Categoria: Exame

  • Negócio de meio milhão de euros promovido pelas Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos acabou literalmente no lixo

    Negócio de meio milhão de euros promovido pelas Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos acabou literalmente no lixo

    Foi anunciado, com pompa e circunstância, por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, bastonários das Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos, como um equipamento fundamental para proteger os intensivistas e anestesiologistas que entubavam doentes-covid. Foram adquiridas 500 unidades pelo fundo “Todos por Quem Cuida“, e aprovado um financiamento comunitário, que envolveu no total cerca de meio milhão de euros. Mas, em poucos meses, foi tudo para o lixo. A Food & Drugs Administration considerou, em meados de 2020, que aquelas estruturas nada protegiam e até poderiam ser perigosas para médicos e doentes. Uma história de despesismo que faz lembrar o célebre conto O rei vai nu, até porque até um leigo percebia que as caixas de protecção nada protegiam e até obstaculizavam os movimentos dos médicos. Quem mais beneficiou foi o vendedor das caixas, uma empresa de acrílicos e materiais plásticos para expositores e decoração. Este é o quinto artigo de uma investigação jornalística do PÁGINA UM, profusamente documentada, que merece ser um caso de polícia.


    É um daqueles evidentes casos que faz lembrar o célebre conto novecentista O rei vai nu, do dinamarquês Hans Christian Andersen: em meados de 2020, a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos gastaram 184.500 euros em meio milhar de estruturas de policarbonato para suposta protecção dos médicos no momento da entubação orotraqueal, que acabaram literalmente no lixo hospitalar por ineficientes e perigosas, tanto para anestesiologistas e médicos intensivistas como para os próprios doentes.

    Apesar de saltar à vista, mesmo a um leigo, que as denominadas “Caixas Protector 2020” jamais conseguiriam uma separação estanque entre os profissionais de saúde – já em si com equipamento de protecção individual suficiente –, aparentemente não se terá reparado convenientemente que os simples buracos onde os médicos metiam os braços para manipular o tubo do ventilador lhes dificultaria os movimentos, podendo mesmo colocar em risco o doente.

    man in white medical scrub lying on hospital bed
    Nos primeiros meses da pandemia, decidiu-se “inovar”, decidindo que não bastava usar equipamentos de protecção individual.

    Embora tenha sido anunciado em artigos e peças televisivas como sendo um equipamento de protecção extraordinário, intensivistas e anestesiologistas contactados pelo PÁGINA UM garantem que foram pouco ou nada usados, tendo mesmo sido abandonados (e deitados fora). Essa decisão surgiu sobretudo a partir de meados de 2020 quando a Food & Drugs Administration (FDA) proibiu o seu uso.

    A agência norte-americana concluiu “não [ser] razoável acreditar que o produto pode ser eficaz na diminuição da exposição do profissional de saúde a partículas transportadas pelo ar, e pode, em vez disso, contribuir para um aumento na exposição dos profissionais de saúde a aerossóis e partículas [infectadas]”. E acrescentava que “além disso, os artigos da literatura observam riscos potenciais da barreira protectora, como aumento do tempo de intubação, taxas de sucesso de intubação de primeira passagem mais baixas e danos pessoais pelas partículas escapando de caixas de intubação, através dos orifícios de acesso aos braços, atingindo a face do profissional de saúde que realiza a intubação endotraqueal”.

    Caixas de (suposta) protecção apenas envolviam a cabeça do doente e o médico tinha de colocar os braços em buracos na estrutura de policarbonato sem qualquer estanquicidade. Acreditar, como se acreditou, que esta estrutura impedia saída de aerossóis lembra o conto O rei vai nu.

    Mas aquilo que era uma evidência óbvia foi sempre ignorada e permitiu mesmo uma operação de marketing dos bastonários da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e dos Farmacêuticos, Ana Paula Martins – agora indicada para gerir o centro hospitalar que integra o Hospital de Santa Maria – aquando da primeira entrega destas perigosas caixas em hospitais públicos.

    Pelo menos em duas acções, nos dias 27 de Abril e 12 de Maio de 2020, os dois bastonários desdobraram-se em elogios às ditas caixas de protecção, bem como à campanha “Todos por Quem Cuida”, a qual geriam pessoalmente. Numa das suas intervenções na comunicação social, Miguel Guimarães garantia também que as ditas caixas de protecção tinham sido desenvolvidas “pela indústria portuguesa e médicos, nomeadamente especialistas da área de anestesiologia”.

    Ignora-se se o Colégio de Anestesiologia da Ordem dos Médicos – órgão estatutário independente do bastonário – teve uma intervenção directa neste processo, até porque Miguel Guimarães recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul de uma sentença que o obrigava a disponibilizar todos os pareceres técnicos aprovados desde 2020. Contudo, mostra-se abusivo considerar que as caixas de protecção foram desenvolvidas pela “indústria portuguesa”.

    Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, em campanha de marketing, quando o fundo “Todos por Quem Cuida” ofereceu 500 caixas de protecção que a FDA consideraria inúteis e perigosas.

    Na verdade, o processo foi mais simples. Os três gestores da conta “Todos por Quem Cuida” – Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves – decidiram simplesmente contratar a Gravoplot – uma empresa de produção de sobretudo acrílicos e materiais plásticos, bem como de gravação a laser, para expositores e decoração – para fazer, em série, as 500 unidades de “caixas de protecção”, ao preço de 300 euros, cada. Acrescido o IVA, o preço final ficou em 184.500 euros, sendo que as facturas foram remetidas para a Ordem dos Médicos, mas pagas pela conta solidária.

    Como já referido pelo PÁGINA UM, a não saída de verbas da Ordem dos Médicos por estas compras pagas pelo fundo solidário possibilitou condições para a criação de um “saco azul” ou mesmo um desvio de verbas daquela associação profissional.

    Apesar do insucesso rotundo de um equipamento que, à vista, se mostrava evidente, a Gravoplot foi a entidade que mais beneficiou com este voluntarismo e sede de “exposição mediática” dos bastonários das duas Ordens. Com efeito, além dos 184.500 euros ganhos na venda de 500 inúteis e perigosas “caixas de protecção”, a empresa sediada em Sintra teve artes para obter um financiamento relâmpago do FEDER.

    Gravoplot: empresa que produz produtos plásticos e gravação a laser em diversos materiais para fins de decoração e exposição, foi contratada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves para produzir 500 caixas de produção. Graças a um apoio comunitário, acabou a facturar cerca de meio milhão de euros. As caixas acabaram no lixo poucos meses depois.

    No próprio dia em que Miguel Guimarães cantava loas às caixas de protecção oferecidas ao Hospital de Santo António, em 27 de Abril de 2020, a Gravoplot fazia entrar uma candidatura a fundos comunitários para “reforçar as capacidades de produção de bens e serviços destinados a combater a pandemia”, neste caso com viseiras e as tais caixas Protector 2020.

    Pouco mais de uma semana depois, em 6 de Maio, o projecto foi aprovado com um apoio financeiro comunitário de 321.416,12 euros a fundo perdido, ou seja, 95% do investimento total. O projecto terminaria em 26 de Junho daquele ano. Após aquela data, a Gravoplot só vendeu mais 13 caixas ao fundo solidário “Todos por Quem Cuida”, o número que consta na última das cinco compras, com data de 12 de Agosto de 2020. As outras quatro têm data de Maio daquele ano, conforme o PÁGINA UM já revelou.


    N.D. Este é o quinto artigo de um dossier em redor da campanha “Todos por Quem Cuida”, que resultou da consulta, durante três dias ao longo do mês de Novembro passado, de todos os documentos operacionais e contabilísticos na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. A possibilidade de consulta não foi concedida de forma voluntária: foi uma imposição, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa (através de uma intimação, financiada pelo FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, ou seja, pelos seus leitores), após sistemáticas recusas tanto da Ordem dos Médicos como da Ordem dos Farmacêuticos, mesmo após a obtenção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Com esta investigação, o intuito do PÁGINA UM não é colocar em causa a bondade de campanhas de angariação de fundos nem acções de solidariedade; é exactamente averiguar se, em acções nobres, os procedimentos são exemplares, incluindo a componente da transparência perante o eventual escrutínio dos jornalistas. Não há nada pior para uma boa causa do que maus procedimentos. Tal como os meios não justificam os fins, também os fins não podem justificar os meios.

  • Um jogo do gato e do rato: o presidente do Infarmed quer fugir ao tribunal

    Um jogo do gato e do rato: o presidente do Infarmed quer fugir ao tribunal

    Ontem, a Direcção-Geral da Saúde veio, pela primeira vez, apelar aos profissionais de saúde para estarem atentos aos sinais e sintomas de miocardite e pericardite nos jovens que tenham tomado a vacinas, mas continua-se a desconhecer, por obscurantismo, os detalhes que constam no Portal RAM do Infarmed. O longo processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, que opõe o PÁGINA UM ao regulador nacional do medicamento desde Abril deste ano, parece um jogo do gato e do rato: após a juíza exigir que o presidente do regulador seja ouvido em audiência no próximo mês de Janeiro, hoje os seus advogados vieram requerer a anulação do despacho, alegando que estão em causa estão apenas questões técnicas, e que Rui Ivo Santos, com carreira burocrática neste sector desde 1993, é parte interessada no processo, e também por isso não deve testemunhar.


    Os advogados do Infarmed apresentaram hoje um requerimento ao Tribunal Administrativo de Lisboa para que o presidente deste regulador, Rui Ivo Santos, não seja ouvido como testemunha no processo de intimação para acesso aos dados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e o antiviral remdesivir. A actual juíza do processo, Sara Ferreira Pinto, já aceitara a indicação do PÁGINA UM para ouvir aquele responsável que, desde 6 de Dezembro de 2021, tem vindo a recusar o acesso aos dados anonimizados detalhados do Portal RAM.

    A intenção do PÁGINA UM em se ouvir o responsável máximo do regulador prende-se sobretudo com o argumento (estafado) de uma alegada impossibilidade de anonimização dos dados, uma operação habitualmente corriqueira em bases de dados, em especial quando se pretende retirar os campos com informação pessoal. Por outro lado, também se pretende averiguar os detalhes do contrato assinado entre o Infarmed e a empresa Altran Portugal em 12 de Novembro do ano passado para alteração do portal das reacções adversas (Portal RAM) no âmbito do reporte à Agência Europeia do Medicamento (EMA).

    Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed: há um ano a esconder dados do Portal RAM, não quer agora testemunhar perante o Tribunal Administrativo de Lisboa.

    No requerimento agora apresentado pela sociedade de advogados BAS – que desde 2020 “colecciona” 53 contratos de consultadoria jurídica por ajuste directo com entidades tuteladas pelo Ministério da Saúde –, alega-se que “em função do cargo que ocupa, o Senhor o Senhor [sic] Professor Rui Santos Ivo é parte do presente processo, não podendo depois como testemunha”, solicitando-se assim que “seja revogado o despacho de 13.12.2022, na parte em que [a juíza] admitiu o chamamento do Presidente do Conselho Diretivo do Infarmed como testemunha”.

    Além de alegar questões meramente formais, o requerimento daquela sociedade de advogados tenta retirar o cunho político e administrativo a este processo, para assim evitar o testemunho de Rui Santos Ivo. Ao pretender colocar o assunto como “eminentemente técnico”, a defesa de Rui Santos Ivo diz que, em audiência provisoriamente marcada para o próximo dia 24 de Janeiro, basta ouvir Márcia Silva, directora de Gestão do Risco de Medicamentos do Infarmed – que, aliás, será tão parte interessada no processo como o seu presidente. Note-se que Márcia Silva foi indicada pelo Infarmed, e não mereceu qualquer oposição do PÁGINA UM no âmbito deste processo, como deve suceder numa questão jurídica justa e civilizada.

    Em todo o caso, não deixa de ser curioso que o Infarmed, através do seu representante legal, sustente que Rui Santos Ivo não entenda de questões técnicas relacionadas com o Portal RAM, tendo em consideração vasta experiência deste responsável na regulação de medicamentos e na indústria farmacêutica.

    De facto, a menos que o actual presidente do Infarmed tenha enganado meio-mundo nas últimas três décadas, não deverá haver muitas pessoas com a sua experiência técnica e administrativa no também burocrático sector da indústria farmacêutica.

    Senão veja-se: Rui Santos Ivo licenciou-se em Ciências Farmacêuticas em 1987, tem pós-graduações em Direito da Saúde (Faculdade de Direito, em 1997), em Medicina Farmacêutica (Universidade de Basileia, em 1999), em Regulação (London School of Economics and Political Science, em 1999), em Gestão de Unidades de Saúde (Universidade Católica Portuguesa, em 2000), em Programa de Alta Direção de Instituições de Saúde (AESE Business School, em 2015). Possui uma vasta e invejável carreira no sector da regulação, depois de ter ingressado em 1993 no Infarmed, onde exerceu cargos de vogal e vice-presidente entre 1994 e 2000, e depois de presidente entre 2002 e 2005.

