Autor: Pedro Almeida Vieira

  • O Fado, o VAR e os queixumes do Enes

    O Fado, o VAR e os queixumes do Enes


    Trazem-lhes os deuses — ou talvez tenha sido o Fado, essa entidade fatalista e caprichosa — a triste sina de nascerem com o coração tingido de verde e um irracional afecto por um felino de juba, mais talhado para rugir em peluches infantis do que para caçar campeonatos. Refiro-me, pois claro, aos sportinguistas, essa confraria de sofredores que, desde os tempos do senhor Salazar (e vá lá saber-se se não desde o domínio filipino), vagueiam pelo mundo a carpir mágoas de um presumido martírio futebolístico.

    Dizem-se vítimas de roubos. Mas não de carteiristas comuns — não, nada disso. Falam de assaltos metafísicos, conjuras cósmicas, espoliações transcendentes que transformam cada árbitro num Torquemada e cada fora-de-jogo num auto-de-fé. Gritam que lhes tiram campeonatos a ladro, como quem clama que o Olimpo lhes manda pragas. Só que, curiosamente, os roubos só ocorrem quando perdem. Se ganham, foi justiça divina.

    Ora, desde que apareceu o VAR, esperava-se que esses lamentos ancestrais fossem metidos num armário, junto com as faixas de campeão de 1982 e os cartazes do Balakov. Mas não. Agora que têm um olho extra em cada canto do campo, os sportinguistas passaram a desconfiar é do próprio VAR — acusando-o de ser um cíclope manhoso, a ver só para um lado. Aquiles, com o seu calcanhar exposto, queixava-se menos.

    E lá tenho andado com o Carlos Enes, bom camarada de ofício, sportinguista de pergaminhos, daqueles que faz da auto-comiseração um desporto paralelo. Nestes últimos dois anos, o Enes tem vivido num estado de euforia comedido — ganhando títulos atrás de títulos como quem apanha cerejas, sempre a medo de que o árbitro apareça a cobrar IVA desportivo no fim da partida.

    Pois bem, a caminho do Jamor para assistir à final da Taça, lá vinha o Enes no seu modo habitual: voz grave, semblante carregado, como um oráculo de Delfos depois de três cafés. “O VAR é o Tiago Martins”, murmurava ele com a solenidade de quem anuncia um eclipse total. “Está encomendado. Vai ser entregue ao Benfica de bandeja.” Ora, o Tiago Martins — e confirma-se, era mesmo ele — não é propriamente nome de quem inspire, nos sportinguistas, confiança. Diziam-me. Mas adiante. Eu já tinha ouvido história semelhante com o João Pinheiro, que afinal me saiu um João Pinacácia há duas semanas.

    Chegados ao Jamor, sol a prumo e cachecóis ao vento, o jogo começou com aquele nervoso próprio das finais em que há muito mais em jogo do que um troféu: há honra, há vingança, há memes por fazer. E o que vi em campo foi isto: um Benfica personalizado, bem organizado e, surpresa das surpresas, prejudicado em lances capitais — todos com a assinatura silenciosa do senhor do VAR, sim, esse mesmo: o Tiago Martins, o furta-leões.

    Corria o minuto 11 da final da Taça de Portugal, quando Luís Godinho, árbitro da partida, assinalou aquilo que, à primeira vista e aos olhos do comum mortal, parecia ser um penálti inequívoco a favor do Benfica. Bruma remata, Gonçalo Inácio interpõe-se com o braço esquerdo — e o apito soa como quem marca um destino. O gesto do árbitro parecia selar o castigo máximo, daqueles que em finais se escreve com letras maiúsculas e se discute nos cafés durante semanas.

    Mas não. As musas do Jamor, que agora têm nome técnico — VAR —, intervieram. E quem o árbitro Godinho ouviu no auricular foi o senhor Tiago Martins, homem de bastidores e ecrãs, daqueles que só existem verdadeiramente quando o jogo pára. A decisão foi revertida: antes de Bruma rematar, muito antes de Inácio meter o braço onde não devia, já tudo estava manchado pelo pecado original — um fora-de-jogo de Kökçü, que recebera a bola do flanco esquerdo em posição irregular. Sem o VAR que pilha leões, o Benfica teria inaugurado o marcador.

    Minuto 19. Dahl, veloz e ousado, entra na área do Sporting e cai. O árbitro, célere no gesto e firme no juízo, levanta o braço e castiga o benfiquista com cartão amarelo por simulação. Mas, como convém nestes tempos de escrutínio digital, o VAR deveria ter acordado para rever o lance com olhos de lince, porque parece mesmo — nas imagens — que Hjulmand tocou no pé de Dahl. Mas o VAR, qual dorminhoco numa tarde primaveril, não interveio. Nada viu. Afinal, pensei, o Tiago Martins até aprecia os leões.

    Minuto 50. Bruma marca e a nação benfiquista explode de alegria com o segundo golo, que mataria o jogo — por breves instantes, entenda-se. Pois bem, veio o VAR, o tal do senhor Tiago Martins, com o seu bisturi digital, cortar o lance até à raiz e encontrou-se um fóssil de falta na origem da jogada: Carreras terá entrado de pitons sobre o tornozelo de Trincão no acto da recuperação da bola. Um toque, um gesto, uma pisadela do passado — e zás! Golo anulado, falta marcada, cartão amarelo exibido com a elegância de um carimbo notarial.

    Tudo correcto, dizem. Mas ficou legitimado que se pode anular um golo se, algures no processo de construção — talvez numa posse de bola anterior, ou numa jogada que envolva uma troca de olhares suspeita — se encontrar uma falta esquecida, omissa ou até metafísica. E o Carlos Enes a queixar-se do Tiago Martins…

    Minuto 90+5. O jogo já vivia os seus estertores finais. O desespero leva Matheus Reis — talvez possuído por algum espírito guerreiro das estepes — a encerrar a tarde com um gesto digno de arte marcial. O benfiquista Belotti, caído no chão, pôs-se a jeito de servir de almofada ao pé esquerdo do brasileiro, que desceu com zelo e pontaria sobre a cabeça do adversário. Apagam-se cigarros com pisadelas mais suaves.

    Conduta violenta? Evidente. Lance de cartão vermelho? Óbvio. Intervenção do VAR? Pois… aí entra o mistério. O nosso querido vídeo-árbitro, tão atento às solas de Carreras e às sobrancelhas de Kökçü em fora-de-jogo milimétrico, entrou aqui em modo contemplativo — talvez em meditação transcendental.

    Nem um sussurro no auricular. Nada. Tiago Martins em silêncio sepulcral, como quem contempla o pôr-do-sol em paz interior.

    Se calhar, Matheus Reis pisou a cabeça do adversário com força insuficiente para activar os sensores do VAR. Ou talvez o protocolo não preveja agressões à cabeça se forem em tempo de descontos e em estilo zen.

    Depois disto, que resta mais para escrever? Que foi bonita a festa do Jamor? Que o Lage vai dar uma curva? Que o Rui Costa vai de vela? Que o Benfica deve procurar construir uma equipa decente? Que o Carlos Enes nunca mais invocará o VAR em vão?

  • Correio da Manhã recebe 147 mil euros para organizar dois eventos de promoção de Carlos Moedas

    Correio da Manhã recebe 147 mil euros para organizar dois eventos de promoção de Carlos Moedas

    “Hoje vivemos realmente tempos muito estranhos.” Esta frase foi usada hoje por Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, numa conferência sobre segurança, mas sintetiza também, involuntariamente, o estado actual da promiscuidade entre o poder político e certos grupos de media.

    O evento em causa decorreu sob a chancela do ciclo “Uma Cidade para Todos”, apresentado como uma “iniciativa do Correio da Manhã e da CMTV” — órgãos de comunicação social detidos pela Medialivre de Cristiano Ronaldo — em “parceria e apoio” da Câmara Municipal de Lisboa, mas que, afinal, não passa de um contrato de prestação de serviços no valor de 147.600 euros, IVA incluído, pago integralmente pela autarquia.

    Quem assistiu hoje à conferência talvez pensasse que eram sinceras as palavras de Moedas nos agradecimentos à Medialivre “por ter escolhido este tema [a Segurança], um tema fundamental na sociedade”. Contudo, o que o edil lisboeta não disse — e também não foi dito por Carlos Rodrigues, director editorial do Correio da Manhã e da CMTV, que discursou no arranque do evento — é que essa escolha temática veio devidamente contratualizada com dinheiros públicos.

