

    PÁGINA UM lança FUNDO JURÍDICO para intimação de entidades públicas em prol da transparência


    Poder ir mais longe do que o inicialmente previsto é um dos nossos objectivos. Por isso, anunciamo-vos a criação do FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM.

    Desde Dezembro, dos 16 pareceres da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) que analisaram queixas de jornalistas por falta de transparência de entidades públicas na divulgação de informação, nove são do PÁGINA UM.

    Desses pareceres, quase todos se referem à Direcção-Geral da Saúde (DGS), e há ainda dois que incidem no Infarmed (informação sobre efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do remdesivir), um na Ordem dos Médicos e ainda outro no Conselho Superior da Magistratura (CSM).

    Apesar do sucesso junto da CADA – que, com excepção de um caso muito discutível (acesso aos dados anonimizados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) – fomos constatando estarmos perante vitórias de Pirro: além de os pareceres da CADA demorarem entre três e quatro meses para chegaram a uma deliberação, depois víamos as entidades requeridas quase sempre a menosprezarem o dito parecer.

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    Ou seja, concluímos que a única solução será envolver, no processo, o Tribunal Administrativo, mas isso acarreta um esforço financeiro relevante. Só em custas judiciais, à cabeça, mais de 600 euros por cada intimação, caso se queira precaver a necessidade de recorrer até ao Supremo Tribunal Administrativo.

    Posto isto, a campanha de recolha de fundos, iniciada pelo PÁGINA UM no dia 1 de Abril, para que os leitores pudessem contribuir para os gastos processuais para a intimação do Infarmed no Tribunal Administrativo tem sido um sucesso.

    Em pouco mais de uma semana, recolhemos já quase 4.000 euros, através do MightyCause e por vias tradicionais, e temos já um advogado com experiência em Direito Administrativo a preparar o processo, que deverá estar concluído (até por via do cumprimento de prazos apertados) na próxima semana.

    Mas é esse sucesso (relativo) que faz o PÁGINA UM desejar mais, porque considera que está a cumprir uma missão do jornalismo: contribuir para uma melhor e mais participada democracia.

    Assim, para já, não será apenas sobre o Infarmed que iremos intentar uma acção, mas também sobre o CSM, que recusou liminarmente cumprir um parecer da CADA, convidando o jornalista do PÁGINA UM a recorrer ao Tribunal Administrativo.

    E vamos fazer isso. Mesmo sabendo que o juiz do Tribunal Administrativo que decidir este processo está sob avaliação da qualidade do seu desempenho pelo próprio CSM. Este processo do PÁGINA UM será assim também um teste ao sistema judiciário português.

    E vamos também coligir todos os processos da DGS, e fazer, no final deste mês, também intimação junto do Tribunal Administrativo. Estamos apenas a aguardar mais um parecer da CADA para avançar com o processo.

    Por todos estes motivos, o PÁGINA UM vai manter activa e pública uma angariação de fundos por tempo indeterminado para processos judiciais.

    Constituirá um FUNDO JURÍDICO (neste momento já com quase 4.000 euros) que servirá não apenas para as acções em tribunais mas também para mostrar às entidades públicas – a quem legitimamente pedimos dados administrativos (e dentro daquilo que está previsto na Constituição e, de forma ainda mais clara, numa lei de promoção do “arquivo aberto”, criada em 1993) – que não iremos vacilar em os colocar em Tribunal se continuarem a esconder informação que deveria ser pública.

    Prinscreen da plataforma do Fundo Jurídido do PÁGINA UM, inicialmente criado em 1 de Abril de 2022 para apresentação da intimação do Infarmed junto do Tribunal Administrativo.

    Este FUNDO JURÍDICO terá os montantes recebidos tornados públicos. E será feito, e divulgado trimestralmente, um breve relatório sobre gastos e sobre o desenvolvimento dos processos concluídos e em curso, numa contabilidade distinta da do funcionamento do PÁGINA UM.

    Três notas finais para o caso de ainda não terem reparado, ao fim de quatro meses.

    1 – O PÁGINA UM não nasceu para criar amigos entre políticos e empresários, nem para colocar paninhos quentes em assuntos de melindre, nem para ladrar sem morder.