    Durante este último período foi ainda administrador na direção da Agência Europeia de Medicamentos (EMA) entre 2002 e 2005. Mais tarde, entre 2006 e 2008, foi administrador na Unidade de Produtos Farmacêuticos da Direção-Geral de Empresas e Indústria da Comissão Europeia (2006 -2008), a que se seguiu passagem como diretor executivo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma) até Novembro de 2011, quando então regressou à Administração Pública. Primeiro, ocupou o cargo de vice-presidente e depois de presidente do conselho directivo da Administração Central do Sistema de Saúde, antes de regressar de novo, em Janeiro de 2016, ao Infarmed, para ser vice-presidente. Em Junho de 2019 subiu novamente a presidente do regulador.

    É este, portanto, o homem que, a despeito de se debater uma “questão técnica” – ou seja, a disponibilização de dados anonimizados detalhados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 – não quer justificar-se em tribunal, porque, enfim, não é um técnico, e não sabe como funciona o Portal RAM nem se pode ser facilmente anonimizado.

    A decisão de manter ou não a presença de Rui Santos em sessão do Tribunal Administrativo de Lisboa deverá ser tomada pela juíza do processo nos próximos dias.

    Sede do Infarmed: onde se “sequestra” a verdade e onde se veda o acesso à transparência.

    Saliente-se que este processo de intimação corre desde 20 de Abril passado, e surgiu depois da recusa do Infarmed em disponibilizar o acesso à base de dados do Portal RAM, mesmo se a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) já em 16 de Março deste ano considerou, em parecer não vinculativo, que o Infarmed deveria facultar o seu acesso, salientando que “o interesse público no conhecimento de elementos que possam informar quanto à segurança da vacina é, por conseguinte, manifesto”.

    Ontem, recorde-se, a Direcção-Geral da Saúde veio, pela primeira vez, apelar aos profissionais de saúde que estejam atentos aos sinais e sintomas de miocardite e também pericardite, nos 14 dias após a toma da vacina contra a covid-19. As reacções adversas devem constar, de forma discriminada, no Portal RAM a que o PÁGINA UM quer aceder há mais de um ano.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Em caso de derrota, os custos podem, não incluindo honorários do nosso advogado, atingir mais de 1.400 euros. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • John Ioannidis: fase endémica deve mudar estratégia de vacinação e reforços só em grupos de risco

    John Ioannidis: fase endémica deve mudar estratégia de vacinação e reforços só em grupos de risco

    A elevada taxa de imunidade (natural, vacinal e híbrida) e a redução drástica da letalidade da variante Ómicron, são dois dos motivos principais que levam John Ioannidis, um dos cientistas mais citados do Mundo, a defender reforços da vacina contra a covid-19 apenas em grupos de risco: os idosos e as pessoas com determinadas comorbilidades. Num novo artigo científico publicado no mês passado, em co-autoria, o reputado epidemiologista da Universidade de Stanford aconselha cautela com a vacinação massiva, por os riscos poderem ser maiores do que os benefícios, nomeadamente nas crianças e jovens. Além disso, com cálculos, conclui que o custo económico da vacinação massiva pode não compensar, sobretudo na população jovem e de baixo risco, pois esse dinheiro poderia ter uma maior eficácia a salvar vidas em sectores deficitários da Saúde Pública.


    O epidemiologista norte-americano John Ioannidis é um dos seis cientistas mais citados do Mundo, e no seu novo artigo científico, publicado na prestigiada revista European Journal of Clinical Investigation, não podia ser mais claro: as doses de reforço da vacina contra a covid-19 devem ser administradas somente aos grupos de risco, ou seja, os idosos e as pessoas com outras doenças. E diz mesmo que continuar a administrar reforços de vacinas em determinados grupos etários, não é aconselhável do ponto de vista do custo-benefício, nem a nível individual nem comunitário.

    Considerando que os governos e autoridades de saúde devem tomar as suas decisões em evidências científicas, Ioannidis diz ser fundamental reajustar a estratégia de Saúde Pública à evolução da imunidade da população e à perigosidade do vírus e da pandemia, que está actualmente já em fase endémica.

    Estas recomendações, sustentadas em análises e cálculos, surgem num artigo científico publicado, em co-autoria com Stefan Pilz, investigador austríaco da Universidade Graz.

    O artigo começa por sustentar que a imunidade da população é já elevada, pelo contacto com o SARS-CoV-2 ou pela vacinação, ou por ambas as vias. Por outro lado, destaca que a taxa de letalidade da covid-19 caiu drasticamente após o aparecimento da variante Ómicron, muito mais contagiosa mas substancialmente menos perigosa.

    Mas há ainda outros dois factores a ter muito em conta, referem os autores: os possíveis efeitos adversos, que fazem com que, para algumas faixas etárias, os prejuízos superem os benefícios; e os elevados custos para prevenir uma morte por covid-19, que se mostram exorbitantes, podendo ultrapassar um milhão de dólares na população mais jovem. Para os autores do artigo, as verbas que estão a ser gastas com reforços massivos de vacina poderiam ser utilizadas no combate a outras doenças mais prementes e com necessidades de maior investimento.

    man sitting and leaning near bookshelf while reading book
    Várias universidades norte-americanas impõem a obrigatoriedade da toma das vacinas contra a covid-19 aos seus alunos, apesar do baixo risco que a doença apresenta para os jovens.

    No artigo intitulado “Does natural and hybrid immunity obviate the need for frequent vaccine boosters against SARS‐CoV‐2 in the endemic phase?”, Ioannidis e Pilz recomendam taxativamente que apenas “certos grupos de risco”, como os idosos, e, em particular os doentes com necessidade de cuidados prolongados, devem ser vacinados a partir de agora. E dizem mesmo que se a taxa de eficácia contra a covid-19 fosse de 100%, nas actuais circunstâncias, não faria sentido, do ponto de vista da gestão da Saúde Pública, administrar vacinas em massa.

    Os autores exemplificam com estimativas de custos aplicadas à situação da Dinamarca. Em geral, concluem que o número de pessoas que seria necessário vacinar (tratar) e os custos económicos envolvidos para salvar uma vida (ou evitar uma hospitalização) são agora incomensuravelmente superiores ao que ocorria nas fases anteriores da pandemia e sobretudo quando se compara com outras doenças de maior gravidade, como a insuficiência cardíaca. 

    Segundo o estudo, “as anteriores análises de custo-eficácia sobre as medidas contra o SARS-CoV-2 basearam-se, em geral, em IFR (taxa de letalidade) sobrestimadas e, por conseguinte, podem ter sido demasiado optimistas”.

    Assim, concluem que “para a maioria da população, as IFRs do SARS-CoV-2 actualmente são tão baixas que, mesmo se as vacinas de mRNA tivessem 100% de eficácia contra a morte e sem efeitos adversos, o seu custo-benefício poderia ser questionável ou desfavorável”.

    Isto, “a menos que o custo da vacina seja reduzido a níveis insignificantes”, o que não vai ser o caso, pelo contrário, já que as farmacêuticas como a Pfizer já vieram anunciar aumentos no preço. Isso significa que, perante a inexistência de recursos ilimitados, um bom sistema de saúde têm de optar por alocar verbas em função da eficiência, ou seja, em salvar mais vidas por unidade de recurso financeiro.

    O facto destas recomendações virem de John Ioannidis é muito relevante. O epidemiologista não é um “especialista” qualquer, contando mais de 6.000 novas citações por mês, o que o coloca no ranking dos seis cientistas mundiais mais citados. No Google Scholar tem um índice h de 237, um valor estratosférico. Professor de várias especialidades na Universidade de Stanford, incluindo Medicina e Epidemiologia e Saúde da População, Ioannidis foi nomeado responsável por uma área de pesquisa na European Research Area (ERA) da Comissão Europeia e é ainda presidente da Associação Americana de Médicos, entre muitos outros cargos que desempenha.

    Embora sempre de uma forma discreta, e quase sempre através de artigos em revistas científicas, Ioannidis foi um dos especialistas de topo a nível mundial que se opuseram às medidas sem precedentes que foram adoptadas na maioria dos países, como os confinamentos da população – uma medida que copiou a estratégia implementada na China no início da pandemia.

    John Ioannidis

    Agora, neste seu mais recente artigo científico, mostra-se confiante sobre a banalização da covid-19, antecipando ser “concebível que as infecções por SARS-CoV-2 possam em breve seguir um padrão semelhante ao dos outros coronavírus humanos endémicos, com uma primeira infecção, geralmente leve, na infância e, posteriormente, infecções frequentes, mas também geralmente leves, na idade adulta”.

    Com Pilz, o epidemiologista norte-americano conclui que a variante Omicron, surgida em Novembro do ano passado, e ainda agora dominante (com subvariantes), teve um impacte fundamental na pandemia. E, por isso, discordam dos muitos receios difundidos pelos media e alguns peritos sobre a evolução da covid-19 nos próximos anos.

    Com efeito, uma das principais conclusões do artigo é de que o risco de morte e de doença grave por infecção “tem sido muito baixo em 2022, e a maioria das infecções por Ómicron parece ser assintomática”.

    Um caso exemplar, citado no estudo, é o da Dinamarca, que registava pouca disseminação do vírus até o final de 2021, mas teve infecções em massa a partir daí com a variante Ómicron, mesmo numa população amplamente vacinada.

    Naquele país escandinavo, a taxa de letalidade da infecção por Ómicron até meados de Março de 2022 foi estimada em apenas 1,6 por 100.000 infecções (0,0016%) entre pessoas dos 17 aos 35 anos de idade, situando-se nos 6,2 por 100.000 infecções (0,0062%) entre pessoas aparentemente saudáveis dos 17 aos 72 anos de idade. Mesmo para as pessoas mais idosas, a taxa de letalidade desceu substancialmente: é agora de apenas 0,015,1, quando em 2020 atingia os 0,281%.

    Por outro lado, os dois autores observaram ainda que em populações com exposição prévia substancial ao SARS-CoV-2, “as reinfecções [a grande maioria ocorrendo nas ondas de Ómicron] tiveram menos de um quarto do risco de hospitalização e um décimo do risco de mortalidade em comparação com as infecções primárias. Por exemplo, em Vojvodina, na Sérvia, apenas 1% das reinfecções necessitaram de hospitalização e a letalidade para reinfecções foi de apenas 0,15%.

    Aliás, os dois investigadores chegam a citar dados de Portugal que sugerem uma boa protecção a longo prazo adquirida através da imunidade natural, isto é, com o contacto anterior ao coronavírus. Os dados nacionais, abrangendo uma população com 12 anos ou mais, e com uma cobertura de 82% da terceira dose da vacina contra o SARS-CoV-2, mostram que três a cinco meses após uma infecção prévia pela variante BA.1/BA.2, a eficácia da proteção contra a nova variante BA.4/BA.5 foi de 75,3%. Pessoas com infecções prévias pelas variantes Wuhan-Hu-1, Alpha e Delta tiveram respectivas eficácias de proteção de 51,6%, 54,8% e 61,3%, respectivamente.

    yellow and white tram on road near white concrete building during daytime
    O artigo científico cita dados de Portugal que sugerem que uma infecção por covid-19 confere protecção no longo prazo.

    Em todo o caso, se é a infecção natural ou um reforço da vacina a oferecer a maior protecção, os autores defendem que se torna “uma questão amplamente discutível, uma vez que quase toda a população global já foi infectada e mais de 70% da população global também foi vacinada, pelo menos com alguma dose de vacina”.

    Mas frisam que “uma limitação crítica e grave dos principais estudos na população em geral sobre a eficácia da quarta dose da vacina contra o SARS-CoV-2 é a exclusão quase universal de indivíduos com infecções prévias”.

    Porém, Ionannidis e Pilz citam ainda um estudo realizado em Ontário, no Canadá, que “sugere um efeito protector significativo por infecções anteriores, que provavelmente podem ser maiores do que o conferido por uma dose adicional de vacina”.

    white and black labeled bottle

    Quanto aos mais idosos sem infecção prévia por covid-19, os dois investigadores destacam estudos observacionais em Israel que dão pistas sobre a eficácia de uma quarta dose da vacina mRNA contra a infecção.

    Entre 10 de Janeiro e 13 de Março deste ano, 97.499 indivíduos com 60 anos ou mais, sem qualquer infecção prévia mas com um teste positivo de PCR durante esse período, foram analisados para comparar as taxas de infecção por SARS-CoV-2 naqueles que tinham acabado de receber a quarta dose da vacina e os que receberam apenas três doses da vacina.

    Essa análise mostrou que a eficácia relativa da vacina em relação a qualquer infecção por SARS-CoV-2 atingiu o pico durante a terceira semana em 65,1% e diminuiu para 22,0% no final da semana 10. Para a covid-19 grave, as respectivas eficácias após 7-27 dias, 28-48 dias e 46-69 dias foram de 77,5%, 72,8% e 86,5%, respectivamente.

    Ao longo das 10 semanas de acompanhamento, apenas 572 dos 97.499 participantes do estudo tiveram covid-19 grave [internados no hospital ou morreram devido à covid-19] e apenas 106 pacientes morreram.

    A conclusão de Ioannidis e Pilz é de que “os números necessários para tratar (NNT) e salvar uma vida ou uma hospitalização podem ser muito grandes”, devendo ser ponderado se as verbas em causa teriam melhores resultados, em termos de vidas salvas, noutras áreas de Saúde Pública.