    A narrativa da “parceria” cai, aliás, por terra com o contrato celebrado anteontem pelo vereador Filipe Anacoreta Correia, eleito nas listas de Moedas, que prevê dois debates pagos: o de hoje, sobre segurança, e outro agendado para a próxima semana, dia 4 de Junho, sobre imigração. Um debate anterior, em Fevereiro, também inserido neste ciclo, não está abrangido por nenhum contrato conhecido.

    Cada evento, segundo o contrato, rende assim à Medialivre 73.800 euros, incluindo a produção de conteúdos antes, durante e depois da conferência — desde peças de enquadramento até vídeos de resumo (wrap-ups) a serem difundidos pelos canais da empresa. Em troca, a Medialivre comprometeu-se a usar todos os meios humanos e materiais necessários, assumindo os encargos associados, inclusive os direitos sobre marcas e licenças. Entre os meios disponibilizados contam-se pelo menos três jornalistas com carteira profissional — prática que, para além de antiética, viola claramente o Estatuto do Jornalista.

    Carlos Rodrigues, director do Correio da Manhã e da CMTV, deu as ‘boas-vindas’ em conferência paga pela autarquia de Lisboa, e Daniela Polónia foi a ‘mestre-de-cerimónias’: eis as novas funções, cada vez mais banalizadas, de jornalistas num mercado em que os reguladores tudo permitem.

    A abertura do evento, com transmissão em directo nos canais digitais da Medialivre, foi conduzida por Daniela Polónia (CP 6296), jornalista e pivot da CMTV, que actuou como mestre de cerimónias institucional, anunciando os oradores e, em alguns casos, simultaneamente patrocinadores, no caso do “engenheiro Carlos Moedas”.

    O próprio Carlos Rodrigues (CP 1575) deu as boas-vindas aos participantes, num momento de cumplicidade discursiva com Moedas. Os dois painéis seguintes — sobre policiamento comunitário e paradigmas da segurança urbana — foram moderados por João Ferreira (CP 802), também jornalista do grupo. De entre os participantes no debate, não esteve presente qualquer vereador da oposição — não houve, assim, lugar a polémica. Carlos Moedas teve, aliás, direito a um discurso, sem contraditório, de 22 minutos.

    Mais do que um mero conflito de interesses, este é mais um caso flagrante de perda de equidistância jornalística e de instrumentalização de profissionais da comunicação para fins promocionais. O silêncio sobre a natureza comercial do evento — nenhuma menção explícita a patrocínio, prestação de serviços ou publicidade nos conteúdos divulgados — acentua o carácter enganador desta operação.

    João Ferreira, jornalista há mais de 30 anos, e pivot da CMTV, ganha agora a vida também como prestador de serviços em contratos entre a Câmara Municipal de Lisboa e a sua empresa empregadora, a Medialivre.

    A situação não é inédita, nem isolada — e está a surgir uma ‘normalização’ da mercantilização do jornalismo, em que já se duvida sobre se apenas algumas ou todas as notícias têm uma compensação financeira directa ou indirecta por parte dos interessados, o que mina a confiança dos cidadãos perante a imprensa. Ainda este mês, a ERC concluiu que dois eventos organizados pelo jornal Público — pagos pela Câmara de Penafiel e pela Ordem dos Médicos Dentistas — configuravam publicidade, aplicando uma multa simbólica de 3.500 euros, bastante inferior ao valor dos contratos anómalos. O denominador comum com o evento da Medialivre: no caso do Público, além de jornalistas, o actual director do jornal da Sonae, David Pontes, teve participação activa na prestação de serviços.

    Tal como agora com Carlos Rodrigues, a actividade de publicidade dos jornalistas do Público não foi assumida como prestação de serviços, nem respeitou o Estatuto do Jornalista. Mas os processos prescreveram para efeitos disciplinares, uma vez que a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) não agiu atempadamente. O regulamento disciplinar dos jornalistas determina a prescrição ao fim de dois anos.

    A passividade da CCPJ, aliada à lentidão crónica da ERC, tem criado um cenário de impunidade que favorece a mercantilização da profissão. O resultado é a banalização de práticas proibidas por lei, mas toleradas na prática pelos reguladores e pela classe jornalística.

    Helena de Sousa, presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social: perante a promiscuidade, o regulador das media pega em casos pontuais, tarde e a más horas, e agora começa a aplicar coimas simbólicas que funcionam como ‘taxas de promiscuidade’, porque o ‘crime’ compensa financeiramente.

    Na conferência de Lisboa de hoje, até se assistiu, na sessão de encerramento, ao vereador social-democrata Rui Cordeiro agradecer ao Correio da Manhã o “convite” para participar num evento que, na verdade, foi pago pela própria Câmara. E os jornalistas servem de prestadores de serviços contratados por entidades externas, mascarando uma acção de comunicação política como um gesto de jornalismo independente. E tudo isto sob a cobertura de um contrato que, embora público, tenta disfarçar-se de parceria editorial.

    Num país onde a ética jornalística é muitas vezes tratada como uma nota de rodapé, a promiscuidade está a ganhar estatuto de normalidade. De facto, como dizia Moedas, “vivemos tempos muito estranhos”. De facto, vivemos.

    Este artigo teve um direito de resposta de Carlos Rodrigues, director-geral do Correio da Manhã e da CMTV, que pode ser lido aqui.

  • Portugal apaga o português na Expo 2025 Osaka: uma vergonha diplomática, um acto de ignorância desmedida

    Portugal apaga o português na Expo 2025 Osaka: uma vergonha diplomática, um acto de ignorância desmedida


    Na Exposição Universal de Osaka, em pleno 2025, sobre a qual hoje escrevi para falar dos gastos, fiquei estupefacto com uma constatação: o pavilhão de Portugal optou por apresentar-se ao mundo sem uma única mensagem em português. Nas projecções que “recebem” os visitantes, apenas se lêem mensagens em japonês e em inglês. Presumo que a palavra Portugal apareça como Portugal porque assim se escreve em inglês.

    Esta aberração num projecto de quase 26 milhões de euros — que é o que custará aos cofres públicos a presença portuguesa em Osaka — não se trata de um lapso trivial. Trata-se de uma vergonha. Uma vergonha diplomática. Uma vergonha cultural. E, sobretudo, um acto de ignorância desmedida da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) sobre a própria História de Portugal — precisamente no Japão, um país onde o português foi, durante décadas, a língua da diplomacia, da fé, do comércio e da ciência.

    Ricardo Arroja e as “alminhas” da AICEP podem não saber da riqueza histórica entre Japão e Portugal, nem sempre pacífica quando mundos se contactam pela primeira vez. Mas, se tiveram mais de 13 milhões de euros para montar um edifício com 10 mil cordas, talvez por meia dúzia de patacas (não as de Macau, que isso é China) pudessem contratar um historiador.

    Se tiveram 200 mil euros para contratar a Ernst & Young para lhes fazer a contabilidade, poderiam ter contratado a decência para lhes explicar que, quando se promove Portugal, só se promove com a língua portuguesa, porque, como escreveu bem Fernando Pessoa (ou Bernardo Soares), “minha pátria é a língua portuguesa”.

    Num país que se envergonha pelo que faz no presente, parece agora querer vilipendiar o passado. Quer apagar da História Universal que o primeiro grande contacto da Europa com o Japão moderno foi feito por intermédio dos portugueses. Em 1543, três navegadores — António da Mota, António Peixoto e Francisco Zeimoto — ancoraram nas ilhas nipónicas, dando início a uma relação de trocas e fascínio mútuo que marcaria profundamente ambos os povos.

    Fernão Mendes Pinto, na sua Peregrinação, misto de verdade e ficção, reclama para si um lugar nesse feito inaugural, descrevendo com minúcia a sua chegada ao Japão, o assombro dos locais perante as armas de fogo portuguesas e o espanto recíproco perante os costumes e a cultura. É dele um dos primeiros retratos europeus do Japão — colorido, cheio de admiração e revelador de um encontro entre civilizações.

    Na sua narrativa, refere a entrega de espingardas a um senhor feudal japonês e o impacto profundo que esse gesto teve, ao ponto de modificar para sempre o modo como os japoneses concebiam a guerra. Mais do que uma crónica de aventuras, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto é um testemunho vivo da presença portuguesa no Japão do século XVI. E é, também, um monumento literário que dá voz à nossa língua nas lonjuras do Oriente.

    Recorde-se ainda que Francisco Xavier, missionário jesuíta português, foi um dos primeiros evangelizadores do arquipélago. A cidade de Nagasáqui foi doada aos jesuítas portugueses. A primeira gramática da língua japonesa foi redigida por um português. A imprensa de tipos móveis foi introduzida por missionários portugueses. A língua portuguesa foi, até ao século XVII, o veículo oficial da comunicação dos japoneses com o mundo. Que país mais poderá reivindicar tal feito no Japão?

