Autor: Pedro Almeida Vieira

  • Um (bom) concerto entre telemóveis e gritos

    Um (bom) concerto entre telemóveis e gritos

    Perceba-se: um tipo anda já a meio dos cinquenta, com ares de respeitabilidade — pouca, é certo, porque o cabelo comprido não ajuda — e com o peso da idade a cair-lhe nos joelhos e nas pálpebras, e de repente dá por si a enfiar-se no Meo Arena para ver Shawn Mendes. Sim, Shawn Mendes, um rapaz com metade da minha idade, de apelido português, mas canadiano de nascença, que canta baladas capazes de fazer suspirar uma geração que poderia ser filha (ou, pior ainda, neta) deste escriba.

    É a vida a passar e a passear-se. Os de hoje têm Shawn Mendes como nós tivemos George Michael na fase dos Wham! — pré-metafísica de Jesus to a Child — ou até Rick Astley, com aquele pop asseado que parecia saído de uma lavandaria britânica. E se quisermos rebobinar a cassete para os anos 90, o paralelo mais directo será talvez Robbie Williams na transição dos Take That para a carreira a solo — ainda sem o sarcasmo autodestrutivo — ou o Bryan Adams de (Everything I Do) I Do It for You, que fez suspirar meio planeta. Há até uma pontinha de Glenn Medeiros, também ele de raízes lusitanas, para quem se lembra de ouvir Nothing’s Gonna Change My Love for You nas rádios de 1987.

    João Padinha / Everything is New

    Aliás, o sucesso de Shawn Mendes em solo português não deixa de ter graça: há aqui uma espécie de herança lusófona que faz lembrar Nelly Furtado nos anos 2000, esse orgulho luso-canadiano que conquistou os tops mundiais like a bird.

    Cheguei ao concerto quase às cegas: conhecia três ou quatro músicas, mas confesso que não saberia entoar o refrão de nenhuma. E aterrei, sem ver as actuações da belga Lubiana e da portuguesa Maro, num mar de adolescentes e jovens adultos, talvez 95% mulheres — os outros 5%, presumo, seriam namorados resignados — e esperei para ver o que dali saía.

    Antes de Shawn Mendes aparecer, depois da entrada dos músicos, concebi um título possível da crónica: Um concerto de telemóveis e (de) gritos. Os telemóveis formaram uma maré luminosa constante — grava-se tudo, mesmo que se veja pouco — e os gritos surgiam em modo sirene, sobretudo cada vez que o rapaz sorria, dizia “Lisboa” ou pegava na guitarra. Confesso: para quem está ali apenas para escrever uma crónica sociológica, quase como um extraterrestre, há encanto nisto. Mas também fica a sensação de que estamos num karaoke gigante: as fãs cantam tão alto que às vezes quase não se percebe se o homem canta mesmo bem ao vivo. Suspeitei logo no início que sim, mas só nas baladas mais intimistas consegui confirmar.

    João Padinha / Everything is New

    O concerto abriu com um foguetório e There’s Nothing Holding Me Back, e Mendes tomou conta do palco com uma naturalidade desarmante: calças largas, colete negro, um sorriso de fazer corar as adolescentes. O som esteve sempre coeso, a banda entusiasmada, e o alinhamento trouxe alguns temas que já conhecia: Wonder, Treat You Better, Monster, Lost in Japan em modo disco, e, inevitavelmente, Señorita, com as fãs a cantar de forma ensurdecedora.

    E pelo meio, uma ligação genuína ao público. Mendes falou da família, disse sentir-se “em casa”, embora sem dizer uma frase em português, vestiu a camisola 21 em homenagem a Diogo Jota — uma espécie de ritual de ligação a Portugal — e até deixou cair umas palavras sobre Gaza, apelando ao fim do ódio e à escolha do amor. Foi o momento político da noite, relevante para uma plateia que talvez não siga de perto o que se passa no Médio Oriente.

    Entre as músicas novas e as “velhas glórias” — não são assim tantas, que o rapaz tem apenas 27 anos —, Shawn Mendes equilibrou intimismo e espectáculo, emoção e energia. O cenário foi minimalista, sem grandes parafernálias, mas eficaz: uso ponderado dos ecrãs, fogo-de-artifício na medida certa, nada de Las Vegas, mas o suficiente para dar aquele sabor de noite grande.

    Foto: Pedro Almeida Vieira

    Na recta final, a sequência If I Can’t Have You, Why Why Why e In My Blood levou o público ao delírio, culminando com confettis, bandeiras de Portugal e a deliciosa ironia de sair ao som de Uma Casa Portuguesa. Há programadores de setlist que merecem um abraço só por estas ideias.

    Saí do Meo Arena surpreendido: não porque sobrevivi sem perda auditiva permanente, mas porque percebi que Shawn Mendes tem mais estofo do que a simples máquina de hits pop faria supor. Tem carisma, voz, uma ligação genuína aos fãs e uma presença de palco que não se aprende nos reality shows. Tem, acima de tudo, uma coisa rara no mundo do mainstream: autenticidade. E, por entre telemóveis erguidos e gritos esganiçados, é isso que um bom concerto deve mostrar.

    Nota final: 4 em 5.

  • Filipe Alves: um homem sem bastão, ou pequeno ensaio etimológico

    Filipe Alves: um homem sem bastão, ou pequeno ensaio etimológico


    Confesso um vício, e dos assumidos com gosto: tenho verdadeira devoção pelas querelas oitocentistas, essas em que o florete era extensão do espírito e a pena um prolongamento da lâmina. Era o tempo em que se travavam duelos com a gramática e se vencia pela argúcia da frase, pelo requinte da ironia e pelo poder fulminante de uma boa citação latina. Foi esse o tempo em que Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, com as suas Farpas, rasgavam o tecido podre da sociedade lisboeta, expondo-o ao ar livre para que apodrecesse de vez.

    Ora, foi nesse estado de espírito — meio filólogo, meio panfletário — que há dois dias procurei uma palavra que fizesse justiça ao comportamento do director do Diário de Notícias, Filipe Alves. Não me bastava uma injúria vulgar, era preciso a exactidão cirúrgica da etimologia. E encontrei-a: imbecilis – ou seja, imbecil. O termo chocou muitos, mas explico: é palavra antiga, nascida do latim, que designava aquele que anda sem baculum, sem bastão, sem apoio. De outra forma, diz-se do fraco, daquele que não tem com que se amparar. Usei-a, confesso, com o mesmo prazer com que Eça se deliciava a chamar “burro” a certas excelências parlamentares — mas também com o rigor do filólogo que sabe que, ao fazê-lo, está a acertar no nervo.

    Filipe Alves, director do Diário de Notícias.

    E como não chamar imbecilis a quem, numa compreensível sanha, usou as páginas de um jornal com 160 anos para lançar lama — lama vã, diga-se — sobre mim e sobre o PÁGINA UM? Não bastou uma vez: insistiu, voltou a insistir – e ainda ontem à noite voltou à carga num artigo de opinião, usando o título de director do Diário de Notícias – como quem crê que a repetição transforma calúnia em verdade.

    E tudo isto porque, num orçamento anual de 60 mil euros do PÁGINA UM, fruto de milhares de pequenos donativos de leitores, ele vê “evidência” de falsos recibos verdes e até de esquemas com vista a fugir-se ao fisco. Por 6 mil euros recebidos em 22 meses – coisa que ele omite numa microempresa de contas certas, sem passivo (que ele também omite) e que até paga IRC porque nunca apresentou prejuízos (mas não faz distribuição de lucros). A bagatela transformada em escândalo, o nada elevado à categoria de crime de lesa-fisco.

    Não é o dinheiro que está em causa — é a desonra do método. É a acusação sem florete, a tese sem aço, o argumento sem bastão. Filipe Alves empunha um jornal com nome respeitável como quem empunha um galho podre, e julga que é lança. Mas não é lança, é vime. Sem um fiscalista, um jurista, alguém que lhe sustente a pífia sanha contra os alegados crimes do PÁGINA UM.

    Daí o epíteto: Filipe Alves é um homem sem bastão – é um imbecil, por não ter argumentos que o sustentem: sem a espinha dorsal do Direito, sem a musculatura dos factos, sem a firmeza da lógica. Apenas com a fúria de quem precisa de encher páginas e encontrar um inimigo conveniente que faça esquecer os pecadilhos e os grandes pecados do seu patrão, a Global Notícias, com prejuízos acumulados de 78 milhões de euros, falência técnica com capitais próprios negativos e sem contas públicas apresentadas, evitando assim que se saiba em quanto vão as dívidas ao Estado.