    Outra investigação de Israel, relevada pelos dois investigadores, foi realizada em 29.611 profissionais de saúde sem qualquer infecção prévia por SARS-CoV-2. As infecções por SARS-CoV-2 durante Janeiro de 2022 foram documentadas em 7% dos participantes com quatro doses de vacina e em 20% com três doses de vacina, resultando em uma eficácia de proteção de 65%. Neste estudo, em ambos os grupos, não houve infecção grave por covid-19 ou morte.

    Isto significa, segundo Ioannidis e Pilz, que “o número necessário para tratar é, portanto, infinito para esses resultados graves”, pelo que “é de se perguntar se a simples diminuição dos casos detectados oferece um benefício clinicamente significativo”.

    Em conclusão, e dado que o risco de desenvolver uma infecção grave por covid-19 é muito maior em populações muito idosas com fragilidade e comorbilidades, “isso deve ser considerado para a política de vacinas, pois uma eficácia relativa semelhante à da vacina se traduz em uma redução de risco absoluto clinicamente significativa em populações com alto risco subjacente de desfechos graves, mas pode ser quase insignificante em populações com um risco muito baixo”, argumentam.

    woman reading book

    Os cálculos feitos por Ioannidis e Pilz destacam, aliás, que os custos por uma morte evitada por covid-19 tendem a ser “extremamente altos”, excepto em grupos etários com mais idade, com base no custo atual por dose [aproximadamente 20 dólares] e mesmo se os custos diminuíssem para 5 dólares por dose. Se o custo “aumentar para 120 dólares por dose [como recentemente considerado para comercialização futura pela Pfizer], o custo-benefício pode se tornar desfavorável, mesmo para muitas pessoas muito idosas”, concluem ainda.

    Mas isto é na perspectiva económica, porque a análise de Pilz e Ioannidis salienta que, no caso dos mais jovens, os riscos de reações adversas das vacinas, incluindo miocardites, não são compensados pelos eventuais benefícios da vacinação contra a covid-19.

    No caso das crianças e adultos jovens saudáveis, o artigo dos dois investigadores concluem que aqueles já podem ter adquirido imunidade híbrida e, por isso, correm um risco extremamente baixo de desenvolver covid-19 grave. E por isso destacam também que “não é claro, neste momento, que a redução do risco de covid-19 por reforços adicionais de vacinação supera os efeitos adversos gerais em populações com um risco basal muito baixo, como em crianças e adultos jovens saudáveis”.

    E mesmo que isso aconteça, “considerações de custo-benefício seriam desfavoráveis”, admitem, defendendo assim “fortemente a abstenção de recomendações para a vacinação em massa, por exemplo, em crianças e adultos não idosos saudáveis com uma quarta dose de vacina, a menos que tal política se torne apoiada por evidências suficientes”, dizem os investigadores.

    Saliente-se que, por exemplo, na Dinamarca, a vacinação contra o SARS-CoV-2 para crianças saudáveis com idade inferior a 18 anos foi geralmente interrompida, mesmo para a primeira e segunda injecções.

  • Gouveia e Melo “mercadejou” administração de vacinas a médicos não-prioritários uma semana após tomar posse na task force

    Gouveia e Melo “mercadejou” administração de vacinas a médicos não-prioritários uma semana após tomar posse na task force

    Em Fevereiro de 2021, num polémico início da campanha de vacinação contra a covid-19, e apenas uma semana após tomar posse na task force, Gouveia e Melo, o agora Chefe do Estado-Maior da Armada, negociou com o bastonário Miguel Guimarães as condições para se vacinarem vários milhares de médicos que não estavam na lista de prioridade da Direcção-Geral da Saúde. Mais de 27 mil euros foram parar aos cofres do Hospital das Forças Armadas, sem que o acordo ad hoc tenha sido autorizado. Pior ainda foi a operação contabilística: a conta acabou paga pela campanha “Todos por Quem Cuida” (detida por três particulares), mas a factura foi endereçada para a Ordem dos Médicos. Entretanto, este ano, surgiram quatro farmacêuticas a “reivindicar” o apoio nesta operação à Ordem dos Médicos, atestando sob a forma de recibo. Este é o quarto artigo de uma investigação jornalística do PÁGINA UM, profusamente documentada, que merece ser um caso de polícia.


    Há pelo menos mais de uma semana que Manuel Pizarro, ministro da Saúde, sabe, mas não comenta: em Fevereiro do ano passado, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, e o então responsável pela task force, Gouveia e Melo, mercadejaram a administração de vacinas a quase quatro mil médicos a troco de um pagamento de mais de 27.000 euros, que foram encaminhados para o Hospital das Forças Armadas.

    Este expediente, realizado à margem das orientações então emanadas pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) – que é a Autoridade de Saúde Nacional – começou a desenhar-se apenas uma semana após o então vice-almirante Henrique Gouveia e Melo tomar posse como coordenador da task force da vacinação contra a covid-19, substituindo Francisco Ramos. Este ex-secretário de Estado da Saúde demitira-se por irregularidades relacionadas com as prioridades de vacinação no Hospital da Cruz Vermelha. Nas primeiras fases da vacinação, devido à escassez de doses, surgiram muitos casos de administração indevida, levando mesmo à instauração de 216 processos judiciais, apesar de apenas um ter levado a condenação, conforme revelou ontem o jornal Público.

    Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force. Uma semana após a tomada de posse, começou logo a fazer aquilo que prometera não permitir: vacinações à margem das prioridades definidas pela DGS.

    Embora no dia de posse tivesse considerado “lamentável” a administração indevida de vacinas que então estava na ordem do dia. incluindo no Parlamento e prometido “apertar mais as regras” de controlo, uma semana mais tarde, em 10 de Fevereiro, Gouveia e Melo reuniu-se com o bastonário Miguel Guimarães para acertar uma forma de contornar a posição da DGS que não priorizara a vacinação dos médicos que trabalhavam fora do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Apesar de não constar no processo consultado pelo PÁGINA UM eventuais respostas escritas de Gouveia e Melo, nessa reunião terá saído a garantia de colaboração não apenas da task force, mas também das próprias Forças Armadas.

    No dia 19 de Fevereiro, o bastonário escrevia um e-mail ao “Distinto Senhor Coordenador da Task Force Mui Ilustre Vice-Almirante Henrique Gouveia e Melo”, enviando em anexo, “tal como combinado na reunião do passado dia 10”, uma lista de médicos a serem vacinados, à margem do programa oficial de vacinação, defendendo a justeza e relevância desta questão.

    A troco de mais de 27 mil euros para o Hospital das Forças Armadas, Gouveia e Melo permitiu, à margem das prioridades, que Miguel Guimarães “brilhasse”.

    Certo é que, independentemente da eventual justeza desta medida, muitos médicos sobretudo do sector privado e social, bem como os médicos aposentados do SNS que mantinham actividade clínica, não estavam na lista das prioridades em Fevereiro do ano passado. Gouveia e Melo tinha conhecimento disso, até por integrar a task force desde Novembro de 2020, e também saberia que negociar à margem do processo oficial era cometer os mesmos erros ou até ilegalidades que levaram à “queda” de Francisco Ramos.

    As negociações foram rápidas. Em 25 de Fevereiro, após um contacto telefónico com Gouveia e Melo, Miguel Guimarães fecharia então um acordo ad hoc – dir-se-ia informal, porque não há qualquer protocolo ou acordo escrito – para vacinar um pouco mais de quatro mil profissionais, dos quais 1.382 no pólo do Porto do Hospital das Forças Armadas, 2.004 no de Lisboa, 623 no Centro de Saúde Militar de Coimbra e 189 no centro hospitalar do Algarve. Em vésperas, Miguel Guimarães estava preocupado em saber se poderia chamar a comunicação social para acompanhar toda a operação, que acabou por se realizar de forma discreta. Foram vacinados quase 3.700 médicos. Obviamente, as vacinas tiveram de ser “desviadas” do circuito oficial.

    O uso das palavras “negociação” e “acordo ad hoc” não são abusivas nem despropositadas no contexto em que se realizou esta vacinação paralela.

    Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, foi o “maestro” da campanha “Todos por Quem Cuida”, que, apesar das boas intenções, se encontra enxameada de maus procedimentos.

    Com efeito, a vacinação daqueles médicos à margem das orientações da DGS não teve apenas como eventual desiderato “proteger os profissionais de saúde e dar confianças aos doentes”, como então garantia Miguel Guimarães ao jornal Nascer do Sol, mas envolveu também contrapartidas monetárias. Apesar das vacinas serem gratuitas, Gouveia e Melo somente as disponibilizou contra a cobrança unitária de 3,7 euros para supostamente suportar custos do Hospital das Forças Armadas. No Portal Base não consta que esta entidade tenha contratado quaisquer serviços externos para vacinar os médicos.

    A factura do Hospital das Forças Armadas, num total de 27.365 euros – pela administração de 7.396 doses – foi emitida em 18 de Julho do ano passado para pagamento pela Ordem dos Médicos. Mas é aí que surge ainda mais um caso rocambolesco, envolvendo o fundo “Todos por Quem Cuida”.

    A Ordem dos Médicos quis ficar com os louros mas também com o dinheiro nos seus cofres. E assim, em 26 de Abril do ano passado, a tesoureira do Conselho Nacional, Susana Garcia de Vargas, escreveu um ofício aos gestores do fundo pedindo-lhes 30.000 euros para custear o processo de vacinação. Sendo expectável que o pedido fosse aceite – por via do próprio bastonário da entidade que pedia apoio ser um das três pessoas que decidia se dava apoio –, como foi, o problema mais uma vez passou pelo expediente contabilístico pouco ortodoxo. Isto é, ilegal.

    Factura pela vacinação paralela dos médicos foi enviada à Ordem mas paga pela campanha solidária.

    Uma vez que a factura do Hospital das Forças Armadas estava em nome da Ordem dos Médicos, deveria ter sido esta entidade a proceder ao pagamento, e depois receber o donativo de 30.000 euros. Porém, não foi isso que sucedeu.

    A factura manteve-se na Ordem dos Médicos, e em seu nome, mas o dinheiro recebido pelo Hospital das Forças Armadas proveio da conta do fundo “Todos por Quem Cuida”, de acordo com o pedido de operação bancária assinado em 4 de Agosto do ano passado por Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.

    Contudo, para aumentar a estranheza desta operação de financiamento, a Ordem dos Médicos passaria, já este ano, facturas/ recibos a quatro farmacêuticas assumindo que tinham sido estas a suportar os custos de vacinação.

    De acordo com os documentos consultados na Ordem dos Médicos pelo PÁGINA UM – por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa –, no passado dia 4 de Março a Ordem dos Médicos passou este documento contabilístico com o valor de 3.725,2 euros à Gilead. Nesta altura, Ana Paula Martins – que terminara o mandato em Fevereiro na Ordem dos Farmacêuticos – já ocupava o cargo de directora dos negócios governamentais desta farmacêutica norte-americana.

    Três dias mais tarde, a Ordem de Miguel Guimarães passaria mais três facturas/ recibo a outras três farmacêuticas [vd., as ligações]: Ipsen Portugal (no valor de 11.040 euros), Bial (2.590 euros) e Laboratórios Atral (10.000 euros), também expressando que se trata de “donativo sem contrapartida” para a “campanha de vacinação da Ordem dos Médicos”.

    Para aumentar a estranheza destes comprovativos – que, em última análise, permitiriam que as farmacêuticas pudessem assumir o donativo como uma despesa para efeitos fiscais –, apenas no caso do alegado donativo da Ipsen surge a referência a “pronto de pagamento”. No caso da Gilead aparece, como condição de pagamento, “Factura 10 dias”, enquanto nas situações da Bial e Laboratórios Atral surge “Factura 30 dias”. Ou seja, numa situação normal, isto significaria que a Ordem dos Médicos teria, nestes casos, a promessa de entrada de dinheiro em caixa no prazo de 10 e 30 dias, respectivamente.

    Mas, repita-se, o pagamento foi feito pela conta solidária já no ano anterior – ou seja, deveria ser esta (ou os seus titulares) a receber a factura/ recibo das farmacêuticas.

    Factura/ recibo da Laboratórios Atral, uma das quatro em que se assume que o apoio financeiro para vacinar quase quatro mil médicos proveio de farmacêuticas. Contudo, o pagamento ao Hospital das Forças Armadas foi realizado pela conta solidária titulada (em nome individual) por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.

    Acresce também que, independentemente de serem ou não documentos forjados, ou de a Ordem dos Médicos ter recebido mesmo os donativos daquelas quatro farmacêuticas (apesar do pagamento ter sido feito pela conta solidária), os montantes daquelas facturas deveriam ter sido declarados no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed.

    Não foram, e nem o Infarmed reagiu ainda, passado mais de uma semana, ao pedido de esclarecimento do PÁGINA UM.

    Sobre estas matérias, o bastonário da Ordem dos Médicos, a ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e o médico Eurico Castro Alves – ou seja, os gestores da conta solidária “Todos por Quem Cuida” – optaram por não responder directamente à dezena de perguntas que o PÁGINA UM lhes colocou, decidindo fazer uma declaração conjunta através de uma representante legal.