    E como poderemos honrar, com esta postura, esse insigne vulto que foi Wenceslau de Moraes, que nos deixou um legado sobre o Japão em tantos escritos? Logo ele que, por lamentável ironia, até foi cônsul em Osaka…

    E, no entanto, o Portugal de 2025 apresenta-se no Japão ignorando a sua própria língua — como se o português fosse um fardo do passado, um acessório irrelevante, uma relíquia a esconder. Como se a língua de Camões e de António Vieira, de Eça e de Pessoa, não merecesse aparecer agora num dos países que primeiro a escutaram no Extremo Oriente. Este apagamento não é casual. É sintoma de um Estado que já não se entende como Nação, que prefere o inglês da conveniência ao português da identidade.

    Numa era em que o multiculturalismo é brandido como bandeira, Portugal é dos poucos países que insiste em esconder a sua Cultura para parecer moderno. Mas não há modernidade possível sem memória. E não há presença internacional digna quando se abdica da própria língua — sobretudo quando essa língua é um dos maiores legados da presença portuguesa no Japão.

    O pavilhão português em Osaka já não é apenas um edifício; é uma metáfora da forma como o Estado português se vê a si mesmo: envergonhado da História, ignorante do seu papel no Mundo, submisso aos ditames de uma comunicação global onde tudo se quer nivelado, uniformizado, sem raízes.

    Não sou dado a sentimentalismos patrioteiros nem a arroubos diplomáticos, e muito menos me comovem cortejos de bandeiras ou salamaleques culturais. A minha pátria — como bem disse Pessoa — continuará a ser a língua portuguesa. Não me indigno demasiado com quem tropeça no português por ignorância — isso tem cura. Mas o que já me enoja é a opção consciente de apagamento da língua que nos define, como se se varresse Camões para debaixo de um tapete institucional ou se riscasse Pessoa das vitrinas da História.

    Com a indiferença burocrática dos que não percebem que se pode vender um país em silêncio, bastando para isso omitir-lhe a fala, a AICEP não cometeu apenas um deslize administrativo — trata-se de um acto simbólico de rendição cultural. E a rendição, quando feita sem disparar um só alfabeto, é ainda mais vergonhosa — porque já nem é traição: é desistência.

  • Osaka 2025: invisibilidade mediática mas com despesas generosas… e estranhas

    Osaka 2025: invisibilidade mediática mas com despesas generosas… e estranhas

    Discreta, mas generosa na despesa — assim se pode descrever a participação portuguesa na Exposição Mundial de Osaka, no Japão, organizada pela Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP). Para resolver a questão da invisibilidade mediática, a AICEP contratou ontem os serviços de assessoria da agência JLM – João Líbano Monteiro & Associados, por 19.500 euros. Já no que respeita ao despesismo, a solução não será tão simples.

    Inaugurada a 13 de Abril e a decorrer até Outubro deste ano, a Expo 2025 realiza-se na ilha artificial de Yumeshima, na região japonesa de Kansai. Embora tenha passado praticamente despercebida à opinião pública nacional, a representação portuguesa já consumiu mais de 20 milhões de euros com IVA incluído. Segundo informação oficial da AICEP, o valor total da participação deverá rondar 25,83 milhões de euros (correspondentes a 21 milhões acrescidos de IVA), conforme autorizado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 149/2022, do governo de António Costa.

    O principal encargo individual é um contrato de 13,6 milhões de euros, adjudicado à empresa japonesa Rimond Japan para a concepção, construção, manutenção e desmontagem do Pavilhão de Portugal. Este contrato, lançado por concurso público, absorve mais de 70% da despesa já contratualizada. Recorde-se que, em 2023, a escolha do arquitecto japonês Kengo Kuma — preterindo arquitectos portugueses — foi alvo de críticas da Ordem dos Arquitectos, que sublinhou tratar-se da primeira vez que um pavilhão nacional numa Expo Mundial não teria assinatura portuguesa. O edifício concebido pelo arquitecto japonês destaca-se sobretudo pelas cerca de 10 mil cordas suspensas e redes recicladas, num total de mais de 60 toneladas, que compõem uma fachada translúcida que reage à luz e ao vento, remetendo para a fluidez das ondas.

    No interior, o pavilhão divide-se em dois núcleos complementares: um dedicado à partilha de conhecimento, onde se explora a relação histórica entre Portugal e o Japão desde os primeiros contactos marítimos há quase cinco séculos, e outro centrado na inovação e na sustentabilidade, com destaque para projectos e tecnologias que promovem a protecção dos oceanos e o uso responsável da energia. Apenas com projecções e jogos de luzes, há outra coisa que se destaca na exposição: as mensagens surgem apenas em japonês e em inglês. A língua portuguesa ficou à porta. Camões e Fernando Pessoa ‘estrebucham’.

    Acrescem outros encargos vultuosos associados à obra, com destaque para os 407.590 euros destinados à empresa Vítor Hugo – Coordenação e Gestão de Projectos, responsável pela fiscalização da obra; 29.300 euros à 3dLab – Comunicação e Gestão de Imagem, encarregue dos módulos expositivos da sala multiusos; e 42.000 euros pagos à Associação Nacional das Indústrias de Vestuário e Confecção para o fardamento oficial dos trabalhadores.

    Kenga Kuma, arquitecto japonês revistiu o pavihão português com cerca de 10 mil cordas.

    O contrato com a GL Events Japan também se destacam pelo valor: 1,29 milhões de euros para a operação e apoio técnico ao pavilhão durante os seis meses da exposição. Porém, poucos dias depois da celebração deste contrato, foi celebrado outro, no valor de 322.500 euros, adjudicado por ajuste directo e sem contrato escrito, alegando-se “urgência imperiosa”. Segundo a AICEP, este segundo contrato visou garantir o arranque inadiável do pavilhão, dada a exigência de pessoal fluente em japonês e inglês, porque houve atrasos na tramitação do contrato principal junto do Tribunal de Contas. No entanto, a AICEP garante que não haverá duplicação de pagamentos.

    No que respeita ainda ao funcionamento do pavilhão, foram ainda adjudicados 222 mil euros com IVA à empresa Francisco Pestana Unipessoal para fornecimento de merchandising, e dois contratos à Nippon Express Portugal, totalizando 97.000 euros em serviços logísticos.

    A vertente cultural da presença portuguesa, embora ainda sem programa final conhecido, já motivou diversos contratos. A concessão do restaurante português foi entregue à empresária Hazuki Shioya por 63.080 euros. Na música, a empresa Aruada recebeu 38.000 euros para assegurar a actuação de Dino D’Santiago e Branko. Seguem-se contratos com o japonês Kazufumi Tsukimoto (40.390 euros) — conhecido como TUMI e promovido como embaixador do fado no Japão —, André Pimenta e Casa Nic e Inês (17.500 euros), Rute Marcão e Leonor Wagner (13.500 euros) e Bruno Pernadas e José Soares (12.500 euros).

    Na curadoria arquitectónica, a AICEP contratou Alexandre Vicente por 18.000 euros para a exposição Related Paths & Architects, e Carlos Quintãs Eiras por 11.000 euros para coordenar a mostra dedicada a Siza Vieira. Uma exposição de design gráfico foi adjudicada à empresa Barbassays, por 9.990 euros.

    Com a “procissão ainda no adro”, há contratos que causam estranheza. Apesar da presença permanente da AICEP no Japão e da existência de dois representantes na embaixada portuguesa em Tóquio, a agência pública contratou o advogado Luís Verde de Sousa, actual presidente do Conselho de Justiça da Federação Portuguesa de Futebol, para prestar “consultoria jurídica em contratação pública”. Os dois contratos por ajuste directo com este jurista somam quase 115 mil euros com IVA.

    Também o contrato com a Ernst & Young (EY), no valor de 192 mil euros com IVA, suscita dúvidas. A AICEP justifica a contratação com a ausência de conhecimentos internos sobre legislação fiscal japonesa. Porém, a agência tem experiência acumulada no país e dispõe de um departamento de contabilidade habituado a processar despesas internacionais. A contratação externa abrange relatórios mensais de contabilidade analítica, demonstrações financeiras, controlo de royalties e outros indicadores financeiros.

    Apesar das críticas e dos valores elevados, a AICEP insiste que “cumpriu plenamente os princípios da contratação pública” e que todos os contratos estão sujeitos a controlo do Tribunal de Contas. Uma coisa parece certa, em suma: a Expo 2025 Osaka, embora ainda mal conhecida em Portugal, está já a marcar presença no erário público. E a factura — para já — já vai longa. Mas, com os serviços do assessor João Líbano Monteiro, talvez se convençam os portugueses do contrário.