    E, como se não bastasse, regressa sempre com a mesma ladainha, o mesmo eco surdo, a mesma prosa de conventículo. Regressa escudado nas páginas de um Diário de Notícias que já não é tribuna de ideias, mas boletim de liquidação. A decadência deixou de ser metáfora e passou a ser rubrica contabilística.

    Perante isto, dou por mim a parafrasear livremente Sá de Miranda, com a irreverência de um folhetinista de oitocentos: “Que farei quando um burro é um asno?” Porque é exactamente isto que vejo: um jornal que outrora foi praça pública transformado em chiqueiro; um director que, em vez de argumentar, zurra; uma instituição que, em vez de claridade, serve penumbra.

    E se o Diário de Notícias, os seus accionistas e os seus leitores se resignam à agonia, eu não me resigno. Continuarei a empunhar o florete da palavra, a rasgar a mortalha de um jornalismo que morre de inanição intelectual, e a lembrar que a honra de um periódico não se mede pela sanha contra quem ousa investigar, mas pela coragem de fazer o mesmo.

    Se o Diário de Notícias e os seus jornalistas – que deveriam questionar o seu director sobre o modus operandi da sua peça –, já não sabem o que isso é, paciência: ficarão nos rodapés da História. Nós, no PÁGINA UM, ficaremos na legenda — e com o bastão inteiro.

  • Acção popular histórica contra a Google avança (mesmo) nos tribunais portugueses

    Acção popular histórica contra a Google avança (mesmo) nos tribunais portugueses

    Não morreu na praia, como sucedeu com outros processos similares: foi mesmo admitida por uma juíza do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e está a avançar formalmente. A associação Ius Omnibus – que reúne vários docentes e investigadores portugueses e estrangeiros – conseguiu que os tribunais portugueses aceitassem uma acção popular contra a Alphabet Inc. (dona da Google) e três subsidiárias, incluindo a portuguesa, pedindo que sejam declaradas ilícitas as práticas de vigilância e tratamento de dados pessoais que a empresa vem realizando desde Março de 2012.

    O sinal de que a acção foi aceite surgiu com a publicação de um edital, afixado no dia 11 deste mês, que marca formalmente a fase em que todos os interessados – incluindo consumidores com mais de 13 anos que tenham usado produtos ou serviços da Google – são chamados a intervir no processo. Dispõem de 30 dias para aderir à causa da Ius Omnibus ou para apresentar oposição, embora o prazo se estenda por todo o mês de Setembro, em virtude das férias judiciais que apenas terminam neste domingo.

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    Na prática, para o cidadão comum, um edital desta natureza é um acto de publicidade judicial: é a forma de o tribunal tornar pública uma acção que visa interesses colectivos, permitindo que todos os titulares desses interesses se juntem ao processo. Neste caso, o tribunal informa que os utilizadores da Google em Portugal, que se sintam lesados pelas práticas da gigante tecnológica, podem associar-se a um litígio que, se for decidido a favor da associação, poderá obrigar a Google a alterar as suas políticas de privacidade e a indemnizar os consumidores.

    A citação judicial identifica a Alphabet e as três subsidiárias – Google LLC, Google Ireland Limited e Google Portugal – e permite que qualquer pessoa que tenha usado produtos da Google desde 2012 — Gmail, YouTube, Android, Google Maps ou mesmo o motor de pesquisa — e que entenda ter visto a sua privacidade violada, possa intervir no processo.

    O pedido da Ius Omnibus – criada em 2020 e actualmente presidida por Lena Hornkohl, professora alemã de Direito Europeu na Universidade de Viena – é vasto e ambicioso, constituindo a mais abrangente acção judicial movida em Portugal contra uma big tech. A associação sustenta que a Google desenvolveu ao longo dos anos uma verdadeira máquina de vigilância, capaz de penetrar na vida quotidiana dos consumidores, criando perfis detalhados dos seus hábitos, gostos e localizações. Afirma que a política de privacidade de 2012 — e a sua revisão em 2016 — foi desenhada para associar e cruzar dados de todos os serviços da empresa, permitindo a monitorização constante dos utilizadores, com o objectivo de maximizar lucros através da publicidade personalizada.

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    Nessa medida, o tribunal é chamado a declarar que tais práticas violam o princípio da minimização de dados, o direito à autodeterminação informativa e a própria Constituição, por colocarem em causa a liberdade e a privacidade dos cidadãos. A petição acusa ainda a Google de utilizar “técnicas de concepção enganosas” (deceptive design patterns) para induzir os utilizadores em erro, levando-os a aceitar partilhas de dados que, se adequadamente informados, não aceitariam. São apresentados exemplos concretos: a manutenção do histórico de localização mesmo após o utilizador desactivar a função; a opacidade do chamado “modo de navegação anónima” do Chrome — que afinal não impede a recolha de dados — e a utilização de janelas de interface que induzem os consumidores a clicar em botões que permitem rastreamento. A associação denuncia também práticas comerciais enganosas, como a suposta “gratuitidade” dos serviços que, na realidade, se pagam com dados pessoais.

    Do ponto de vista jurídico, trata-se de uma acção popular com efeitos potencialmente estruturantes: se o tribunal reconhecer que a Google recolheu e transferiu dados para os Estados Unidos sem garantias adequadas de protecção, isso poderá abrir caminho a uma decisão com impacto europeu, semelhante aos casos “Schrems I” e “Schrems II” no Tribunal de Justiça da União Europeia, que invalidaram os mecanismos de transferência de dados entre a União Europeia e os EUA. A Ius Omnibus pede que se declare que houve violação sistemática das obrigações de informação, de consentimento e de limitação de finalidades – princípios basilares do Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD).

    O edital agora publicado é mais do que um aviso: é uma convocatória cívica. Concede 30 dias para que os utilizadores se pronunciem, podendo intervir no processo e reforçar a representatividade da acção. Caso nada façam, serão considerados representados pela associação, o que significa que uma eventual decisão favorável os poderá beneficiar automaticamente. O aviso judicial lembra, contudo, que a constituição de advogado é obrigatória, e o processo seguirá a tramitação de uma acção comum, com produção de prova, audição de testemunhas e eventual condenação da Google.

    Em Portugal, a Google tem sede na Rua Duque de Palmela, em Lisboa, curiosamente no edifício que alojou o Expresso até 2021. Foto: Idealista.

    Independentemente do desfecho, esta iniciativa marca um momento de afirmação do direito colectivo à privacidade em Portugal: nunca antes um tribunal português foi chamado a pronunciar-se de forma tão ampla sobre o modelo de negócio de uma gigante tecnológica. Para a Google, está em causa não apenas a imagem pública, mas a própria base da sua actividade – a recolha e exploração massiva de dados pessoais como motor da economia digital. Para os consumidores, é a oportunidade de sujeitar a escrutínio judicial práticas que, durante anos, foram aceites como inevitáveis.

    A batalha começa, porém, agora – e Portugal pode tornar-se palco de uma das decisões mais relevantes na defesa dos direitos digitais na Europa.

  • Conselho consultivo não deu qualquer aval à reforma do Governo para a Ciência

    Conselho consultivo não deu qualquer aval à reforma do Governo para a Ciência

    O relatório de 35 páginas entregue pelo Conselho Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (CNCTI) ao Governo um relatório de 35 páginas não dá qualquer aval nem sequer se pronuncia sobre a estratégia de Fernando Alexandre, ministro da Educação, Ciência e Inovação, de fundir a Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) com a Agência Nacional de Inovação (ANI), operação que dará origem à anunciada Agência para a Investigação e Inovação (AI2).

    Ao contrário do que insinuou e titulou o jornal Público na edição de ontem, o órgão consultivo limitou-se a traçar um retrato detalhado do sistema científico e tecnológico português, mas limita-se a elencar virtudes e debilidades do ‘ecossistema científico’, propondo linhas de orientação gerais, mas não subscreve o modelo institucional que o Governo Montenegro quer impor.

    Fernando Alexandre, ministro da Educação, Ciência e Inovação.