    2 – O PÁGINA UM nasceu, e mesmo podendo ser ainda pequeno (exactamente por ter poucos amigos no meio político e empresarial), para dar um contributo decisivo para mostrar o que é o Norte de uma democracia: um ponto único e preciso, uma direcção com um só sentido. Para nós, um pouco mais para a esquerda deixa de ser Norte, para passar a ser Noroeste; um pouco mais para a direita deixa de ser Norte para ser Nordeste.

    3 – O PÁGINA UM viverá até os leitores e seus apoiantes quiserem.


    Para apoiar o FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM aceda aqui: MIGHTYCAUSE.

    Pode também escrever, para outras alternativas para o e-mail geral@paginaum.pt.

    Para apoios directos ao jorbalismo do PÁGINA UM pode conceder o seu donativo directo para esta outra campanha, também no MIGHTYCAUSE.

    Para apoios regulares podem utilizar a plataforma STEADY.

  • Sei o que fizeste no Verão passado, Manuel Carvalho…

    Sei o que fizeste no Verão passado, Manuel Carvalho…


    No seu editorial do passado 4 de Abril no jornal Público, Manuel Carvalho zurze em “majores generais” e em “aprendizes de espiões” que promovem a desinformação.

    Omitiu ele que o Público foi já um promotor de desinformação na primeira fase da injustificável invasão da Rússia, quando anunciou, em 25 de Fevereiro, que 13 soldados ucranianos tinham sido massacrados na ilha das Serpentes, para surgir três dias depois com uma, enfim, “actualização” (sic): afinal os homens estavam vivos. O Polígrafo tratou de fazer a “limpeza“. Ou tentar fazer.

    O Público, esse, e Manuel Carvalho, esse, não pediram desculpas aos leitores. Por quem sois.

    Nem se lembrou ele serem essas atitudes desresponsabilizantes – que perpassam a legacy media –, que alimentam hoje a falta de confiança dos leitores na imprensa, nos jornalistas.

    Colocar dúvidas sobre os agentes do massacre de Bucha não se deve à desinformação que possa vir da propaganda russa – como em tempos houve propaganda norte-americana para justificar a invasão do Iraque – nem às análises mais ou menos enviesadas e erradas de “majores generais” alegadamente putinistas ou de “aprendizes de espiões” sem o corte de cabelo de Nuno Rogeiro.

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    A incredulidade deve-se à situação da imprensa, à qualidade da sua informação, porque quase todos os jornalistas deixaram de querer ser meros observadores ou árbitros, que são funções nobres e primordiais numa sociedade democrática, para se transformarem em diligentes arautos da verdade imediatista, em sacerdotes de uma doutrina maioritária.

    Na pressa, e sobre a pressão de serem os primeiros, muitos jornalistas optam por “publicar” agora primeiro e “confirmar” depois, subvertendo o princípio basilar do jornalismo. Na verdade, nem sequer confirmam depois, ou se o fazem e verificam que meteram os pés pelas mãos, saem de mansinho como sendeiros.

    Nunca a imprensa mainstream gosta de admitir ser o rei que vai nu, e até tem horror ao espelho. Não acredita sequer que não acreditam nela, e quando se lhe mostra o descrédito, apontam-no como mera maledicência de uma minoria sem expressão da realidade.

    Não é, por mais vezes e vozes que lhes diga o contrário.

    O descrédito de jornalistas como Manuel Carvalho é um descrédito que plasma sobretudo nos momentos em que, pomposamente, se entoam grandiloquentes princípios de ética jornalística.

    Note-se esta passagem do seu editorial de 4 de Abril, após a zurzidela nos “majores generais” e “aprendizes de espiões”, e onde defende até o seu direito a expressarem-se [presumo que com um letreiro a atestar serem “desinformadores, pela forma como ele os destrata]:

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    Se há um reduto inexpugnável para o jornalismo é o da liberdade de expressão. Um bem precioso, mas delicado, que é melhor ter a mais do que a menos. Uma leve amputação pode confortar a consciência no presente – mas implica um risco para o futuro.”

    Ui! Palavras como boomerangs!