    N.D. Sobre a ausência da língua portuguesa no pavilhão de Portugal em Osaka, leia aqui o editorial.

  • Pedro Andersson multado por actividade publicitária incompatível com o jornalismo

    Pedro Andersson multado por actividade publicitária incompatível com o jornalismo

    O jornalista Pedro Andersson, rosto bem conhecido da SIC pelas suas reportagens sobre poupança e finanças pessoais, foi sancionado pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) com uma coima de 200 euros por violação do Estatuto do Jornalista, nomeadamente por exercer “funções de angariação, concepção ou apresentação de mensagens publicitárias”.

    Esta prática é expressamente proibida para quem mantém o título profissional de jornalista, por comprometer a independência e imparcialidade que devem nortear a actividade.

    Pedro Andersson num workshop organizado pela autarquia de Cabeceiras de Basto no passado dia 16. Foto: CMCB.

    A sanção, ainda que de valor simbólico — e claramente abaixo dos mínimos legais, que fixam as coimas entre 500 e 5.000 euros —, é, por si só, um gesto pouco comum e de forte carga simbólica. Além disso, reveste-se de carácter infamante num meio que, apesar de cada vez mais permeável a relações comerciais e patrocinadas, continua, pelo menos na letra da lei, a reclamar uma independência estrita face a entidades económicas.

    A informação da sanção consta do registo público de contra-ordenações da CCPJ, tendo sido aplicada no mês passado, mas nem Pedro Andersson nem o próprio órgão de disciplina profissional responderam aos pedidos de esclarecimento dirigidos pelo PÁGINA UM. Ignora-se, assim, quais os factos concretos que fundamentaram esta pouco comum sanção, ainda mais relevante por se tratar de um jornalista conhecido.

    Contudo, segundo apurou o PÁGINA UM, o processo contra Andersson foi iniciado em 2024, ainda sob o mandato do anterior Secretariado da CCPJ, presidido por Licínia Girão, e a decisão final coube já ao actual Secretariado, cuja liderança permanece interina, dado o impasse na eleição de um novo presidente. Em todo o caso, Pedro Andersson tem tido uma intensa actividade extra-jornalística, promovendo podcasts e workshops, que podem ser considerados como tendo uma componente comercial. Além disso, é autor de diversos livros de literária e aconselhamento financeiro,com grande sucesso editorial, embora essa actividade não seja incompatível com o jornalismo, estando enquadrada nos direitos de autor.

    Pedro Andersson / Foto: D.R.

    De acordo com o Estatuto do Jornalista, é considerada incompatível com o exercício da profissão qualquer actividade de natureza publicitária. Este diploma especifica ainda que constitui violação a “angariação, concepção ou apresentação de mensagens publicitárias” e, de forma mais subtil mas igualmente punível, o “recebimento de ofertas ou benefícios que, não identificados claramente como patrocínios concretos de actos jornalísticos, visem divulgar produtos, serviços ou entidades através da notoriedade do jornalista”. Isto aplica-se mesmo quando não há um pagamento explícito, bastando que a acção do jornalista consubstancie um acto de marketing.

    A actividade pública de Pedro Andersson tem sido, aliás, frequentemente alvo de críticas — ainda que sem consequências disciplinares até agora — pelo modo como apresenta produtos financeiros e serviços bancários nas suas reportagens e nas plataformas digitais associadas ao seu nome. No seu site pessoal Conta Corrente, com ligações directas a conteúdos publicados pela SIC e por outros órgãos do grupo Impresa, Andersson declara que ali se exprime como “consumidor” e não apenas como jornalista. Reivindica, por isso, o direito de falar de “marcas, serviços e pessoas” quando considerar útil, assegurando que nenhum artigo é patrocinado.

    “Para mim isso não é publicidade — é informação útil”, escreve Andersson, defendendo que elogia ou critica empresas apenas com base na sua utilidade para os consumidores. Apesar disso, o próprio Estatuto do Jornalista é claro: a noção de publicidade incompatível com o jornalismo não se restringe ao patrocínio explícito, abrangendo qualquer forma de divulgação que possa beneficiar terceiros através da notoriedade do jornalista.

    O jornalista num workshop sobre finanças pessoais, no El Corte Inglés de Gaia, em Janeiro de 2024. / Foto: D.R.

    Mesmo após a multa, Pedro Andersson continua a constar na base de dados da CCPJ como titular do título profissional de jornalista. No entanto, a lei determina que, verificada uma incompatibilidade — como sucede neste caso —, o jornalista “fica impedido de exercer a respectiva actividade” e “deve depositar o seu título de habilitação”, que só poderá ser devolvido mediante prova da cessação da situação que motivou a incompatibilidade.

    Em relação à apresentação de mensagens publicitárias, o Estatuto impõe um período mínimo de afastamento de seis meses e exige que o jornalista demonstre, documentalmente, que cessou qualquer vínculo de cedência da sua imagem, voz ou nome a entidades promotoras de publicidade.

    Não é claro, neste momento, se Pedro Andersson entregou o seu título profissional — como seria legalmente exigível — nem se a CCPJ, que aplicou a sanção, fiscalizou o cumprimento dessa obrigação. Tal silêncio contrasta com o dever de transparência e rigor a que está obrigada a CCPJ, sobretudo num caso que envolve um jornalista com forte presença pública e que actua precisamente num domínio sensível como o da literacia financeira, onde a confiança do público é particularmente crítica.

    Pedro Andersson apresenta o programa ‘Contas Poupança’ na SIC e é autor de diversos livros sobre finanças pessoais. / Foto: Captura de imagem de vídeo de um programa ‘Contas Poupança’

    O caso Andersson reacende, assim, o debate sobre os limites entre jornalismo e marketing, num tempo em que a promiscuidade entre informação e promoção comercial se torna cada vez mais difícil de detectar — e, talvez por isso mesmo, mais necessária de sancionar. Ao aplicar uma sanção, mesmo modesta, a CCPJ reconhece formalmente que Pedro Andersson ultrapassou essa linha.

    Fica, agora, por esclarecer se a resposta institucional estará à altura da gravidade legal do acto praticado, ou se o caso será abafado sob o pretexto do serviço público. Afinal, o que está em causa não é apenas a conduta de um jornalista, mas a credibilidade de uma profissão já fragilizada por excessivas cedências e promiscuidades.

  • 3.500 euros: Fretes comerciais de jornalistas do Público durante a pandemia com penas leves

    3.500 euros: Fretes comerciais de jornalistas do Público durante a pandemia com penas leves

    Um debate sobre a pandemia, moderado pelo actual director do Público, David Pontes, em Novembro de 2020, foi pago pela Câmara Municipal de Penafiel – e teve como protagonista o presidente da edilidade, Antonino de Sousa. O jornal do Grupo Sonae recorreu ainda a dois jornalistas, Ana Rita Teles e Pedro Sales Dias, para comporem uma notícia sobre o evento, recebendo, por isso, um pagamento total de 7.000 euros.

    Poucos meses mais tarde, o mesmo David Pontes ‘mercadejou-se’ novamente, desta feita para prestar serviços à Ordem dos Médicos Dentistas. Então director-adjunto, Pontes voltou a assumir a componente comercial, permitindo o protagonismo de Miguel Pavão, bastonário da Ordem, numa tertúlia online, também sobre a pandemia, em que participou igualmente a então directora-geral da Saúde, Graça Freitas. Pelo frete – que incluiu uma notícia assinada pelo jornalista Mário Barros – o Público recebeu 10.500 euros.

    David Pontes, actual director do Público, esteve envolvido em dois eventos que a ERC considerou publicidade. Mas o ‘crime’ compensou.

    Três anos depois de o PÁGINA UM ter revelado estes dois contratos promíscuos, exemplo claro da mercantilização da actividade jornalística – e inseridos num conjunto de mais 54, envolvendo também a Impresa, a SIC, a Global Notícias, a Cofina (actual Medialibre) e a TIN (empresa publicitária da Trust in News) – a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) aplicou, como habitual, a mão que sabe usar para grupo de media portugueses: a mão leve.

    Com efeito, de acordo com a deliberação hoje divulgada pelo regulador – embora aprovada no passado dia 7 –, o Público terá de pagar apenas 3.500 euros de coima, e não por ter mercadejado notícias ou promovido quem paga através de jornalistas credenciados, mas unicamente porque “não inseriu as palavras ‘Publicidade’ ou as letras ‘PUB’, em caixa alta”, nos textos que promoviam, travestidos de notícias, os serviços contratados.