    O relatório do CNCTI, analisado pelo PÁGINA UM, sem data e sem qualquer referência se foi aprovado em plenário ou elaborado por alguma das seis comissões que o integram, até faz questão de reconhecer que “o ecossistema português de investigação e inovação revela-se coeso, articulado e completo, com instrumentos e instituições que cobrem todas as fases do desenvolvimento tecnológico”, acrescentando que “esta diversidade, quando bem coordenada, constitui uma alavanca estratégica para o reforço da competitividade, a transição para uma economia baseada no conhecimento e a resposta eficaz aos grandes desafios sociais, ambientais e tecnológicos, do presente e do futuro”.

    Sublinhando ainda que a ciência nacional possui qualidade reconhecida internacionalmente”, o relatório analisa também o papel, além da FCT e da ANI, do IAPMEI, que não será mexido pelo Governo caso avance com a fusão. Nem a fusão incide em medidas estruturais que são desenvolvidas por outras entidades do ecossistema científico, nomeadamente a AICEP – Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal, o Banco de Fomento e as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento
    Regional (CCDR), que, refere o relatório, “assumem papel importante na internacionalização e no financiamento”.

    O relatório destaca mesmo que a situação actual, tripartida, “revela um distribuição funcional coerente e complementar, na qual a FCT assegura a base científica e os recursos humanos, a ANI promove a articulação entre ciência e economia, e o IAPMEI apoia a consolidação da inovação em ambiente empresarial”.

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    E diz ainda que “no seu conjunto, estes instrumentos visam cobrir todo o ciclo de inovação, desde a geração do conhecimento até à sua valorização económica”, ressalvando apenas que “a eficácia do sistema depende fortemente da sua coordenação estratégica, da simplificação dos processos de acesso e da capacidade de resposta às necessidades reais dos investigadores, empresas
    e empreendedores”

    Estas passagens, ignoradas pela notícia do Público, desmontam a tese de que o relatório se resume a identificar falhas que só uma fusão poderia sanar. É verdade que o parecer identifica problemas sérios de governação, destacando, entre outros, a “fragmentação institucional, sobreposição de funções e falta de coordenação estratégica”, referindo ainda que “nem sempre o ecossistema [científico] é capaz de justificar os investimentos realizados com resultados concretos, visíveis, sustentáveis e significativos”. Contudo, em nenhum momento se afirma que a resposta a estas fragilidades passe por extinguir a FCT ou a ANI.

    Pelo contrário, a análise aponta para caminhos amplos para se aproximar dos modelos irlandês e neerlandês: “Para que Portugal possa ascender a um patamar superior de desempenho, será fundamental evoluir de um ecossistema disperso e centrado na produção científica para um modelo coordenado, focado em missões, e fortemente orientado para a criação de valor económico, social e ambiental”. Ou seja, mais do que a engenharia institucional preconizada pelo ministro Fernando Alexandre, o que o relatório reclama é clareza estratégica e coordenação eficaz.

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    Uma das críticas à fusão é o receio de haver uma centralização dos apoios á Ciência quase em exclusivo à investigação aplicada.

    Curiosamente, o CNCTI adverte que as transformações devem ser avaliadas pelo impacto real e não por anúncios políticos, criticando o facto de não existirem “instrumentos transversais e consistentes de avaliação do impacto, dificultando a monitorização das políticas públicas de ciência e inovação,”, sugerindo indicadores e métrica, sem os quais “a melhoria contínua e a responsabilização tornam-se inviáveis”.

    O contraste entre o relatório e a leitura política é, por isso, flagrante pela leitura da notícia do Público, que se limitou a citar declarações de Carlos Oliveira, presidente do CNCTI, e transformou um parecer analítico num suposto “aval” à estratégia governamental. De facto, ao escrutinar o texto integral, torna-se claro que o órgão consultivo não se compromete com a fusão nem valida a narrativa do ministro. Aliás, o parecer insiste na palavra articulação, repetida por 26 vezes, entre as diversas entidades. Quanto à palavra ‘fusão’ nem por uma vez surge.

  • Filipe Alves, o imbecil inútil

    Filipe Alves, o imbecil inútil


    O director do Diário de Notícias, Filipe Alves, encomendou a si próprio – para garantir o “controlo de qualidade” – uma prosa onde, com a asinina vontade de difamar o PÁGINA UM, e sobretudo de me atingir, se aventurou no campo do Direito do Trabalho e da Fiscalidade com a mesma perícia com que um jumento tenta ler Kant. Entre descaradas omissões do que lhe transmiti e enviesamentos de monta, vejamos, ponto por ponto, o seu brilhante exercício de imbecil e inútil ignorância.

    Disfarçado de análise isenta, Filipe Alves coloca lado a lado três projectos jornalísticos: mas só o PÁGINA UM é empresa — e, por isso, sujeito a especiais deveres de transparência contabilística; só o PÁGINA UM exibe verdadeira sustentabilidade financeira; e só o PÁGINA UM cumpre o objectivo de viver exclusivamente de donativos dos leitores. Ainda assim, é apenas o PÁGINA UM que, aos olhos de Filipe Alves, surge como o pecador a violar a lei e a ocultar transparência.

    Filipe Alves, director do Diário de Notícias.

    Vamos a isto. Diz ele na sua peça do Dinheiro Vivo, dada à estampa: “A lei não impede um sócio-gerente de passar recibos verdes à própria empresa, desde que esteja em causa trabalho independente prestado fora do horário normal e que não esteja relacionado com as tarefas que desempenha a título de trabalho dependente.

    Ora, aplicado ao PÁGINA UM, começar logo por inventar a categoria de “trabalho dependente” do director para com o sócio-gerente é de antologia. Ora, um director de um periódico que é simultaneamente gerente – e não celebrando contratos publicitários ou comerciais de natureza análoga, ou seja, não existe qualquer incompatibilidade, pelo contrário garante a independência do projecto – não pode ser trabalhador subordinado de si próprio: não há contrato consigo mesmo. Isto é uma impossibilidade jurídica elementar, ensinada em qualquer manual de Introdução ao Direito. Mas Filipe Alves, imerso em ignorância, confunde planos societários com laborais, como quem mistura vinho com lixívia.

    Depois acrescenta: “Nestas e outras situações, de acordo com o artigo 12.º da Lei 7/2009, de 12 de fevereiro, o trabalho independente não pode ser prestado com uma remuneração certa e periódica, com horário definido, nas instalações da empresa contratante e com os seus equipamentos. Nem, tão-pouco, em funções de direcção e chefia na estrutura da empresa, conceito que se aplica ao director de uma publicação jornalística.

    Disfarçado de análise isenta, e apesar de serem projectos distintos, Filipe Alves compara o PÁGINA UM ao Fumaça e ao Divergente. E só viu ‘coisas más’ no PÁGINA UM.

    Aqui, a incompetência sobe de tom. O artigo 12.º da lei não é, como supõe o sr. Alves, uma cartilha de catequese laboral destinada a esclarecer meninos sobre o uso piedoso dos recibos verdes. É coisa mais prosaica: estabelece presunções de contrato de trabalho quando há indícios de subordinação, como um horário imposto, um local de serviço fixado ou a dependência de equipamentos alheios. Nada de místico, nada de sublime; apenas o burocrático sopro do legislador.

    Mas o sr. Alves, armado em Moisés das finanças, resolve ler nele as tábuas da lei laboral. E fá-lo com um raciocínio que, se não fosse tragicómico, seria apenas cómico: defende que eu, na qualidade de director, estou sempre subordinado ao gerente, que também sou eu. É uma espécie de farsa hegeliana em que o Espírito se divide em duas máscaras: de manhã, eu decido como gerente; à tarde, obedeço-me como director. Se escrevo às três da manhã é liberdade; se o faço ao meio-dia é subordinação. Resumindo: sou simultaneamente o meu próprio chefe e o meu próprio capataz.

    Já vi sofismas mais engenhosos, como o paradoxo do mentiroso ou o gato de Schrödinger. Mas este, que me apresenta o director do Diário de Notícias, merece lugar especial no bestiário da lógica. Baptizo-o, sem cerimónia nem apadrinhamento, de burro de Buridan versão Alves.

    Explico. O burro de Buridan, coitado, morria de fome e de sede por não conseguir escolher entre feno e água, equidistantes e igualmente necessários. O sr. Alves, porém, supera o animal medieval: coloca-me no centro de um labirinto onde eu, como gerente, mando; e eu, como director, obedeço. Mas se obedeço a mim, sou subordinado; e se mando em mim, sou autoritário. Fico, pois, paralisado nesta engenhosa armadilha: condenado, não à fome nem à sede, mas à idiotia jurídica perpétua.