    Vamos ser claros: sei o que fizeste no Verão passado, Manuel Carvalho…

    Ou, pelo menos, no dia 19 de Agosto de 2021.

    “Despublicaste” um artigo de opinião do médico Pedro Girão, e ainda escreveste, para opróbrio do dito, a seguinte nota editorial intitulada “Um erro e um pedido de desculpas”:

    Um erro de controlo editorial corrigido nesta quinta-feira às 17h42 permitiu que um artigo de opinião (‘Uma vacina longe de mais’) assinado pelo médico anestesiologista Pedro Girão estivesse disponível na nossa edição digital durante horas.

    A sua despublicação justifica-se não apenas pelo tom desprimoroso e supérfluo usado pelo autor em relação a várias personalidades da nossa vida pública, como pelo seu teor que, de forma ora mais velada, ora mais explícita, tende a instigar a ideia de que a vacina contra a covid-19 é ‘uma experiência terapêutica’ sem validade científica.

    Como é do conhecimento dos nossos leitores, o PÚBLICO é um jornal que cultiva e estimula a diferença de opiniões que alimenta as sociedades democráticas. Mas há padrões e valores que não podem ser cedidos em nome do pluralismo. Numa questão tão sensível como a da pandemia, recusamos em absoluto promover juízos que tendem a negar a importância ou o relativo consenso científico em torno das vacinas.

    Por isso errámos ao publicar o texto e por isso agimos com a celeridade possível para corrigir esse erro, despublicando o artigo em questão e pedindo desculpas aos nossos leitores pelo sucedido.

    Ora, hoje sabemos que Manuel Carvalho errou, mas não foi apenas por ter exercido um reles acto de censura, ainda mais eufemisticamente auto-classificado de “despublicação”.

    Manuel Carvalho cerceou uma opinião porque, entre outros considerações, recusava “em absoluto promover juízos que tendem a negar a importância ou o relativo consenso científico em torno das vacinas”, e Pedro Girão era uma das vozes que publicamente criticava o tema quente de então: a vacinação de adolescentes.

    Mas hoje sabemos sobretudo que o consenso em redor das vacinas em adolescentes nunca existiu mesmo no seio da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), que integra 12 insuspeitos “peritos”.

    E sabemos não graças a perguntas de Manuel Carvalho ou dos jornalistas do Público – que sempre se mantiveram unha com carne da narrativa do Governo, do Presidente da República e da Direcção-Geral da Saúde – alvos das críticas do artigo “despublicado” de Pedro Girão –, mas das insistências e da luta do PÁGINA UM.

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    Sabemos hoje porque o PÁGINA UM perguntou pelos documentos à DGS, e não ficou satisfeito com o silêncio, e recorreu à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, e insistiu e insistiu, e ganhou para os “arrancar”. Não foi o Público nem Manuel Carvalho que fez isso.

    Sabemos hoje porque o PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social que fez perguntas incómodas à DGS e lhe pediu documentos para comprovar ou desmentir a narrativa. Não foi o Público nem Manuel Carvalho que fez isso.

    Sabemos hoje, graças ao PÁGINA UM, que em 8 Agosto do ano passado, 11 dias antes do acto de censura do Público a Pedro Girão, que cinco membros da CTVC não votaram favoravelmente o parecer que recomendava a vacinação dos adolescentes. Quatro dos 12 peritos votaram contra, e um decidiu não votar. Não foi o Público nem Manuel Carvalho que divulgou essa informação.

    Informação essa que deveria ser agora cruzada com o acto de censura de Manuel Carvalho em Agosto de 2021 e com esta frase do mesmo Manuel Carvalho em Abril de 2022: “uma leve amputação [leia-se, censura] pode confortar a consciência no presente, mas implica um risco para o futuro”.

    Nunca vai haver desculpas de Manuel Carvalho, porque não se pode esperar desculpas quando se andou meses e meses a fio alimentando e propalando o mito do consenso, o mito da certeza absoluta baseada na Ciência, o mito da existência de uma estúpida, tresloucada e marginal franja de “negacionistas assassinos” anti-vacinas, onde se metia todos aqueles que questionavam e incomodavam com perguntas e opiniões dissonantes.

