Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos vão ter de revelar contabilidade de campanha mediática e milionária à custa da pandemia

    Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos vão ter de revelar contabilidade de campanha mediática e milionária à custa da pandemia

    Há dois anos, Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos, com o apoio da indústria farmacêutica, lançaram um campanha mediática, recorrendo a figuras públicas. Angariaram mais de 1,4 milhões de euros, que envolveu um polémico donativo de 380 mil euros da Merck S.A. e mais 665 mil euros da Apifarma. Na hora de prestar contas, até por serem entidades com deveres similares à Administração Pública, fecharam-se em copas. A Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) diz agora que são obrigados a dar documentos operacionais e contabilísticos. Se estas ordens profissionais recusarem cumprir o parecer (não vinculativo) da CADA, seguirá mais um processo de intimação para o Tribunal Administrativo.


    Os documentos operacionais e contabilísticos que comprovem o recebimento e distribuição dos donativos da campanha “Todos por Quem Cuida”, que terá angariado mais de 1,4 milhões de euros em 2020 e 2021, deverão ser disponibilizados ao PÁGINA UM pela Ordem dos Médicos e pela Ordem dos Farmacêuticos, as entidades que a promoveram em conjunto com a Associação Portuguesa de Indústrias Farmacêuticas (Apifarma). A campanha foi iniciada em 22 de Abril de 2020, ou seja, há exactamente dois anos, logo na primeira fase da pandemia.

    Esta é a decisão de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, aprovado na quarta-feira passada e hoje comunicada ao PÁGINA UM. Tanto a Ordem dos Médicos – liderada pelo urologista Miguel Guimarães – como a Ordem dos Farmacêuticos – então liderada por Ana Paula Martins, que desde Fevereiro deste ano é directora de assuntos governamentais da farmacêutica Gilead e desde Dezembro passado vice-presidente do PSD – recusaram o acesso do PÁGINA UM aos documentos que comprovem o valor concreto e a proveniência dos fundos, bem como a correcta e prometida distribuição desses equipamentos e bens.

    Campanha recolheu 1.401.545 euros, mas ignora-se os montantes em género e em dinheiro, e
    nem sabe o destino de tudo.

    No site da campanha consta apenas o valor total angariado, o número de instituições apoiadas (1.238) e as quantidades do diverso material doado, mas sem identificar essas instituições nem tão-pouco as quantidades que cada uma terá eventualmente recebido. Também é referido que seriam “cedidos a hospitais” 20 ventiladores produzidos em Portugal pela Sysadvance, mas ignora-se se tal ocorreu, e se sim, quais as unidades de saúde beneficiadas. Nem qual o preço pago à Sysadvance. A única informação recolhida pelo PÁGINA UM sobre esta matéria é o anúncio pelo Jornal Médico em Abril do ano passado da entrega do primeiro destes ventiladores, indicando-se então que seriam afinal entregues 30 unidades.

    De igual modo, o site da campanha indica que seriam distribuídos 300.000 euros para criar 12 unidades de cuidados intensivos no Hospital de Santo António, quatro camas de isolamento aéreo para cuidados intensivos no Hospital de São João e uma unidade centralizada de farmácia de ambulatório no Hospital de São José.

    De entre estes projectos, somente no mês passado – já muito depois do PÁGINA UM ter começado a questionar a Ordem dos Médicos sobre aspectos da gestão contabilística da campanha “Todos por Quem Cuida” – foi anunciado que 100 mil euros seriam entregues pela Ordem dos Médicos para contribuir para remodelação da unidade de cuidados intensivos do Hospital de São João. O orçamento total será de 500 mil euros, sendo que a Associação Empresarial Portuguesa também doou 300 mil euros.

    Ana Paula Martins, antiga bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, e Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos (na entrega dos Prémios Almofariz 2020), recusaram acesso a documentos administrativos de campanha milionária.

    Um dos aspectos mais estranhos e polémicos desta campanha foi um donativo considerado em termos contabilísticos de 380.000 euros, sob a forma de máscaras FFP2, da farmacêutica alemão Merck S. A. directamente à Ordem dos Médicos. Não consta que os hospitais do Serviço Nacional de Saúde tivessem tido alguma vez falta de máscaras. Sabe-se sim que a Merck S.A. poderá vir a receber benefícios fiscais por este alegado donativo.

    A Ordem dos Médicos também terá recebido mais 20.000 euros em 2021 da A. Menarini, ignorando-se se em dinheiro ou em género. Os Laboratórios Medinfar também terão contribuído, de acordo com o Portal da Transparência e Publicidade, nesta campanha mas sem passar pelas entidades organizadoras. No portal do Infarmed contabilizam-se 44 donativos ao longo de 2020 desta empresa portuguesa, para hospitais do SNS e instituições de solidariedade social em montantes que variaram entre os 78,3 euros e os 626,4 euros. No total, a empresa terá doado 8.972,56 euros.

    A Apifarma também terá doado 665 mil euros para este fundo, mas apenas através da análise de documentos contabilísticos se poderá apurar se houve ou não uma mera engenharia contabilística com efeitos fiscais.

    No site da campanha, ainda operacional mas já com o IBAN indicado para donativos inoperacional, não consta qualquer relatório circunstanciado.

    A Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticos têm agora 10 dias para disponibilizar, ou não, toda a documentação solicitada pelo PÁGINA UM. Caso tal não suceda será então entregue um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa com vista a ser imposta uma obrigatoriedade sob pena de multas pecuniárias por cada dia de atraso.

    Os processos de intimação têm sido uma das estratégias do PÁGINA UM para contribuir para uma maior transparência das entidades da Administração Pública ou de instituições equiparadas, como as Ordens profissionais. E, sobretudo, para contornar a sistemática recusa das entidades públicas, que apesar dos pareceres da CADA, que não são vinculativos, continuam a não fornecer os documentos solicitados.

    Aliás, o PÁGINA UM já obtivera da CADA, em Janeiro passado, um parecer relativo exclusivamente ao donativo da Merck S.A, à Ordem dos Médicos, mas o bastonário e urologista Miguel Guimarães continuou a recusar, algo que já não poderá continuar a suceder se a intimação do Tribunal Administrativo lhe for desfavorável.

    Anúncio de promoção da campanha “Todos por Quem Cuida”, iniciada em 22 de Abril de 2020

    Este mês, o PÁGINA UM já intentou processos de intimação contra o Conselho Superior da Magistratura e o Infarmed, recorrendo ao seu FUNDO JURÍDICO – suportado por donativos dos leitores –, estando agora ser preparado um processo global contra a Direcção-Geral da Saúde, agrupando a totalidade das solicitações não satisfeitas pela entidade liderada por Graça Freitas, pese embora os pareceres da CADA.

    A mediática campanha “Todos por Quem Cuida” contou com o apoio de figuras da política, da cultura, desporto e entretenimento, como o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, o ex-presidente da República Ramalho Eanes, os cantores Ana Moura, Mariza, Camané, Pedro Abrunhosa, Rui Veloso e Luís Represas, o ex-futebolista Luís Figo e os apresentadores Fernando Mendes e Manuel Luís Goucha.

    Teve também o apoio de duas dezenas de órgãos de comunicação social, a saber: Correio da Manhã TV, Ekonomista, Jornal Económico, Marketeer, Público, Porto Canal, Sapo, TVI, Vida Ativa, Visão, Correio da Manhã, Dinheiro Vivo, Eco, Flash, Jornal i, Jornal de Notícias, Negócios, Record, Sábado e Sol.

  • Consultores: do zero aos 263.389 euros do Doutor Froes

    Consultores: do zero aos 263.389 euros do Doutor Froes

    O PÁGINA UM decidiu escalpelizar, a título de exemplo, as relações entre farmacêuticas e especialistas de uma área médica que esteve na berlinda nos últimos dois anos: a Pneumologia, sobretudo quando estes também estão próximos dos corredores de decisão. Ou seja, quando são também consultores da DGS, que nada lhes paga (e devia) mas lhes oferece um apetecível título de consultor, que pode valer ouro num currículo. Há quem se aproveite disso; e há quem não. E há quem esteja incompatível, e/ou próximo disso. Uma viagem ao mundo da Ética.


    Seis dos 17 consultores da Direcção-Geral da Saúde (DGS) que integram o Programa Nacional de Doenças Respiratórias (PNDR) não tiveram qualquer relação comercial com o sector farmacêutico, de acordo com um levantamento exaustivo do PÁGINA UM no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed entre 2017 e o mês corrente.

    Tendo como funções assessorar cientifica e gratuitamente a DGS neste programa de saúde prioritário, os consultores do PNDR – tal como dos outros sete existentes – não têm, por norma, vínculo àquela entidade, sendo “recrutados” sem qualquer vencimento junto das universidades e hospitais públicos. Aceitam, e nada ganham por isso do Estado; mas recebem o título de consultores da DGS. Para muitos é serviço para a comunidade; para outros um bom cartão de visita para efeitos de marketing pessoal.

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    Estes peritos são muito “apetecíveis” para a indústria farmacêutica. Devido à sua proximidade com a Autoridade de Saúde Nacional (DGS), responsável pelas normas e orientações que podem ser relevantes para o uso de medicamentos e tecnologias de saúde, têm potencialmente acesso a informação privilegiada. Se forem maleáveis, e até integrarem o quadro de consultores de um determinado medicamento, podem contribuir para os “milagres” acontecerem junto dos órgãos decisórios.

    Excepto se forem seus funcionários, a DGS permite que esses consultores possam receber até 50 mil euros por ano, em média no quinquénio anterior, provenientes do sector farmacêutico, se forem membros de órgãos sociais de sociedades científicas, associações ou empresas privadas. A título individual só violam o regime de incompatibilidades se trabalharem com um vínculo contratual para as farmacêuticas, o que facilmente se contorna através de pagamentos por “prelecção em palestras ou conferências organizadas” por este tipo de empresas, ou ainda se participarem em estudos e ensaios clínicos.

    Assim, no caso do PNDR, com excepção evidente de um dos 17 consultores – António Morais, presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), que de forma clara viola o regime de incompatibilidades, como o PÁGINA UM denunciou esta semana –, não há mais ninguém em claro incumprimento da lei.

    A incompatibilidade de António Morais – pneumologista que também acumula funções no Hospital de São João do Porto e na empresa privada Trofa Saúde – advém apenas do seu cargo na SPP (porque esta entidade tem fortes relações comerciais com as farmacêuticas), e não naquilo que delas recebe a título pessoal. Em todo o caso, Morais recebeu para o seu próprio bolso, desde 2017, um total de 24.951 euros da indústria farmacêutica, sobretudo da Roche e da Boehringer Ingelheim.

    António Morais, ao centro, preside à Sociedade Portuguesa de Pneumologia e ainda é consultor da DGS.

    Há um outro caso bicudo que envolve outro consultor do PNDR: o do pneumologista Filipe Froes, que poderá estar também em situação de incompatibilidade, porque tem recebido montantes bastante elevados nos últimos anos das farmacêuticas, sobretudo através da sua empresa Terra & Froes.    

    De acordo com a análise do PÁGINA UM ao portal do Infarmed, desde 2017 até agora, Froes recebeu da indústria farmacêutica um total de 263.389 euros, com a Pfizer à cabeça (85.096 euros), seguindo-se a Merck Sharp & Dohme (67.859 euros) e a BIAL (17.417 euros). Em média, no último quinquénio arrecadou 47.520 euros. Está portanto, próximo da fasquia dos 50.000 euros.

    Contudo, conforme o PÁGINA UM já denunciou, mas ainda sem consequências para o pneumologista, existem discrepâncias entre os valores constantes da plataforma do Infarmed e do relatório e contas da sua empresa.

    Apesar da polémica das suas relações com a indústria farmacêutica, Froes não tem parado. Este ano, em menos de quatro meses, já contabiliza 15.764 euros, dos quais quase três mil euros como consultor da Gilead para o polémico anti-viral remdesivir. Froes continua a ser também membro da equipa de médicos que determina as terapêuticas de tratamento para a covid-19, e que manteve aquele fármaco incluído, apesar dos riscos e ineficácia.

    Filipe Froes, durante um webinar em Abril de 2021, patrocinado pela Ascensia Diabetes Care, Boehringer Ingelheim, Roche, Gasomed e Medtronic, intitulado “Um ano de covid-19 ou o bom, o mau e o vilão”.

    O consultor do PNDR que, a seguir a Froes, mais recebeu do sector farmacêutico é Paula Gonçalves Pinto, especialista em apneia obstructiva do sono, que trabalha no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte e dá ainda aulas na Faculdade de Medicina de Lisboa e na Universidade Nova. Recebeu desde 2017 um total de 45.708 euros, embora esse rendimento se tenha reduzido bastante a partir de 2020. No ano passado, por exemplo, recebeu da indústria farmacêutica apenas 1.737 euros.

    Com valores ligeiramente mais baixos surgem as consultoras Celeste Barreto (35.968 euros) e Ana Arrobas (35.164 euros). A primeira trabalha no serviço de Pediatria do Hospital de Santa Maria, sendo especialista em fibrose quística. A segunda trabalha no Hospital Universitário de Coimbra e no Hospital da Luz, sendo especialista em asma.