    Assim como o burro de Buridan imortalizou-se como exemplo de indecisão irracional, também este sofisma do sr. Alves merece registo nos compêndios futuros: “O paradoxo do director-gerente, que simultaneamente manda em si próprio e se escraviza a si mesmo, sem nunca decidir se está livre ou ou se está subordinado.” Um burro hesitava entre o feno e a água; o sr. Alves hesita entre a estupidez e a obtusidade — e, magnânimo, escolhe as duas.

    Mas há mais. O sr. Alves retorce. Escreve ainda: “De resto, num artigo publicado a 2 de junho último, onde dava conta dos donativos recebidos em 2024, o director do Página Um afirmava, de forma taxativa, que o projecto tem dois jornalistas que ali trabalham em permanência e em instalações da empresa.

    Ou seja, o sr. Alves confunde uma expressão coloquial (“trabalham em permanência”) com uma figura jurídica de contrato de trabalho. É a mesma lógica de um burocrata que ouve alguém dizer “este é o meu colega de equipa” e logo conclui que existe um contrato laboral registado na ACT.

    E mais ainda, não satisfeito, acrescenta: “A confirmarem-se as informações que constam destes escritos e das demonstrações financeiras, os dois jornalistas do Página Um arriscam ser considerados falsos recibos verdes, o que constituiria uma contra-ordenação muito grave, punida com multa entre os 2.040 euros e os 61.200 euros por trabalhador.

    Aqui, Filipe Alves assume-se juiz, legislador e executor. Uma espécie de Torquemada das Torres de Lisboa, brandindo coimas como se fossem espadas. Esquece-se que as contra-ordenações só existem após inspecção da ACT, análise factual e contraditório. Mas a ânsia de lançar lama sobre o PÁGINA UM é tão grande que a razão e o rigor desaparecem.

    Finalmente, escreve o sr. Alves com ar triunfal: “Questionado pelo DN/DV, o director do Página Um confirmou que não aufere salário e passa recibos verdes, mas que o faz apenas pelos artigos de opinião que escreve para o jornal. Ou seja, esses rendimentos são declarados a título de direitos de autor.”

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    Bravo! Sem se dar conta, confirma precisamente o óbvio: não há vínculo laboral, não há remuneração como gerente, há apenas rendimentos de direitos de autor — um regime que uso há mais de três décadas e que até o fisco conhece melhor do que a gramática do sr. Alves.

    Aliás, informei-o (mas ele, jornalista de conveniência, omitiu) que desde os anos 90, porque sempre fui jornalista distante do noticiário diário (quando trabalhei no Expresso, na Grande Reportagem e no Diário de Notícias), passo recibos verdes como direitos de autor, inclusive no próprio Diário de Notícias na primeira década deste século. Nessa altura, o sr. Alves andaria ainda a tropeçar nos corredores da Universidade do Minho ou, quando muito, a tatear como estagiário nas redacções.

    E, para não deixar dúvidas de que a sua “peça” visava denegrir-me, ainda fez um artigo no Diário de Notícias sobre o recibos verdes (omitindo os valores) e correu depois às redes sociais a exclamar que eu sou “o cavalheiro que paga metade dos impostos que pagaria se os recibos fossem passados em relação às dezenas de notícias que produz todos os meses”. Misericórdia para o sr. Alves! Em 2024 recebi do PÁGINA UM a soma principesca de 6.000 euros. Graças ao regime de direitos de autor, a minha “poupança” fiscal terá andado pelos 800 euros. Um crime hediondo, segundo o tribunal moral de Alves — não fosse tratar-se de uma norma legal e aceite pela própria Autoridade Tributária.

    Mas como o sr. Alves é espírito magnânimo, deseja-me maior fortuna… apenas para me ver enterrado. Quer que eu receba mais do PÁGINA UM e assim pague mais impostos. Pois bem, vou então conceder-me um salário bruto de 70.000 euros por ano — mais do que as receitas anuais do próprio jornal. O resultado? Pagarei cerca de 30.000 euros em impostos e contribuições sociais. Ou melhor: não pagarei nada, porque a empresa Página Um entraria em falência em três tempos, deixando de existir. Convenhamos, parece genial este plano do sr. Alves: não quer que eu contribua mais para o Estado; quer é que o PÁGINA UM fique igual à Global Notícias – e que desapareça, porque, ao contrário do que sucede com o dono do DN, não teríamos bancos que nos segurassem nem um Governo que fechasse os olhos às dívidas.

    Nota-se bem que o sr. Alves é um tonto: nem consegue sequer perceber que, na esfera da Global Notícias, com o seu nível de discernimento, acaba por ser apenas um custo (que contribuiu para os prejuízos da empresa) em vez de se mostrar um ‘activo’.

    Por fim, anda o sr. Alves numa lufa-lufa sobre o facto de o PÁGINA UM não revelar os seus apoiantes, entre pessoas e empresas — esquecendo-se, claro, de mencionar que existe um limite de 500 euros por semestre, nunca atingido. Nunca nenhum apoiante fez donativos superiores a 3% das receitas anuais – e isso não é nenhuma fortuna: bastaria menos de 2.000 euros.

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    Mas, caramba, estou aqui a pensar: desde quando é que o Diário de Notícias, o Público ou o Expresso publicam diariamente a lista dos seus compradores em quiosque? Já imagino como seria nesse “Estado Perfeito”: apresentava-se o cartão de cidadão, o número de contribuinte e a assinatura digital em troca de qualquer pasquim.

    Também não vejo esses jornais a divulgarem as suas subscrições mensais ou anuais. Eu, por exemplo, adoraria conhecer as 966 almas que ainda compram o DN em banca e as 723 que o assinam digitalmente. E, já agora, a lista completa dos 54.301 assinantes digitais do Público. Quem não teria curiosidade?

    Ah, mas para o sr. Alves isso é diferente. O PÁGINA UM tem de mostrar porque… enfim, chateia a imprensa que vive de eventos patrocinados e de promiscuidades conhecidas – e assim, nada como atirar lama. Pronto, eu mostro um bocadinho: aqui em baixo o registo anonimizado de parte dos donativos voluntários de hoje.

    Registo do Easypay, uma plataforma usada pelo PÁGINA UM para recolher donativos pontuais e regulares.

    Insiste ainda o sr. Alves que há outros projectos de jornalismo independente que divulgam os financiadores que apoiam através de donativos, como o Fumaça. Pois claro, exemplo luminoso! Basta espreitar a famosa “Comunidade Fumaça”, esse panteão da transparência.

    Entre os 1.771 patronos do Fumaça orgulhosamente listados, figuram nomes de peso: um simplesmente “Francisco” (quiçá, o falecido Papa), um “João Afonso” (não, não é o da canção, é um outro que qualquer pessoa conhece), um “Boa Fé” (primo afastado do Boa Morte, o futebolista?), um “Zé Pedro” (não o dos Xutos, que esse jaz há quase oito anos no cemitério dos músicos imortais), e um impenetrável “Dinis A.” (que dispensa apresentações, pois “todos sabem quem é”).

    Eis o padrão de transparência que deslumbra o sr. Alves: listas anónimas dignas de uma reunião de condomínio, onde os condóminos assinam por alcunha ou por meia vogal. Enquanto isso, acusa o PÁGINA UM, que publica contas certificadas e acessíveis ao público, de opacidade. É como elogiar o virtuosismo contábil de um prestidigitador de feira e acusar de obscurantismo o livro-caixa do Banco de Portugal.

    Pequeno extracto da lista de doadores do Fumaça onde constam, entre outros, o “Francisco”, o “João Afonso”, o “Boa Fé”, o “Zé Pedro” e o “Dinis A.”, conhecidos de todos.

    Conclusão: O sr. Filipe Alves é um imbecil. Mas um imbecil inútil: escreve não para informar, mas para difamar — e fá-lo sem jeito, confundindo presunção legal com dogma, misturando funções societárias com laborais, brandindo coimas que nunca se aplicarão e, para cúmulo, dirigindo um jornal que envelheceu pior que um cadáver. Sim, pior que um cadáver, porque este ao menos inspira respeito na sua quietude — já o Diário de Notícias, sob a batuta deste imbecil, exala apenas pena e náusea, como um corpo mal enterrado que insiste em libertar miasmas.