    Aquilo que Manuel Carvalho e o Público fizeram, ao longo de toda a pandemia, não foi defenderem a liberdade de expressão e de opinião; foi sim o oposto. Chegaram ao cúmulo de se munirem de um lápis negro para “limpar” supostas heresias, quando, por engano, não se aperceberam do conteúdo.

    Isto não pode jamais ser esquecido, e deve ser agora sobrelevado mais ainda por causa do fingido editorial de Manuel Carvalho do passado 4 de Abril.

    Mas, para mim, pior do que aquilo que Manuel Carvalho fez no Verão passado, é aquilo que Manuel Carvalho fez no final do Inverno passado e na Primavera que se iniciou. E continuará a fazer.

    Já passaram 24 dias – não são 24 horas, são 24 dias – desde que o PÁGINA UM publicou integralmente – até para a concorrência ver, ler e usar – todos os pareceres da CTVC, incluindo aquele de 8 de Agosto de 2021 sobre o programa de vacinação dos adolescentes.

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    Nesse parecer mostra-se, prova-se, de forma indesmentível, que o consenso nunca existiu sobre a vacinação de adolescentes. Mostra-se, prova-se, que Pedro Girão tinha razão quando escreveu, por exemplo, que “a posição do Presidente da República nessa matéria [apoio incondicional à vacinação de adolescentes] é absolutamente escandalosa, parecendo baseada em conhecimentos débeis do assunto, em hipóteses duvidosas, em desvario emocional, ou em possíveis interesses.”

    Para Manuel Carvalho, isso pouco importa agora.

    O PÁGINA UM até chegou a aguardar três dias, depois de 14 de Março passado, antes de escrutinar o conteúdo daquele parecer dos adolescentes, e fazer a notícia sobre o assunto. Quis testar a legacy media; saber se a concorrência pegava no assunto.

    Confirmou-se. Ninguém quis. Pudera: arder-lhes-iam as mãos. Teriam de se vergar, e envergonharem-se pelos actos passados.

    Nem quando a própria DGS divulgou no seu site os ditos pareceres, que desmoronam toda a narrativa do alegado consenso, a imprensa mainstream se mexeu. Era o que faltava.

    Ah, mas talvez eu esteja a ser demasiado exigente com Manuel Carvalho. O Verão passado já passou.

    As suas incongruências e hipocrisias, não.

    Contudo, não se livra Manuel Carvalho de uma coisa: escrevendo ele agora, no ano da graça de 2022, que “se há um reduto inexpugnável para o jornalismo é o da liberdade de expressão”, então eu direi, ao abrigo da liberdade de expressão, que o jornalismo deveria expugnar-se de pessoas como ele.

    São pessoas como ele, Manuel Carvalho, que, infeliz e lamentavelmente, embora se espere não inexoravelmente, descredibilizaram a imprensa.

  • Um louvor ao regime

    Um louvor ao regime


    No próximo dia 25 de Abril de 2022, o actual regime irá completar 17.532 dias, ultrapassando o Estado Novo, que durou 17 499 dias.

    Pela semelhança de duração, julgo estar na hora de realizar um balanço; no fundo, aquilatar os resultados obtidos em cada período. Sem pruridos. A democracia, ser democrata, devia significar não ter medo de comparações.

    Esta avaliação política seguramente não irá ocorrer nas próximas comemorações do 25 de Abril, onde os nossos representantes, por razões óbvias com uma fralda a tapar-lhes a cara – em 2020 não podia haver mascarados –, irão proferir discursos encomiásticos à nossa insigne democracia, por contrapartida às misérias e desgraças do Estado Novo.

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    A incessante entoação de panegíricos ao regime também conta agora com uma comissão organizadora dos 50 anos, presidida por um apaniguado, que terá direito a uma sinecura de seis anos, com um salário mensal de cerca de 4.500 euros brutos e um préstito de assessores.

    Uma das bandeiras do actual regime é o desenvolvimento económico. Será mesmo assim?

    Será que a economia portuguesa tem convergido com economias desenvolvidas ao longo dos últimos 170 anos?