    Os consultores do PNDR sem qualquer relação comercial conhecida com as farmacêuticas são António Fonseca Antunes (consultor para o Planeamento e Estratégia), Elisabete Melo Gomes (que é técnica da DGS), Elsa Soares Jara (pneumologista especializada em cuidados respiratórios domiciliários), Emília Nunes (especialista em tabagismo), Paulo Diegues (chefe de divisão de Saúde Ambiental e Ocupacional, sendo engenheiro do ambiente) e Paulo Nogueira (especialista em vigilância epidemiológica e docente da Faculdade de Medicina de Lisboa).

    A directora do PNDR, Cristina Bárbara, pneumologista no Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte, regista verbas recebidas directamente das farmacêuticas desde 2017 bastante baixas: somente 1.101 euros. E não arrecadou qualquer verba desde 2019.

  • X: antes a Morte que tal Sorte

    X: antes a Morte que tal Sorte


    Se quisermos, a paranóia da pandemia pode eternizar-se. Ou pode acabar hoje mesmo.

    Depende se aceitamos o absurdo.

    Por exemplo, ontem o Expresso anunciava que “o surgimento de novas variantes, como a Ómicron, reforçou a necessidade de uma estratégia de controlo da covid-19”, e por isso os Estados Unidos estavam a “redobrar esforços colectivos para encerrar a fase aguda da pandemia (…) e nos preparamos para futuras ameaças relacionadas com a saúde”.

    Já sabemos, pela “amostra” dos últimos dois anos naquilo que isto vai dar.

    Vemos agora, pelo exemplo demencial de Xangai, naquilo que se pode transformar a vida mesmo em civilizadas sociedades ocidentais que foram criadas com base no livre-arbítrio responsável e nas liberdades individuais.

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    Tudo isto se pode, e deve (defenderão os políticos sanitaristas), ser posto em causa se houver razões de excepção. Novas variantes de um vírus, “futuras ameaças relacionadas com a saúde”, eis a excepção, qual sonho húmido de políticos democratas com tentações despóticas, que pode ser a regra, se assim se quiser.

    Se assim a imprensa mainstream quiser. Se os Governos quiserem. Se os povos aceitarem.

    Pesquiso no Google News sobre a suposta nova variante XE, através das palavras XE e covid: contabilizo já 29.800.000 notícias. Estão reunidos os ingredientes para a renovação da pandemia.

    Ler algumas destas notícias causa uma dor de alma a quem defende um jornalismo que não permite manipulações, mistificações, especulações.

    Leio, por exemplo, uma notícia da CNN Portugal – pego nesta como poderia pegar em tantas de tantos outros órgãos de comunicação social mainstream –, publicada em 6 de Abril passado, que reza assim:

    A Agência de Segurança da Saúde do Reino Unido (UKHSA) detetou, em janeiro, uma nova variante do SARS-CoV-2. Chama-se Ómicron XE, combina duas estirpes desta variante e, do pouco que se sabe, é mais contagiosa do que as variantes anteriores. A Organização Mundial da Saúde (OMS) já foi notificada.

    Esta nova variante é aquilo a que se chama de vírus ‘recombinante’, isto é, que combina o material genético de dois vírus, neste caso, de duas variantes e subvariantes do mesmo vírus. A Ómicron XE combina a BA.1 (chamada de Ómicron original) e a BA.2 (uma subvariante).

    Até ao momento, já tinham sido detetadas outras variantes recombinantes: as XD e XF, que juntavam a Delta e Ómicron BA.1. Segundo a OMS, a XD ‘está associada a maior transmissibilidade ou resultados mais graves”.

    Nem sei bem onde pegar quando leio “pérolas” deste jaez.

    A manipulação, a mistificação e a especulação começa logo em detalhes, que aliás serviram já para a Ómicron, que afinal acabou por ser uma bênção, do ponto de vista epidemiológico, pela sua maior transmissibilidade (mais casos) e menor letalidade (menos mortes), e portanto por ter concedido maior imunidade à população. Num raro momento de lucidez, Bill Gates até admitiu isso em 18 de Fevereiro deste ano numa conferência em Munique.

    Na verdade, existirão razões científicas muito plausíveis e compreensíveis para que agora surjam variantes que usam um X inicial para a sua denominação. Em todo o caso, não temos apenas a XE. Já andam também por aí, e por agora, as variantes XA, XB, XC, XD, XF, XG, XH, XJ (não há XI, por razões políticas!), XK, XL, XM, XN, XP, XQ, XR, XS e XT, todas elas recombinantes, como todas as outras, desde que o SARS-CoV-2 começou a infectar humanos.

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    As letras e as denominações possuem também valor simbólico, uma carga, um karma. E isso tem-se notavelmente feito notar na alimentação da pandemia.

    A percepção da existência de um perigo (afinal inexistente, aparente ou real) proveniente de uma variante X qualquer coisa – como se marcasse um alvo – é maior do que seria se se continuasse a usar as letras A e B seguidas de pontos e números.

    [já agora, diga-se que também há, em muito menor número, iniciadas por C (47), D (4), G (1), K (3), L (4), M (3), N (10), P (29), Q (8), R (2), S (1), U (3), V (2), W (4), Y (1, que, aliás, “nasceu” em Portugal) e Z (1)]

    O “marketing vírico” em redor do surgimento (supostamente repentino) de novas variantes – que “podem” ser sempre mais perigosas, mais transmissíveis, mais um “par de botas”, como propalam jornalistas “acéfalos”, porque acríticos e preguiçosos – mostra bem o grau de insanidade colectiva.

    A variante XE – que aparenta ser uma novidade, que justifica o levantamento de redobrados alertas – foi, na verdade, já identificada em 19 de Janeiro passado. Existem dados sobre a sua letalidade que justifiquem preocupação? Claro que não.

    Nem sobre todas as outras variantes iniciadas por X, incluindo da primeira (XB) identificada no “longínquo” 8 de Julho de 2020!

    Diga-se, aliás, a talhe de foice, que a famigerada variante Ómicron – anunciada como se fosse o fim do Mundo, e que justificou mesmo o encerramento de uma ala pediátrica do Hospital Garcia de Orta em Novembro do ano passado – foi identificada afinal nos Estados Unidos (com a nomenclatura BA.1) em 7 de Setembro do ano passado, ou seja, dois meses antes do pânico ser novamente relançado a nível mundial.

    Porém, onde a insanidade colectiva espraia em todo o seu esplendor é nas notícias sobre o surgimento de uma nova variante, como se fosse fenómeno raríssimo, de sorte que cada vez que surgisse uma nova maiores perigos adviriam.

    person holding orange and white toothbrush

    Vamos ser claros: é uma estupidez absoluta continuar a pensar que a “criação” de novas variantes alguma vez terminará, a menos que se continuem com lockdowns, com máscaras, vacinas, com a obrigação de fazer o pino virado para Meca ou com a entrega das nossas liberdades de viver antes de morrermos.

    Simplesmente, não vai acontecer.

    Se, porventura, em vez de perguntarem aos leitores quanto tempo vai durar a Guerra da Ucrânia, os jornais com maior capacidade de endividamento (não propriamente económico ou financeiro) questionassem as pessoas sobre quantas variantes do SARS-Cov-2 existem, talvez se chegasse à conclusão da existência de quatro ou cinco.

    E porquê? Porque se foi sempre moldando a percepção de que o surgimento de novas variantes era um fenómeno raro, imprevisível, e que, sendo assim, anunciada essa raridade, logo seria motivo necessário mas suficiente para alarme, medo e pânico.

    Aliás, a raridade de certos fenómenos foi sempre pasto para especulações e medos cegos. Daí que, durante séculos e séculos, o surgimento de cometas ou de eclipses eram vistos como prenúncios ou causas de desgraças. Ninguém jamais anunciou o fim do Mundo porque o sol nasceu em certo dia, porque nasceu tantas outras vezes antes e renascerá outras tantas no futuro. A banalização de um evento elimina qualquer fobia. Não se assusta uma criança gritando-lhe muuuu todos os dias por detrás da porta.

    Portanto, vamos lá fazer contas sobre variantes do SARS-CoV-2, procurando onde se deve. E arrumemos já com o assunto sobre a raridade das variantes.

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    No Pango Network estão listadas, à data de hoje, 1.847 variantes, desde que as duas primeiras foram identificadas ainda em 2019: a variante B, em 24 de Dezembro, e a variante A, em 30 de Dezembro.

    Como sucedeu com os testes PCR para encontrar casos positivos, no caso das variantes, quanto mais que escarafunchou na investigação, mais pequenas diferenças se descobriram. Levado ao extremo do absurdo, se aplicada à espécie humana a busca de diferenças classificadas como variantes, teríamos hoje não quase oito mil milhões de pessoas mas sim quase oito mil milhões de variantes da espécie humana.

    Assim, no caso do SARS-CoV-2 foram “brotando” variantes. Só em Janeiro de 2020, ainda antes da chegada da covid-19 a Portugal, já havia 21 novas variantes no Mundo. No mês seguinte foram identificadas mais 35. Em Março – o mês do início do pandemónio na Europa – identificaram-se mais 385 novas variantes.

    Desta sorte, na primeira metade de 2020 já estávamos com 883 variantes de SARS-CoV-2. No final desse ano, eram já 1.328 variantes, ou seja, 72% do total identificado até agora, o que é um paradoxo.

    Até ao final de 2020, o SARS-CoV-2 “apenas” tinha infectado (casos positivos) 84 milhões de pessoas, mas “criou” mais de 1.300 variantes. Desde 2021, apesar de ter infectado mais 420 milhões de pessoas – isto é, cinco vezes mais – “só” teve habilidade para “criar” menos de meio milhar. Um mistério da virologia.

    De facto, ao longo de 2021, a “multiplicação” de variantes amenizou, e desconfio que não terá sido por cansaço do vírus, mas mais por “aborrecimento” dos virologistas. Mas nem assim se pode dizer que se tenha parado de descobrir ou de que passou a ser um fenómeno raro. No primeiro semestre do ano passado “descobriram-se” mais 219 variantes; no segundo semestre foram 104.

    Nos dois primeiros meses do presente ano contabilizam-se já 21 novas variantes, grande parte das quais recebendo agora a denominação iniciada por X. Não estão aqui contabilizadas 175 variantes que não têm data de identificação no Pango Network.

    Neste cenário de inevitável “descoberta” de novas variantes, aceitarmos candidamente que algumas possam ser escolhidas, de forma aleatória e manipulatória, para fazer soar alarmes – e sem se compreenderem os motivos –, e justificarem-se assim renovadas medidas de excepção em prol de uma quimérica Saúde Pública de risco zero, é rendermo-nos a um distópico Novo Normal. Um Mundo em que é preferível a Morte que tal Sorte.

  • Presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia ‘insufla’ há três anos graves incompatibilidades, mas manteve-se como consultor de entidades públicas

    Presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia ‘insufla’ há três anos graves incompatibilidades, mas manteve-se como consultor de entidades públicas

    António Morais manteve-se como consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS) e do Infarmed depois de ter tomado posse em 2019 como presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), uma das associações médicas com maiores relações comerciais com a indústria farmacêutica. A lei determina que só poderia manter aquelas funções se a SPP recebesse em média um máximo de 50 mil euros por ano. Porém, a SPP recebeu no último quinquénio 17 vezes mais do que esse patamar. Todas as decisões da DGS e do Infarmed que tenham sido tomadas com base em pareceres de António Morais estão feridas de nulidade.


    O presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP), António Morais, está a violar há três anos as regras de incompatibilidade que o deveriam impedir de se manter como consultor do Infarmed e da Direcção-Geral da Saúde. As decisões administrativas que tenham sido tomadas com base em pareceres em que este pneumologista tenha participado são nulas.

    As duas entidades públicas, contactadas pelo PÁGINA UM, não se pronunciam. António Morais – que é desde 2016, e apresenta-se como tal no seu currículo, consultor de doenças intersticiais pulmonares do Programa Nacional para as Doenças Respiratórias da DGS e membro da Comissão de Avaliação de Tecnologias de Saúde do Infarmed – também não respondeu ao pedido de esclarecimentos.

    António Morais, ao centro, numa foto durante a cerimónia de posse como presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia em Janeiro de 2019.

    Em causa está o incumprimento do regime de incompatibilidade previsto num decreto-lei de 2014 que abrange consultores, membros de comissões, grupos de trabalho, júris de concursos que, entre outras funções, “participem na escolha, avaliação, emissão de normas e orientações de carácter clínico, elaboração de formulários, nas áreas do medicamento e do dispositivo médico no âmbito dos estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde, independentemente da sua natureza jurídica, bem como dos serviços e organismos do Ministério da Saúde”.

    As normas deste diploma acabaram também por ser adoptadas pelo Infarmed, a entidade reguladora dos medicamentos.

    De entre as diversas incompatibilidades, aquela que mais salta à vista, no caso de António Morais, é a que proíbe os consultores da DGS e do Infarmed de serem membros de órgãos sociais de sociedades científicas – como é o caso da SPP – que “tenham recebido financiamentos de empresas produtoras, distribuidoras ou vendedoras de medicamentos ou dispositivos médicos, em média por cada ano num período de tempo considerado até cinco anos anteriores, num valor total superior a 50.000”.