    A advogada Inês Folhadela diz que “o procedimento de quitação [no caso da operação das vacinas] foi o mesmo que foi adotado em relação aos restantes donativos”, e garante que para a sua administração “foi estabelecido [um acordo] com o Ministério da Saúde, através do coordenador da task force, vice-almirante Gouveia e Melo”, acrescentando que “o Hospital das Forças Armadas não prescindiu da remuneração dos serviços prestados, tendo a Comissão de Acompanhamento (sem intervenção da Ordem dos Médicos) deliberado que as despesas seriam suportadas pela ação solidária”. A advogada insiste que a task force, sendo uma “unidade criada pelo Governo para assegurar a estratégia, planificação e logística para a campanha de vacinação em massa contra a covid-19 (…), estava autorizada a concertar essa ação”.

    Convém salientar que não há nenhum acordo escrito por Gouveia e Melo, até porque o Despacho 11737/2020 não lhe dava autonomia para contrariar as orientações da DGS sem sequer houve autorização superior. A definição da estratégia, do plano logístico e outras acções eram sempre feitas sob liderança da DGS, do Infarmed e de outros organismos tutelados pelo Ministério da Saúde, como taxativamente consta do despacho governamental assinado em 23 de Novembro de 2020 pelos ministros da Defesa Nacional, da Administração Interna e da Saúde.

    O PÁGINA UM não encontrou no processo consultado qualquer documento de autorização nem qualquer protocolo que tenha formalizado o acordo de administração das vacinas entre Gouveia e Melo e o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães.


    N.D. Este é o quarto artigo de um dossier em redor da campanha “Todos por Quem Cuida”, que resultou da consulta, durante três dias ao longo do mês de Novembro passado, de todos os documentos operacionais e contabilísticos na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. A possibilidade de consulta não foi concedida de forma voluntária: foi uma imposição, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa (através de uma intimação, financiada pelo FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, ou seja, pelos seus leitores), após sistemáticas recusas tanto da Ordem dos Médicos como da Ordem dos Farmacêuticos, mesmo após a obtenção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Com esta investigação, o intuito do PÁGINA UM não é colocar em causa a bondade de campanhas de angariação de fundos nem acções de solidariedade; é exactamente averiguar se, em acções nobres, os procedimentos são exemplares, incluindo a componente da transparência perante o eventual escrutínio dos jornalistas. Não há nada pior para uma boa causa do que maus procedimentos. Tal como os meios não justificam os fins, também os fins não podem justificar os meios.

  • Desastre de saúde pública continua: terceiro ano consecutivo acima dos 120 mil óbitos; e o ano de 2022 arrisca ser ainda mais mortífero do que 2021

    Desastre de saúde pública continua: terceiro ano consecutivo acima dos 120 mil óbitos; e o ano de 2022 arrisca ser ainda mais mortífero do que 2021

    Anteontem foi o dia mais mortífero do ano, com 471 óbitos. Os últimos dias têm mostrado um agravamento da mortalidade total, mesmo observando-se um abrandamento dos casos de urgência hospitalar e de infecções respiratórias. De que estão a morrer os portugueses? Ninguém sabe, porque o Ministério da Saúde não divulga os seus estudos e a Administração Central do Sistema de Saúde ainda não cumpriu uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, cedendo dados sobre morbilidade e mortalidade hospitalar.


    Pelo terceiro ano consecutivo, a mortalidade total em Portugal ultrapassará os 120 mil óbitos, segundo estimativas do PÁGINA UM com base nos números registados até 13 de Dezembro de 2022. A situação já era expectável ao longo do presente ano, com sucessivos meses, sobretudo na Primavera e Verão, a baterem recordes de mortalidade no período democrático, embora em Outubro e Novembro se tenha verificado um menor excesso de mortalidade.

    Porém, com a meteorologia mais agreste – embora ainda sem frio –, o mês de Dezembro está a dar sinais de vir a ser muito mais inclemente, mesmo se se está a observar um abrandamento no fluxo das urgências e da prevalência das infecções respiratórias, que tiveram o seu auge, por agora, em meados de Novembro.

    people in white shirt holding clear drinking glasses

    Certo é que, consultando os dados do Sistema de Informação dos Certificados de Óbitos (SICO), desde o dia 5 deste mês de Dezembro, a mortalidade total tem estado em níveis extremamente elevados, por norma bem acima dos 400 óbitos, o que constitui uma situação raríssima na primeira quinzena do último mês do ano.

    Seis dos 13 primeiros dias de Dezembro estão com mortalidade total acima dos 400 óbitos, e na segunda-feira passada atingiu-se os 471 óbitos, o valor máximo deste ano. Este número ainda pode vir a subir com as habituais actualizações. O anterior máximo registara-se em 14 Julho (459 óbitos).

    De acordo com estimativas do PÁGINA UM, se até ao final de Dezembro se observar um nível de mortalidade similar ao dos primeiros 12 dias do mês, o ano de 2022 terminará ligeiramente acima dos 125 mil óbitos. Esse número (125.077) será ligeiramente inferior ao de 2021 (125.231). No entanto, se houver um agravamento, 2022 pode mesmo suplantar 2021, “bastando” que entre hoje e o dia 31 de Dezembro a mortalidade média diária suba para os 412 óbitos, o que não se afigura impossível. Por exemplo, nesse período, em 2020 atingiu-se os 418 óbitos de média diária, e em 2016 – portanto, muito antes da covid-19 – o número esteve próximo (409).

    Registos diários dos episódios de urgência e monitorização da gripe e outras infecções respiratórias revelam um desagravamento nas últimas semanas, mas a mortalidade total aumentou. Fonte: SNS.

    Certo é que os três últimos anos terminarão com um excesso absurdamente elevado face aos três anos anteriores, o que não se explica apenas com a mortalidade por covid-19 e pelo envelhecimento populacional. Somando a mortalidade entre 2020 e 2022 (estimada até final de Dezembro) atingem-se cerca de 374 mil óbitos, enquanto nos três anos anteriores se contabilizam 336.140 óbitos. Ou seja, estamos perante um aumento de cerca de 38 mil óbitos, ou, em termos relativos, de 11%.

    Mesmo considerando que, de acordo com dados oficiais – não validados de forma independente, saliente-se – se registaram 25.584 óbitos por covid-19 em Portugal, significa que o acréscimo não-covid será superior a 12 mil. Em todo o caso, convém salientar que a mortalidade por outras doenças fora do âmbito respiratório situar-se-á em valores muitíssimo superiores, porque durante a pandemia houve uma redução muito substancial de mortes pelas habituais pneumonias e doenças afins.

    Recorde-se que o PÁGINA UM aguarda que a Administração Central do Sistema de Saúde cumpra a sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, disponibilizando a base de dados dos Grupos de Diagnósticos Homogéneos para se poder fazer um balanço mais rigoroso através da mortalidade hospitalar.

    O grupo etário dos mais idosos (acima dos 85 anos) tem sido o mais fustigado pela mortalidade – que, obviamente, tem uma taxa muito superior à das outras idades –, com valores excepcionalmente elevados este ano face aos anos anteriores. Este ano, até ao dia de ontem, se contabilizaram 52.420 óbitos de pessoas com mais de 85 anos, valor que contrasta com os 51.213 óbitos em período homólogo do ano passado, que já era o pior desde que há registos.

    Mortalidade total entre 2009 e 2022. Para o ano de 2022, estimou-se óbitos diários (média) de 403 entre 14 e 21 de Dezembro. Caso a mortalidade diária nesse período seja de 412 óbitos, o ano de 2022 suplantará o de 2021. Fonte: SICO. Análise: PÁGINA UM.

    Este autêntico gerontocídio – também não explicado apenas pela covid-19, ainda mais face à elevada taxa de vacinação nos últimos dois anos contra aquela doença, nem pelo empobrecimento – fica bem patente quando se compara os anos da pandemia com os anteriores. Com efeito, entre 15 de Março de 2017 e 13 de Dezembro de 2019 (pré-pandemia), o SICO regista 124.457 óbitos de pessoas com mais de 85 anos; o número de mortes desde a primeira morte da covid-19 (15 de Março de 2020) e o dia de ontem (13 de Dezembro de 2022) já vai em 148.040, ou seja, um acréscimo de 19% (mais de 23.500 óbitos).

    O Ministério da Saúde continua sem revelar para quando estará concluído o estudo prometido sobre as causas do excesso de mortalidade em Portugal, embora o ministro Manuel Pizarro já tenha afirmado que os fenómenos extremos tiveram “profundo efeito” na saúde dos portugueses – uma afirmação que carece de provas e de disponibilização de dados oficiais que possibilitem uma análise independente.

  • PÁGINA UM perde processo e, assim, Infarmed pode manter secreta troca de correspondência com a Agência Europeia do Medicamento

    PÁGINA UM perde processo e, assim, Infarmed pode manter secreta troca de correspondência com a Agência Europeia do Medicamento

    Sem mais de uma dezena de processos de intimação, PÁGINA UM não consegue ver reconhecido direito de acesso a documentos. Legislação feita à medida para proteger indústria farmacêutica em caso de problemas graves de saúde pública provocada por fármaco, a par de falta de sensibilidade do Tribunal Administrativo para reconhecer o papel determinante da imprensa, ditam a primeira derrota. Mas há outros motivos para acreditar nesta campanha do PÁGINA UM: noutro processo envolvendo o Infarmed, um despacho da juíza que analisa o acesso aos dados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e do anti-viral remdesivir concordou com a audição do presidente do regulador. A audiência está marcada para o próximo mês de Janeiro.


    O Infarmed e a Autoridade Europeia do Medicamento têm agora ‘carta branca’ para eventualmente esconderem informação ao público sobre problemas com fármacos, e os jornalistas portugueses jamais podem ter pretensões de realizar análises de rotina à troca de comunicações e de documentação na posse destas entidades. Esta é, em suma, a interpretação do Tribunal Central Administrativo Sul, que negou provimento ao recurso do director do PÁGINA UM, através de um acórdão de finais de Outubro.

    Esta é a primeira derrota do PÁGINA UM, que acaba por conceder ao Infarmed o direito de manter secretos eventuais problemas com medicamentos, permitindo-lhe esconder informação relevante e/ou divulgar somente aquilo que os seus dirigentes acharem adequado, mesmo quando estejam em causa a saúde pública.

    Classified page 5 newspaper selective focus photography

    Em causa, neste processo, estava o pedido do PÁGINA UM PARA acesso “de todo e qualquer documento administrativo na posse do INFARMED que tenha sido transmitido por carta normal (em papel); por mensagem de correio electrónico, por outro qualquer sistema digital sonoro ou audiovisual pela Agência Europeia do Medicamento (EMA) e outras entidades internacionais homólogas do INFARMED, desde 2020 até à presente data.”

    Recorde-se que o PÁGINA UM decidira, em Maio deste ano, recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar o Infarmed a revelar os documentos da EMA que enviara para o regulador português sobre o “corpo estranho” num lote de vacinas da Moderna. O Infarmed negou identificar o “corpo estranho”, que seria restos de mosquito, considerando ser matéria “confidencial”. O PÁGINA UM solicitou acesso a toda a documentação trocada entre o Infarmed e a EMA a partir de 2020 por ser a única forma de garantir não haver sonegação de documentação.

    Primeira página do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul.

    Contudo, já em finais de Junho passado, uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa não dera, para este caso, razão ao PÁGINA UM, seguindo a tese do Infarmed.

    Nessa sentença, o juiz João Cristóvão considerava que, apesar dos direitos consagrados na Constituição da República e da Lei da Imprensa, o “pedido de informação apresentado” pelo PÁGINA UM “foi configurado de tal forma ampla que o torna susceptível de aceder a um universo quantitativo e qualitativo de documentos impossível de prever, mas sobre os quais impende uma presunção legal de confidencialidade.”

    O juiz referia também estar presumidamente em causa, nessa documentação, “segredo comercial, industrial ou profissional ou um segredo relativo a um direito de propriedade literária, artística ou científica”.

    O acórdão relativo ao recurso intentado pelo PÁGINA UM veio agora confirmar que, sim, a informação trocada pelo regulador português com a EMA é confidencial, beneficiando de “um regime especial” para o qual não se aplica a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos. Ou seja, o diploma aprovado pelos políticos portugueses permite que Infarmed e EMA, em eventual articulação com as farmacêuticas, possam esconder do público casos graves que afectem a saúde pública.

    Por outro lado, o acórdão diz também que houve “falta de um mínimo de determinabilidade, quando no pedido de acesso à informação se pretende[u] toda e qualquer correspondência, entre as entidades aí referidas, por qualquer meio até à presente data”, mesmo se foi definido claramente um período temporal, e sabendo-se que essa informação pode legalmente ser disponibilizada por fases.

    Nessa medida, o acórdão, salienta que o pedido do Recorrente [director do PÁGINA UM] careceu “da devida identificação de modo a ser determinável e identificável, nem que seja para que o Recorrido/Infarmed possa fazer uso dos poderes descritos no art. 188º, nº 2 in fine [Decreto-Lei nº 176/2006], assim como para o Tribunal aferir da sua necessidade/pertinência”.

    Documento para pagamento das custas judiciais exigidas, como habitualmente, pela outra parte; neste caso, pelo Infarmed.