    Afinal, a decadência da imprensa lusitana explica-se agora com clareza quase científica: não foi por falta de dinheiro, nem de papel, nem de tecnologia, nem das redes sociais, nem da desinformação. Foi por excesso de Alves — de jornalistas que, em vez de pensarem, reproduzem; em vez de investigarem, insinuam; em vez de informarem, difamam. Eis a síndrome do epígono, da sombra que julga ser corpo. Como Ícaro, que ao tentar voar demasiado alto derreteu as asas, também o DN – e a Global Notícias – pensa ainda ser maior do que a sua substância. O resultado? Uma queda ruidosa, sem glória. E o sr. Alves é um epitáfio ambulante da mediocridade jornalística. PIM!

  • O director do Diário de Notícias (cuja empresa em falência técnica registou custos operacionais de 47,3 milhões de euros) quer saber como o PÁGINA UM gastou os seus 63 mil euros de receitas

    O director do Diário de Notícias (cuja empresa em falência técnica registou custos operacionais de 47,3 milhões de euros) quer saber como o PÁGINA UM gastou os seus 63 mil euros de receitas


    Ontem à tarde, e dias depois de o PÁGINA UM ter revelado a falência técnica da Global Notícias (com capitais próprios negativos de quase 20 milhões de euros e custos operacionais de 47,3 milhões de euros), o director do Diário de Notícias, Filipe Alves, informou-nos via e-mail estar, ele próprio, a fazer uma investigação que envolve a gestão financeira do PÁGINA UM, conhecida dos leitores aqui, na Base de Dados das Contas Anuais e também no Portal da Transparência dos Media, gerido pela ERC. ‘Concedeu-nos’ ele um prazo de resposta de 24 horas, referindo que concluiria a notícia ao final de esta quinta-feira.

    A forma capciosa, enviesada e reveladora mesmo de ignorância e má-fé das questões de Filipe Alves levaram-me a decidir responder-lhe publicamente, até por considerar que estas informações servem para evitar um agudizar das pontuais tentativas de denegrir o PÁGINA UM desde a sua criação, e que crescem em especial quando revelamos determinados assuntos sensíveis. O e-mail de Filipe Alves pode ser lido aqui, sem prejuízo das questões em concreto serem expostas antes das respostas dadas.

    Pedro Almeida Vieira

    Director do PÁGINA UM

    ***

    Exmo. Senhor Director do Diário de Notícias,
    Dr. Filipe Alves:

    Vamos fazer de conta que eu sou mesmo ingénuo e que acredito que, depois de revelarmos a desastrosa situação financeira da Global Notícias (falência técnica e prejuízos de 76 milhões de euros desde 2017) e de ter uma intimação no Tribunal Administrativo (com sentença favorável na primeira instância) para aceder aos contratos (escondidos) de venda de títulos entre a Global Notícias e a Notícias Ilimitadas, o responsável máximo editorial do vetusto Diário de Notícias está mesmo “a preparar um trabalho sobre novos projectos independentes que estão a surgir, aproveitando a tecnologia” e, para isso, coloca ao PÁGINA UM uma tipologia de perguntas deste jaez.

    Em todo o caso, o ‘trabalho de casa’ de V. Ex.ª não foi feito. Praticamente todas as questões que V. Ex.ª coloca têm resposta não apenas no Código de Princípios do PÁGINA UM e na minha Declaração de Transparência (que julgo ser inédita na imprensa portuguesa), mas também no Portal da Transparência dos Media, bem como no relatório do Governo Societário da empresa Página Um, disponibilizado a pedido pela ERC. De igual modo, as demonstrações financeiras (demonstrações de resultados e balanço) de todos os anos encontram-se no site do jornal PÁGINA UM, independentemente de constarem também na Base de Dados das Contas Anuais (BDCA).

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    Ao contrário, aliás, do que sucede com a Global Notícias, dona do DN, que ainda não depositou as suas contas de 2024 na BDCA, ultrapassando os prazos legais, impedindo assim que se avalie em melhor detalhe a sua falência técnica, com capitais próprios negativos de quase 20 milhões de euros, e sem permitir conhecer o montante das dívidas ao Estado e à Segurança Social.

    Em todo o caso, vou responder com gosto às suas perguntas, mesmo com o prejuízo de me ocupar tempo para outras tarefas mais relevantes.

    Assim:

    Pergunta 1 de V. Ex.ª – O Página Um tem uma situação financeira equilibrada, com resultados positivos, com receitas na casa dos 60 mil euros e custos ligeiramente inferiores. No entanto, tem conseguido marcar a agenda com alguns trabalhos de investigação e tem uma audiência que, segundo foi divulgado, ronda as 100 mil visualizações por mês (corrijam por favor se estiver enganado). Estes resultados demonstram que a receita para a sustentabilidade financeira nesta área passa por projectos assentes na tecnologia (que eliminou as principais barreiras à entrada no mercado), focados em fazer jornalismo independente em temas-chave e que evitem dar passos maiores que a perna?

    Resposta 1 – Agradeço os elogios por considerar que o PÁGINA UM “tem conseguido marcar a agenda com alguns trabalhos de investigação”, lamentando, contudo, que o DN jamais (pelo que me apercebo) tenha feito eco disso nas suas páginas. Corrijo as visualizações mensais do PÁGINA UM, que nunca rondaram as 100 mil. São muito superiores. Nos últimos 10 meses, o pior mês teve 294 mil visualizações e o melhor mês (Julho passado) quase 688 mil.

    Quanto à situação financeira equilibrada do PÁGINA UM deve-se apenas ao modelo estratégico inicial, desde finais de 2021: os custos devem reflectir as receitas, não sendo aceitável a existência de passivos. Os custos e as receitas são assim similares (até com um pequeno lucro, que nunca foi distribuído, e virtualmente sem passivo), seguindo em linha porque o PÁGINA UM não se sustenta nem em publicidade nem em assinaturas, sendo que o acesso é livre. Ou seja, o financiamento até agora foi apenas em donativos, pretendendo-se demonstrar que a verdadeira barreira à entrada e manutenção no mercado da imprensa é a qualidade. E que projectos qualitativamente maus e financeiramente desajustados devem desaparecer, por constituírem concorrência desleal e por colocarem em causa a credibilidade da imprensa e do jornalismo.

    Foto: PÁGINA UM

    Pergunta 2 de V. Ex.ª – Em 2024 e nos anos anteriores, com excepção de 2023, não tiveram praticamente custos com pessoal. Em contrapartida, tiveram custos com fornecimentos e serviços externos na casa dos 60 mil euros. Este valor representa praticamente a totalidade dos custos do projecto. Isto significa que os dois jornalistas do Página Um, incluindo o seu director, passam recibos verdes à empresa detentora do título?

    Resposta 2 – O único custo com pessoal na área jornalística, em 2023, foi de uma estagiária, sendo que as diversas colaborações, incluindo as pontuais – entre os quais pontuam as do jornalista Boštjan Videmšek, um conceituado repórter de guerra e de temas ambientais, cujos trabalhos muito nos honra publicar – foram pagas contra apresentação de recibo/factura. Em todo o caso, os custos operacionais do PÁGINA UM são ridiculamente baixos para a quantidade, diversidade e qualidade dos trabalhos jornalísticos e de outra índole. Os custos de 60.539,05 euros em 2024 incluem todos os gastos, não apenas os dos jornalistas. O PÁGINA UM publicou, no ano passado, um total de 1.063 conteúdos, o que dá um custo global unitário médio de 57 euros por ‘peça’.

    Assim, quanto aos 60 mil euros para custear toda a estrutura do PÁGINA UM – e não apenas remuneração de trabalho jornalístico –, presumo que haja directores de órgãos de comunicação social em Portugal, e mesmo jornalistas, que, sozinhos, auferem um salário superior. Não sei se é o caso de V. Ex.ª, porque nunca o revelou.

    Nessa medida, questionar o PÁGINA UM sobre a discriminação de custos integrados contabilisticamente na rubrica “fornecimentos e serviços externos” (FSE) no valor de 60 mil euros parece-me mesquinho – ou até cómico se a pergunta vier do director de um órgão de comunicação social (Diário de Notícias) cuja empresa apresenta, pelo que se conhece, custos operacionais que superaram os 47,3 milhões de euros em 2024, o que resultou em resultados operacionais negativos de 24,8 milhões de euros. Ora, veja-se isto: o PÁGINA UM, gastando 60 mil euros, teve resultados operacionais positivos (cerca de dois mil euros), e daqui a nada temos um número de doadores superior ao dos leitores do Diário de Notícias que compram ou assinam esse jornal.