    Ora, António Morais preside à SPP desde 14 de Janeiro de 2019, e esta sociedade médica ultrapassa larguíssimamente o patamar dos 50 mil euros anuais. Quando este pneumologista – que exerce no Hospital de São João e na Trofa Saúde, além de ser também professor na Faculdade de Medicina do Porto – tomou posse, a SPP tinha recebido no quinquénio anterior uma média de 799.634 euros do sector farmacêutico, ou seja, 16 vezes mais do que o limite imposto pela norma das incompatibilidades.

    Receitas totais directas (em euros) da Sociedade Portuguesa de Pneumologia entre 2014 e 2022 provenientes do sector farmacêutico. Fonte: Infarmed.

    No quinquénio 2017-2021, que engloba já os três anos de presidência de António Morais, os montantes arrecadados pela SPP ainda aumentaram mais: situam-se nos 870.512 euros por ano. Para este aumento muito contribuiu o ano passado em que a SPP recebeu um financiamento recorde vindo do sector farmacêutico de 1.301.972 euros.

    Até à data, de acordo com a Plataforma da Publicidade e Transparência do Infarmed, a SPP amealhou 329.393 euros em 2022, mas usualmente a maior fatia de patrocínios e contratos comerciais com a indústria farmacêutica regista-se no último trimestre de cada ano no âmbito do Congresso de Pneumologia.

    No ano passado, para a realização deste evento de três dias num hotel de cinco estrelas em Vilamoura, a SPP obteve quase 370 mil euros de patrocínios, além de inscrições de médicos no valor de 193 mil euros que acabaram também por ser pagas pelas farmacêuticas.

    Sé neste último quinquénio, a SPP recebeu mais de 50 mil euros em média por ano de nove companhias farmacêuticas: Boehringer Ingelheim (104.034 euros), Novartis Farma (90.914 euros), BIAL (89.236 euros) Pfizer (82.440 euros), GlaxoSmithKline (71.189 euros), A. Menarini (68.533 euros), AstraZeneca (61.930 euros), Roche (53.050 euros) e Sanofi (51.895 euros). Teve ainda relações comerciais, envolvendo sobretudo patrocínios, de mais 20 empresas farmacêuticas e de produtos médicos.

    Apoios do sector farmacêutico (em euros) à Sociedade Portuguesa de Pneumologia entre 2017 e 2021. Fonte: Infarmed.

    Para além da questão ética, as incompatibilidades de António Morais têm consequências legais e jurídicas muito graves. De acordo com o artigo 5º do Decreto-Lei nº 14/2014, “os pareceres emitidos ou as decisões tomadas por comissões, grupos de trabalho, júris e consultores, em que intervenham elementos em situação de incompatibilidade não produzem quaisquer efeitos jurídicos”, o que significa, em consequência, que “as decisões dos órgãos deliberativos (…) são nulas”, caso se baseiem naqueles pareceres.

    António Morais, por seu turno, pode vir também a ser sancionado, porque o artigo 6º do mesmo diploma legal determina a obrigatoriedade de ele cessar as suas funções de consultor a partir do dia de tomada de posse como presidente da SPP (14 de Janeiro de 2019). O PÁGINA UM teve acesso à sua última declaração, com data de 5 de Março de 2018 – numa altura, portanto, em que ainda não presidia à SPP, e não estaria a violar o regime de incompatibilidades –, e que ainda consta no site do Infarmed.

    Por essa falha, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde pode, de acordo com a lei, aplicar-lhe uma coima entre 2.000 e 3.500 euros.

  • Quatro em cada 10 crianças com primeira dose não levaram (ainda) a segunda

    Quatro em cada 10 crianças com primeira dose não levaram (ainda) a segunda

    Os portugueses parecem ter-se fartado das vacinas contra a covid-19. Apenas um terço dos pais decidiram vacinar as suas crianças com duas doses, e uma parte considerável (22%) ponderou e decidiu não dar a segunda dose. Nos adultos jovens, a dose de reforço não está também a ter grande adesão. No grupo entre os 18 e os 24 anos já são mais aqueles que desistiram da vacina.


    O programa de vacinação contra a covid-19 está a perder gás, sobretudo na população mais jovem. Quatro em cada 10 crianças vacinadas com a primeira dose contra a covid-19 nos primeiros meses do ano não receberam a segunda dose.

    Mesmo considerando que as infecções pela variante Ómicron, sobretudo durante o mês de Janeiro, tenha levado à não promoção, por parte da Direcção-Geral da Saúde (DGS), da segunda dose nas crianças que tiveram entretanto contacto com o vírus, mostra-se já notório que muitos pais terão desistido da segunda toma.

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    Embora a DGS não divulgue dados absolutos – para dificultar análises independentes –, terão sido vacinadas com a primeira dose cerca de 55% das crianças entre os 5 e os 11 anos, mas até ao dia 11 de Abril (últimos dados disponíveis), somente 33% estavam com a vacinação completa.

    Assim, como 45% das crianças nunca foram vacinadas contra a covid-19, e os pais de 22% decidiram não lhes dar (ainda) a segunda dose, então significa que apenas seis em cada 10 pais que autorizaram a primeira toma quiseram depois que lhes dessem a segunda.

    A análise do PÁGINA UM aos dados da DGS também permitem aferir que não é expectável uma evolução significativa deste rácio nesta faixa etária nos próximos tempos. Entre 7 de Março e 11 de Abril a taxa de vacinação completa somente subiu de 28% para 33%, o que deverá corresponder a pouco mais de 30 mil vacinas numa faixa etária que integra quase 650 mil pessoas.

    Por outro lado, nota-se que a adesão dos adolescentes e adultos em idade activa às doses de reforço está muito longe de atingir os níveis da vacinação com as duas primeiras doses.

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    No caso dos adolescentes, com idades entre os 12 e 17 anos, os dados da DGS nem indicam que estejam a ser feitas inoculações de reforço. Aparentemente, esta entidade, que no Verão passado tanto defendia a relevância de se vacinar adolescentes para defender os mais idosos, deixou agora de considerar relevante repetir doses, mesmo sabendo-se que a imunidade vacinal se perde passado poucos meses.

    No entanto, Graça Freitas continua a manter a obrigatoriedade do uso de máscaras no interior dos estabelecimentos de ensino.

    Também nas faixas etárias entre os 18 e os 65 anos, onde o programa vacinal inicial teve uma adesão praticamente total (entre os 98% na faixa dos 18-24 anos e os 100% na faixa dos 50-64 anos), a dose de reforço não está agora a ser procurada com grande intensidade. E sobretudo nos adultos jovens.

    Assim, até 11 de Abril, apenas 43% do grupo etário entre os 18 e 24 anos quiseram levar dose de reforço, valor que sobe para os 58% na faixa etária dos 25 aos 49 anos e para 83% para a faixa dos 50 aos 64 anos. Mesmo nos mais idosos, a taxa de reforço não atinge os mesmos patamares, embora muito próximo dos 100%. A diferença pode advir do facto de muitas pessoas idosas que tomaram as duas primeiras doses terem entretanto falecido de causas diversas.

    Apesar da ausência de dados absolutos de vacinação no último mês – por opção intencional da DGS –, considerando as estimativas da população calculadas pelo Instituto Nacional de Estatística e a evolução da percentagem de vacinados por grupo etário, terão sido inoculadas entre 7 de Março e 11 de Abril quase 215 mil pessoas. Ou seja, menos de seis mil vacinas administradas por dia.

  • As peripécias de quem não sabia (ainda) o que era uma guerra

    As peripécias de quem não sabia (ainda) o que era uma guerra

    Título

    A entrada na Guerra

    Autor

    ITALO CALVINO (tradução: Leonor Reis e Sousa)

    Editora (Edição)

    Dom Quixote (Abril de 2022)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Aos 31 anos, Italo Calvino escreveu A entrada na guerra, uma das suas obras menos conhecidas, e que em boa hora, e de forma muito oportuna, a Dom Quixote agora edita, pela primeira vez, em Portugal.

    A oportunidade não se deve apenas por dar a conhecer aos leitores portugueses (por ser até agora inédita no nosso país) uma das primeiras obras deste escritor italiano – hoje merecidamente um dos grandes da Literatura europeia do século XX –, ainda mais autobiográfica.

    Nem por retratar o período inicial da II Guerra Mundial, que pode, aqui e ali, invocar os actuais acontecimentos na Ucrânia.

    Na verdade, deve-se a estes dois factores, mas sobretudo à sua qualidade literária, e por ser um retrato do início de uma guerra por alguém que, na verdade, está a iniciar a sua vida.

    Calvino, nascido em 1923 nos arredores de Havana (Cuba), por um acaso familiar, contava apenas 31 anos quando publicou, em 1954, as três breves memórias que constituem est’A entrada na guerra. Estava ainda longe das suas obras mais emblemáticas como Os amores difíceis (1970), As cidades invisíveis (1972) e Se numa noite de inverno um viajante (1979), mas já havia publicado O visconde cortado ao meio (1952), a primeira parte da magistral trilogia fantástica de Os nossos antepassados, completada ainda na década de 50: O barão trepador (1957), e O cavaleiro inexistente (1959).

    Mesmo sendo um livro de memórias, sem possuir, assim, a pretensão de contar uma história, esta obra tem dois fascínios. Primeiro, não aparenta ser escrito por um adulto de 31 anos, mas antes é a voz e o sentimento do adolescente Calvino a confrontar-se com a realidade de uma nova guerra que se avizinhava, mas que para jovens italianos parecia algo que somente quebrava o quotidiano, criando-lhes um mundo de aventuras. Segundo, já se lhe nota um amadurecimento da prosa, já bem visível em O visconde cortado ao meio, uma segurança na simplicidade como discorre a narrativa e a pontua com detalhes, por vezes desconcertantes. 

    A primeira parte, A entrada na guerra, que lhe dá título à obra, é datada no dia 10 de Junho de 1940. Encontra o jovem Calvino, como vanguardista (milícia juvenil homóloga à Mocidade Portuguesa), ajudando como pode (e quer e lhe apetece) a dar sopa aos refugiados que chegavam a uma escola, e onde o que mais “saltava à vista (…) era a presença de aleijados, de idiotas, de mulheres barbudas, anões, eram os lábios e narizes deformados por lúpus, era o olhar impotente dos doentes com delirium tremens: era este o rosto sombrio das aldeias de montanha, agora obrigado a revelar-se, a desfilar nas paradas o velho segredo das famílias camponesas à volta de quem as casas das aldeias se apertam umas contra as outras como as escamas de uma pinha”.

    A segunda parte, Os vanguardistas de Menton, temos um involuntário e imberbe Calvino a participar na pilhagem daquela pequena cidade francesa que caiu nas mãos de Mussolini em meados de 1940. Também aqui, jornalisticamente, o jovem Calvino revela a existência da máquina de propaganda, já então com as suas fake news: “Tínhamos visto recentemente no cinema um documentário que mostrava a luta das nossas tropas nas ruas de Menton; mas nós sabíamos que era falso, que Menton não tinha sido conquistada por ninguém, mas apenas abandonada pelo exército francês na altura do ataque e depois ocupada e pilhada pelos nossos.”

    O retrato de Calvino não chega a ser pungente nem sequer demasiado crítico da “selvajaria” das pilhagens, as quais acompanha e participa, para não ser considerado “estúpido”, mas sem qualquer entusiasmo.

    A terceira e derradeira parte, As noites da UNPA (Unione Nazionale Protezione Antiaerea, um corpo de voluntários para socorro da população civil em caso de ataques aéreos), retrata “tempos em que ainda não se sabia o que era o terror; pelas ruas viam-se apenas sinais do despertar geral e brusco: vozes nas casas, luzes que se acendiam e eram logo apagadas, e pessoas meio vestidas às portas dos abrigos olhando para o ar”. Por isso, o relato incide sobretudo nas aventuras, brincadeiras, partidas e descobertas de Calvino e dos seus amigos em San Remo durante um blackout.

    Nada, nesta obra, retrata o período posterior da vida de Calvino na sua chegada à fase adulta, com a entrada na Universidade de Turim e depois Florença – onde estudou a contragosto Agricultura, por pressão paterna –, e muito menos a sua entrada na Resistência italiana comunista. Não era preciso. Está muito, muito bom assim como ficou.

  • ‘O Estado quer pagar a um médico menos do que a um pedreiro’

    ‘O Estado quer pagar a um médico menos do que a um pedreiro’

    Na terceira e última parte da primeira ENTREVISTA P1, José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017) e actual presidente da autarquia de Coimbra, faz o rescaldo de uma gestão pandémica que descurou as outras doenças, abordando também as relações promíscuas de (alguns) médicos com a indústria farmacêutica. E não poupa críticas à gestão política do Serviço Nacional de Saúde (SNS), não hesitando em distinguir Correia de Campos, antigo ministro socialista da Saúde, como a pessoa que pior fez ao SNS.