    Se analisarmos a evolução do produto interno bruto (PIB) per capita de Portugal, corrigido pela paridade do poder de compra (PPC), em relação a uma média simples de 12 países desenvolvidos para os últimos 170 anos, podemos constatar que o período do Estado Novo foi aquele de maior enriquecimento dos portugueses.

    Evolução do PIB per capita português (%) face à média aritmética simples de 12 países (Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Estados Unidos da América, França, Holanda, Noruega, Reino Unido e Suécia) em USD (corrigido pelo PPC); Fonte: Luciano Amaral (Convergência e crescimento económico em Portugal no pós-guerra) até 1992; Banco Mundial, a partir de 1992 (análise do autor).

    A 1ª República deu continuidade à divergência económica que ocorreu durante todo o século XIX, em que Portugal ficou completamente relegado à irrelevância, com uma queda de 7,6 pontos percentuais. Em 1974, o PIB per capita de Portugal era de 57,5% da média aritmética do PIB per capita de 12 países desenvolvidos, uma subida de mais de 30 pontos percentuais.

    O que logrou o presente regime?

    Para além de três bancarrotas – seguramente virá aí a quarta –, apenas uma convergência positiva de 4,8 pontos percentuais ao longo de 46 anos. No entanto, com uma agravante: a dívida pública encontra-se agora na estratosfera. Nunca na História de Portugal tivemos uma dívida desta dimensão.

    Evolução da dívida pública portuguesa em percentagem do PIB entre 1850 e 2021. Fonte: Mata e Valério (1994); Banco Mundial; Eurostat (análise do autor)

    No final de 1974, a dívida pública em percentagem do PIB era de apenas 13,9%; actualmente, situa-se acima em 127,4%. Ou seja, enquanto o Estado Novo reduziu-a em 60 pontos percentuais, o presente regime presenteou-nos com uma subida de 114 pontos percentuais.

    Para elevar a dívida pública ao Olimpo, o actual regime serviu-se do seu carácter frascário: estádios sem espectadores, duas e três auto-estradas para o mesmo trajecto, parcerias público-privadas sem risco e com retorno assegurado para os amigos, aeroportos sem passageiros e aviões, comboios de alta velocidade que nunca saíram do papel, clientelas em casa sem trabalhar enquanto decorria uma “pandemia” anunciada por uma imprensa obnóxia.

    Em resumo, esta mísera convergência económica foi alcançada com uma dívida pública astronómica, que se agravou substancialmente a partir de 2000 com a adesão ao Euro, esse projecto, anunciado na altura pelo actual possidónio que lidera a ONU, que nos ia retirar das profundezas do atraso económico.

    No que respeita ao mercado de capitais, em lugar de melhorarmos, simplesmente estamos muito pior, apesar de um autêntico exército de reguladores e polícias de mercado. O actual mercado de capitais vale apenas 38% do PIB, enquanto em 1974 valia 66%.

    Quem não se recorda da equipa do ex-vendedor de PCs Magalhães, aquele que recebeu um milhão de contos num cofre da sua mãe – até hoje ainda não descobrimos como os converteu em euros -, e que se encarregou de destruir várias empresas cotadas na bolsa de Lisboa, em conluio com o então DDT do regime?

    PIB português em 2021 vs. capitalização bolsista no final de 2021 e 1974 em milhares de milhões de euros. Fonte: Filipe S. Fernandes (Os Empresários de Marcello Caetano), CMVM; Eurostat (análise do autor)

    O que tem acontecido nas últimas décadas desde a adesão ao Euro?

    Não parámos de descer na ordenação descendente do PIB per capita.

    Entre 1999 e 2020, passámos de 15ª posição, num conjunto de 25 países da União Europeia, para o 19ª. Em 2021, fomos ultrapassados pela Hungria; agora, corremos o risco de sermos ultrapassados pela Roménia: um país que viveu durante décadas um pesadelo comunista!

    A Grécia, o país que nos tem acompanhado na vida de mendicante, com uma dívida pública colossal, acima de 220% do PIB, e que tem passado a vida a solicitar perdões de dívida, está agora em risco de ser ultrapassada pela Bulgária!