    Apesar de se tratar, com clareza, de uma mercantilização de serviços noticiosos – feitos apenas por pagamento, e com a participação de um jornalista da direcção editorial que se prestou a funções de marketeer –, a ERC considerou que não ficou provcado que “a Arguida [Público] tenha agido com consciência da ilicitude dos factos por si praticados”, e ainda “com vontade em publicar os artigos em causa nos autos sem a devida identificação quanto à sua natureza publicitária”. Ou seja, o regulador dos media entendeu tratar-se de uma mera negligência – um simples esquecimento.

    Em Março de 2021, David Pontes deixou brilhar o Bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas numa tertúlia online. O Público recebeu 10.500 euros.

    Ainda assim, embora considerando que essa negligência deveria ser sancionada, a ERC entendeu que seria “necessária a ponderação da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação”. Ora, como pelos fretes jornalísticos o Público arrecadou 17.500 euros, o regulador achou por bem aplicar-lhe uma espécie de “taxa de promiscuidade”, recentemente também usada no caso da Impresa. Com a referida “taxa” – formalmente denominada coima – de 3.500 euros, o Público ainda arrecadou 14.000 euros limpos.

    Este é mais um caso que contribui para a normalização da promiscuidade no jornalismo. Recorde-se que, segundo a Lei de Imprensa, toda a publicidade “deve ser identificada através da palavra ‘Publicidade’ ou das letras ‘PUB’, em caixa alta, no início do anúncio, contendo ainda, quando tal não for evidente, o nome do anunciante”.

    Porém, além de prestações de serviços a entidades públicas e privadas travestidas de notícias, praticamente todos os grandes grupos de media em Portugal têm vindo a criar áreas ambíguas – como o ‘Projetos Expresso‘, no Expresso, ou o Estúdio P e o Terroir , no Público, ou ainda o C-Studio, no Correio da Manhã – para publicar conteúdos resultantes de contratos comerciais, muitas vezes com envolvimento directo de jornalistas e directores editoriais.

    Helena Sousa, presidente da ERC: o regulador anda a normalizar a promiscuidade, e mesmo quando aplica sanções, a coima é sempre inferior ao benefício alcançado.

    Saliente-se que apenas em contratos públicos, por obrigatoriedade legal de divulgação, se consegue apanhar alguns casos de notícias e debates ‘mercadejados’ com a participação de jornalistas. Tal não se mostra possível em casos de empresas privadas, com uma única excepção: as farmacêuticas são obrigadas por lei a divulgar os apoios no Portal da Transparência e Publicidade se apoiarem órgãos de comunicação social, mas apesar de centenas de parcerias nos últimos anos não registadas, o Infarmed tem fechado os olhos.

    Importa ainda sublinhar que a Lei de Imprensa proíbe a ingerência externa nos conteúdos editoriais – o que ocorre sempre que existem parcerias comerciais em que estão envolvidos jornalistas, incluindo na produção de notícias sobre esses eventos. Mais: está vedada aos jornalistas a participação em actos publicitários. Assim, sendo os referidos eventos considerados publicitários pela ERC, conclui-se que a actuação de David Pontes – e dos demais envolvidos nas duas parcerias – configura violação do Estatuto do Jornalista. O PÁGINA UM solicitou um comentário à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista sobre este assunto, indagando se pretende adoptar alguma medida. Aguarda-se resposta.

  • Marinha confirma que ‘porco no espeto’ foi ideia que surgiu com Gouveia e Melo

    Marinha confirma que ‘porco no espeto’ foi ideia que surgiu com Gouveia e Melo

    O Estado-Maior da Armada confirmou hoje que foi Gouveia e Melo quem iniciou, em 2022, a tradição de contratar fornecimentos de porco no espeto para as comemorações do Dia da Marinha. A tradição já não é o que era: se o bacalhau sempre esteve associado aos homens do mar; agora foi substituído pelo porco no espeto. Belém que se prepare…

    Segundo respostas enviadas pelo Serviço de Comunicação da Marinha ao PÁGINA UM, a prática foi levada pelo então novo líder, Gouveia e Melo, que tomara posse em Dezembro de 2021, para comemorar o Dia da Marinha em 2022 em Faro. A compra da iguaria para esse ano não consta no Portal Base. Mas surgem para os anos de 2023, com a comezaina a realizar-se Porto, de 2024, com a patuscada a ocorrer em Aveiro, e já este ano, com o repasto a ser servido em Viana do Castelo, onde estão a decorrer as celebrações.

    Gouveia e Melo, na cidade de Faro, em 2022, nas comemorações do Dia da Marinha. Foi também o dia em que o porco no espeto virou iguaria para uma patuscada. Foto: EMA.

    Curiosamente, mesmo disponibilizando dezenas de fotografias das comemorações do Dia da Marinha — que evoca a chegada de Vasco da Gama a Calecute, em 20 de Maio de 1498, simbolizando a ligação do Ocidente com o Oriente —, nem o Estado-Maior da Armada nem a autarquia de Viana do Castelo colocam imagens do repasto.

    No entanto, segundo as indicações do ajuste directo, foram adquiridos de 8.235 euros desta iguaria, mas a Marinha não adianta quantos porcos terão sido. Indica apenas que terão servido para 1.200 pessoas.

    Este foi, portanto o quarto ano consecutivo que a Marinha decide confraternizar com porco no espeto, e escolhendo, pelo menos nos três últimos, sempre o mesmo fornecedor: a empresa unipessoal Sónia Marisa Pereira Santos, com sede em Lourosa, no concelho de Santa Maria da Feira. A empresa foi criada em Junho de 2021 e não tem qualquer outro cliente público.

    Em centenas de fotografias dos últimos quatro anos alusivas ao Dia da Marinha não surge uma única que mostre o convívio com porco no espeto.

    No ajuste directo deste ano, celebrado na sexta-feira passada, no valor de 8.235 euros (sem IVA incluído), não há contrato escrito pelo facto de o valor ser inferior a 10.000 euros. Por esse motivo, ignora-se quantos porcos foram adquiridos nem o local de entregue nem se haverá assadores e pão e vinho.

    Esta prática repetiu-se nos dois anos anteriores. No dia 10 de Maio de 2024, a Marinha fez um ajuste directo com a empresa de Lourosa, pagando 6.020 euros. Deu para 700 comensais. No ano anterior, a 16 de Maio, também foi celebrado um ajuste directo pelo valor de 5.530 euros. Deu para 600 convivas.

    A Marinha diz agora que foi realizada inicialmente “uma consulta preliminar” — que não é o mesmo que a consulta prévia prevista pelo Código dos Contratos Públicos —, mas que nos anos seguintes não se repetiu por via do “bom desempenho do fornecimento dos bens e a proximidade do local de realização dos eventos”. E defende que “o procedimento seguido é conduzido no estrito cumprimento do normativo legal atinente”.

    A arte da camuflagem: compra-se porco no espeto para comemorações, mas o repasto é feito com discrição; nunca se mostram sequer fotografias dos eventos. Foto: EMA.

    Comer porco no espeto em patuscadas com dinheiros dos contribuintes, mesmo se no âmbito de comemorações por feitos históricos, não é pratica comum. Desde 2020, além dos três contratos da Marinha, apenas surgem no Portal Base mais seis contratos para aquisição de porco no espeto: um do município do Crato, dois de Mafra e três de Oeiras. Neste último caso, a autarquia liderada por Isaltino Morais fez contratos, desde 2021, que já ultrapassam os 100 mil euros de porco no espeto, fornecido em contínuo.

    Resta saber se, numa eventual chegada de Gouveia e Melo à Presidência da República, se em vez de se realizar a já tradicional Festa do Livro, introduzida em 2016 por Marcelo Rebelo de Sousa, se passe a ter a Festa do Porco no Espeto nos jardins de Belém.

  • Chega teve melhor desempenho onde houve mais imigração? A estatística mostra que nem por isso

    Chega teve melhor desempenho onde houve mais imigração? A estatística mostra que nem por isso

    Em Outubro do ano passado, com base em dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), o PÁGINA UM assinalava uma viragem demográfica pouco discutida: em 17 concelhos portugueses, mais de um em cada 10 residentes em 2023 tinha chegado do estrangeiro nos seis anos anteriores.

    A partir de saldos migratórios acumulados, esse estudo revelou como a imigração, longe de estar confinada às grandes cidades, estava a moldar profundamente o tecido social de zonas rurais, sobretudo nos distritos de Lisboa, Santarém, Leiria e Faro.