    Como avalia agora a estratégia do Governo português de ter apostado tudo no combate à pandemia à custa da suspensão de exames, diagnósticos e consultas para outras doenças e afecções? Dá ideia que agora a população está com a saúde descompensada…

    Eu gostaria que essas consequências fossem avaliadas para depois percebermos se essas medidas verdadeiramente salvaram vidas ou não. Está por demonstrar, e não vai ser fácil demonstrar. Investiu-se numa doença mais do que se investiu em todas as outras juntas. Por isso, já apareceram artigos a dizer que, se calhar, a factura a pagar pelos doentes não-covid, em termos de doença e de morte, será muito superior. Do ponto de vista de Economia da Saúde não tem racionalidade investir tantos recursos numa doença, deixando as outras desprotegidas. Nós tivemos um bebé com circulação extracorporal [ECMO por alegada infecção por covid-19], e temos 400 crianças com cancro por ano, e muitas delas infelizmente morrem, mas não se tornam notícia, e não se investe o mesmo que se investiu numa única doença. Houve desproporção de investimento numa doença. Ou seja, em termos de Economia da Saúde as potenciais vidas salvas com as medidas tomadas – e seria bom que contabilizássemos o número de mortos em consequência das medidas tomadas –, o investimento foi brutal. Não se faz esse investimento noutras doenças, porque já estão mais banalizadas. Uma pessoa morreu de cancro, já não é notícia; morrer de covid-19 é notícia. E, portanto, investe-se na covid-19. E morreu-se de cancro, que não é notícia, por se terem adiado rastreios.

    Sem falar da redução do número de nascimentos, quase menos 10 mil, como efeito do medo sobre os efeitos económicos da pandemia…

    Isso foi outra consequência.

    Exactamente. E não se fala. Se se somasse a vida potencial dessas crianças não nascidas por causa da gestão da pandemia por 80 anos, tínhamos um número elevadíssimo num dos indicadores de Saúde importantes: os anos perdidos…

    Houve uma gestão muito baseada no pânico que, a partir de determinada altura, foi difícil de controlar, porque obviamente os profissionais de saúde também tinham receio, o que é humano, embora continuassem a desempenhar as suas funções. Enfim, criou-se todo um ambiente. Eu gostaria de saber a contabilidade de vidas que, no dever e haver final, foram verdadeiramente salvas pelas medidas. Se numa fase inicial, em que se desconhecia ainda o vírus, eu diria que quase tudo se justificou, o tempo em que esteve instituído o Estado de Emergência foi excessivamente prolongado. Não havia necessidade de prolongar tanto.

    José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017) e actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra.

    Ainda queria voltar ao tema do certificado digital, cujo prolongamento da vigência por mais um ano esteve em consulta pública por iniciativa da Comissão Europeia. Justifica-se prolongar esse certificado por mais um ano como controlo de fronteiras e de acesso a locais públicos?

    Não se justifica. Quem se quer proteger, vacina-se; quem não se quer proteger, está no seu direito. Sem impor esse tipo de medidas. Aliás, já reparou que deixou de se falar da Suécia em Portugal? No princípio, era tudo a bater na Suécia, agora deixou de se falar na Suécia. Afinal, a Suécia não está pior do que nós; até está melhor.

    O absurdo das medidas e da falta de razoabilidade… Recordo-me que, em Helsínquia, na Finlândia, se determinou, logo em 2020, que os motoristas dos autocarros deviam estar sem máscara porque estavam suficientemente protegidos com acrílicos, não havia troca de dinheiro, e deveriam sim estar focado exclusivamente na condução. Aqui em Portugal, eles continuam ainda a trabalhar incessantemente mascarados…

    A infecciosidade depende da taxa de inoculação, depende do número de vírus que a pessoa apanha. Se as pessoas estiverem em contacto com uma inoculação baixa, uma dose baixa, isso é insuficiente para provocar a doença, e até contribui para a sua capacidade de defesa imunológica. Os contactos com baixa inoculação até eram benéficos. Portanto, os exageros não trouxeram benefícios adicionais. Veja que, desde cedo, se soube e se demonstrou que o vírus não se  transmitia pelas superfícies, mas andou-se a gastar rios de dinheiro, contribuindo para a poluição do planeta, com embalagens e desinfetantes, sem vantagem nenhuma. Olhe, recomendo-lhe que leia o relatório do Ricardo Jorge sobre a gripe pandémica de 1918-1919. Ele se vivesse hoje teria tido uma postura completamente diferente. Com a gripe espanhola, ele defendeu, por exemplo, que não se fechasse a Cultura, desde cedo se manifestou contra as “desinfecções” com creolinas e mais não sei o quê. Aquilo não vale nada. E também dizia que só com a descoberta da vacina é que a história natural da doença mudaria, mas dizia também que não se conseguia impedir que as pessoas andassem com desinfecções que não servem para nada.

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    Faz lembrar a Peste Negra, com o uso das máscaras, com aquele bico, que, na verdade, tinha sobretudo um aspecto simbólico…

    Era uma máscara. Aquilo era um filtro, tinha lá um filtro de ervas. Aquilo tinha como objetivo funcionar com o filtro.

    Não, não. Tinha um aspecto sobretudo simbólico. Tinha na ponta uma caixinha com vinagre, que até podia ter algum poder desinfetante, mas aquilo não filtrava nada. Acabou-se sim, por descobrir, que os gatos também ajudavam, mais porque andavam aos ratos, que eram os principais difusores das pulgas. E as cabras também ajudavam, porque as pulgas gostavam delas…

    [risos] Sim. Enfim, mas no caso da covid-19, desde cedo que se verificou que o vírus não se transmite pelas superfícies. Houve alguma recomendação para acabar com isso? Não, pelo contrário. Insistia-se na desinfecção das superfícies.

    Sim. Similar situação se verificou com os ares condicionados, que se suspeitava, não sei com que base científica, promoverem a proliferação do vírus. E houve uma recomendação da DGS em desligá-los em pleno Verão. Nos lares. E depois sucedeu coisas como aquelas no lar de Reguengos…

    Os velhinhos a morreram de desidratação.

    Falemos agora da independência dos médicos, que sempre foi reconhecida, como o seu Código Deontológico determina, aquele que foi aprovado quando ocupou o cargo de bastonário da Ordem dos Médicos. O médico tem a responsabilidade, mas tem também a autonomia de pensar “fora da caixa”, digamos assim…

    Mas a obrigação de respeitar a legis artis.

    Exactamente, exactamente…

    O cartão da Ordem não é uma carta de alforria.

    Por isso falei da responsabilidade. Ou seja, se falhar na legis artis, é punido e deve ser punido. Mas a questão é outra. Durante a pandemia, tivemos médicos a serem altamente criticados pelos seus pares, a serem alvo de processos disciplinares e até a serem desautorizados, como sudeceu com o presidente do Colégio de Pediatria pelo próprio bastonário, que é um urologista. O que aconteceu com os médicos nesta pandemia, com a coragem dos médicos, que são uma elite que deixou de falar livremente?

    Eu não utilizaria o termo coragem ou falta de coragem. Se calhar foram convicções. Não sei.

    Um médico, não vou revelar quem, dizia-me que havia muitos colegas que tomavam ivermectina às escondidas…

    Mas continua a não haver prova nenhuma que previna a covid-19.

    Mas a questão não é essa. A questão é o médico podia antes receitar off label, fora das directrizes, de acordo com a sua prática e responsabilidade, e teve de andar a esconder durante a pandemia, sob o risco de ter processos. Houve muitos médicos que me dizem que não concordavam com muitas medidas, mas que tiveram de se calar. Porque aconteceu isto?

    Caiu-se num campo da verdade absoluta, que eu sempre discordei.

    Acha que isso vai mudar, depois da pandemia? Acha que este clima sucedeu por causa da pandemia? Ou por causa das pessoas?

    É evidente que foi por causa das pessoas. A pandemia não tem culpa de verdades absolutas. Mas, já que pegou no caso da ivermectina, houve claramente um comportamento distinto das autoridades relativamente ao remdesivir e à ivermectina.

    Pois, o remdesivir foi endeusado, a DGS comprou 20 milhões de euros e estão contabilizadas em Portugal 250 reacções adversas, a pior posição a nível europeu…

    A brincar, eu costumo dizer que acredito em milagres, mas para termos a graça de um milagre temos de ir a pé a Fátima. Ou seja, nem os milagres acontecem por acaso. Passado este momento de humor, nós tínhamos uma molécula, o remdesivir, que foi desenvolvida como antivírico, mas que não tinha eficácia nenhuma em nenhum vírus.

    Nem no ébola?

    Nem no ébola. De repente, por milagre, é eficaz contra o SARS-CoV-2. Eu acredito pouco em milagres. Que eu saiba, o remdesivir não foi a pé a Fátima, portanto, não sei como foi agraciado com um milagre.

    Foi comprado pela Comissão Europeia, que depois obrigou os Estados-membros a comprarem à Gilead, pouco tempo antes da Organização Mundial da Saúde não aconselhar o seu uso como tratamento contra a covid-19.

    E pronto, e deu-se remdesivir, e havia as normas da DGS para dar remdesivir. E se os médicos não o dessem e, porventura, um doente morresse, podíamos ser questionados e processados por não termos dado remdesivir, porque estava na norma da DGS, e depois lá teríamos de andar a demonstrar em tribunal que o remdesivir não fazia nada. Relativamente à ivermectina, enfim apareceram alguns estudos iniciais, não controlados, abertos, que apontavam para alguma eficácia, foi completamente rejeitado por todas as autoridades. Mas o remdesivir foi rapidamente aprovado por algumas. Houve aqui uma divergência de postura que não tinha fundamentação científica. Se calhar teve foi fundamentação económica.

    Vamos então entrar num problema bicudo. Há quatro médicos que integraram a equipa da DGS que definiu as terapêuticas da covid-19 que tiveram relações comerciais directas com a Gilead, inclusive integraram o advisory board do remdesivir. Onde começa o conselho médico para a DGS e as relações perigosas com a indústria farmacêutica?

    Relações perigosas podem haver de muitas maneiras e feitios, mais explícitas, menos explícitas. Aquilo que passou a acontecer nos congressos médicos é que quando uma pessoa faz uma comunicação tem de colocar os seus conflitos de interesse, como contratos, trabalhos, consultadoria. Mostrar os seus conflitos de interesse e depois faz a sua intervenção, e as pessoas, quem está a assistir, devem ter um espírito crítico suficiente.

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    Vou contar-lhe então um caso pessoal, com uma investigação do PÁGINA UM…

    Isso não aconteceu agora na pandemia? Explicitar os conflitos de interesse. À cabeça.

    Eu ajudei a fazer isso. Aliás, ainda há pouco tempo, listei os 421 médicos que tiveram a sua participação ou inscrição paga por farmacêuticas no Congresso de Pneumologia. Revelei os apoios monetários que a Sociedade Portuguesa de Pneumologia (SPP) recebeu deste sector no ano passado foi de 1,3 milhões de euros, quase o dobro do registado em 2020. Pfizer e muitas outras. Tudo público. E agora, tenho uma queixa do presidente da SPP na Entidade Reguladora para a Comunicação Social…

    Certamente não vai ser condenado.

    Acho que vou enviar esta sua resposta para o presidente da ERC…

    Eu acho que informação verdadeira nunca pode ser crime. A não ser que haja questões do foro pessoal.

    Não deveria ser a própria Ordem dos Médicos a criar um código de ética sobre as relações com a indústria farmacêutica?

    Eu diria que essa ética existe nas declarações de conflito de interesse, que são obrigatórias nos congressos.

    Mas depois não há consequências. Eu não quero estar a particularizar, mas estou a investigar alguns consultores do Infarmed e da DGS. Alguns são membros de sociedades médicas que recebem mais de 50 mil euros por ano, em média, do sector farmacêutico, o que é uma incompatibilidade. Quando eu denunciar isto, muito provavelmente pouco acontece. Não deveria ser uma associação profissional, como a Ordem dos Médicos, e ter esse poder regulador e disciplinador?

    Não é preciso nenhuma entidade. Quem faz a lei é o Estado, e pode considerar que determinados potenciais conflitos de interesse são inibitórios para ser consultor de uma entidade pública.

    Portugal tem, neste momento, carências de cuidados de saúde primários, hospitais a abarrotar. Afinal há médicos a mais ou menos? Não consigo compreender

    Essa é uma excelente questão. A Economia da Saúde é interessante, porque está escrito que uma das maneiras do Estado reduzir a despesa é não contratando médicos. Se não contratar médicos, os doentes são obrigados a recorrer a outras soluções, e portanto dão menos despesas ao Estado. Vivemos num mercado concorrencial, aberto. Se o Estado quiser contratar médicos, se calhar tem que lhes oferecer um vencimento minimamente aceitável. E não faz porque não quer fazer. Há quantos anos se fala na exclusividade, na dedicação plena, dos médicos aos hospitais públicos?

    E porque não há exclusividade?