    Já não falta muito para nos tornarmos junto com a Grécia um dos países mais envelhecidos do mundo e a caminho de ser o carro-vassoura da Europa: vamos seguramente disputar o pódio com os gregos em breve.

    Somos agora, além de tudo isto, um país envelhecido, resignado, manietado e que aceita sem qualquer assuada todas as directrizes do poder, independentemente de as mesmas terem qualquer base constitucional. O que importa é a reforma, o subsídio ou a sinecura junto do Estado; esse é o desejo de qualquer jovem licenciado que deseja ter uma “vida sossegada”.

    PIB per capita, corrigido pelo paridade do poder de compra, em 1999 e 2020 de 25 países da União Europeia (Unidade: USD). Fonte: Banco Mundial (análise do autor).

    Aqueles que desejam alcançar algo na vida, nada mais lhes resta do que emigrar, atendendo que a produção de riqueza é tributada com enorme violência. Em 2018, a receita fiscal em percentagem do PIB era de 37,1%, quando no Estado Novo não superava os 15%, apesar de ter enfrentado uma guerra colonial a decorrer em várias frentes.

    Estamos agora sem qualquer soberania. A soberania monetária foi entregue há muitos anos ao Banco Central Europeu (BCE). A partir de então temos passado a viver de mão estendida, à espera de que esta entidade nos adquira a nossa dívida pública para que possamos pagar as contas.

    A soberania política também não existe, a maioria das nossas leis é aprovada em Bruxelas sem qualquer controlo democrático.

    O nosso Parlamento apenas serve para ratificar o que lá se aprova, e enviar comitivas a Bruxelas para suplicar a mutualização da dívida pública europeia, que aconteceu como uma medida de “combate à crise pandémica”.

    Os líderes do regime não cabiam em si de contentes, quando a grande líder, eleita ao melhor estilo de uma ditadura comunista, nos visitou para anunciar que não só iria haver dívida mutualizada, mas também a bazuca europeia estaria a caminho.

    Apenas se esqueceu de dizer que a Europa não tem dinheiro, e que irá utilizar a impressora do BCE para “produzir” aquele que nos faz falta. Ao mesmo tempo, todos vão assobiar para o ar e acusar a Rússia pela inflação desta loucura monetária que estamos a viver.

    E para que servirá o dinheiro da bazuca? Enquanto a inflação dispara e destrói o poder aquisitivo da população, os hábitos dissipadores dos nossos líderes vão continuar de boa saúde.

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    Podem continuar a vencer eleição atrás de eleição com a maior das felicidades, anunciando promessas com o dinheiro dos outros, alimentando clientelas eleitorais – reformas, pensões e subsídios – e pagando à imprensa para se manter submissa e incapaz de qualquer escrutínio.

    Com uma população submissa e envelhecida, incapaz de compreender o empobrecimento contínuo e a riqueza de uns poucos, tudo será cada vez mais fácil.

    Em conclusão, a ópera-bufa que irá ter lugar daqui a uns dias, acompanhada de panegíricos sem qualquer sentido, será o símbolo perfeito da decadência a que chegámos.

    De um país que foi a moeda reserva do mundo entre 1450 e 1530; que foi pioneiro da globalização; que realizou um dos maiores desembarques anfíbios da História – a tomada de Ceuta, em 1415 –; que possuía a quarta capital europeia mais populosa no início do século XVIII; que enfrentou sozinho a esquadra do império otomano em 1717; que foi, até ao final do século XVIII, um dos países mais ricos do Mundo, é agora o gracejo da Europa.

    O seu supremo prócere máximo até liga agora para um programa em directo para felicitar a senhora que o realiza aos guinchos e aos berros.

    O actual regime faz bem em manter a estátua colossal do facínora no topo da Avenida da Liberdade, pois partilha com o Estado Novo o desprezo absoluto pelas liberdades dos portugueses, e a homenagem a tal tirano. Nisso estão juntos com Salazar!

    Gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • De Bucha a Haia, passando pelas trincheiras da opinião

    De Bucha a Haia, passando pelas trincheiras da opinião


    Observei com a estupefacção de quem vê um acidente entre dois camiões, a voracidade das discussões sobre Bucha, na Ucrânia. Com cadáveres espalhados no chão, e um cenário que já não estamos habituados a ver na Europa (que é diferente de não existir), as trincheiras voltaram a formar-se a uma velocidade estonteante.