    Sobre o facto de o PÁGINA UM ter identificado em concreto o interesse em consultar toda a documentação que identificasse o “corpo estranho” presente num lote de vacinas contra a covid-19 da Moderna, o acórdão do Tribunal dá uma interpretação simultaneamente curiosa e preocupante: “(…) atento o princípio da proporcionalidade sempre haveria que na ponderação de interesses [divulgar ou esconder] salvaguardar informação científica e farmacêutica da qual inexiste a devida certeza de molde a evitar especulações ou receios infundados na população”.

    Em suma, para evitar especulação ou receio – infundados ou não – na população, o acórdão assinado por três desembargadores – Ana Cristina Lameira (relatora), Ricardo Ferreira Leite e Catarina Jarmela – acaba por considerar ser mais vantajoso esconder e, assim, nada se saber. No limite, morrer na ignorância. Os desembargadores também nada ponderaram sobre o direito constitucional dos jornalistas de acederem à informação, que, assim, neste caso, ficará no “segredo dos deuses”.

    Pela perda deste processo, o PÁGINA UM foi condenado a pagar as custas processuais, pelo que, além das taxas de justiça que teve de arcar (712 euros), teve o seu director que transferir mais 841,50 euros para os cofres do Infarmed.

    Saliente-se que este processo, agora perdido pelo PÁGINA UM, é independente da intimação que corre desde Maio passado no Tribunal Administrativo de Lisboa contra o Infarmed que recusa o acesso ao Portal RAM que contém as notificações das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e o anti-viral remdesivir. Neste caso, não há legislação que proíba o acesso, estando apenas em discussão se os dados são passíveis de serem anonimizados.

    Ainda hoje, a juíza responsável pelo processo fez um despacho a marcar uma audiência final na quarta semana de Janeiro do próximo ano para ouvir presencialmente testemunhas – o que não é situação comum –, entre as quais, com carácter de obrigatoriedade, o presidente do Infarmed, Rui Ivo Santos, por indicação do PÁGINA UM.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Em caso de derrota, os custos podem, não incluindo honorários do nosso advogado, atingir mais de 1.400 euros. O PÁGINA UM considera que os processos, quer sejam favoráveis quer desfavoráveis, servem de barómetro à Democracia (e à transparência da Administração Pública) e ao cabal acesso à informação pelos cidadãos, em geral, e pelos jornalistas em particular, atendíveis os direitos expressamente consagrados na Constituição e na Lei da Imprensa.

  • “Favorzinho” de Miguel Guimarães transforma donativo em esquema lucrativo da farmacêutica Merck

    “Favorzinho” de Miguel Guimarães transforma donativo em esquema lucrativo da farmacêutica Merck

    Custam agora, cada uma, menos de 8 cêntimos. Já chegaram a ultrapassar mais de 1 euro no auge especulativo da pandemia, ao longo de 2020. Mas em Março de 2021, as máscaras FFP2 custavam, no mercado grossista, menos de 30 cêntimos. Contudo, para garantir um donativo para a campanha “Todos por Quem Cuida”, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, consentiu em valorizar um donativo em género da farmacêutica Merck em mais de seis vezes o seu valor real. O esquema fez com que a empresa alemã tivesse artes de transformar um donativo (que é, por princípio, uma despesa para o doador) numa operação financeiramente lucrativa. Com estes esquemas até admira não haver mais beneméritos.


    No dia 17 de Março do ano passado, a autarquia de Vila Nova de Gaia comprou à empresa Elastron 500.000 máscaras descartáveis FFP2, no âmbito da política municipal de combate à pandemia, pelo valor de 138.300 euros. Com prazo de entrega de dois meses, o preço deste equipamento de protecção individual, que se usara aos milhões, já então não atingia os preços astronómicos de 2020, quando qualquer empresa literalmente de vão-de-escada vendia máscaras como se fosse ouro. Contas feitas, mesmo assim a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia pagou quase 0,276 euros por cada máscara FFP2.

    Se se comparar com os preços actualmente praticados, convenhamos que estavam ainda bem “carotas”. Praticamente um ano depois, consegue-se encontrar no Portal Base valores muito mais baixos: por um exemplo, num contrato assinado de 18 de Março deste ano pelo hospital de Ponta Delgada – já com a pandemia “normalizada” (e com a descontinuidade no uso generalizado de máscaras no quotidiano) –, o preço de cada FFP2 foi de apenas 0,077 euros.

    white and silver pendant lamp

    A unidade de saúde pagou assim por 700.000 máscaras apenas 53.900 euros. Se fosse ao preço unitário (0,276 euros) pago pela autarquia de Vila Nova de Gaia há um ano, o hospital açoriano desembolsaria 193.200 euros. Um absurdo?!

    Não tanto. Porque, na verdade, em tempos de pandemia, valeu tudo. Até um “favorzinho” da Ordem dos Médicos para que um donativo da farmacêutica Merck se transformasse afinal num esquema fiscal lucrativo para aquela empresa alemã.

    Com efeito, no mesmíssimo dia em que, a Norte, em Vila Nova de Gaia, o município comprava máscaras FFP2 a 0,276 euros – pagando assim 138.300 euros por 500.000 máscaras –, a Sul, na lisboeta Avenida Gago Coutinho, o bastonário Miguel Guimarães apunha a sua assinatura num contrato para selar um donativo da farmacêutica alemã, de modo a receber de “borla” 190.000 unidades do mesmo equipamento para a campanha “Todos por Quem Cuida”.

    Carta de Miguel Guimarães à Merck, que acompanhou o contrato assinado em Março de 2021 entre a Ordem dos Médicos e a Merck. Nunca antes a Ordem dos Médicos aceitara acordo similar.

    Dir-se-ia, um excelente negócio para a Ordem dos Médicos, um bater de palmas pela capacidade negocial e diplomática de Miguel Guimarães, que assim conseguiu, a expensas das lucrativas farmacêuticas, poupar (aos preços então de mercado) qualquer coisa como 52.440 euros…

    Só que não foi bem assim…

    Na verdade, apesar de aparentar uma transparência imaculada – com a assinatura de um contrato bilingue e o registo do portal do Infarmed –, o acordo entre Miguel Guimarães e a farmacêutica alemã não foi mais do que um esquema fiscal que, em última linha, trouxe um lucro líquido à Merck, e um prejuízo ao fisco português ou alemão.

    Isto porque, de acordo com o contrato, a Ordem dos Médicos aceitou que a Merck, pelo donativo em géneros, atribuísse as máscaras FFP2 um valor unitário hiperinflacionado à época: em vez de um valor a rondar os 30 cêntimos, o acordo entre Miguel Guimarães e dois executivos da farmacêutica alemã (Frank Gotthardt e Petra Wicklandt) estabeleceu um valor unitário de 2 euros, ou seja, quase sete vezes superior ao valor de mercado.

    Deste modo, a farmacêutica alemã – que se tivesse nesse mesmo dia comprado as 190.000 máscaras FFP2, para depois as doar à Ordem dos Médicos, pagaria menos de 55 mil euros, pode assim apresentar uma despesa de 380.000 euros, o valor validado que surge no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed.

    A valorização desse custo (hiperinflacionado) das máscaras, aceite e validado por Miguel Guimarães, permitiu assim transformar, do ponto de vista fiscal, uma despesa em lucro líquido. Isto porque, mesmo assumindo a inexistência de qualquer benefício fiscal extra, a farmacêutica alemã pôde sempre, no exercício económico do ano passado, apresentar o donativo supostamente de 380.000 euros como despesa, reduzindo assim os lucros.

    Com efeito, como esse valor de 380.000 euros reduziu os lucros – ou seja, sem esse suposto donativo, o montante em causa seria lucro de 380.000 euros –, a Merck deixou assim de pagar IRC sobre esse montante. Ou seja, assumindo um IRC de 28%, a farmacêutica alemã pagou menos 106.400 euros de impostos apenas por causa deste donativo. Ora, como o valor real do donativo (a preços de Março de 2021) foi de menos de 55 mil euros, conclui-se assim que, graças ao “favor” de Miguel Guimarães, a farmacêutica alemã teve artes de transformar um donativo em negócio lucrativo.

    A Merck declarou um donativo de 380.000 euros à Ordem dos Médicos por máscaras FFP2 que valiam cerca de 55.000 euros. Ganhos fiscais permitiram transformar um donativo numa operação lucrativa para o doador.

    Contactada a Merck Portugal, apenas foi adiantado que “a doação foi realizada pela Merck KGaA à Ordem dos Médicos em Portugal a qual se responsabilizou pela sua distribuição pelas entidades beneficiárias pelo que remetemos para a Ordem dos Médicos a resposta à questão levantada sobre a listagem das entidades beneficiadas”, acrescentando ainda que “relativamente à valorização unitária das máscaras objeto da doação, o valor mencionado no contrato foi aquele que a entidade doadora forneceu.”

    O PÁGINA UM insistiu com a Merck Portugal no sentido de ser remetida factura da compra das máscaras que viriam a ser doadas – para aferir a valorização –, mas já não obteve resposta. Também não se conseguiu confirmar se a operação fiscal foi aplicada na Alemanha ou em Portugal, ou seja, se o prejuízo fiscal se registou no Estado alemão ou português.

    Na consulta do PÁGINA UM aos documentos contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida”, observa-se também a falta de inúmeros comprovativos da efectiva entrega (nota de quitação) daquelas máscaras FFP2, havendo dezenas de situações em que não existe assinatura a comprovar a recepção.

    Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, foi o “maestro” da campanha “Todos por Quem Cuida”, que, apesar das boas intenções, se encontra enxameada de maus procedimentos.

    A representante legal da Ordem dos Médicos garante que as 190.000 máscaras da Merck foram entregues “nas instalações da empresa Torrestir que, a título gratuito, colaborou na ação solidária promovendo o transporte de todos os bens para as instalações das entidades beneficiárias”, adiantando ainda que “aquelas máscaras foram distribuídas por diversas entidades havendo evidência dessas entregas nas notas de quitação e nas guias de transporte.”

    O PÁGINA UM possui documentos fotografados que mostram o contrário, à data da consulta, após sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.


    N.D. Esta é a segunda parte de um dossier em redor da campanha “Todos por Quem Cuida”, que resultou da consulta, durante três dias ao longo do mês de Novembro passado, de todos os documentos operacionais e contabilísticos na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. A possibilidade de consulta não foi concedida de forma voluntária: foi uma imposição, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa (através de uma intimação, financiada pelo FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, ou seja, pelos seus leitores), após sistemáticas recusas tanto da Ordem dos Médicos como da Ordem dos Farmacêuticos, mesmo após a obtenção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Com esta investigação, o intuito do PÁGINA UM não é colocar em causa a bondade de campanhas de angariação de fundos nem acções de solidariedade; é exactamente averiguar se, em acções nobres, os procedimentos são exemplares, incluindo a componente da transparência perante o eventual escrutínio dos jornalistas. Não há nada pior para uma boa causa do que maus procedimentos. Tal como os meios não justificam os fins, também os fins não podem justificar os meios.

  • Fundo solidário de farmacêuticas deu condições para criar “saco azul” de mais de 968 mil euros na Ordem dos Médicos… e há muito mais

    Fundo solidário de farmacêuticas deu condições para criar “saco azul” de mais de 968 mil euros na Ordem dos Médicos… e há muito mais

    Contabilidade paralela, ausência de declarações de transparência, fuga ao fisco, declarações falsas, abuso de benefícios fiscais, facturas falsas e uma promiscuidade institucional sem limites – eis o tenebroso resultado de uma análise do PÁGINA UM aos documentos operacionais e contabilísticos da campanha “Todos por Quem Cuida”. Publicamente promovida pela Ordem dos Médicos e pela Ordem dos Farmacêuticos, com o apoio da indústria farmacêutica, através da Apifarma, esta campanha tinha como objectivo ajudar instituições a lutar contra a pandemia, tendo recolhido mais de 1,4 milhões de euros sobretudo destinados à compra de equipamentos de protecção individual. Após meses de luta no Tribunal Administrativo de Lisboa para aceder a estes documentos, o PÁGINA UM revela, neste primeiro artigo de um (extenso) dossier, como uma boa causa pode estar enxameada de maus procedimentos. Mais do que um caso de jornalismo de investigação, aqui se revela um “caso de polícia”.


    Que se pode dizer – citando os argumentos transmitidos ao PÁGINA UM pela representante legal de Miguel Guimarães (bastonário da Ordem dos Médicos), de Ana Paula Martins (antiga bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e recém indigitada para presidente da administração do Centro Hospitalar de Lisboa Norte) e de Eurico Castro Alves (ex-secretário de Estado da Saúde e actual candidato à secção Norte da Ordem dos Médicos) de “uma iniciativa, que surgiu num contexto muito particular e excepcional, logo após a declaração de estado de emergência pelo Presidente da República, em Março de 2020, [que] disponibilizou, através de donativos da sociedade civil, diverso material médico e material de proteção individual essencial para que as instituições de saúde portuguesas pudessem, diariamente, prestar os cuidados de saúde necessários aos doentes com covid-19”?

    Que se pode dizer de uma iniciativa que financiou “instalações em alguns hospitais que permitiram aumentar o número de camas de cuidados intensivos e melhorar as condições de funcionamento dos cuidados de infecciologia”?

    Ana Paula Martins, ex-bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e indigitada para a presidência do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, e Miguel Guimarães, actual bastonário da Ordem dos Médicos.