    Não há, porque o Estado não quer. Quem acabou com exclusividade foi o Estado de um governo socialista. Foi um programa socialista que acabou com exclusividade no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Se um médico quiser estar em exclusividade no SNS não pode. E como um médico especialista no hospital público ganha menos que um pedreiro – e isto é literalmente verdade –, é evidente que procura outras soluções, ou complementares ou totais. Portanto, quando um Governo diz que abriu X lugares, mas ficaram desertos, não é por falta de médicos; é por falta de interessados. Os médicos emigram, vão para o sector privado. E depois temos o Estado a pagar mais aos médicos que no setor privado trabalham para o Estado do que aos médicos do setor público. Quem esvazia deliberada e conscientemente o SNS de médicos é o Estado. Não temos falta de médicos, basta ver as estatísticas mundiais. Mas é evidente que se não lhes pagamos…

    Vêem-se, por exemplo, médicos conceituados que, sendo conceituados, são professores de Faculdades de Medicina, depois ainda são directores de serviço de hospitais públicos, trabalham ainda para o privado, se calhar ainda dão consultas, consultadorias, etc. Não sei como é que eles têm tempo para serem bons em tudo…

    Eu diria que um dia só tem 24 horas. A Leonor Beleza [antiga ministra da Saúde, entre 1985 e 1990], quando instituiu a exclusividade, fez isso como uma arma de arremesso contra os médicos, porque queria demonstrar que não queriam trabalhar no SNS, e que todos queriam ser milionários. Enganou-se redondamente, e depois viu que não tinha orçamento. Houve tanto médico interessado na exclusividade que começaram a colocar restrições. Até acabarem com a exclusividade. Qual a idoneidade de qualquer partido que passou pelo Governo deste país para falar que faltam médicos no SNS se se recusam pagar essa exclusividade.

    Qual seria o valor justo para a exclusividade para um médico?

    Não sei qual será o valor justo. Isso varia com o mercado, varia de especialidade para especialidade. Mas pagar 1400 euros líquidos por mês…

    Isso não. Isso é ridículo…

    Mas, pronto, esse é o valor que o Estado paga actualmente. Quando havia exclusividade, havia um acréscimo de 40% no vencimento, que se reflectia também nas horas extraordinárias. Se um médico fizesse algumas horas extraordinárias no hospital tinham um vencimento que lhe permitia uma vida tranquila, não de rico, mas uma vida para se dedicar à Medicina num hospital público e não ter outro tipo de preocupações. Porém, havia uma dicotomia no pagamento das horas extraordinárias, porque estavam indexadas à exclusividade ou não, o que colocava, enfim, um incómodo entre os médicos que poderiam estar a fazer exactamente o mesmo serviço e com a mesma graduação, mas a receber valores diferentes.

    Não parece, de facto, muito justo…

    O Governo socialista recusou pagar o mesmo. E não só recusou como permitiu que os médicos que estavam com 35 horas em não exclusividade deixassem de fazer horas extraordinárias, e de repente… Sabe quem fez pior ao SNS. O senhor professor Correia de Campos foi o ministro da Saúde [2001-2002 e 2005-2008] que pior fez ao SNS. Permitiu que determinados médicos deixassem de fazer horas extraordinárias, os das 35 horas, e de repente ficou sem médicos para as urgências. E o que fez foi contratá-los ao privado, pagando muitíssimo mais. E desorganizou todo o SNS. O professor Correia de Campos quis deixar de ter médicos a ganhar algum dinheiro e passou a contratar médicos a ganharem 150 euros à hora. Sabe qual foi a diferença? Em vez de pagar horas extraordinárias aos médicos do SNS foi contratar ao privado e colocou os gastos na mesma rubrica das batatas e dos feijões.

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    Portanto, a valores reais, se incluirmos a contratação por essa via, a hora de um médico é hoje muito superior à de há 10 ou 20 anos, mas grande parte do dinheiro vai para os privados.

    Sem essa política, teríamos agora mais médicos no SNS e o Estado estaria a ter menos despesa. Vou lhe dar outro exemplo. O Grupo Mello, que geriu em parceria público-privada (PPP) o Hospital Amadora Sintra, tinha uma política, que eu sugeri para o SNS quando fui bastonário, de pagar o mesmo vencimento da Função Pública, mas para os melhores fazia um segundo contrato para trabalharem mais horas. Era uma forma diferente de exclusividade, sendo que não era uma exclusividade formal, mas esses médicos ficavam com o seu horário mais ocupado. Isso manteve-se com o fim da PPP. Por pressão da troika, houve um despacho do Ministério da Saúde que passou a proibir os médicos de terem dois contratos com o SNS, e aquilo que era legal passou a ser ilegal. E depois lá veio um título num jornal a dizer que não sei quantos médicos tinham contratos ilegais no Amadora-Sintra. Em consequência, esses segundos contratos foram eliminados e, de imediato, o Hospital Amadora-Sintra passou a ter um défice de milhares de horas de trabalho médico por mês. E entrou em colapso. Isso foi deliberado ou foi inocente?

    Eu acho que não deve ter sido muito inocente…

    Eu acho que foi deliberado, para prejudicar a assistência num hospital do SNS. Reduzir a despesa pública em Saúde e obrigar as pessoas a recorrer ao sector privado. Portanto, nós não temos falta de médicos em Portugal, que fique bem claro. O SNS é que não quer contratar médicos. Se lhes quer pagar menos do que a um pedreiro é porque não os quer contratar, e depois vai contratualizar com o sector privado a dita produção.

    Agora, se calhar, são os grupos privados, que beneficiaram com isso, que fazem pressão para não se inverter essa política…

    Já só podemos estar a especular sobre isso. Mas lembro-me que já tivemos um ministro da Saúde que veio do Grupo Mello, que não tinha nada a ver com a Saúde, não percebia nada de Saúde. E foi para ministro da Saúde. Portanto, essas ligações perigosas há a todos os níveis. Costumo dizer que a política de saúde do PS e do PSD é exactamente igual; só a retórica é um bocadinho diferente.

    Fotos da entrevista: António Honório Monteiro

  • ‘O certificado digital é um exagero sanitarista’

    ‘O certificado digital é um exagero sanitarista’

    Mais que o novel presidente da autarquia, José Manuel Silva ficou conhecido por dois mandatos à frente da Ordem dos Médicos, entre 2011 e 2017. Nesta segunda parte da longa entrevista com o PÁGINA UM, não se furta a falar de tudo sobre a pandemia. E tanto disse ele que haverá ainda uma terceira parte nesta primeira ENTREVISTA P1.


    Antes de ligar o microfone, falou-me que, se os munícipes assim o entenderem, ficaria à frentes dos destinos da Câmara de Coimbra durante dois mandatos, ou seja, oito anos. A prática médica estará assim, para si, em segundo plano…

    Completamente suspensa.

    Em todo o caso, será sempre um médico. Por isso, e também porque esta entrevista se justifica por ter sido bastonário da Ordem dos Médicos durante seis anos (2011-2017), como vê agora a pandemia? Ou melhor, se calhar já estamos na fase pós-pandemia, não?

    Para mim já estamos. A partir do momento em que um vírus se transforma num vírus endémico, como é o caso, já estamos na fase pós-pandémica, embora isso seja um debate interessante, mas de efeitos concretos pouco estimulantes.

    Não vou fazer nenhuma inconfidência, mas estamos aqui todos sem máscara, mas não estamos aqui a cumprir a lei e as orientações da Direcção-Geral da Saúde (DGS), certo?

    Se estivéssemos todos num restaurante estávamos todos sem máscara, a comer, e onde há mais gente. E com maior concentração de pessoas do que aqui, onde estão cinco. Um dos exemplos que dou das medidas absurdas durante a pandemia é a dos semáforos em 2021 nas praias, que foi uma manifestação de estupidez humana. E, por exemplo, nos restaurantes, em que temos de entrar com uma máscara, estamos lá dentro a comer, a beber, a conversar e a cantar, se for o caso disso, sempre sem máscara, e depois para sair do restaurante temos que pôr uma máscara outra vez. Isso é a insanidade total. A irracionalidade total nas medidas.

    José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017) e actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra.

    Havia algumas medidas não-farmacológicas que até faziam sentido: a promoção do teletrabalho e a redução do número de pessoas nos transportes públicos, por exemplo. Mas chegou-se ao limite de multar pessoas por comerem sandes no carro, ou por comprarem gomas em máquinas de vending. E vedaram-se bancos de jardim com fitas para as pessoas não se sentarem. E por que não ouvimos médicos distintos a dizerem que essas medidas eram loucas? Ou melhor, porque não se permitiu ouvir? Na verdade, houve alguns que criticaram essas medidas, mas foram logo catalogados. Porque é que houve esta gestão, assim?

    Porque se instalou uma circunstância de pânico, e depois de controlo das populações pelo medo. O condicionamento das pessoas pelo medo. Eu fui tentando, nomeadamente nas redes sociais, fazer alguns comentários que divergiam das verdades oficiais, e era quase crucificado pelos extremistas das medidas e do controlo das pessoas pelo medo. Chegaram mesmo a defender que era preciso que as pessoas tivessem medo.

    Sim. Houve uma task force da DGS que defendeu essa estratégia do medo…

    E eu dizia que não; devia-se, sim, informar as pessoas. Temos aqui um distinto psiquiatra [Pio Abreu, que assistiu à entrevista], que pode confirmar que houve problemas grave de saúde mental por causa do pânico. Um pânico como se a Humanidade se fosse extinguir por causa de um vírus, quando, desde o início, se percebia que a taxa de mortalidade até era relativamente baixa.

    Eu ia colocar-lhe essa pergunta, porque o medo ou o pânico advêm sobretudo do desconhecido ou da ignorância. Ora, muito rapidamente se constatou que a taxa de letalidade rondava os 2%, que era muito superior nos idosos ou pessoas com comorbilidades, mas baixíssima na população abaixo dos 40 anos. A mortalidade pelas pneumonias, sendo irrelevante abaixo dos 20 anos, mesmo assim é superior à da covid-19. Mas quem falava disto era rotulado de negacionista. E aquilo que mais vimos foi a classe médica, corporizada pela Ordem dos Médicos e o seu Gabinete de Crise, a alimentar o pânico… Teria sido diferente consigo, se a pandemia tivesse ocorrido durante o seu mandato?

    Isso é uma pergunta que me deixa numa posição desconfortável.

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    Mas é essa a função dos jornalistas, ou não?

    [pausa] Sim, teria havido diferenças.

    E em que aspectos, mais em concreto?
    [risos] [pausa] Teria havido diferenças. Aliás, basta ver o que fui escrevendo no Facebook para se perceber.

    Os leitores do PÁGINA UM podem não o ter lido…

    Os objetivos deveriam ter sido claramente definidos. Saber o que queríamos com as medidas de combate à pandemia, na prevenção e minimização do impacto na saúde das pessoas. Aliás, como dizia aquele epidemiologista sueco [Johan Giesecke], isto não é como começa, mas como acaba; é como no futebol. Aquilo que interessa não são os picos – que só importam para avaliar a capacidade de resposta do sistema de saúde. O impacto da pandemia mede-se não pelo pico, mas pela área sobre a curva. A única coisa que as medidas [não-farmacológicas] fazem – e bem, porque foi preciso garantir que a capacidade de resposta não fosse completamente ultrapassada, como foi em alguns momentos – é achatar a curva. Mas o que se estava a fazer não era evitar casos; era adiar casos. Aliás, do ponto de vista epidemiológico, basta ver a evolução dos outros quatro coronavírus que já circulavam antes do SARS-CoV-2 para percebermos como este se comporta. E sabemos o que são pandemias quando aparece um novo tipo de vírus. Não há nada de novo nem transcendental. E a verdade é que os confinamentos achatavam a curva, adiavam mas não evitavam casos. Isso foi importante, numa primeira fase, para dar tempo ao país para se preparar melhor, porque estava completamente impreparado. Não foi por acaso que a nossa primeira medida foi o Estado de Emergência [em Março de 2020], e depois tivemos algum tempo para nos prepararmos.

    Nos primeiros confinamentos, em 2020, com os Estados de Emergência e os lockdowns até fomos elogiados internacionalmente, e quase levámos uma medalha…

    Porque usámos a “bomba atómica”, mas depois…

    Pois, a questão é essa: depois, em Outubro de 2020, o Ministério da Saúde anunciou que tinha 17 mil camas para doentes-covid, mas chegámos ao Inverno de 2020-2021 e foi o descalabro completo. O Serviço Nacional de Saúde colapsou.

    Colapsou…

    E no último Inverno, com tantos casos positivos, não se repetiu porque claramente a Ómicron, a variante dominante, tem uma letalidade muito mais baixa…

    Os casos pela Ómicron não interessam…

    Exactamente

    E quanto mais testes se fizessem mais casos tínhamos, porque se detectavam pessoas assintomáticas. O nosso número elevado de casos foi devido à decisão de se fazerem mais testes.