    Perante esse contexto, a ascensão eleitoral do Chega e o seu discurso centrado na imigração colocam uma questão inevitável: a crescente presença de imigrantes nesses territórios alimentou directamente o voto no partido liderado por André Ventura no último domingo? Ou seja, terá tido o Chega melhores resultados nos concelhos com maior entrada de estrangeiros?

    Para dar resposta a esta interrogação, numa análise estatística robusta mas simplificada para efeitos de uma resposta célere, o PÁGINA UM cruzou os resultados eleitorais das Legislativas de 2025 com os 30 concelhos com maior peso relativo da imigração no período 2018-2023. O critério foi o saldo migratório acumulado nestes seis anos por concelho dividido pela população residente, conforme metodologia utilizada no artigo publicado em 3 de Outubro de 2024.

    O resultado, porém, contraria muitas narrativas simplistas: na verdade, não existe prova de qualquer relação estatisticamente significativa entre o peso da imigração e a votação no Chega nestes concelhos. Nem mesmo no sentido oposto — isto é, que maior presença de imigrantes leve a uma rejeição do discurso do partido.

    Municípios com maior peso do saldo migratório acumulado entre 2018 e 2023 em função da população residente em 2023 e desempenhos eleitorais do partido Chega Fonte: INE e resultados eleitorais das legislativas de 2025. Análise: PÁGINA UM.

    De facto, numa análise directa, até se constata que em 13 dos 30 concelhos com mais imigração o Chega foi o partido mais votado. Estão nesse lote municípios como Benavente (36,2%), Salvaterra de Magos (36,1%), Entroncamento (31,8%) e Azambuja (29,5%). O caso de Odemira, frequentemente apontado como epicentro da presença migrante sazonal no sector agrícola, regista também uma vitória do Chega com 29,6% dos votos. Contudo, o Chega ganhou em 60 municípios, e nos 17 concelhos restantes também com elevadas taxas de imigração — como Lagos, Lagoa, Ponta Delgada, Vila do Bispo, Pedrógão Grande ou Aljezur — o Chega não conseguiu vencer. Em alguns deles, ficou mesmo longe do topo pódio.

    Análises demasiado simplistas, de mera estatística descritiva podem dar indicações erróneas. Por isso, para verificar se existe uma tendência global, o PÁGINA UM comparou a média de imigração nos concelhos onde o Chega venceu e onde não venceu. Resultado: 11,15% versus 11,18%, respectivamente. Ou seja, uma diferença praticamente nula. E quando submetidas a teste estatístico formal [ por exemplo, t de Student], essas médias revelam, em linguagem técnica, que não se pode rejeitar a hipótese de que são iguais. Em suma, o voto no Chega, nos concelhos mais marcados pela imigração, não está correlacionado com o peso dessa imigração. Existirão assim outros factores.

    Mas o PÁGINA UM foi mais longe nesta análise, criando um Índice de Reacção ao Imigrante (IRI), calculado como a diferença entre a votação do Chega num concelho e a sua média distrital, dividida pelo peso da imigração nesse território. Este índice permite perceber se a votação no Chega esteve desproporcionalmente acima (ou abaixo) do que seria de esperar tendo em conta o contexto regional e migratório.

    Se o IRI for superior a 0, o concelho tem uma votação no Chega superior ao padrão distrital, considerando o seu nível de imigração, e interpreta-se como reacção acima do esperado ao fenómeno migratório. Se o IRI for inferior a 0, então é porque o concelho tem uma votação inferior ao padrão distrital, apesar do peso da imigração, devendo-se interpretar como resistência à narrativa anti-imigração ou ausência de capitalização eleitoral.

    Aqui, sim, surgem sinais de assimetrias interessantes. Municípios como Azambuja (IRI = 0,96), Benavente (0,83) e Lourinhã (0,78), mais próximos da capital portuguesa, destacam-se por apresentarem uma votação superior à média distrital do Chega apesar da elevada imigração — o que sugere uma potencial mobilização específica contra este fenómeno. Salvaterra de Magos, Alenquer, Vagos e Sabugal apresentam valores de IRI superior a 0,5.

    Pelo contrário, concelhos como Aljezur (−0,63), Vila do Bispo (−0,55), Pedrógão Grande (−0,34), Alpiarça (−0,33) e Vila de Rei (−0,30) mostram uma votação inferior ao esperado, mesmo com presença significativa de imigrantes.

    Equação do Índice de Reacção ao Imigrante aplicado à votação do Chega, criado pelo PÁGINA UM para aferir a eventual capitalização de votos para o partido de André Ventura em função dos fenómenos migratórios recentes.

    Para clarificar os perfis eleitorais, aplicou-se ainda uma análise de clusters (agrupamento de padrões), e assim os 29 concelhos (excluindo o Corvo, considerado um ‘outlier’, pela sua pequena dimensão) foram divididos em três grupos, cruzando percentagem de imigração com votação no Chega. O resultado foi revelador: alguns concelhos conjugam imigração alta com fraca adesão ao Chega, outros combinam imigração média com votação intensa, e há ainda concelhos onde a correlação é mais ténue ou inexistente.

    Ou seja, a ligação directa entre presença de imigrantes e crescimento do Chega, tantas vezes invocada em debates mediáticos e políticos, não encontra confirmação em dados concretos, embora se recomende uma análise em que sejam testados todos os municípios. Na verdade, aquilo que se observa é um fenómeno mais complexo e multifactorial, onde o contexto económico, a oferta de serviços públicos, a tradição política local e até a visibilidade de episódios pontuais de conflito ou exploração laboral pesarão, porventura, mais do que a mera estatística demográfica.

    No fundo, a realidade aponta para a desmistificação de que o crescimento do Chega é um reflexo directo e imediata da chegada de imigrantes. E mais uma vez, os números mostram aquilo que os discursos não revelam: a política, mesmo quando populista, é mais complexa do que parece.

  • Confissões de um bruxo benfiquista relapso

    Confissões de um bruxo benfiquista relapso


    Receio — e é um receio fundado — que esta crónica venha a custar-me a honra, a dignidade e até o número de sócio do Benfica. Não por ter insultado o presidente Rui Costa (ainda não o fiz), nem por duvidar da aptidão do Bruno Lage (isso já fiz, mas com elegância). O meu receio é mais grave, mais íntimo, mais pecaminoso: receio ser acusado de infidelidade mística ao Glorioso e, pior ainda, de ter facilitado, por omissão bruxuleante, o campeonato ao Sporting Clube de Portugal.

    Logo eu, que me preparo para ser condecorado com o Emblema de Prata por 25 anos de filiação ininterrupta — e, mais importante ainda, de paciência estoica. Fiz-me sócio em 2001, no dia em que Vale e Azevedo perdeu as eleições. Julguei, ingénuo, que não seria possível descer mais fundo do que aquilo. Ora, como bem sabe qualquer benfiquista com memória de pardal (como a maioria dos nossos comentadores televisivos), o Benfica consegue sempre surpreender-nos — nem que seja para pior.

    Mas o que agora confesso, com a solenidade de um herege prestes a ser excomungado, é que no passado sábado fui assistir à última jornada do campeonato ao Estádio de Alvalade, em vez de rumar à Pedreira de Braga, onde o Benfica haveria de tropeçar de cabeça na rocha minhota. Sim, estive entre os leões. E não, não fui, como devia, em missão de espionagem, sabotagem ou infiltrado benemérito. Fui por puro desleixo espiritual. E o mais grave: não usei os meus poderes.

    Sim, caros leitores. Para quem não sabe — e há sempre quem ignore o que importa — detenho conhecimentos discretos, mas eficazes, de bruxaria, via literária, adquiridos desde quando escrevi, há mais de duas décadas, Nove Mil Passos, romance em que, a páginas tantas, a estalajadeira Serafina tentou, com mais alma do que êxito, enfeitiçar o seu amado Custódio Vieira, mestre das águas do Aqueduto das Águas Livres. Se o feitiço não resultou no amor, resultou em experiência — e nisso, como nos desarmes do Aursnes e nos cruzamentos do Di María (quando lhe dá para isso), já é muito.

    Se a Serafina ficou pela tentativa, eu fui mais longe: nas minhas lides literárias, criei relações directas e cordiais com o próprio Diabo, que se prestou, em pessoa (se é que tem pessoa), a ser o narrador de dois dos meus romances: O Profeta do Castigo Divino e Corja Maldita. Ora, não sendo o Demo dado ao futebol — prefere desportos mais sanguinários como a política partidária ou a gestão hospitalar —, não deixa de prestar auxílio quando chamado. Porém, não o chamei. Usei um sucedâneo.