    Que se pode dizer de uma iniciativa em que “as recolhas de donativos foram autorizadas pelas autoridades competentes nos termos do Decreto-Lei 87/99, tendo sido sempre identificada a conta bancária para onde os donativos podiam e foram realizados, conta essa exclusivamente afeta a esta campanha”?

    Podem-se usar todos os elogios, rasgados até, mas convém acrescentar um famoso adágio popular nacional: de boas intenções está o inferno cheio.

    Criada logo no início da pandemia em Portugal, a campanha “Todos por Quem Cuida” teve por base um protocolo assinado em 26 de Março de 2020 entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e a Apifarma, que apresentava toda a aparência de um fundo solidário com bons propósitos, mas numa primeira fase apenas para canalizar “contributos monetários (…) ou em espécie” de farmacêuticas para “o apoio à aquisição de equipamentos hospitalares, equipamentos de protecção individual e outros materiais necessários aos profissionais de saúde que se encontra[ssem] a trabalhar nas instituições de saúde”.

    Porém, no início do mês de Abril de 2020 – e também por via de um despacho do secretário de Estados dos Assuntos Fiscais que alargava a possibilidade de benefícios fiscais por donativos aos hospitais –, as três entidades decidiram alargar o âmbito da campanha para um “fundo solidário” público, nomeando, de acordo com os documentos consultados pelo PÁGINA UM, Manuel Luís Goucha como “embaixador da iniciativa”. A gestão ficou a cargo de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, continuando a ser coadjuvados por uma comissão de acompanhamento de sete pessoas, entre representantes das duas Ordens (três, cada) e da Apifarma, com obrigação de actas de reunião.

    Eurico Castro Alves (o único sem máscara, em recente acção de campanha eleitoral da Ordem dos Médicos, no interior de um hospital) é médico cirurgião do Centro Hospitalar Universitário do Porto, foi secretário de Estado da Saúde no (curto) segundo mandato de Passos Coelho, e ainda ocupou a presidência do Infarmed (2012-2015).

    A campanha solidária pública teve, de imediato, uma grande adesão de figuras públicas que prestaram depoimentos, como os músicos Rui Veloso, Mariza, Pedro Abrunhosa, João Gil, Luís Represas, Camané e Ana Moura; o escritor Rui Zink; os jornalistas Carlos Daniel e Júlio Magalhães; os apresentadores Fernando Mendes e Manuel Luís Goucha; os futebolistas João Moutinho, João Félix e Luís Figo; e ainda o antigo presidente da República Ramalho Eanes e o actual secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres.

    Apesar de ter sido sempre apresentada publicamente como uma campanha da sociedade civil que, em menos de dois meses angariara mais de um milhão de euros que teriam sido doadas pelos portugueses [as contas finais apontam para 1.422.962 euros], na verdade o grosso do financiamento proveio das farmacêuticas. De acordo com os extractos consultados pelo PÁGINA UM – por autorização obtida através de sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa –, apenas pouco mais de 38 mil euros vieram de donativos particulares, ou seja, 2,7% do total. As empresas farmacêuticas, incluindo a Apifarma, canalizaram 1.313.251 euros, ou seja, 92,3% do total.

    No entanto, não foi por aqui que esta campanha por uma boa causa mostrou os seus maus procedimentos.

    António Guterres, actual secretário-geral das Nações Unidas, foi uma das figuras públicas a dar a cara pela campanha para incentivar donativos particulares. Mas dos cerca de 1,4 milhões de euros angariados, um pouco mais de 1,3 milhões de euros vierem das farmacêuticas. Donativos particulares só acumularam 38 mil euros.

    A génese de um vasto conjunto de irregularidades e ilegalidades envolvendo esta campanha, algumas com eventual consequência penal, começa no simples e evidente facto de a conta solidária da campanha “Todos por Quem Cuida” não pertencer nem à Ordem dos Médicos (que foi quem garantiu a logística da operação) nem à Ordem dos Farmacêuticos, apesar de serem estas entidades que pediram a autorização necessária para angariações deste género de campanhas junto do Ministério da Administração Interna.

    Na verdade, a conta foi criada, a título individual, por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. Os documentos do balcão da Portela de Sacavém da Caixa Geral de Depósitos não deixam, a esse propósito, quaisquer dúvidas sobre essa titularidade da conta solidária, sendo que nos cheques surge o nome de Miguel Guimarães, apresentando-o como “cliente há mais de 31 anos”.

    Mesmo já tendo abandonado funções como bastonária na Ordem dos Farmacêuticos em Fevereiro deste ano, Ana Paula Martins – que foi vice-presidente do PSD em final de mandato de Rui Rio, e esteve como administradora da Gilead nos últimos meses, até ser indigitada para administrar o centro hospitalar da região norte de Lisboa, onde se integra o Hospital de Santa Maria – mantém-se como co-titular desta conta.

    Conta bancária da campanha, para onde seguiram os donativos das farmacêuticas, de outras empresas e de particulares, foi aberta no dia 2 de Abril de 2020, em nome de Miguel Guimarães (como titular principal), Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. Todos os pagamentos da campanha foram efectuados através desta conta.

    O actual bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, Helder Mota Filipe, não quis explicar ao PÁGINA UM as razões para prescindir de assumir a co-titularidade da conta, em substituição de Ana Paula Martins. Mota Filipe apenas salientou ao PÁGINA UM a sua convicção de que “esta iniciativa foi essencial para proporcionar os melhores cuidados de saúde aos pacientes infectados com SARS-CoV-2 e proteger os profissionais de saúde que os trataram”.

    Não sendo essa a questão – o mérito, em teoria, de uma campanha de solidariedade –, acrescente-se também que a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos, através de representante legal, ainda não esclareceu formalmente o PÁGINA UM sobre os motivos para não ter sido aberta uma conta institucional para recolher os donativos quer das farmacêuticas quer de outras empresas, em geral, e de particulares.

    Porém, sendo evidente que a conta solidária é de três particulares, surgem aqui vários problemas graves, uma vez que, desde 6 de Março de 2020 – dia do primeiro depósito na conta titulada por Guimarães, Martins e Castro Alves – se contabilizam 41 donativos superiores a 500 euros, totalizando 1.394.017 euros.

    Sendo legais esses donativos a particulares [na sua génese, o PÁGINA UM, antes de passar a ter gestão empresarial, funcionou com base em donativos de leitores endereçados ao seu director], para esses casos não se aplica a Lei do Mecenato, pelo que deveriam ser declarados à Autoridade Tributária os montantes desses 41 donativos, sendo exigível o pagamento de imposto de selo de 10% do montante total. Ou seja, Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves deveriam ter pagado solidariamente à Autoridade Tributária cerca de 139 mil euros.

    Nos documentos consultados pelo PÁGINA UM não consta qualquer menção a esse pagamento, sempre exigível a particulares independentemente do bom propósito da campanha. E também nos extractos bancários consultados e fotografados pelo PÁGINA UM, não há qualquer transferência para a Autoridade Tributária. Nenhum dos três visados prestou esclarecimentos ao PÁGINA UM sobre esta matéria. Note-se que os restantes 48.945 euros amealhados pela conta solidária não têm aquela obrigação, porque se referem a transferências de valor igual ou inferior a 500 euros. Nestes casos, são considerados “donativos conforme os usos sociais”.

    Mas houve outro tipo de declarações também em falta – aqui com repercussões mais de índole ética. Como Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves são médicos e Ana Paula Martins é farmacêutica, as empresas farmacêuticas beneméritas tinham a obrigação de declarar os montantes doados no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, identificando os beneficiários, que os deveriam validar. Esta obrigação manter-se-ia mesmo se tivessem sido as Ordens a receber os donativos.

    Conta solidária (para a campanha “Todos por Quem Cuida”) e cheques têm como primeiro titular Miguel Guimarães. Os donativos nunca entraram na conta da Ordem dos Médicos, mas as facturas das compras aos fornecedores (para os bens a doar a instituições) entraram, apesar dos pagamentos serem feitas através da conta solidária, que tem como co-titulares Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.

    Ora, consultando o Portal do Infarmed não consta qualquer referência aos 20 donativos da Apifarma entre 14 de Abril de 2020 e 6 de Abril de 2021 – num total de 1.251.251 euros – nem aos donativos da Apormed (5.000 euros), Bene Farmacêutica (20.000 euros), Bial Portela (20.000 euros), Ipsen Portugal (12.000 euros) e Laboratórios Atral (10.000 euros). A representante legal dos três titulares da conta solidária – saliente-se que o PÁGINA UM remeteu questões específicas a cada um deles, que optaram por não responder individualmente – diz que “não compete às entidades que promoveram a ação solidária declarar os donativos no Portal da Transparência e Publicidade, mas às entidades que (…) fizeram os donativos”, acrescentando que “a Ordem dos Médicos validou todos os donativos que foram declarados no Portal da Transparência e em que foi identificada.”

    O PÁGINA UM pediu esclarecimentos sobre estas matérias ao presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo – com função de fiscalização no âmbito do regime jurídico dos medicamentos –, apresentando comprovativos de que a conta solidária era titulada por Miguel Guimarães. Ainda não obteve qualquer reacção, mas fica patente, neste caso, que o Portal da Transparência e Publicidade apresenta falhas graves, não sendo os seus dados de confiança por evidente falta de fiscalização por parte do Infarmed.

    Se estes casos já revelam graves irregularidades e até fuga ao fisco – pelo não pagamento do imposto de selo no valor de cerca de 139 mil euros –, pior ainda se mostrou, do ponto de vista da legalidade, a gestão contabilística e operacional da campanha, que esteve sempre sob supervisão directa de Miguel Guimarães, por ter sido feita pelos serviços da Ordem dos Médicos.

    Edifício principal da sede da Ordem dos Médicos, na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa.

    Ora, numa situação normal – e uma vez que a conta receptora dos donativos não era de qualquer das Ordens, mas sim formalmente de três pessoas em concreto (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves) –, as compras de equipamentos e outros géneros – a serem doados a diversas entidades, incluindo instituições particulares de solidariedade social (IPSS), associações e mesmo organismos estatais e empresas privadas – deveriam ser, por princípio, facturadas a quem as contratava. Ou seja, aos titulares da conta solidária. Mas não foi assim que sucedeu.

    Apesar de a generalidade dos pagamentos (feitos sempre a pronto) provirem da conta solidária – titulada por Guimarães, Martins e Castro Alves –, os fornecedores receberam instruções para as facturas serem em nome da Ordem dos Médicos. Na consulta à documentação contabilística da campanha “Todos por Quem Cuida”, o PÁGINA UM identificou 34 facturas no valor total de 978.167,15 euros que entraram assim na contabilidade da Ordem dos Médicos (pela aquisição de equipamento de protecção individual, câmaras de entubamento e ventiladores), mas sem que esta entidade tenha alguma vez feito qualquer pagamento. Ou seja, sem saída de dinheiro de qualquer conta pertencente à Ordem dos Médicos.

    As facturas assumidas pela Ordem dos Médicos, mas que foram afinal pagas com a conta solidária (à margem da Ordem dos Médicos) podem ser consultadas AQUI.

    Sendo legal que um terceiro possa proceder ao pagamento de facturas de uma determinada entidade – ou seja, era legítimo que Guimarães, Martins e Castro Alves usassem a sua conta solidária para saldar as compras dos géneros a doar –, essa informação teria, porém, de constar na contabilidade da Ordem dos Médicos. Como tal não sucedeu – ou pelo menos, não foi apresentado ao PÁGINA UM qualquer documento comprovativo –, na prática significa que a Ordem dos Médicos foi acumulando despesas – até chegar aos 978.167,15 euros – sem ter saído qualquer verba dos seus cofres.

    Dossiers da campanha “Todos por Quem Cuida”, contendo documentos administrativos e operacionais, que o PÁGINA UM consultou após sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Esse “crédito informal” criou condições, pelo menos em teoria, para se formar um “saco azul” ou mesmo um desvio de verbas. Para tal, bastaria que responsáveis da Ordem dos Médicos com acesso às contas oficiais fossem retirando os valores exactos das facturas que iam recebendo dos fornecedores dos bens comprados no âmbito da campanha “Todos por Quem Cuida”.

    Vejamos um exemplo. A factura nº 551 passada pela Clotheup em 2 de Outubro de 2020 pela aquisição de batas descartáveis no valor de 110.700 euros foi emitida à Ordem dos Médicos. Tendo sido uma aquisição a pronto de pagamento, não houve saída de dinheiro da Ordem dos Médicos, porque quem a pagou foi a conta solidária. Ora, nesse dia, poderia ter sido “desviada” a verba de 110.700 euros da conta bancária oficial da Ordem dos Médicos, não havendo assim o mínimo sinal de qualquer desfalque, uma vez que existia uma factura a suportar essa saída. Esse expediente pode aplicar-se a qualquer outra das 31 aquisições identificadas pelo PÁGINA UM.

    Mas mesmo na hipótese académica que não tenha sido criado nem usado qualquer “saco azul” – matéria que é do foro judicial, e não jornalístico –, qualquer revisor oficial de contas já teria detectado facilmente uma desconformidade nas demonstrações financeiras, por haver documentos atestando avultadas saídas de dinheiro (facturas a pronto de pagamento), mas sem qualquer fluxo de caixa correspondente. E estamos a falar em 978.167,15 euros ao longo dos exercícios de 2020, 2021 e 2022.