    Mas sempre que se falava em aplanar a curva, era afinal uma curva de casos positivos. Estava-se sempre a falar nos casos. Estávamos sempre numa epidemia de casos…

    O problema foi que não houve capacidade ou interesse do Governo, do Ministério da Saúde e da DGS em se fazer uma análise sobre o antes e o depois das vacinas. Quando apareceu a pandemia dizia-se que só se resolvia isto com a imunidade de grupo, só quando todos apanhássemos a doença, porque não havia vacinas. Ou, dependendo da contagiosidade, quando 85% da população tivesse apanhado covid-19. Felizmente – e porque a técnica já existia, já estava a ser muito desenvolvida e testada para várias doenças, incluindo terapêutica do cancro –, foi possível descobrir-se ou preparar-se, com rapidez, uma vacina contra o SAR-CoV-2, e tudo mudou. A população que nunca tinha tido contacto com o vírus, podia desenvolver imunidade sem doença, de modo a estar preparado para quando houvesse contacto com o vírus. E assim teria a situação amenizada, como acontece com as vacinas, e como acontece com a gripe. Portanto, isso preparou-nos. Houve uma redução significativa do número de casos. Por isso, a partir de Outubro ou Setembro do ano passado, quando tínhamos 86% da população vacinada – só não estavam vacinadas as crianças, que nunca precisaram de ser vacinadas, e as pessoas que não se queriam vacinar, cuja opção eu respeito –, devíamos ter recuperado uma vida normal. Desenvolver uma vida normal.

    Vamos falar da vacina. É uma tecnologia nova, que não tinha sido ainda utilizada de uma forma massiva. Ora, estamos perante uma doença em que sabemos que acima de 80 anos a taxa de letalidade rondava os 15%, depois baixava para os 4% ou 5% nos septuagenários; na minha idade descia para 1%. E por aí fora… Num adulto jovem e numa criança era 0,00 qualquer coisa. Ora, conhecendo-se isso cientificamente, e sabendo-se ainda que, afinal, a vacinação não dava imunidade de grupo, que um vacinado podia infectar e ser infectado, justificava-se a vacinação universal, como fizemos, de uma forma praticamente coerciva?

    As crianças, não. Os jovens… [pausa] Repare: fez-se uma coisa que não existe na Medicina, que é tratar uma pessoa para prevenir a doença noutra. E essa foi a justificação para se vacinarem as crianças e os jovens.

    Isso é etico?

    É discutível.

    Mas, na sua opinião, é ético ou não?

    É discutível. A ética é um conceito relativo. É eticamente discutível fazê-lo.

    Desculpe insistir, mas não me respondeu. Imagine que estava num fórum sobre ética a discutir esta questão. Qual seria a sua posição? Pode dizer-me que ainda não tomou uma posição. Mas diga-me se é a favor ou se é contra, ou se ainda não tomou uma decisão…
    Nós não vivemos num mundo de extremos, de preto e branco. Temos os tons de cinzento. A ética é um conceito relativo e subjectivo.

    Mas eu coloquei-lhe a hipótese de não ter uma posição definitiva. Nem branco nem preto, estou ainda a reflectir…

    Digo-lhe que é eticamente discutível e não foi discutido. Por exemplo, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) não foi ouvido, e eu acho que devia ter sido ouvido. Não sou um eticista. Tenho o meu conceito de ética, mas eu gostaria de ter visto esta questão ser discutida pelos especialistas em ética. E eu soube de um representante do CNECV a dizer que deviam ter sido ouvidos e não foram. Eu não vou dizer preto ou branco, é ético ou não é ético, porque há imensas matizes na ética. Agora, eu gostaria de ter ouvido o CNECV pronunciar-se sobre vacinar pessoas que não beneficiam de uma vacina alegadamente para proteger outras. E é mesmo alegadamente – não é que a vacina lhes fizesse mal, atenção. Não está isso em causa, na minha opinião. Aliás, muitas pessoas perguntaram-me se deveriam vacinar os filhos ou não. E eu disse-lhes: façam como vocês entenderem, porque eles não precisam de ser vacinados, mas a vacina também não lhes faz mal. Dizia-se, por exemplo, que os jovens vacinados têm menos miocardites [do que os não-vacinados]. Sim, e depois? É verdade, têm menos miocardites; qualquer pessoa que tenha uma doença virusal pode ter uma miocardite, mas a mim não me interessa que tenha uma miocardite; sim interessa é saber se essa miocardite tem consequências.

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    É a velha questão dos casos e dos assintomáticos…

    Sim. O que me interessa termos 10 mil casos de covid-19, se muitos são completamente assintomáticos? Não contam. Portanto, pode-se dizer, até inequivocamente, que os jovens vacinados têm menos casos de miocardite, porque não têm uma infecção vírusal – embora a própria vacina, mas enfim de uma forma discutível, pudesse eventualmente desencadear casos de miocardite, porém numa taxa inferior aos não-vacinados. Mas a questão essencial é: beneficiaram disso? Não há provas nenhumas que beneficiem disso; por isso é que nos estudos de prevenção não se aceitam os endpoints intermédios, que são os casos, porque aquilo que tem peso são os hard endpoints, como as mortes e os internamentos em unidades de cuidados intensivos. Ora, não está demonstrado que as vacinas reduzam os hard endpoints nas crianças, portanto não precisavam de ser vacinadas.

    Ainda sobre a segurança das vacinas, e o tal princípio da prevenção…
    Eu não tenho dúvidas sobre a segurança das vacinas. Algumas pessoas receiam levar RNA mensageiro porque dizem que mexe com a nossa genética, porque entra na célula. É verdade, mas se nós levamos com o vírus, em vez de levarmos uma dose controlada de RNA mensageiro, apanhamos uma dose maciça de RNA mensageiro do vírus. Eu acredito na inocuidade da vacina. Vacinei-me com as três doses, embora ache que nem precisava da terceira dose, porque tinha anticorpos positivos. Aliás, estive a trabalhar em enfermarias-covid, lidei com o vírus todos os dias, já depois das duas doses de vacina. Eu tinha valores de anticorpos positivos, porque os medi. Não precisava da terceira dose, mas ok vacinei-me, para ter o certificado, porque aquilo também não me fez mal. Andei para aí um dia com cansaço anómalo, mas isso também faz parte.

    Falou dessa questão dos anticorpos, e vou aproveitar para uma “consulta”. Tive covid-19 com internamento em Junho do ano passado, nunca usei o certificado digital por considerar que não é método de controlo da pandemia, e serve apenas para discriminar, fui recusando os “convites” para me vacinar desde Agosto, li literatura científica sobre imunidade natural, sobre efeitos adversos. Em finais de Dezembro do ano passado, fiz um teste serológico (IgG) que deu um valor 427 BAU/ml; repeti agora em finais de Março e deu 438 BAU/ml, o que indicia que, provavelmente, até terei contactado com a Ómicron. Pergunto ao médico: devo vacinar-me ou não?

    Com anticorpos positivos, não vale a pena. A não ser para ter um certificado digital, que é o passaporte para a liberdade [dito com sarcasmo]…

    Mas que é isto do passaporte sanitário? Mas o que é que é isto de se usar um passaporte sanitário? E pergunto-lhe a si como cidadão e como médico. Onde está a Ciência no passaporte sanitário? Porque, salvaguardando a analogia, é o mesmo que impor, numa campanha de redução dos cancros da pele, que qualquer pessoa se besunte de factor 50 para entrar na praia, mesmo um negro do Senegal…

    É um exagero sanitarista, até porque isso é o resultado de as autoridades não acreditarem na vacina. Eu não preciso que se vacine, ou que tenha um passaporte, para eu me proteger. Para me proteger, vacino-me. Se eu quisesse, até podia estar aqui de máscara, enfim, também tinha uma proteção adicional, mas se me quero proteger, vacino-me. Quem se quer proteger, vacina-se. Eu não tenho nenhum problema com as pessoas que não se querem vacinar. Eu acho que não devia ser necessário passaporte sanitário nenhum. Quem não se quer vacinar, prefere estar desprotegido, corre riscos maiores, mas é uma opção. Aliás, a base do exercício da Medicina é o consentimento informado; ou seja, eu não posso obrigar nenhum doente a fazer uma coisa que ele não quer. Como é que eu posso obrigar alguém a vacinar-se se ele não quiser? Como é que eu posso obrigar alguém a ter um passaporte sanitário, se ele não quiser? Eu protejo-me da forma que entendo mais eficaz, e vacinei-me. No entanto, convém dizer que há alguma similitude, por exemplo, com febre amarela em alguns países. O conceito do passaporte sanitário já existe, não é novo, não há também razão para o diabolizarmos. Mas no caso da febre amarela – que pode ser uma chatice – está em causa sobretudo evitá-la quando se está em certos países com piores cuidados médicos.

    Mas voltando atrás. Se o certificado digital deixar de estar em cima da mesa, uma pessoa nas minhas circunstâncias deve vacinar-se?

    Nos outros coronavírus já sabemos que a imunidade, a memória imunológica, aos coronavírus é transitória, e é reactivada por ciclos regulares de reinfecção a cada dois a quatro anos. Já tivemos muitas infecções por coronavírus, e vamos ter muitas infecções por SARS-CoV-2, que está endémico. Por isso, andarmos de máscara agora, quando não há uma pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde, até é contraproducente. Por isso digo que a partir de Outubro do ano passado devíamos ter passado a fazer uma vida normal, porque tínhamos a população com a taxa máxima de vacinação. E, nessa medida, seria preferível ter um contacto com o coronavírus quando se tem ainda memória imunológica, e ele reactiva, do que quando a memória imunológica se perdeu completamente. Por isso, usar máscara depois de termos 86% da população vacinada não tem nenhuma fundamentação científica. Nenhuma.

    Ou seja, até convém que as pessoas recentemente vacinadas tenham novamente contacto com o vírus…

    Claro. Para reactivarem a sua memória imunológica, e irem fazendo uma transição progressiva entre as novas variantes do coronavírus, que se sucedem, porque assim ficarão mais bem preparadas.

    Quanto à questão do consentimento informado. Soube-se no mês passado que quatro membros da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 votaram contra o parecer que deu luz verde para o programa de vacinação de adolescentes em Agosto de 2021, mas isso foi escondido por meses pela DGS. Essa informação não deveria ter sido dada aos pais, tanto mais que não houve unanimidade, mas sim unanimismo?

    Claro que sim, claro que sim.

    E porquê que houve este unanimismo?

    Não me pergunte a mim, porque não participei dele.

    Entretanto, esta semana a directora-geral da Saúde defendeu ser ainda muito cedo para deixar as máscaras em espaços fechados.

    Eu gostaria que jogássemos pela Ciência. Eu gostaria de ter um debate com ela sobre esta questão do “seguro”. O que é isso “jogar pelo seguro”? Defina “jogar pelo seguro”. Vamos evitar alguma coisa num vírus endémico? Ou vamos adiá-lo?

    Ou esperar que tenhamos mortes zero…

    A DGS tem que decidir com rigorosas bases científicas. Ora, ela diz “vamos jogar pelo seguro”; o que é isso? Ela tem a certeza que se continuarmos a usar máscara é mais benéfico do que não-benéfico? Não tem nenhuma evidência. Aliás, temos agora uma epidemia de gripe A exactamente por termos estado a usar máscara durante dois anos. É evidente que usar máscara também tem efeitos negativos. Sim, foi necessária na fase pior; foi necessária enquanto não estávamos vacinados; foi necessária não para evitar casos, mas para adiar e achatar a curva. Agora, para um vírus que se tornou endémico, ou nós usamos máscara para toda a vida e andamos a ser vacinados de seis em seis meses, ou vamos ser infectados regularmente como acontece com os outros quatro coronavírus.

    O PÁGINA UM divulgou informação detalhada de uma base de dados oficial de internados-covid, revelando situações estranhas de contabilização de óbitos por covid-19. Temos doentes terminais de SIDA considerados vítimas do SARS-CoV-2, centenas e centenas de mortes por AVC e ataques cardíacos atribuídas à covid-19 apenas por causa de testes positivos. Quedas de camas e infecções nosocomiais não-covid são imensas. Uma mulher com queimaduras de 3º grau na cara e peito, metem-lhe a zaragatoa, testa positivo, acaba por morrer três dias depois, mas por covid-19. Num hospital, um doente atira-se pela janela, como está descrito, portanto suicidou-se…

    Foi o SARS-CoV-2. Provocou-lhe um surto psicótico…

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    Como foi possível tanta contabilização criativa?

    Houve uma contabilização sem rigor científico relativamente às causas de morte.

    E isso aumentou mais o pânico?

    Isso contribuiu para aumentar o pânico, porque aumentou a casuística. Por acaso, falei com um colega do Alentejo quando morreu o primeiro doente nessa região. E ele disse-me que era uma pessoa de idade com polipatologia, acamado, demenciado, a quem, por acaso, fizeram uma zaragatoa, já ele tinha falecido, ou estava a falecer. Aliás, como está já publicado, muitas das pessoas que morreram de covid-19 iriam falecer nesse mesmo ano pela sua doença de base, pela sua idade ou pela sua polipatologia.