    Em todo o caso, não me importo de satisfazer a curiosidade de V. Ex.ª, até porque compreendo a curiosidade jornalística: eu próprio gostava de saber quanto deve a Global Notícias à Autoridade Tributária e à Segurança Social, ou como sobrevive apesar de um prejuízo acumulado de 78 milhões de euros desde 2017 e a vender menos de mil exemplares por dia.

    Ora, em traços gerais, esperando que V. Ex.ª não deseje saber quanto dinheiro gasto em papel higiénico (que também vai para as contas), adiantarei que, entre renda da redacção, despesas de água, electricidade, custos com servidores e telecomunicações, gastaremos em média cerca de 1.500 euros por mês. Os custos de investigação são variáveis, incluindo, por exemplo, o pagamento de emolumentos sempre que queremos aceder às demonstrações financeiras de empresas como a Global Notícias. Porém, este ano ainda não fizemos esse gasto, porque a Global Notícias, violando a lei, não as depositou na BDCA.

    As colaborações onerosas de pessoas são, assim, efectivamente contabilizadas, cumprindo a lei, contra a passagem de recibos verdes, e direi que representam metade dos custos operacionais num orçamento mensal que ronda apenas os cinco mil euros. Não gastamos mais, investindo em mais jornalismo, porque tal implicaria um desequilíbrio orçamental do PÁGINA UM com consequências graves a prazo.

    Filipe Alves, director do Diário de Notícias. Foto: Global Notícias.

    Pergunta 3 de V. Ex.ª – A confirmar-se a emissão de recibos verdes, não se trata de um falso recibo verde, uma vez que a lei proíbe a emissão de recibos verdes por pessoas que tenham cargos de direcção ou chefia? Nota: salvo melhor opinião, a lei permite a emissão de recibos verdes por sócios-gerentes, desde que o trabalho independente prestado seja distinto das tarefas associadas ao vínculo laboral existente (neste caso, de sócio-gerente). Porém, essas funções não podem ser de direcção ou chefia na estrutura da empresa, porque isso só pode existir no quadro de uma relação de trabalho dependente.

    Resposta 3 – Lamento estragar uma notícia negativa tão ansiada pelo Diário de Notícias, mas não existe qualquer ilegalidade. No âmbito da empresa Página Um Lda, da qual sou sócio maioritário e gerente, não aufiro qualquer remuneração de gerência, função essa que exerço a título gratuito. A remuneração que recebo provém exclusivamente da produção de crónicas e artigos de opinião, enquadráveis como obras intelectuais protegidas pelo Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (artigos 1.º e 9.º), remuneradas através de recibos verdes como direitos de autor. Este regime encontra suporte no Código das Sociedades Comerciais, que permite que os gerentes exerçam as suas funções com ou sem remuneração, e na possibilidade legal de um sócio-gerente prestar à sociedade serviços distintos da gerência, desde que exista autonomia e natureza diferente da função orgânica.

    Assim, não existe qualquer figura de ‘falso recibo verde’, pois não há subordinação jurídica nem remuneração de funções de direcção. Eu não posso ser subordinado de mim próprio. Aquilo que existe, no meu caso, é a retribuição independente e autónoma por obra publicada, enquadrada no regime fiscal e laboral dos direitos de autor (artigos 151.º do Código do IRS e 12.º do Código do Trabalho, este último inaplicável por inexistência de relação subordinada). Não existe, além disso, qualquer remuneração fixa, sendo os pagamentos pontuais.

    Como consta no relatório do governo societário entregue à ERC, recebi 6.000 euros em todo o ano de 2024, pagos pelo Página Um Lda. e obviamente declarados à Autoridade Tributária a título de direitos de autor. Convenhamos: não me parece um valor demasiado elevado para aquilo que produzi. Este ano ainda não auferi qualquer valor de direitos de autor, reservando tal por via das vendas do livro Correio Mercantil de Brás Cubas, da minha autoria e que será publicado com a chancela Página Um no próximo mês de Outubro, apesar de se encontrar já em pré-venda.

    Tenho outros rendimentos, compatíveis com a actividade jornalística, conforme consta na Declaração de Transparência no sítio do PÁGINA UM desde o início deste projecto jornalístico. Presumo que V. Ex.ª, como director do Diário de Notícias — ou outro director de qualquer outro órgão de comunicação social de âmbito nacional —, não seja assim tão transparente.

    Acrescento que sempre passei, na minha actividade jornalística desde os anos 90, recibos verdes como direitos de autor, pela particularidade dos meus trabalhos, mesmo quando fui colaborador do Expresso, da Grande Reportagem e, na primeira década deste século, do Diário de Notícias — basta verem os vossos arquivos contabilísticos. Esta opção é tributariamente aceitável.

    Pergunta 4 de V. Ex.ª – O Página Um tem uma postura muito crítica dos grupos de media tradicionais, questionando o facto de terem publicidade e eventos patrocinados. Porém, nestes casos conhecem-se as entidades que fazem esses patrocínios, ao passo que o Página Um não divulga os seus mecenas/apoiantes, ao contrário do que fazem, por exemplo, o Divergente e o Fumaça, entre outros projectos com modelos de mecenato e crowdfunding. Não existe aqui uma contradição entre aquilo que defendem e o que praticam? Admitem rever essa política?

    Resposta 4 – O PÁGINA UM — e eu em particular — não é contra a publicidade, embora não a tenha por opção. É contra, sim, a existência de eventos patrocinados em que haja participação directa ou indirecta de jornalistas e directores editoriais. Essa postura nem deveria causar estranheza, porque deveria ser generalizada a toda a classe jornalística — só causa estranheza porque a promiscuidade, incluindo a do DN, campeia.

    O facto de se conhecerem as entidades que financiam directamente esses eventos patrocinados com participação activa de jornalistas e comprometimento editorial, mas não os montantes envolvidos, não desonera a gravidade: torna-a apenas mais transparente na sua degradação. O Estatuto do Jornalista não permite tais actos, e considero que essa promiscuidade tem descredibilizado o jornalismo aos olhos do público.

    Quanto à segunda parte da pergunta: tentar encontrar um paralelismo entre essa promiscuidade e a não revelação dos apoiantes do PÁGINA UM é absurdo e mostra somente enviesamento, ou até má-fé. Primeiro, porque os eventos patrocinados com a participação de jornalistas são ilegais e violam o Estatuto do Jornalista – e os donativos de leitores, que se comparam à pessoa que compra um jornal na banca ou faz uma subscrição digital, são legítimos e até recomendáveis para a sustentabilidade de um projecto jornalístico.

    Segundo, o PÁGINA UM não tem mecenas, mas apenas apoiantes. Nenhuma pessoa ou entidade, em qualquer ano, concedeu apoios que tenham representado mais de 3% das receitas totais em qualquer ano. Ou seja, nunca tivemos, num só ano, tendo em consideração as nossas receitas, qualquer doador que nos tenha entregado mais de 2.000 euros – e houve menos de cinco a doarem mais de 1.000 euros, sendo que estes montantes foram geralmente fraccionados. Temos documentação para comprovar em juízo, pelo que apelamos a quem desejar insinuar algo diferente que tenha isso em consideração.

    Na esmagadora maioria dos casos – ou melhor, praticamente a totalidade das centenas de apoiantes –, os donativos representam, no final do ano, valores equivalentes ou inferiores à subscrição anual de um periódico, incluindo o DN. As empresas só podem apoiar o PÁGINA UM até um limite de 500 euros por semestre, o que nunca foi atingido. Este modelo de financiamento permite que não haja qualquer possibilidade de ingerência, porque se perdermos um ou vários doadores por algo que escrevemos ou deixámos de escrever, tal ‘fuga’ não tem qualquer impacte no rumo editorial.

    Por outro lado, insinuar que o modelo do PÁGINA UM não é transparente em comparação com outros projectos jornalísticos fora da esfera tradicional só pode ser por ignorância ou má-fé. É completamente falso que se conheçam todos os apoiantes e respectivos montantes do Divergente ou do Fumaça.