    Pagamentos das compras da campanha “Todos por Quem Cuida” não foram feitos por contas bancárias da Ordem dos Médicos, mas as facturas entraram como despesas “passíveis de saque” à margem da lei, e sem deixar rasto.

    Em todo o caso, mesmo que as autoridades venham a concluir, após investigação, que não houve “desfalques” na Ordem dos Médicos, a correcção desta “anomalia” contabilística – através, por exemplo, de declarações formais de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, de terem feito os pagamentos e, assim, terem “transferido” os donativos angariados – mostra-se problemática. E agravaria ainda mais uma outra ilegalidade fiscal da campanha “Todos por Quem Cuida”.

    Com efeito, apesar de todos os donativos terem tido como destinatário a conta solidária – titulada, repita-se, por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves –, as farmacêuticas quiseram aproveitar os benefícios fiscais da Lei do Mecenato, que um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais alargou, em Abril de 2020, também para os hospitais públicos. Nessa medida, os serviços operacionais da Ordem dos Médicos instruíram as largas dezenas de IPSS e outras entidades – que incluíram mesmo a PSP, a Liga dos Bombeiros, a Associação Nacional de Farmácias e até hospitais públicos e privados – a passarem declarações atestando que, afinal, receberam donativos em géneros das farmacêuticas, que lhe eram especificamente indicadas.

    Deste modo, um dos trabalhos (mais meticulosos) da equipa da Ordem dos Médicos, que Miguel Guimarães colocou na gestão operacional da “sua campanha”, passou por preencher intrincados “puzzles” entre os donativos em dinheiro fornecidos à conta solidária e os valores dos géneros recebidos pelas instituições. Assim, em vez das declarações de recepção dos donativos pelas diversas entidades beneficiadas serem passadas à conta solidária – em termos formais, aos três titulares da conta – ou à Ordem dos Médicos, foram encaminhadas para determinadas farmacêuticas.

    Assim, a título de exemplo – e é mesmo um só exemplo, porque existem largas centenas de casos, reportados e fotografados pelo PÁGINA UM durante a consulta dos dossiers contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida” –, é falsa a declaração de 23 de Março de 2021 da Liga dos Bombeiros Portugueses, bem como a competente carta de agradecimento do então presidente Jaime Marta Soares, de que foi a farmacêutica Gilead que lhes entregou 4.984 batas cirúrgicas, 1.661 litros de álcool gel, 831 máscaras cirúrgicas, 2.492 óculos reutilizáveis, 664 fatos integrais tamanho M e 664 tamanho L, e ainda 4.153 viseiras, tudo no valor de 103.400,60 euros.

    A realidade foi simultaneamente mais simples e complexa: a Gilead – neste caso, que é extensível a todas as outras farmacêuticas envolvidas – terá sim apenas entregado, através da Apifarma, um donativo de valor desconhecido, para uma campanha solidária, titulada por três pessoas. Formalmente, seriam essas três pessoas – e não as entidades beneficiadas com os géneros doados – que deveriam passar uma declaração de recepção desse donativo à Gilead (e às outras farmacêuticas). Porém, se assim fosse, as farmacêuticas não teriam hipóteses de usufruir de qualquer benefício fiscal, uma vez que o Estatuto do Mecenato não abrange donativos a pessoas singulares – e nem a Ordens profissionais, acrescente-se.

    Donativos para a conta solidária com montantes superiores a 500 euros, que deveriam ter pago imposto de selo (10%).

    Ora, a emissão de centenas de declarações falsas pelas entidades beneficiadas – que assumiram que os donativos em géneros vieram directamente de farmacêuticas, algo que estas não conseguirão comprovar através de facturas porque não foram elas que compraram os géneros – configura uma gigantesca fraude fiscal envolvendo centenas de entidades. De facto, considerando que, com este estratagema, os donativos à campanha “Todos por Quem Cuida” passaram a ser enquadráveis no mecenato social – e, em casos específicos, no mecenato ao Estado –, as farmacêuticas puderam levar a custos um valor correspondente a 130% ou 140% do valor entregue.

    Assim, sabendo que, globalmente, as farmacêuticas terão conseguido declarações num montante total de cerca de 1,3 milhões de euros, acabaram por assumir, em termos contabilísticos, custos da ordem dos 1,82 milhões de euros, algo que não seria possível se assumissem, como efectivamente sucedeu, que os donativos seguiram para uma conta solidária de três pessoas. Este expediente – a utilização abusiva de um benefício fiscal – terá lesado o Estado, segundo estimativas do PÁGINA UM, em cerca de 145 mil euros.

    Este montante engloba também os casos em que os donativos foram aceites por diversos hospitais como sendo das farmacêuticas, mesmo quando as verbas foram também provenientes da conta solidária, e até previstas as transferências por protocolos entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e três centros hospitalares: Lisboa Central, Universitário do Porto e São João (Porto). No primeiro caso para apoiar a criação de uma farmácia ambulatória no Hospital Curry Cabral, e nos dois hospitais portuenses para financiar parte de novas unidades de internamento.

    Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos assinaram protocolos com três hospitais, mas os pagamentos foram afinal feitos pela conta solidária titulada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, embora as farmacêuticas (como a AstraZeneca, vd. foto) tenham recebido declarações para efeitos de benefícios fiscais. Serviços Partilhados do Ministério da Saúde aceitaram este esquema.

    Nestes casos específicos, os centros hospitalares receberam o dinheiro da conta solidária, mas não entregaram quaisquer facturas em nome da Ordem dos Médicos, optando por apresentar declarações de recebimento de donativos a diversas farmacêuticas por indicação expressa de Miguel Guimarães. Nenhuma das administrações destes três centros hospitalares responderam aos pedidos de comentários do PÁGINA UM. Estas declarações foram aprovadas pela Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), tutelada pelo ministro da Saúde.  

    No caso de outros bens recebidos por diversas unidades do Serviço Nacional de Saúde – sobretudo ventiladores da Sysadvance e câmaras de entubamento da Gravoplot [e que merecerão artigo específico do PÁGINA UM] –, a “solução” encontrada foi similar à já referida para os equipamentos de protecção individual: assumiu-se, recorrendo a declarações falsas, que quem doou os géneros foram as farmacêuticas, não sendo sequer referido que houve participação da campanha “Todos por Quem Cuida”.

    Confrontado o presidente do SPMS, Luís Pinheiro Goes, sobre estas comprovadas falsas declarações, a resposta foi lacónica: “As declarações emitidas pela SPMS foram elaboradas nos exatos termos solicitados pelas entidades beneficiárias das doações”, isto é, pelos hospitais.

    O PÁGINA UM ainda insistiu junto de Luís Pinheiro Goes, perguntando se nunca houve verificação documental pela SPSM para confirmar quem eram os efectivos doadores, e se seria feita alguma diligência suplementar, mas não teve resposta. Por sua vez, a representante legal de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves diz que o despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais “autorizou ainda a interposição de entidades mediadoras entre o mecenas e o beneficiário”, pelo que, “deste modo, a SPMS emitiu os documentos que se encontrava autorizada a emitir.”

    Este expediente é, sem dúvida, de legalidade duvidosa, e nem sequer foi usado noutra circunstância no decurso de um apoio extraordinário feito pela farmacêutica alemã Merck em Março de 2021, mas que envolveu apenas géneros. Neste caso, de acordo com a lei, a farmacêutica decidiu assinar um contrato com a Ordem dos Médicos, doando-lhe 190 mil máscaras FFP2, e declarando esse donativo (com um valor monetário específico) no Portal da Transparência e Publicidade. O beneficiário que ali consta é, obviamente, a Ordem dos Médicos, e não nenhuma das muitas entidades que terão recebido as máscaras FFP2 doadas. Em todo o caso, o PÁGINA UM também detectou irregularidades neste donativo, de âmbito fiscal, que abordará em outra notícia.  

    Ora, mas acabando todos os envolvidos por assumirem na generalidade dos casos – e mesmo se através de um esquema fiscalmente nada ortodoxo e com documentos falsos – que os donativos foram entregues em géneros pelas farmacêuticas, a Ordem dos Médicos terá deixado então de poder justificar a existência de facturas a pronto pagamento em seu nome sem qualquer fluxo de saída de dinheiro.

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    De facto, como as farmacêuticas têm agora, com as declarações (mesmo se falsas) das entidades beneficiadas, uma justificação contabilística para os seus donativos (globalmente, no valor de 1.329.751 euros), já não poderão, em princípio, passar segunda declaração de entrega desse montante nem aos titulares da conta solidária (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves) nem à Ordem dos Médicos.

    Portanto, com tudo isto, está criado, no mínimo, um intrincado imbróglio fiscal com implicações penais. E isto sem incluir a conferência entre as facturas na posse da Ordem dos Médicos no valor de mais de 968 mil euros – para a aquisição de géneros da campanha “Todos por Quem Cuida”, que não foram por si pagos – e os seus fluxos de caixa, para assim se aferir se se criou ou não um “saco azul”.

    O PÁGINA UM colocou várias questões ao ministro da Saúde, Manuel Pizarro, que não respondeu.


    N.D. Esta é a primeira parte de um dossier em redor da campanha “Todos por Quem Cuida”, que resultou da consulta, durante três dias ao longo do mês de Novembro passado, de todos os documentos operacionais e contabilísticos na sede da Ordem dos Médicos, em Lisboa. A possibilidade de consulta não foi concedida de forma voluntária: foi uma imposição, por sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa (através de uma intimação, financiada pelo FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, ou seja, pelos seus leitores), após sistemáticas recusas tanto da Ordem dos Médicos como da Ordem dos Farmacêuticos, mesmo após a obtenção de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA). Com esta investigação, o intuito do PÁGINA UM não é colocar em causa a bondade de campanhas de angariação de fundos nem acções de solidariedade; é exactamente averiguar se, em acções nobres, os procedimentos são exemplares, incluindo a componente da transparência perante o eventual escrutínio dos jornalistas. Não há nada pior para uma boa causa do que maus procedimentos. Tal como os meios não justificam os fins, também os fins não podem justificar os meios.

  • Processo disciplinar: Manuel Pizarro segura Filipe Froes

    Processo disciplinar: Manuel Pizarro segura Filipe Froes

    Apesar de estar sob suspeita desde Setembro do ano passado, por causa das suas promíscuas ligações à indústria farmacêutica, Filipe Froes mantém, para já, a confiança do ministro da Saúde, mesmo com um processo disciplinar da Inspecção-Geral das Actividades de Saúde que se arrasta, de forma secreta, há 10 meses. Este ano, o pneumologista mantém os valores “habituais”: recebeu já cerca de 4.000 euros por mês do sector farmacêutico, com destaque para a norte-americana Merck Sharp & Dohme.


    Apesar de estar com um processo disciplinar, instaurado há 10 meses pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, devido a alegadas ligações promíscuas com a indústria farmacêutica, Filipe Froes pode manter-se confiante nas suas funções de consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS). O ministro da Saúde, Manuel Pizarro, não lhe vai tirar o tapete, pelo menos até à conclusão de um longo processo disciplinar, sem fim à vista.

    Esta posição governamental permitirá assim ao pneumologista manter uma perna nos corredores da autoridade de saúde nacional (DGS), onde se decidem terapêuticas, enquanto mantém a outra perna, bem aberta, para satisfazer solicitações da indústria farmacêutica entre consultadorias, palestras e lobby.

    De acordo com nota do Ministério da Saúde enviada ao PÁGINA UM, Manuel Pizarro aguardará a conclusão do processo disciplinar “para se pronunciar”. Ou seja, uma carta branca para Froes manter a sua posição de consultor da DGS e as suas relações comerciais com as farmacêuticas. O pneumologista destacou-se também, durante a pandemia, por ser o líder do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos, um órgão não-estatutário que inclusive serviu para perseguir médicos com opiniões distintas do bastonário Miguel Guimarães, como sucedeu com Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria.

    Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica, mantém-se como consultor da DGS e com intenso palco mediático.

    Conforme noticiou o PÁGINA UM há uma semana, Filipe Froes está a ser alvo de um processo disciplinar, em consequência de um processo de averiguação aberto em Setembro de 2021, mas como está em fase de instrução, as razões da acusação estão inacessíveis pela “natureza secreta do inquérito”.

    A IGAS não adianta quais os motivos de tantos meses para a instrução deste processo disciplinar, mas informa que este deriva das averiguações iniciadas em Setembro do ano passado a que foi sujeito este conhecido consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS), presença assídua na imprensa como alegado perito independente durante os anos da pandemia.

    Em 4 de Janeiro passado, o PÁGINA UM tinha já escalpelizado as declarações de Filipe Froes no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed e cruzado com os relatórios e contas dos últimos anos da sua empresa – a Terras & Froes –, detectando sinais de alguma “contabilidade criativa” para que não fosse ultrapassada a média anual (no último quinquénio) de 50 mil euros de recebimentos da indústria farmacêutica. Esta é a fasquia monetária a partir da qual Froes ficaria impedido de ser consultor da DGS.

    A Merck Sharpe & Dohme “perdeu” a corrida das vacinas, optando pelo desenvolvimento de anticorpos monoclonais. Froes elogiou o seu uso e integrou a sua introdução nas terapêuticas anti-covid.