    Li e ouvi todo o tipo de teorias sobre a autoria daquelas mortes. A Ucrânia acusa a Rússia de crimes de guerra, enquanto do Kremlin chegam notícias contrárias. Até aqui nada de novo: é uma guerra, ninguém assume seja o que for até ao dia de se apresentar em Haia.

    Mas por cá, confortavelmente sentados nos nossos sofás, escorremos ódio baseado em certezas absolutas.
    Discutimos teorias, ouvimos generais que defendem que tudo aquilo foi encenado. Outros dizem-nos que os russos estão a repetir a barbárie da Síria. Foi a mão que abanou à passagem dos soldados, as faixas com Z que indicariam a proximidade com os russos por parte das vítimas ou os corpos, em teoria ali deixados há três dias (altura da partida dos russos) que não mostravam um estado de decomposição satisfatório para 72 horas.

    Zelinsky acusado por uns por usar Bucha como uma última cartada para puxar o “Ocidente”, ao mesmo tempo que as hipóteses de acordo de paz se vão esfumando. Putin, garantem-nos, desistiu de Kiev, assumindo essa derrota para apostar tudo na conquista do leste ucraniano, unindo territórios com a Crimeia. Bucha tem todo o ar de ter sido um crime de guerra daqueles que, cedo ou tarde, chegam a Haia.

    Em momento algum se tentou perceber o óbvio ou, pelo menos, perguntar o que mais interessa: de quem são aqueles corpos esquartejados no meio do chão?

    Entre teorias de trincheira, alguém parou para pensar dois minutos que, factualmente, estavam ali centenas de pessoas atiradas para o chão, mortas, assassinadas, sem qualquer piedade?

    Gente que terá filhos algures, família que procura saber deles, amigos que perderam o seu paradeiro. Gente como nós que está ali a figurar num quadro de horror para que, agora, no quente do lar, possamos discutir teorias sobre quem os matou, e para que, em conjunto, consigamos odiar o outro lado da barricada.

    Ouvi os noticiários durante 24 horas. Li todas as teorias possíveis e imaginárias. Escutei generais, jornalistas e analistas de uma forma geral. Segui discussões intermináveis sobre o crime ou montagem. Nem uma palavra sobre os seres no chão que outrora estavam vivos.

    A famosa coluna de 64 quilómetros do exército russo, estacionada nos arredores de Kiev durante semanas, parece ser agora um depósito de ferro-velho. Ainda bem, acrescento eu. Há notícias de, durante o reagrupamento das tropas em direcção a leste, aldeias e vilas terem sido pilhadas por russos. Mulheres e meninas apresentam agora as primeiras queixas de violação, em zonas que foram reconquistadas pelo exército ucraniano. Molestadas por soldados russos e, quem diria, também ucranianos (segundo o The Guardian).

    A eterna discussão do lado civilizado numa guerra fez-me lembrar a história das invasões napoleónicas e dos nossos eternos aliados ingleses: depois de nos ajudarem a expulsar os franceses, roubavam ainda mais do que aqueles no regresso a casa.

    Aprendi nas últimas horas todas as hipóteses teóricas do que poderá ter acontecido em Bucha. Tudo, menos quem morreu e por que razão. O mais importante, portanto, e o que verdadeiramente me interessa.

    Entre as discussões políticas e as convicções ideológicas, vamos esquecendo que gente com uma história inocente está a pagar por decisões dos governantes.

    É nisto que penso quando vejo os gritos de trincheira nas redes sociais.

    É disto que me lembro quando vejo narrativas ensaiadas que nos obrigam a escolher um lado, seja ele qual for, e ali ficar, independentemente daquilo que a realidade nos vai mostrando.

    Vamos perdendo a sensibilidade e o afecto. Queremos ter razão. Queremos que a nossa teoria passe no crivo dos vencedores. Não queremos saber de quem vai tombando. São danos colaterais.

    Bucha diz muito sobre o agressor, bastante sobre a linha das regras que alguns julgam existir numa guerra. E, claro, qualquer coisa sobre nós.

    Engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Das árduas batalhas em defesa do jornalismo independente e da transparência

    Das árduas batalhas em defesa do jornalismo independente e da transparência


    O PÁGINA UM tem mantido, muito por via do apoio dos seus leitores, uma postura intransigente na defesa do jornalismo rigoroso e isento, sabendo, desde o seu nascimento, que tem um caminho espinhoso a percorrer. Não tem sido batalha fácil, até porque desgastante, porque com várias frentes.

    Recordamo-nos que, dois dias após o nascimento formal do PÁGINA UM, a CNN Portugal encetou, em 23 de Dezembro do ano passado, um vil ataque, acusando-nos de ser uma “página negacionista” e “anti-vacinas”, acusação ‘apadrinhada’ pela Ordem dos Médicos, e acompanhada por outros órgãos de comunicação social, como Público, Expresso, Lusa e Observador.

    Recentemente, após uma estranha deliberação que ilibou o Público, e que está agora em fase de reclamação, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) acabou de tomar a decisão de obrigar a CNN Portugal a publicar na íntegra o meu texto de resposta em defesa dos valores do PÁGINA UM. Apesar de formalmente a notificação ter chegado ao PÁGINA UM na sexta-feira passada, e o mesmo terá sucedido com aquele canal televisivo, o direito de reposta não foi ainda publicado. Estaremos atentos.

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    A obrigatoriedade de publicar o texto de direito de resposta não será a única consequência para a CNN Portugal. A ERC determinou o envio do processo para a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, e o PÁGINA UM acompanhará com detalhe o assunto, para que não haja “esquecimentos”. E outras medidas ainda serão tomadas.

    Entretanto, esta manhã, o PÁGINA UM enviou a sua defesa relativamente à queixa junto da ERC por parte da Sociedade Portuguesa de Pneumologia e do seu presidente António Morais. A defesa do PÁGINA UM, que decidimos tornar pública desde já, conta com 39 pontos em 11 páginas.

    E como consideramos que a ERC tem a obrigação, porque está nas suas atribuições, defender o jornalismo de ataques soezes e sem provas, apresentámos uma queixa naquela entidade reguladora contra António Morais, presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia.

    Em causa estão frases daquele responsável que, por exemplo, acusam os artigos do PÁGINA UM, que denunciaram as relações comerciais entre a Sociedade Portuguesa de Pneumologia e o sector farmacêutico, de terem “consequências para a saúde públicas”. Estamos assim perante graves ofensas ao livre exercício do direito à informação e à liberdade de imprensa; uma torpe tentativa de condicionar a independência de um órgão de comunicação social independente perante os poderes económicos; e uma agressão à efectiva expressão e ao confronto das diversas correntes de opinião, em respeito pelo princípio do pluralismo e pela linha editorial do PÁGINA UM.

    Campanha de angariação de fundos para intervenções judiciais do PÁGINA UM no MIGHTYCAUSE

    Aguardamos que esta queixa, que agora também divulgamos publicamente, constitua também um teste à ERC, de modo a apercebermo-nos se estamos perante uma entidade reguladora, que defende a comunicação social, ou se esta apenas deseja supervisionar e controlar a comunicação social.

    Por fim, o PÁGINA UM está em fase de preparação da intimação junto do Tribunal Administrativo para obrigar o Infarmed a disponibilizar os dados em bruto dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 e do remdesivir, uma vez que esta entidade reguladora dos medicamentos se recusou a cumprir o parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA).

    O PÁGINA UM, através de uma angariação de fundos do MIGHTYCAUSE, que já recolheu um pouco mais de 2.200 euros, tentará usar esses apoios dos leitores para apresentar outras intimações, nomeadamente para a Direcção-Geral da Saúde disponibilizar dados escondidos.

    Nesta linha, e com o vosso apoio, contribuiremos para uma sociedade mais interventiva e esclarecida, e para uma Administração Pública mais transparente e acessível.

    Enfim, o PÁGINA UM fará sempre aquilo que se deveria esperar de um órgão de comunicação social: pugnar pelos princípios da democracia.