    E o PÁGINA UM também noticiou que até Maio de 2021, em cada 10 internamentos-covid, quatro eram afinal por outras causas…

    A congestão dos hospitais também foi agravada por causa das determinações da DGS. Eu estive a coordenar três enfermarias-covid há um ano aqui no Hospital de Coimbra, e quisemos mandar doentes para as suas instituições de origem, e não podíamos porque, embora ao décimo dia estivessem absolutamente assintomáticos, tinham de ficar lá mais 10 dias sem necessidade nenhuma. Tudo por causa de regras não cientificamente fundamentadas da DGS. E eu reclamei por escrito, depois de falar com vários colegas do hospital, e nunca obtive resposta.

    (continua amanhã)

    Fotos da entrevista: António Honório Monteiro

  • ‘Vamos aprimorar a nossa democracia, e depois falamos de regionalização’

    ‘Vamos aprimorar a nossa democracia, e depois falamos de regionalização’

    Foi uma das surpresas das eleições autárquicas de Setembro do ano passado, apeando o histórico socialista Manuel Machado da presidência da Câmara Municipal de Coimbra. O antigo bastonário da Ordem dos Médicos, entre 2011 e 2017, o independente José Manuel Silva, fala sobre a “decadência” e o novo vigor (anunciado e defendido) da cidade do Mondego, com o director do PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira, que aí nasceu há 52 anos. E também aborda a descentralização e a regionalização do país. Mas preparem-se: esta é apenas a “introdução” de uma longa entrevista. Na segunda parte, o tema é mais escaldante e nacional: pandemia, médicos e Serviço Nacional de Saúde. Eis a primeira ENTREVISTA P1.


    Historicamente, Coimbra é a capital da Beira Litoral, mas perde população há 20 anos. Na última década registou uma sangria demográfica em freguesias rurais, com três a perderem mais de 10% da população. Tem a certeza de que Coimbra fica mesmo na Beira Litoral?

    Essa é uma boa pergunta. Coimbra tem uma localização extraordinária. Tem todas as vantagens de estar no litoral e a meio do país. Aliás, quando fui bastonário da Ordem dos Médicos, a maioria das reuniões dos colégios era em Coimbra, por ser central. Tem uma boa localização geográfica, apesar de algum problema de acessibilidades, nomeadamente para o interior, que nos prejudica um pouco. Mas possui um potencial extraordinário: foi durante 100 anos a primeira capital do país, tem uma História, um Património, uma Cultura que não existe em nenhuma outra cidade.  Os italianos dizem que Coimbra lhes lembra Florença. Temos uma universidade com características únicas, temos uma música própria…

    E também tem mais de 25% da sua população com curso superior, mas…

    Exactamente. Eu diria tem tudo, só lhe faltava uma coisa, que a prejudicou e justificou a esta recente mudança: uma Câmara Municipal que acompanhasse a evolução dos tempos, que fosse um motor de desenvolvimento, e não um factor de obstaculização. Eu agora tenho andado por muitos fóruns onde me dizem que é primeira vez que Coimbra aparece.

    José Manuel Silva, presidente da Câmara Municipal de Coimbra e antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017)

    A sensação que tenho, que nasci em Coimbra mas estou há várias décadas em Lisboa, é de que a cidade vive muito à margem da sua universidade, e que a própria universidade foi perdendo – e acho que não foi por causa do seu irmão [José Gabriel Silva, reitor entre 2011 e 2019] – um certo élan nos últimos anos…

    Eu diria que começou a reganhar algum élan nos últimos anos. Perdeu durante muitos anos, mas começou a recuperar. Ainda esta tarde estive na apresentação da segunda call da INNOV-ID para projectos empresariais na área da inovação pela Portugal Ventures, e posso dizer-lhe que na primeira call oito dos 40 projetos financiados tiveram origem no Instituto Pedro Nunes [de Coimbra]. E, portanto, há também em Coimbra um potencial científico e cultural, eu diria inigualável, na área da Educação e da Ciência. Coimbra sofre um pouco de problema de marketing, mesmo se a marca Coimbra é fortíssima em todo o Mundo. Em muitos países, como no Brasil, é mais forte que a marca Lisboa.

    Exacto. Desde o século XVIII quem no Brasil queria estudar Direito vinha sempre para Coimbra…

    Estive agora também em Pavia num encontro de cidades do Cultural Cities Twinning. São cidades de média dimensão, não-capitais com uma universidade histórica. Coimbra é conhecida na Europa por ser a cidade com uma das universidades mais antigas do Mundo.

    Mas estamos apenas perante uma questão de marketing, ou de algo mais? Repare, além desse marketing intrínseco histórico, Coimbra viu em 2013 a zona da Universidade, da Alta e da Sofia ser classificada como Património Mundial pela UNESCO, e parece que não foi nada. O que faltou para dar o pulo?

    Faltou Câmara, na minha opinião, que é naturalmente enviesada. Mas faltou Câmara, faltou uma maior ligação entre a Câmara e a universidade – e eu aí sei, por razões familiares, das dificuldades de relacionamento entre a Universidade e a autarquia, e não por responsabilidade da Universidade. Durante os últimos quatro anos [como vereador independente da oposição no anterior mandato do socialista Manuel Machado], ouvi várias vezes a Universidade a ser vilipendiada nas reuniões da Câmara, e os seus professores diminuídos. Havia alguma reserva na Câmara face à Universidade. As duas principais instituições da cidade andavam de costas voltadas. E agora andam de braço dado.

    É normal, em cidades de média dimensão, uma ligação íntima, mas nem sempre pacífica, entre a sua universidade e a sua autarquia. Mas, no caso de Coimbra, a Universidade tem um passado institucional forte, chegou a ter uma polícia própria [os verdeais], o que cria antagonismos…

    Havia. Já não há. Durante muitos anos foi uma reserva mútua, que depois deixou de ser por parte da Universidade, mas manteve-se por parte da Câmara. Por exemplo, o Pólo II da Universidade está ilegal há praticamente 40 anos…

    Porquê?

    Não está legalizado por falta de aprovação do loteamento. E o Pólo III foi parcialmente legalizado, sob risco de Coimbra perder os financiamentos do UC Biomed, um dos maiores de sempre para edifícios de investigação.

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    O estacionamento caótico no Pólo II está relacionado com questões dessa natureza?  

    Sim, mas agora está a trabalhar-se no sentido de se ultrapassarem esses problemas do passado, de relacionamento. De forma tranquila, as duas principais instituições de Coimbra, e sem esquecer outras, como o Centro Hospitalar e o Instituto Politécnico, estão a trabalhar em conjunto, em bom diálogo. Se algum problema houver, eu e o reitor conversamos sem qualquer tipo de reserva. Outro exemplo: a Câmara Municipal não recebia empresários. Ora, uma Câmara que não recebe empresários é porque não quer investimento; se não quer investimento, não quer empresas, não quer emprego; e, portanto, se não há emprego, a população vai-se embora. Tenho um exemplo concreto: o IKEA quis instalar-se em Coimbra, comprou um espaço de oito hectares na encosta de Santa Clara, mas por obstáculos levantados pela Câmara nunca se instalou. Agora, a filosofia mudou, embora a pandemia tenha alterado a filosofia deste tipo de investimentos, porque se fortaleceu a componente de compras online.

    Vejo-o com grande optimismo. Significa então que aquele projeto que se ouve falar desde os anos 90 do século passado, e do qual a autarquia de Coimbra detém 14% do capital social da empresa, não vai continuar a ser uma obra de Santa Engrácia? Estou a falar do Metro do Mondego…

    [risos] Está bem… Temos 14% no Metro do Mondego. Mas agora está a andar, está a andar…

    E também está a andar por causa de si?

    Não, não; já estava acontecendo…

    Estava a brincar consigo. Aquilo que eu gostava de saber tem a ver com uma questão muito simples: quando estava a preparar a entrevista, fui consultar o site do Metro Mondego e só quase se via estudos e mais estudos; quase só papel…

    Sim, durante muitos anos foi assim. Mas esse é um projecto do Estado, não é da Câmara. Todos os grandes projectos em Coimbra, que são nomeados, são projetos do Estado.

    No Metro do Porto, o Estado também era maioritário, mas havia força política dos autarcas para se avançar mais rápido nas obras…

    Eu não sei quais eram os obstáculos antes no Metro do Mondego, porque não estava cá, mas a mobilidade e as acessibilidades em Coimbra ficaram sempre para trás. Veja o IP3, o IC6, o IC8. Este último projecto é uma vergonha. Aliás, por causa do IC8, ainda há pouco tempo tive uma reunião com os municípios desde a Raia até à Figueira da Foz, e mais uma vez foi dito que era a primeira vez que o município de Coimbra participava numa reunião. Os outros municípios têm a noção da importância de Coimbra na defesa da Região Centro. Coimbra não podia estar enquistada sobre si mesma e ignorar o que se passava à sua volta. Por isso, 10 anos depois de serem criadas, se fez finalmente uma reunião entre as Comunidades Intermunicipais de Coimbra e de Leiria para um diálogo sobre assuntos comuns, para investimentos comuns; para constituir um lobby da Região Centro.

    Qual a sua opinião sobre a regionalização?

    Eu diria que é a mesma que tenho sobre a descentralização. A descentralização é um bom conceito mal aplicado, porque houve transferência de responsabilidades que podem ser exercidas com melhor propriedade pelas Câmaras Municipais, mas não vieram acompanhadas do financiamento necessário. O Estado descentralizou “chatices administrativas” e défice do Orçamento Geral, criando constrangimentos e dificultando o exercício das autarquias. Isto é uma perversidade sobre um conceito que era de acarinhar, pois não foi devidamente financiado. O Estado deveria transferir pelo menos o mesmo montante que gastaria se exercesse essas competências. Se calhar o principal objectivo, oculto, da descentralização foi descentralizar o défice do Orçamento Geral do Estado.

    Portanto, a regionalização pode ser má se o caminho for semelhante ao da descentralização…

    Aí, mais vale estarem quietos. Eu acredito no processo de regionalização se for conquistado pelas regiões. Se for feito pelo Estado, em benefício do Estado Central, então não; mais vale estarem quietos. Basta, aliás, ver aquilo que sucedeu com a intenção de desconcentração de algumas instituições, como o Supremo Tribunal Administrativo e o Tribunal Constitucional: alguns juízes acharam ser uma indignidade vir para uma cidade como Coimbra, quando eu dou repetidamente o exemplo da Alemanha onde não há nenhum tribunal superior na capital. Se calhar é por esta mentalidade centralista de Lisboa que a descentralização não está a correr bem. Aliás, recusamos assinar o auto de transferências em Saúde, e agora quiseram-nos impor, a partir de Janeiro de 2023, a descentralização na Acção Social, fazendo uma coisa que eu não compreendo: exigindo que criássemos uma estrutura enquanto a nível central se mantém tudo igual, para fazer não sei o quê. Assim, só vamos duplicar estruturas, ainda por cima com um financiamento claramente insuficiente. Por amor de Deus, isto não é descentralização.

    Deduzo então que também não concorde muito com o actual modelo das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), que já não é completamente dominado pelo Governo…

    É completamente…

    O presidente e um vice-presidente são agora eleitos pelos autarcas. São órgãos desconcentrados da Administração Pública…

    Eu acho que a presidente da CCDR do Centro [Isabel Damasceno, ex-presidente da autarquia de Leiria pelo PSD] é uma pessoa muito estimável com quem temos tido várias reuniões construtivas. Mas, com todo o respeito pelas pessoas, mais importante do que os modelos são as pessoas, e um modelo de organização funciona bem com as pessoas certas no lugar certo, e qualquer modelo de organização funciona mal com as pessoas erradas no lugar errado. Portanto, sem estar devidamente explorado este modelo de CCDR, quer-se acelerar um processo de regionalização sem estar suficientemente debatido. Tem de haver primeiro uma proposta de regionalização, exaustivamente discutida. Dou-lhe um exemplo: vamos regionalizar com partidos nacionais? Eu não sei que regionalização é essa se vamos regionalizar o país, mas mantendo, à frente das regiões, partidos nacionais. Isso é a verdadeira regionalização? Não sei se é; e eu acho que não é.

    Serão satélites do Governo ou da oposição…

    Mas a nossa Constituição proíbe partidos regionais. Então, como é que nós regionalizamos sem permitir criar forças políticas regionais? Isso não é uma verdadeira regionalização; é um eufemismo de regionalização. Mas por que é que a Constituição tem essa essa alínea que proíbe partidos regionais? Se nós olharmos para a vizinha Espanha começamos a perceber porquê. Nós criticamos o Governo de Madrid pela forma como actuou na Catalunha, mas ninguém foi capaz de dizer que os partidos regionais do tipo catalão são proibidos em Portugal. Estamos a falar de realidades diferentes. Se avançarmos no sentido de uma regionalização com partidos regionais podemos, de facto, daqui a duas gerações, pôr em causa a coesão nacional. Mas eu não sei, com a nossa tradição municipalista e agora desenvolvida com o conceito das comunidades intermunicipais, como é que vamos regionalizar com partidos nacionais. Eu acho que é algo incompatível, porque se queremos uma região a defender os seus interesses, temos de permitir a criação de forças políticas regionais.