    Apesar de trabalhar em exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS), Filipe Froes é um dos médicos portugueses com maiores relações com as farmacêuticas, que aumentaram com a sua exposição pública no decurso da pandemia. Além de coordenar uma unidade de cuidados intensivos do Hospital Pulido Valente, este pneumologista também liderou o Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos para a Covid-19 e tem, nos últimos dois anos, como consultor da DGS, participado activamente na elaboração de normas técnicas relacionadas com a pandemia.

    De acordo com o Portal da Transparência e Publicidade, Froes estabeleceu, desde 2013, mais de 270 contratos comerciais, em seu nome ou na sua empresa Terras & Froes, com 22 farmacêuticas. O montante global já alcançado ultrapassa os 400 mil euros. Nos dois primeiros anos da pandemia (2020 e 2021), o pneumologista encaixou uma média mensal de 4.065 euros, valor superior ao que ganha como médico do SNS. Este ano, em 11 meses, vai com uma média mensal de 4.327 euros.

    Este ano, Filipe Froes tem dado especial atenção às solicitações da farmacêutica norte-americana Merck Sharp & Dohme (MSD) , contando já com oito colaborações que lhe renderam 21.083 euros. Mas teve relações com mais nove, entre as quais a AstraZeneca, Gilead e Sanofi. Estas relações não o coíbem, contudo, de integrar, por exemplo, a equipa de consultores da DGS que define as terapêuticas anti-covid, onde passaram a constar este ano os anticorpos monoclonais da MSD, o molnupiravir, comercializado sob a marca Lagevrio.

    Em diversas ocasiões, Froes tem promovido, de forma entusiástica, o uso dos anticorpos monoclonais (produzidos pela Pfizer e pela MSD) e a integração da vacina da covid e da gripe numa só dose (comercializada pela Sanofi).

    white and green plastic blister pack

    Saliente-se, contudo, que estes rendimentos podem pecar por defeito, uma vez que cada vez se torna mais patente que o Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed apresenta falhas enormes, porque as farmacêuticas se “esquecem” de registar donativos e patrocínios a médicos e outras entidades, entre as quais os media mainstream, incumprindo o Estatuto do Medicamento.

    Recorde-se que, em Novembro passado, Filipe Froes lançou um pequeno livro com as crónicas que foi publicando no Diário de Notícias, em co-autoria com Patrícia Akester, e o patrocínio da Bial. A farmacêutica portuguesa – que tem como chairman António Horta Osório, que é simultaneamente administrador da Impresa (dona do Expresso e SIC) ainda não colocou o valor do apoio no portal do Infarmed nem sequer respondeu a questões colocadas pelo PÁGINA UM.

  • Melhor município para viver? Pague primeiro, ganhe (de certeza) depois

    Melhor município para viver? Pague primeiro, ganhe (de certeza) depois

    O PÁGINA UM descobriu um prémio para distinguir autarquias, que garantiu, a quem pagou 12.500 euros, que, na pior das hipóteses, levava uma menção honrosa, e, na melhor, uma mão-cheia de “taças” para currículo político. O promotor foi a INTEC, que apesar de se apresentar como Instituto de Tecnologia Comportamental, é apenas uma associação criada em 2007 por um casal de professores do ISCSP. Para a organização de uma gala, no passado dia 3 de Novembro, para distribuição dos galardões, que teve como media partner o Jornal de Notícias e a Universidade de Coimbra como parceira, o INTEC conseguiu convencer 11 autarquias “mecenas” a desembolsarem 12.500 euros, cada, com a garantia de não saírem de mãos a abanar. O estudo, que terá supostamente redundado nos rankings, não foi ainda divulgado. No INTEC, que se apresenta como um centro tecnológico, ninguém atendeu telefone fixo nem telemóvel nem respondeu ao e-mail do PÁGINA UM. Talvez venha a reagir por pombo-correio.


    Na aparência, foi um prémio para dignificar as melhores políticas públicas desenvolvidas pelos autarcas portugueses. Organizado pelo INTEC – Instituto de Tecnologia Comportamental, intitula-se, muito apropriadamente, “Prémios – Melhores Municípios para Viver”, e há exactamente um mês, no dia 3 de Novembro, teve a merecida gala de luxo na Universidade de Coimbra para destacar, pois então, apenas os melhores entre os melhores, sendo abrilhantada com a presença de muitos sorridentes autarcas. A iniciativa contou também com a participação activa da Faculdade de Direito de Coimbra e, como já se torna habitual em eventos deste género, um media partner: neste caso, o Jornal de Notícias.

    Houve prémios para todos os gostos, por serem 10 as categorias avaliadas, com os três primeiros classificados a merecem distinção, e ainda um ranking global elencando os cinco melhores municípios (não houve últimos), ponderados os vários indicadores. Contudo, tendo em conta que Portugal tem 308 municípios, esperar-se-iam muitos premiados, uma vez que, contas feitas, contabilizaram-se 38 galardões, incluindo três menções honrosas excepcionalmente atribuídas pelo INTEC.

    silhouette of person jumping during dawn

    Mas não assim. Na verdade, somente 14 municípios, de entre um universo potencial de 308, foram distinguidos (três dos quais com menções honrosas), porque houve imensas repetições na subida ao palco.

    O primeiro classificado no ranking global – Lagoa – foi também o primeiro nas categorias do Bem Estar, do Turismo e da Segurança, Diversidade e Tolerância. O segundo do ranking global – Caminha – ficou em primeiro na categoria do Ensino e Formação, em segundo no Bem Estar, no Urbanismo e Habitação e na Segurança, Diversidade e Tolerância, e ainda em terceiro no Ambiente. E Bragança, o terceiro classificado no ranking global, também amealhou o primeiro lugar no Ensino e Formação, o segundo lugar na Mobilidade e Segurança Rodoviária, e ainda o terceiro lugar no Bem Estar, no Urbanismo e Habitação e na Segurança, Diversidade e Tolerância.

    Em suma, o município de Lagoa sacou quatro galardões, o de Caminha seis, e o de Bragança outros tantos. Além destes, Boticas recebeu três primeiros lugares em diversas categorias; Lisboa dois primeiros e um segundo; Porto, um segundo e dois terceiros; Maia um segundo e um terceiro; e Vila Nova de Famalicão dois terceiros. Parecia os jogos olímpicos. Os municípios de Olhão, Coimbra, Santarém e Montalegre subiram uma vez ao palco, tal como Cascais e Pombal – estes para receberem o quarto e quinto lugar do ranking global. Também Santa Maria da Feira, Vila Nova de Gaia e Paredes tiveram direito a prémio, mas de consolação: menções honrosas.

    Lagoa amealhou o primeiro lugar global e mais três primeiros lugares em várias categorias (Bem Estar; Turismo; e Segurança, Diversidade e Tolerância). O município não perdeu tempo a mostrar o “feito” nas redes sociais e imprensa regional.

    Porém, esta concentração de prémios acaba por ser bastante suspeita, porque grande parte dos premiados foi, talvez por coincidência, “mecenas” dos próprios galardões que recebeu.

    Numa consulta detalhada no Portal Base, o INTEC celebrou, entre Maio e Novembro deste ano, pelo menos 11 contratos com municípios para a elaboração de estudos e para a candidatura dos prémios “Melhores Municípios para Viver”.

    Embora até possam ser mais – uma vez que, por vezes, existe um desfasamento de vários meses entre a assinatura e a publicitação no Portal Base –, o PÁGINA UM detectou a celebração de contratos com os municípios de Lagoa, Caminha, Bragança e Pombal – que ocuparam o top 5, sendo que, neste lote, apenas Cascais não regista contrato –, Boticas, Coimbra, Vila Nova de Famalicão, Montalegre, Santa Maria da Feira, Vila Nova de Gaia e Paredes. No total, o INTEC encaixou 137.500 euros, a que acresceu IVA. Nesta lista de 11 municípios, todos receberam galardões. Isto é, ninguém que pagou à INTEC ficou a “chuchar no dedo”.

    No caso do município de Caminha – que, repita-se, ficou em segundo no ranking global e foi distinguida em cinco categorias –, o contrato entre o presidente da autarquia, Rui Lages – que substituiu o ex-secretário de Estado-adjunto do primeiro-ministro, Miguel Alves – e a presidente do INTEC, Patrícia Palma, foi assinado no próprio dia da gala, 3 de Novembro. E o contrato especifica que se destina à candidatura ao prémio. No contrato do município de Lagoa, por sua vez, não surge a garantia de que ganhará prémios, mas nas fases do contrato ficou expresso que os resultados seriam divulgados num órgão de comunicação social nacional de grande tiragem, que acabou por ser o Jornal de Notícias.

    Em todo o caso, em comum em todos os contratos entre INTEC e municípios no Portal Base, está a ausência dos cadernos de encargos, ignorando-se assim as contrapartidas fixadas pelos pagamentos.

    Independentemente da estranheza que causa um prémio nacional bastante enviesado nos critérios de selecção – porquanto beneficiou, de forma evidente, quem pagou –, ignora-se também quaisquer detalhes das classificações, uma vez que, de acordo com o site do INTEC, os relatórios apenas serão conhecidos posteriormente. Porém, se forem como as edições anteriores – que remontam aos anos de 2007 a 2009, neste caso com o apoio do jornal Sol –, bem se pode procurar, porque nada se encontra. Sabem-se as primeiras posições; jamais se sabe quem foram os últimos, até porque, efectivamente, se ignora quantos municípios estiveram em jogo.

    Rui Lages (à direita), presidente da Câmara de Caminha, a receber em Coimbra, no dia 3 de Novembro, um dos galardões, em frente de Patrícia Jardim da Palma, presidente do INTEC. Os dois assinaram, nesse mesmo dia, um contrato no valor de 12.500 euros para pagar a candidatura ao prémio. Foto: página do FB do INTEC.

    Mas ainda mais estranho é a própria confiança dos municípios numa entidade organizadora que, embora possua a denominação pomposa de INTEC – Instituto de Tecnologia Comportamental, não se encontra associada a qualquer entidade de ensino ou de investigação, mesmo se celebrou, em Setembro passado, um protocolo com a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra “com o objetivo de desenvolvimento de projetos conjuntos de interesse comum nos domínios da investigação e das saídas profissionais”.

    Na verdade, o INTEC é uma associação privada criada em 2007 por Patrícia Jardim da Palma – que preside desde a fundação – e pelo seu marido, Miguel Pereira Lopes, que ocupa o cargo de presidente da Assembleia Geral. Ambos são professores no ISCSP, que nunca teve qualquer parceria com o INTEC. O terceiro membro fundador da associação é José Luís Soares Ferreira, gestor de negócios da empresa Central Business, com sede no Pólo Tecnológico de Lisboa. O próprio INTEC teve também sede nesse espaço, mas foi saltitando por outros hubs tecnológicos, estando agora localizado na Azambuja.

    Antes desta edição lucrativa dos prémios comprados pelos municípios em 2022, a INTEC esteve longos anos quase sem actividade, sobretudo a partir de 2015, pois entre esse ano e 2021 apenas se encontra um serviço prestado ao município de Vila do Bispo com vista à obtenção de uma certificação de desenvolvimento sustentável (ISO 37120). Mas entre o ano da fundação e 2014, o INTEC conseguiu convencer outros municípios a financiarem similares prémios durante três anos, mas não foi actividade tão lucrativa.

    Patrícia Jardim da Palma e Miguel Pereira Lopes, ambos professores do ISCP, sacaram 137.500 euros a autarquias, através de contratos com o INTEC (que fundaram em 2007), para conceder prémios e fazer um estudo (ainda não divulgado).

    Entre 2009 e 2014, consta no Portal Base um total de 10 contratos da INTEC com municípios no valor global de 173.250 euros – ou seja, uma média anual de 28.875 euros, valor substancialmente inferior ao alcançado no presente ano (137.500 euros). Nas edições anteriores, pelos escassos elementos encontrados, a metodologia usada consistia na mera recolha de dados de diversos indicadores no Instituto Nacional de Estatísticas e da realização de inquéritos telefónicos em concelhos específicos, mas não em todos os 308 existentes em território nacional.

    Saliente-se também que os resultados da edição revelada na gala de 2022, que ocorreu há um mês, nem sequer se encontram ainda no site do INTEC. A única fonte de informação acaba assim por ser o Jornal de Notícias. No seu site encontra-se, porém, um documento onde se refere que o passo seguinte à publicação dos vencedores pelo jornal da Global Media seria o “envio de relatório final pormenorizado a cada um dos dez municípios vencedores, com análise específica de cada indicador, com a proposta de planos de melhoria”: Contudo, isso deveria acontecer com a “realização de gala para entrega de prémio”, algo que já ocorreu.

    O PÁGINA UM contactou o INTEC – que se apresenta como um centro de desenvolvimento tecnológico – através dos contactos que surgem no seu site: telefone fixo, telemóvel e e-mail para pedir esclarecimentos sobre estas matérias – e sobretudo se era mesmo obrigatório o pagamento de uma taxa para “entrar em jogo”, e também para aceder aos relatórios finais. Contudo, até à hora de fecho desta notícia, ainda não obteve qualquer resposta.