    Estes dois órgãos de comunicação social apenas revelam financiamentos maiores relativos a projectos específicos financiados por instituições (como fundações), sendo que têm também a possibilidade de receber donativos, não identificando os doadores, como se pode confirmar aqui (Fumaça) e aqui (Divergente). O Fumaça destaca aqui o seu objectivo: “queremos ser 100% financiados pela nossa Comunidade“, e o Divergente também faz apelos (por vezes lancinantes) aos donativos. O PÁGINA UM quis e conseguiu, desde a sua génese, manter-se e crescer em credibilidade apenas com donativos. A não revelação dos doadores, quando estão em causa montantes baixos, é compreensível e fiscalmente legal. O PÁGINA UM não desenvolveu, até agora, projectos específicos com o apoio financeiro de instituições, nem elaborou artigos ‘encomendados’ por qualquer pessoa em Portugal ou no estrangeiro, ao contrário do Fumaça e do Divergente que têm nesse tipo de financiamento as suas principais receitas.

    Além disso, também é falso que os modelos de negócio do Divergente e do Fumaça sejam absolutamente transparentes, porque o primeiro é gerido por uma cooperativa (Bagabaga Studios, CRL) e o segundo por uma associação (Verdes Memórias). No caso da associação Verdes Memórias, a ERC nem sequer a obriga a apresentar os indicadores financeiros no Portal da Transparência dos Media e também não há obrigatoriedade legal de depositar as demonstrações financeiras na BDCA. Ou seja, não se conhecem documentos contabilísticos que comprovem a situação financeira do Fumaça, excepto aquilo que o jornal quer mostrar.

    No caso da Bagabaga Studios, também não estão obrigados a depositar as demonstrações financeiras na BDCA, ou seja, não são públicas, tendo apenas de apresentar indicadores financeiros no Portal da Transparência dos Media, gerido pela ERC. Nesse aspecto, sugere-se que V. Ex.ª investigue a situação financeira da Bagabaga Studios (Divergente, que está inoperacional neste momento), porquanto, apesar de ter tido nos últimos cinco anos receitas de 750 mil euros, duplicou o passivo (agora em 111 mil euros) e passou a estar em falência técnica.

    Ora, por opção de transparência, o PÁGINA UM é gerido por uma sociedade por quotas, a Página Um Lda., criada em Abril de 2022, e optou-se por essa via exactamente para transmitir a máxima transparência, obrigando-nos a apresentar às entidades fiscais, supervisoras e reguladoras todos os elementos contabilísticos (temos, obviamente, contabilista certificado), aos nossos apoiantes e leitores, e a todos aqueles que assim desejarem, mesmo a directores de jornais geridos por empresas em falência técnica e que, até agora, escondem as demonstrações financeiras de 2024.

    Portanto, daqui resulta que não há absolutamente nada a rever na política do PÁGINA UM. Pelo contrário. A única coisa a mudar é a atitude de V. Exa.ª.

    Pergunta 5 de V. Ex.ª – Pretendem reforçar a equipa no futuro, de forma sustentada?

    Resposta 5 – Se fosse permitido ao PÁGINA UM – e se fosse esse o nosso intento, que não é – atingir um passivo de quase 41 milhões de euros sem estar preocupado com a sustentabilidade financeira — como sucede com a empresa do Diário de Notícias —, reforçava já hoje a equipa. Mas como temos uma postura responsável, o nosso reforço dependerá sempre das receitas e dos nossos apoiantes, mas nunca ao preço de vender a alma ao diabo.

    Pergunta 6 de V. Ex.ª – Outros aspectos que queiram salientar?

    Resposta 6 – Devia V. Ex.ª pedir à administração da Global Notícias para revelar as suas contas e responder às mesmas perguntas que me colocou. Espero também que este trabalho se insira num exercício mais vasto, porque, de contrário, darão demasiado nas vistas as vossas verdadeiras intenções.

  • Há 40 anos, um deputado classificou como ‘pavoroso’ um fogo de 250 hectares; hoje, não houve adjectivos

    Há 40 anos, um deputado classificou como ‘pavoroso’ um fogo de 250 hectares; hoje, não houve adjectivos


    A língua é um arsenal subtil: nesse caldeirão coexistem punhais de lâmina fina e canhões de estrondo, palavras que servem tanto para acariciar como para fulminar. Entre essas, os adjectivos ocupam um lugar peculiar. Não se contentam em descrever; inflamam, exageram, dramatizam, conferem ao substantivo uma gravidade suplementar. São como carimbos de urgência colados à pressa nos dossiers da realidade. E, porém, como todas as moedas gastas em excesso, também eles perdem valor. A adjectivação é, pois, um recurso retórico cuja abundância corre sempre o risco de arruinar a eficácia: quanto mais se grita, menos se ouve.

    Tomemos o caso português. Desde o PREC — que foi sobretudo um PREC de palavras inflamadas —, Portugal vive mergulhado na adubagem semântica dos discursos. Já em 1975, esse ano em que o Parlamento era mais um teatro do que uma câmara, a tribuna enchia-se de adjectivos altissonantes para descrever quer os feitos, quer os desastres. E nestes, já estavam os incêndios.

    Aliás, corrijo: mesmo no Estado Novo já se adjectivavam os fogos florestais. Por exemplo, o deputado por Coimbra da União Nacional, Augusto Simões, num longo discurso em Janeiro de 1963, já não os poupava: “não é sem estremecimento que recordo agora todas as dolorosas angústias que sofremos no Verão passado com os pavorosos incêndios que flagelaram todo o Portugal, e nomeadamente os concelhos do Centro do País”. Ardiam então poucos milhares de hectares por ano em todo o território nacional.

    Em Portugal, se se pesquisar nos debates parlamentares, um incêndio nunca foi adjectivado simplesmente como grande: no mínimo, era pavoroso. Não sucede, convenhamos, apenas com incêndios. Um acidente rodoviário nunca é apenas grave: é terrível. Um défice orçamental não é apenas elevado: é assustador. E assim se foi criando uma inflação adjectiva que rivaliza com a inflação monetária de muitos períodos históricos de Portugal.

    Mas detenhamo-nos no adjectivo pavoroso, porque surge em diversas situações nos discursos parlamentares ao longo das décadas. Ora, etimologicamente, pavoroso deriva do latim pavor, que significa medo súbito, aquele frio no estômago que nos paralisa. “Pavor” é o terror instintivo, visceral, que antecede a fuga.

    Logo, um acontecimento pavoroso deveria ser reservado a situações em que a própria sobrevivência colectiva se sente ameaçada: o incêndio do Reichstag em 1933, o terramoto de Lisboa em 1755, a explosão de Pompeia sob o Vesúvio. Mas em Portugal, desde tempos idos, um simples fogo já bastava para que o orador parlamentar, em pose trágica, lhe colasse o rótulo de pavoroso, desde que fosse considerado relevante.

    O curioso é que o exagero de ontem se transforma no eufemismo de hoje. Se um deputado do Estado Novo falava de um “incêndio pavoroso” em 1963, quando ardiam menos de 10 mil hectares em todo o país, pode dizer-se agora que estava a puxar pela corda da tragédia. Quando, no dia 18 de Julho de 1985, o deputado socialista José Vitorino relatava que uma “ponta de cigarro inadvertidamente deixada por apagar” causou um “pavoroso incêndio [que] durou 29 horas e envolveu no seu combate 37 viaturas e 170 bombeiros”, só podemos sorrir depois de se saber que afinal arderam 250 hectares.

    Hoje, passados quarenta anos desse “pavoroso incêndio” que destruiu 250 hectares em 29 horas, e poucos dias depois de termos assistido a um fogo que durou 13 dias e dizimou 64.451 hectares, não percebemos já o que é “pavoroso”.

    Pavoroso já não faz sentido se em 2017 arderam 540 mil hectares e morreram 114 pessoas. E já não se adequa àquilo que sucedeu no presente mês de Agosto. Por isso, nem este nem outro mais altissonante adjectivo foi hoje usado na Assembleia da República durante o debate morno — olhem-me eu também a usar um adjectivo — da comissão permanente sobre os incêndios, onde sobretudo se demonstrou que as férias são sagradas para os deputados dos diversos quadrantes, porque a ‘casa’ esteve a meio-gás; ou melhor, estiveram para aí umas 80 almas… Bem sei que a comissão permanente desonera a maioria dos deputados a interromperem as férias, mas assim mostraram os parlamentares de todos os quadrantes a importância do tema.