    E locais… Nas eleições autárquicas admitem-se movimentos cívicos mas não partidos formais…

    Sim. Por exemplo, há quatro anos quando criámos o nosso movimento independente [Somos Coimbra], este deixou formalmente de existir por lei no dia das eleições, quando fomos eleitos como autarcas. Também é proibido que um movimento independente faça uma coligação com um partido político. Porquê? Isso é uma limitação à democracia. Portanto, vamos aprimorar a nossa democracia, e depois falamos de regionalização. Se não permitimos verdadeiras manifestações de cidadania, então estamos a falar de regionalização com que objetivos? A nossa legislação autárquica nunca mais foi modernizada. Hoje tem seríssimas limitações, eu diria que é pouco democrática. Portanto, a regionalização transformou-se num chavão político, e eu tenho muito receio de chavões políticos.

    Os célebres chavões políticos…

    Muitas vezes dizem-me: ah, as decisões são políticas, isso é político. Pois é, mas a política paga-se com euros, não é? Eu digo sempre: a decisão pode ser política, mas vamos avaliar as consequências económicas, porque depois do 25 de Abril já fomos três vezes à bancarrota. Eu não gostava de ir uma quarta vez. Vamos avaliar as consequências do impacto económico para depois decidirmos então, dentro do critério de não causar mais prejuízo do que benefício – como na medicina, com o célere primum non nocere –, e depois, sim, pôr um uma componente política na decisão.

    Já que fala dos investimentos, como avalia a situação do iParque, o vosso centro de Ciência e Tecnologia? Temos ali 30 hectares e 34 lotes para instalar empresas. Quantas lá estão neste momento?

    Estão poucas. O projeto do iParque autolimitou-se um bocado no seu início ao restringir os investimentos à área tecnológica e da saúde. Algumas empresas que se poderiam lá instalar ficaram impedidas por não caberem neste conceito devido às condições dos financiamentos europeus. Depois, esteve parado durante vários anos, e agora está outra vez a procurar desenvolver-se, até porque esteve tecnicamente falido por dívidas ao Novo Banco.

    Qual era o valor da dívida?

    Da ordem dos quatro milhões de euros. Com a falência do Banco Espírito Santo, e a criação do Novo Banco, grande parte da dívida do iParque foi vendida a fundos, e assim perdoou-se talvez 75% da dívida, o que permitiu que a Câmara repusesse o equilíbrio financeiro. Mas quando se diz agora que o iParque tem contas equilibradas, deve dizer-se que sim, mas porque nós todos, portugueses, pagámos a dívida.

    Sente sinais de mudança no iParque?

    A fase II tem agora interessados. Eu diria que há grandes critérios para um empresário seleccionar o investimento: a localização e as acessibilidades. Nós temos boas acessibilidades longitudinais – não tanto transversais –, uma boa universidade, um bom hospital, uma boa localização geográfica. Temos, no essencial, tudo o que é necessário para um empresário investir, e com potencial imenso. Por exemplo, fala-se pouco – se fosse em Lisboa seria certamente diferente –, mas temos em Coimbra a sede em Portugal da única empresa unicórnio nacional, a Feedzai. Temos muita procura. Aquilo que nos diziam os empresários é que nem valia a pena ir a Coimbra. A ideia que se instalou é que tudo esbarrava na Câmara, e agora as pessoas já perceberam a mudança.

    Pode então perspectivar-nos onde se estará daqui a quatro anos? Quanto daqueles 34 lotes do iParque estarão ocupados?

    Eu não me comprometo. Não sou eu que vou comprar os lotes, não tenho dinheiro para isso, mas estamos a trabalhar…

    Então eu reformulo a pergunta: porque está a dar um destaque ao papel fundamental da Câmara na atracção de investimentos, o que seria um insucesso?

    Não meço isso no caso do iParque.

    Eu queria que determinasse uma métrica. Por exemplo, que consegue ter 10 lotes ocupados, ou 20, para ficar satisfeito…

    Aquilo que nós queremos é aumentar, ano após ano, o investimento empresarial em Coimbra.

    Isso é muito vago.

    Claro que é vago. Não tenho uma métrica para dizer: olha, agora vamos vender mais seis lotes do iParque e ficamos contentes.

    Os investimentos também não devem traçar objetivos e ter métricas?

    Métricas que dependem de nós, sim. Para captar investimento, por exemplo, há tantos a tantos factores imponderáveis, como vimos com a pandemia da covid-19. Agora, a guerra na Ucrânia também, que vai “comer”, se nada mudar, seis milhões de euros do nosso orçamento. Veja-se o aumento do custo dos materiais, da energia e dos combustíveis. Somos uma cidade com 100 autocarros por dia a circular.

    Qual o impacte desse acréscimo no orçamento camarário?

    Cerca de 4% do orçamento; é um impacto brutal, porque a capacidade de investimento próprio da Câmara é muito baixa, rondando os cinco ou seis milhões de euros. A diferença entre as receitas e as despesas correntes é muito pequena. Aquilo que podemos fazer é captar investimentos. E estamos numa fase de transição entre dois quadros dos fundos estruturais: o Portugal 2020 acabou e o Portugal 2030 ainda não começou. Quando aqui cheguei, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) já estava alocado, e perguntaram-nos apenas se tínhamos projectos maturados na Câmara, porque aí poderia ser que entrasse. Mas não há. Um dos nossos problemas era não ter projetos em desenvolvimento a nenhum nível, excepto aqueles relacionados com a rotina diária da gestão autárquica. Isso mudou. Já me disseram dos serviços que nunca trabalharam tanto como agora. Imprimimos outro ritmo, também com a informatização e digitalização. Nos processos de urbanismo ainda não está completado, mas a digitalização sim. Se eu tiver um processo por despachar mais de 10 dias fica registado. Tem havido uma maior pressão para uma aceleração processual, e tem sucedido com a participação dos trabalhadores da Câmara, a quem eu tenho de estar reconhecido e agradecido.

    Um cunho pessoal?

    Temos aqui muita gente de valor, que estavam numa organização completamente disfuncional. As pessoas não falavam umas com as outras. Agora, fazemos reuniões que juntam directores de departamento para discutir problemas, e ouvir as suas opiniões. Isto não era feito antes. Trabalhar com as pessoas, envolve-as, e ganha-se com isso, porque têm muito conhecimento e muita experiência. E isso depois atrai investimento. O parque industrial de Taveiro está cheio, o de Eiras está praticamente cheio, o iParque em desenvolvimento. E não temos muito mais. Há ainda lotes industriais que podem ser vendidos, mas a infraestruturação é muito deficiente, mas podemos sempre inverter agulhas. Não temos dúvidas que Coimbra vai crescer em termos de investimento empresarial, mas sem métricas quantitativas. 

    O impacto da pandemia agudizou a situação do comércio e dos serviços também em Coimbra. A Baixa já sofre de problemas de segurança. Como pretende revitalizar aquela zona?

    A Baixa foi abandonada ao investimento por parte da Câmara durante muitos anos. Com a colaboração negativa da autarquia concentrou-se na Baixa quase todos os apoios sociais da cidade. Não se resolveram os problemas das pessoas e criou-se sim um problema social na Baixa, que é necessário inverter. Isso é um trabalho de fundo. Queremos, por exemplo, reabilitar a entrada da Rua Direita, que está degradadíssima. Apesar da Câmara deter a maioria dos activos imobiliários daquela zona, há um proprietário que tem criado obstáculos numa zona essencial. Antes, a autarquia nunca tentou um diálogo. Aquilo está assim há anos. Já não me lembro de ver o início da Rua Direita de outra maneira. Agora, já dialogamos com um representante do proprietário, e está a correr bem. Eu próprio já me disponibilizei para ir falar com o proprietário, que vive em Poiares. É o nosso interesse de resolver o problema; não tenho nenhuma questão em ir falar com o próprio.

    Conversa de médicos: José Manuel Silva com o psiquiatra Pio Abreu, antes da entrevista.

    Para a reabilitação da Baixa de Coimbra vai ser preciso uma espécie de Polis?

    Chamo-lhe um Plano Marshall. É preciso investimento e a Câmara tem de dar o exemplo, resolvendo as questões que estão sob sua responsabilidade directa. Estamos também a desviar para a Baixa muitos eventos culturais; para a Praça do Comércio, por exemplo. Qualquer pessoa fica deslumbrada com o potencial daquela praça, que basicamente estava ao abandono por parte da Câmara, e os empresários viam a autarquia a não responder às solicitações para lá dinamizarem eventos. Agora já respondemos. Em qualquer cidade espanhola, a Praça do Comércio seria uma plaza com vida 24 horas por dia. Nós estamos a pensar também poder adquirir um edifício na Baixa – há vários à venda, o que não é um sinal muito positivo – para dar um exemplo de investimento e criar um espaço co-work. Queremos trazer os estudantes para a Baixa, criando ali residências. Estamos a distribuir agora as pessoas com carências habitacionais por outras zonas da cidade, dando-lhes apoio condigno. Não podemos concentrar todos os problemas na Baixa. Vamos repensar a videovigilância e melhorar o policiamento. O seu potencial é imenso.

    Fotos da entrevista: António Honório Monteiro

  • Antigo bastonário da Ordem dos Médicos preferia que Graça Freitas jogasse ‘pela Ciência’ e não ‘pelo seguro’

    Antigo bastonário da Ordem dos Médicos preferia que Graça Freitas jogasse ‘pela Ciência’ e não ‘pelo seguro’

    A Direcção-Geral da Saúde quer manter por tempo indeterminado a obrigatoriedade de máscaras em recintos fechados, mas a falta de Ciência desta medida faz com que José Manuel Silva, que ocupou o cargo de bastonário da Ordem dos Médicos durante seis anos e é agora presidente a autarquia de Coimbra, desafie Graça Freitas para um debate, e acusa muitas medidas de serem “irracionais”. Esta é a antevisão da primeira ENTREVISTA P1, a publicar amanhã no PÁGINA UM.


    José Manuel Silva – bastonário da Ordem do Médicos por dois mandatos, entre 2011 e 2017, o segundo com uma votação de 91,25% – acusa a Direcção-Geral da Saúde de falta de rigor científico por pretender manter o uso de máscaras por mais tempo.

    O actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra – que concedeu ontem uma longa entrevista ao PÁGINA UM, a publicar amanhã – questiona muitas das “medidas irracionais” ao longo da pandemia, e sobretudo a estratégia não-científica dos últimos meses, desafiando mesmo a também médica Graça Freitas, directora-geral da Saúde, para um debate onde esta explique “o que é jogar pelo seguro”.

    Ontem, em entrevista à Rádio Renascença, Graça Freitas considerou não ser ainda tempo de abandonar a máscara em espaços fechados, defendendo a importância de “jogar com segurança e não perder nada do que já foi adquirido”, sendo assim, na sua opinião de Autoridade de Saúde Nacional, “seguro esperar mais uns dias”, sem adiantar um período.

    José Manuel Silva, antigo bastonário da Ordem dos Médicos (2011-2017) e actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra em entrevista ao PÁGINA UM. (Foto: ©António Honório Monteiro)

    Também sem explicar a base científica desta métrica, a directora-geral da Saúde diz que “a mortalidade [causada pela covid-19] ainda não atingiu aquele valor que impusemos – que é a mortalidade baixar de 20 óbitos por milhão de habitantes a 14 dias”, a fasquia supostamente necessária para implementar “outro pacote de medidas menos restritivas”.

    Entretanto, conforme noticiou hoje o Público, as escolas receberam uma orientação da Direcção-Geral dos Estabelecimentos Escolares para garantirem a disponibilização de equipamentos de protecção individual no terceiro período, o que indicia a possibilidade de dois anos lectivos sucessivos sempre com os estudantes “mascarados” em sala de aula.

    Comentando ao PÁGINA UM as afirmações da directora-geral da Saúde, José Manuel Silva diz que gostaria “que jogássemos pela Ciência”. E lança o desafio: “Eu gostaria de ter um debate com ela [Graça Freitas] sobre esta questão. A Direcção-Geral da Saúde tem de decidir com bases científicas rigorosas”, salienta, alertando que não existe nenhuma evidência clínica sobre os benefícios da manutenção das máscaras nas actuais circunstâncias.

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    “As máscaras foram necessárias na fase pior da pandemia”, recorda o antigo bastonário da Ordem dos Médicos, salientando, contudo, que “agora, em que não há uma pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde, acho até contraproducente”. E acrescenta ainda: “andar de máscara depois de termos 86% da população vacinada não tem nenhum fundamento científico”, concluindo que com o SARS-CoV-2 a ser agora endémico a normalidade já deveria ter regressado em Outubro do ano passado.

    Na entrevista a publicar amanhã ao final da tarde, realizada no gabinete do novo presidente da Câmara Municipal de Coimbra, sem qualquer dos presentes usar máscara, José Manuel Silva – que foi uma das surpresas das autárquicas de Setembro ao derrotar esmagadoramente o histórico socialista Manuel Machado – aborda os constrangimentos e desafios da cidade do Mondego, as relações com a Universidade, o processo de regionalização e descentralização.

    Mas também analisa, em detalhe, e de forma por vezes contundente, a gestão da pandemia, o papel dos médicos e da sua Ordem, as relações perigosas com as farmacêuticas e a situação do SNS.