    Ora, o sucedâneo chama-se Mafarrico, e não é mais do que uma persona personalizada, literária e demoníaca, que criei e treino no ChatGPT. Na verdade, não se trata de um simples diabrete, mas sim de Mafarrico Leopold August von Eichenberg Montpensier, um ente de nobre linhagem com quem me divirto em tertúlias literárias e com quem troco ideias criativas.

    Se quisermos humanizar o inumanamente elegante, com ele troco ideias criativas, encontro sinónimos ou metáforas rebeldes, elimino ‘brancas’ e esquecimentos — e, não menos importante, discuto estratégias metafísicas para influenciar resultados desportivos, dentro dos limites da decência e fora da jurisdição da UEFA. Foi, pois, a ele que me dirigi na passada quinta-feira, implorando — sem falsa modéstia — bruxedos benignos, exorcismos pontuais, pequenos sortilégios de ocasião. Coisas leves. Nada que envolvesse sangue de virgem ou pactos de corrupção.

    E o bom do Mafarrico — sempre solícito — lá me expôs o seu rol de receitas: sugeriu-me, em primeiro lugar, virar uma vela verde ao contrário e mergulhá-la num copo de vinagre, como forma simbólica de cortar a sorte leonina com a acidez própria dos destinos contrariados; depois, recomendou-me a construção de um leão de papel com patas de galinha — escárnio zoológico eficaz —, para ser estrategicamente escondido debaixo da cadeira onde assistiria ao jogo, de modo a retirar bravura à fera e incutir-lhe a cobardia penugenta do galináceo.

    A seguir, propôs que escrevesse “Guimarães campeão” sete vezes num papel preto — o número não era acaso, claro está — e que o queimasse com mirra, espalhando depois as cinzas sobre um cachecol do Sporting, para ungir os minhotos com um fervor sagrado. Por fim, aconselhou que pendurasse um cacho de uvas verdes, virado ao contrário, dentro do elevador de acesso à bancada da imprensa: símbolo de queda iminente e de que os frutos da glória sportinguista ainda estavam por amadurecer.

    Receitas simples, eficazes, isentas de crime e de pecado mortal, embora talvez roçando a venialidade supersticiosa. Ora, mas fiz eu alguma destas coisas? Não fiz!

    E porquê? Por cobardia? Por esquecimento? Não, pior: por vaidade faústica. Tive receio de que, ao usar tais meios, acabasse como o bom do Fausto — enriquecido de poderes, mas depois arrastado para o Inferno com cláusulas que não lera em letra pequenina. O Diabo, como sabemos, tem um excelente advogado. E eu não queria acabar, por uma vitória no campeonato, condenado a escrever crónicas de opinião política para a CNN Portugal ou, pior ainda, para o Público.

    E assim me abstive. Não invoquei o Diabo, não acendi velas, não queimei papéis, não inverti uvas. Fui incompetente. Fui pusilânime. E por minha culpa — minha tão grande culpa — o Sporting foi campeão e o Benfica tropeçou na Pedreira como quem escorrega numa casca de banana do Lidl.

    Não venham agora dizer que foi o Pote ou o Gyökeres por terem marcado contra o Guimarães na segunda parte. Não me falem da incompetência do Pavlidis ou do Bruno Lage, ou das tibiezas do António Silva. Não culpem os empates e as derrotas ridículas. A culpa foi minha!

    Tive ao meu dispor um arsenal de mezinhas, simpatias e sortilégios de primeira linha e nada fiz. E por isso me penitencio. E por isso escrevo esta crónica, à laia de confissão pública, para que saibam todos — sobretudo os benfiquistas de coração — que o Diabo me perdoe, mas fui fraco.

    Se me quiserem agora expulsar de sócio, que o façam. Farei como Dante: descerei ao Inferno e regressarei mais forte. Porque já prometi ao Mafarrico, ao verdadeiro, que no próximo domingo no Jamor não falharei. Se for preciso, vendo a alma por aquele caneco. Ou melhor: alugo-a, com cláusula de recompra, desde que o Benfica vença.

    Porque uma Taça é uma Taça. E eu, penitente ou não, já sou do tempo em que o Benfica ganhava sempre — mesmo quando jogava mal.

  • Lisboa não é Portugal: como a cegueira elitista urbana alimenta a ruptura politica no país real

    Lisboa não é Portugal: como a cegueira elitista urbana alimenta a ruptura politica no país real


    Mais do que a confirmação de não ser necessária a ética para se ser primeiro-ministro em Portugal – com a vitória em minoria (39% do Parlamento) de Luís Montenegro –, as eleições legislativas de ontem deixaram claro que o país político que habita a cidade de Lisboa está cada vez mais desligado do restante território nacional. A velha máxima “Portugal é Lisboa, e o resto é paisagem” já não tem graça — tornou-se um diagnóstico clínico da arrogância das elites urbanas, políticas e mediáticas, sobretudo à esquerda do Partido Socialista, que vivem encerradas nas suas redomas ideológicas, incapazes de compreender os sinais de desconforto e insatisfação que se acumulam há anos fora da capital política e mediática.

    A evolução entre os resultados eleitorais de 2024 e 2025 no concelho de Lisboa e no país – e mesmo na Área Metropolitana de Lisboa – é reveladora dessa dissonância. E não tanto pelo chamado Bloco Central, que governa alternadamente desde 1975, e que pragmaticamente não são assim tão diferentes na praxis política. Na capital, é certo que estas forças partidárias desceram, no seu conjunto, de 58,52% no ano passado para 54,95%, mas não fogem muito do desempenho nacional: no ano passado, o Bloco Central registou 56,84%, enquanto este ano ficou, por agora, nos 56,10%.

    Mariana Mortágua, ontem a votar: um hara-kiri político quando se olham para os problemas do país com ideologite. Foto: BE

    No caso do Chega, a sua votação no concelho de Lisboa é francamente pior do que no global do país. No ano passado, o partido de André Ventura teve apenas 11,73% na capital, quando teve 18,07% no país (diferença de 6,34 pontos percentuais); ontem, contabilizou 14,53% em Lisboa e 22,56% no país (8,03 pontos percentuais).

    A grande diferença está no facto de, em Lisboa, existir uma forte presença dos partidos da ‘esquerda alternativa’ – a denominação que prefiro; ou ‘radical’, como muitos lhes chamam –, ou seja, no Livre, Bloco de Esquerda e PCP. Estes partidos, e o seu eleitorado urbano, conseguiram suster o crescimento da simplificadamente chamada ‘extrema-direita’ sem se aperceberem das mudanças sociais, dos desafios, das necessidades do país, porque já não saem sequer das suas freguesias e da sua bolha. Atacam com eficácia o ‘papão da extrema-direita’ que gravita nos media, mas não criaram condições para atacar os problemas sociais e económicos que alimentam o dito ‘papão’.

    Senão vejamos: no concelho de Lisboa, o Chega continua com ‘dificuldades’ de penetração, porque a ‘esquerda alternativa’ mantém os seus bastiões. Nas eleições de ontem, no seu conjunto, Livre, Bloco de Esquerda e PCP conseguiram 15,76%, superando os 14,53% do partido de André Ventura. Repetiram 2024: Livre, Bloco de Esquerda e PCP tiveram na capital 16,25% dos votos; o Chega ficou então pelos 11,73%.

    Luís Montenegro, vitória com 39% dos deputados no Parlamento, confirma que a ética se afastou definitivamente da política. Foto: PSD.

    No entanto, Lisboa é um excelente exemplo do falhanço da ‘esquerda alternativa’ – porque do Bloco Central não se pode esperar muito perante o esgotamento de 50 anos de ‘serviços’ prestados à Nação. Achar que as questões de segurança e de imigração – os bastiões do Chega – são falácias e meras percepções, ou que são discursos xenófobos ou racistas, encerrando-se o tema colocando-o como tabu, foi um dos erros crassos da esquerda.

    E basta olhar para algumas freguesias, colocando uma singela pergunta: qual a razão para que, mesmo em Lisboa, na elitista freguesia de Belém, o Bloco Central tenha contabilizado 59,78% e o Chega apenas 9,95% (ficou em quarto, atrás da Iniciativa Liberal), mas em Marvila o partido de André Ventura tenha vencido com 31,09%, tendo o Bloco Central registado apenas 47,08%? Ou então, como é possível a ‘esquerda alternativa’, tradicionalmente mais preocupada com os injustiçados, conseguir menos eleitores na ‘marginalizada’ Marvila (10,96%) do que nas abastadas freguesias de Belém (12,91%), Campo de Ourique (15,71%) e Avenidas Novas (14,21%)?

    O fenómeno de perda de noção do país por parte de uma certa clique política, social e da comunicação social lisboeta adensou-se com a crescente endogamia profissional, cultural e ideológica. Os jornalistas e opinion makers vivem e trabalham nos mesmos bairros, frequentam os mesmos círculos sociais e partilham códigos morais e linguísticos que os afastam da maioria da população. Esta homogeneidade de visões faz com que, mesmo sem má-fé, olhem para o país a partir de uma lente distorcida. Incapazes de escutar o que se diz nas ruas de Marvila, nos subúrbios de Sintra ou nas praças de Beja, produzem análises e manchetes que apenas confirmam o que já pensavam antes de sair da redacção — se é que saem.

    Rui Tavares: Livre reforçou a sua presença no Parlamento num contexto de perda de influência da ‘esquerda alternativa’, e ganhando votos sobretudo nas zonas mais elitistas. Foto: Livre.

    Os resultados estão agora à vista. Basta atravessar o Tejo ou afastar-se alguns quilómetros do Marquês de Pombal para ver como o país já está divorciado de Lisboa. No próprio distrito da capital, o Chega foi o partido mais votado em cinco concelhos: Alenquer, Azambuja, Sintra, Sobral de Monte Agraço e Vila Franca de Xira — este último com mais de 26% dos votos. Ou seja, a escassos 30 minutos da capital, o Chega ultrapassa largamente os 14,5% obtidos no concelho lisboeta, chegando em alguns casos a mais do dobro da sua expressão na cidade.

    No distrito de Setúbal, o cenário é ainda mais paradigmático: o Chega venceu o distrito e foi o partido mais votado na Moita, Montijo, Palmela, Seixal, Setúbal, Sesimbra e Sines. São territórios urbanos e suburbanos densamente povoados, com historial de voto tradicionalmente à esquerda, agora convertidos em bastiões de um partido que tem como bandeiras a segurança, a imigração e o combate à corrupção. O Chega venceu também em Faro – como já ocorrera no ano passado, o que mostra que não foi um acaso –, em Portalegre e até em Beja. Não é o “Portugal profundo” que está a mudar — é o país metropolitano não lisboeta que se revolta contra uma elite urbana que o ignora sistematicamente.

    É aqui que reside o problema. A comunicação social, enraizada quase exclusivamente em Lisboa, e que tem como estratégia brandir o ‘bicho-papão’ da ‘extrema-direita’, continua a olhar para o país com lentes deformadas. Ignora ou menospreza os temas que verdadeiramente mobilizam milhões de eleitores, sobretudo fora dos grandes centros urbanos mais ricos. Pior: quando esses temas emergem com força eleitoral — como a imigração e a segurança — são imediatamente classificados como “discursos de ódio”, “populismo” ou “alarmismo”. Esta resposta reflexa, moralista e simplificadora não só revela uma profunda incompreensão da realidade, como também contribui para o crescimento do fenómeno que se pretende combater.

    Apenas três anos depois da mairia absoluta de António Costa, em Janeiro de 2022, o Partido Socialista tem o pior resultado das últimas quatro décadas e arrisca nem sequer liderar a Oposição. Foto: PS.

    É um erro crasso da esquerda política e comunicacional pensar que pode derrotar o Chega silenciando as suas bandeiras. A segurança e a imigração não são fantasmas inventados por agitadores — são preocupações reais, mesmo que nem sempre sustentadas por estatísticas. E, em política, como se sabe, as percepções são quase tão relevantes como os factos. Quando uma família em Loures sente medo de sair à noite, ou quando um trabalhador rural no Alentejo vê os salários a baixar devido à exploração de mão-de-obra estrangeira em condições precárias, não adianta dizer-lhe que tudo está dentro dos parâmetros europeus. A sensação de insegurança e injustiça instala-se. E quem a vocaliza com clareza ganha terreno.

    A esquerda urbana, em vez de enfrentar estas questões, refugia-se numa superioridade moral que aliena os eleitores. Fala de inclusão, diversidade e cosmopolitismo com o fervor de quem nunca precisou de partilhar um hospital público superlotado ou de viver em zonas onde o Estado já mal chega. Esta esquerda prefere desconstruir conceitos a resolver problemas, prefere aulas sobre “privilégios inconscientes” a propostas sobre habitação acessível promovida pelo Estado (e não tectos mno arredamento) ou policiamento de proximidade.

    Se quer recuperar influência junto do eleitorado popular, a ‘esquerda alternativa’ precisa de abandonar a sua torre de marfim e olhar o país nos olhos. Isso significa tratar a segurança como uma prioridade legítima — mesmo que, em muitos casos, o problema seja mais de percepção do que de realidade. Significa também promover um debate sério sobre imigração, livre de dogmas e preconceitos, que reconheça as necessidades económicas do país, mas também a pressão social que uma imigração mal gerida pode causar. E mais: sobre as condições desumanas em que vivem muitos destes imigrantes. É preciso encontrar um equilíbrio entre integração e exigência, entre acolhimento e responsabilidade, entre as condições de vida dos imigrantes e os direitos das populações locais.

    André Ventura: líder da extrema-direita, populista ou aproveitador da insatisfação? Quaisquer que sejam as causas do crescimento do Chega, o país está a divorciar-se das elites. Foto: Chega.

    Ignorar estes temas só serviu e servirá para os entregar de bandeja a quem os instrumentaliza com discursos fáceis. E não basta agora correr atrás do prejuízo com campanhas de fact-checking ou projectos de literacia mediática. O eleitorado não é estúpido nem manipulável ao sabor dos moralismos do momento. É informado, é atento, sente na pele o que vive, e sabe distinguir quem lhe fala com frontalidade de quem o trata como incapaz de compreender o que se passa à sua volta.

    O resultado das legislativas de ontem prova ainda o esgotamento do bipartidarismo tradicional, e isto também não são boas notícias para os partidos da ‘esquerda alternativa’, sobretudo se ficarem abaixo dos 10% ou, pior ainda, dos 5%, porque o método de Hondt os aniquila. Com a ascensão do Chega, o Bloco Central resiste, mas enfraquece: PSD e PS, juntos, valem hoje pouco mais de metade dos votos. O crescimento do Chega, a par da agonia do PCP, da irrelevância do BE e da (ainda) fragilidade do Livre e da Iniciativa Liberal, demonstra que os eleitores estão à procura de alternativas. Não se trata apenas de uma mudança de nomes — é uma exigência de respostas concretas. O eleitorado quer menos retórica e mais soluções, menos censura moral e mais escuta activa.

    É sintomático que os círculos de opinião mais activos nos media continuem a defender que o país sofre de um “problema de populismo”. Aquilo de que o país sofre, na verdade, é de um problema de elitismo urbano. Um elitismo que acha que votar Chega é uma aberração moral, mas que aceita como natural viver num país onde o acompanhamento médico se degrada, onde a escola pública está em colapso, onde os salários não chegam para pagar rendas nem alimentação, onde não há vigilância policial e o pequeno crime (que nem chega às estatísticas) prolifera até ameaçar ser grande, e onde os gastos públicos absurdos e sem transparência são um convite para a corrupção. A indignação selectiva é um luxo de quem pode escolher os seus problemas. O povo não pode.

    Partido Comunista Português: eleição após eleição, apenas fica satisfeito por sobreviver. Ver o Chega vencer em Beja e Setúbal é sobretudo um sinal da sua perda de capacidade de responder a uma população diviorciada das elites políticas. Foto: PCP.

    O Parlamento que agora se forma é mais plural, mais fragmentado e, paradoxalmente, mais representativo. Resta saber se os partidos que perderam influência saberão fazer a sua própria reflexão. A ‘esquerda alternativa’, em particular, que perdeu uma oportunidade de crescer em 2024 – mas não quis criticar o PS para então não fazer crescer o peso relativo do Chega –, tem de decidir se quer continuar a falar para si própria — ou se quer voltar a ser relevante para o país. A comunicação social, por sua vez, precisa de reencontrar a sua função: não é catequizar o eleitorado, mas informá-lo com rigor, escutá-lo com respeito e servi-lo com humildade.

    Se Lisboa continuar a querer falar sozinha, continuará a não ser ouvida. E Portugal seguirá o seu caminho — com ou sem ela. Nisto, há uma enorme virtude na democracia: Lisboa, e as suas elites, já não valem nada, embora tenham muito tempo de antena no media. Ou melhor, proporcionalmente, valem somente o seu peso demográfico. Nada mais.