    Mas, na verdade, enfim, talvez não tenhamos tido assim tão grande hecatombe. Nos anos 60, um incêndio era pavoroso aos 1.000 hectares; nos anos 70 e 80, só aos 5.000 hectares. Nas últimas duas décadas e meia, pavorosos passaram a ser apenas aqueles que ultrapassavam os 10 mil hectares, depois veio 2017 e já passou a ser preciso mais de 50 mil. E agora já nem o de 65 mil hectares, como o do Piódão, leva este título. Talvez estejamos à espera da fasquia dos 100 mil. A adjectivação dos incêndios foi-se desgastando, como as botas dos bombeiros que enfrentam labaredas ano após ano.

    Eis, pois, a perversão política da adjectivação, que hoje esteve arredada do hemiciclo com discursos batidos e sem chama: ao invés de graduar a realidade, esgotou-se, e ninguém teve sequer a noção da gravidade de 2025, sobretudo porque ainda ficam aquém de 2003, 2005 e 2017. Em Portugal, uma catástrofe é uma bênção política, porque aumenta, para o futuro, a margem da incompetência.

    As palavras que outrora assustavam — terrível, horrível, pavoroso — soam agora como diminutivos face à magnitude dos desastres actuais, mas já nem se usam. É a aplicação de uma espécie de Lei da Inflação Semântica: quanto mais adjectivos se emitiram no passado, menos eles hoje representam a realidade. A economia da linguagem não difere muito da economia monetária.

    Este jogo entre retórica e catástrofe revela uma ironia nacional, que hoje confirmei enquanto assistia a uma ópera bufa onde o Governo Montenegro e os deputados se entretiveram a esgrimir argumentos para não se queimarem mais (no caso do PSD e PS) ou para puxarem a brasa à sua sardinha (no caso do Chega): Portugal é talvez o único país em que a floresta arde ao ritmo de uma inflação literária. A cada Verão, não apenas se queimam hectares — queimam-se também as palavras, ao ponto de já não assustarem ninguém.

    Um dia, quando tudo já for cinza, talvez descubramos que a adjectivação política foi o mais inútil extintor do nosso léxico.

  • Ó Luís, quando o fogo alastra pela floresta, o teu mercado foge

    Ó Luís, quando o fogo alastra pela floresta, o teu mercado foge


    Colaborador do PÁGINA UM desde a primeira faísca, o Luís Gomes é, reconheça-se, uma das criaturas mais bem apetrechadas — em teoria e em prática — que já conheci no vasto território das ciências económicas. Mas traz no estojo um curto-circuito irresistível: basta alguém insinuar a sombra de uma intervenção do Estado e logo lhe estalam os fusíveis, ficando de imediato cego e surdo, a tresler os argumentos de quem ousa não partilhar a sua cosmologia económica — tão imaculada quanto frágil ao menor sopro de heresia.

    No seu artigo intitulado Anti-comuns? A verdadeira tragédia da floresta é o Estado — em resposta ao meu artigo inicial, Sabe a causa dos incêndios devastadores? Não são as alterações climáticas; é a tragédia dos anti-comuns —, Luís Gomes cometeu diversos erros conceptuais graves na leitura do que escrevi.

    an aerial view of a village surrounded by lush green hills

    Nunca propus qualquer confisco, expropriação disfarçada ou socialização da floresta, nem sequer, abrenúncio!, a tutela soviética que ele gosta de evocar como espantalho.

    A minha proposta parte exactamente do contrário, e ele nem sequer teve o discernimento de perceber: manter a propriedade privada em pleno, com todos os poderes de exclusão e rivalidade assegurados ao proprietário. Quem tem terra continua a poder explorar madeira, resina, caça, turismo, construir, arrendar, vedar ou simplesmente nada fazer, conforme a sua escolha, dentro de limitações legais, como existem em muitos outros sectores do quotidiano.

    Aquilo que está em causa, numa gestão territorial que impeça os desastres cíclicos que vivemos, não é a posse nem o uso económico exclusivo, mas a necessidade de reconhecer que a floresta — ou, mais propriamente, os espaços florestais (distintos das parcelas/propriedades florestais) — gera externalidades positivas: ar limpo, regulação do ciclo hidrológico, sequestro de carbono, protecção contra a erosão, beleza natural que sustenta bem-estar e turismo. Tudo isto beneficia a sociedade, sem que esta pague, e, ironicamente, isso resulta em prejuízo privado para o dono da terra, porque lhe reduz opções de uso ou lhe impõe custos de manutenção sem qualquer contrapartida.

    Ou seja, o ponto que o Luís não quis compreender é simples: uma externalidade positiva para a sociedade implica quase sempre um custo de oportunidade para o proprietário. Manter uma faixa de combustível, abrir caminhos de servidão para combate, preservar linhas de água ou garantir mosaicos de descontinuidade florestal são actos que aumentam a segurança colectiva, mas que significam menor rendimento ou maior despesa para quem é dono do terreno. E isso não é justo nem sustentável.

    Até hoje, o Estado português resolveu o problema de forma expedita, administrativamente cega: impôs o encargo aos mais frágeis, geralmente proprietários envelhecidos e pobres, para que os mais distantes respirassem ar mais limpo e contemplassem paisagens bem cuidadas, ou que beneficiassem de menores probabilidades de danos por incêndios.

    É esse desequilíbrio que proponho corrigir, não através de confisco — como o Luís esbraceja —, mas através de contratos claros entre sociedade e proprietários, em que estes sejam compensados de forma justa pelos custos e pelos benefícios que geram. E isto porque o “mercado” do Luís jamais o solucionaria.
    Confundir a minha proposta com colectivização é como ver um polícia a organizar o trânsito num engarrafamento e acusá-lo de planificação soviética. A floresta portuguesa sofre de um problema estrutural que em Economia tem nome próprio: falha de mercado.

    Falha porque o fogo não respeita estremas, alastra de uma parcela abandonada para outra cuidada, arrasta consigo aldeias, infra-estruturas, vidas humanas e património. Falha porque os custos de transacção em territórios com trinta ou cinquenta herdeiros dispersos pelo mundo são tão altos que inviabilizam qualquer solução puramente privada.

    Falha porque, em grande parte do interior, não existe mercado para remunerar serviços de ecossistema: não há turistas suficientes, nem procura imobiliária, nem investidores que garantam retorno económico. A “liberdade de investir” de que fala o Luís Gomes é, nestes territórios, uma liberdade de papel: juridicamente plena, mas economicamente vazia.

    Ao contrário do que ele sugere, não defendo um SNS da floresta nem um plano centralizado ditado a partir de Lisboa. Defendo, sim, uma arquitectura mínima de coordenação, que pode ser executada por cooperativas, zonas de intervenção florestal, baldios, associações de produtores ou até empresas privadas.

    O Estado pode ser o mandatário inicial dessa coordenação, porque foi criado precisamente para lidar com problemas de acção colectiva, mas não precisa de ser o executor directo: pode delegar, contratualizar e auditar. A chave está em estabelecer contratos claros, com prazos, objectivos definidos, pagamentos condicionados a resultados e auditoria independente.

    O Luís Gomes também erra ao menosprezar a diferença entre uma externalidade marginal e uma externalidade sistémica. Um pomar que atrai abelhas gera um benefício pequeno e localizado; ao invés, um incêndio florestal é uma catástrofe sistémica. Não é a definição académica de bem público que importa aqui, é a escala do dano. O fogo alastra sem pedir licença, multiplica prejuízos, destrói vidas e consome recursos públicos em larga escala. E tal como uma doença infecciosa não se resolve apenas com a higiene individual de cada cidadão, também uma floresta fragmentada não se protege apenas com a boa vontade de alguns proprietários. É preciso coordenação, porque os custos sociais são incomensuravelmente maiores do que os custos privados.

    Por isso, insisto: não proponho retirar um milímetro de propriedade a ninguém. Aquilo que proponho introduzir, pela primeira vez, são preços e pagamentos para aquilo que até hoje foi consumido de graça pela sociedade e pago com prejuízo pelos donos da terra. Há instrumentos claros para isso: pagamentos por serviços de ecossistema com base em métricas verificáveis, cobertura integral dos custos de defesa civil, contratos-programa em zonas críticas, leilões reversos para seleccionar as propostas mais eficientes, fiscalização independente para evitar abusos. Nada disto mexe na exclusividade e rivalidade dos bens privados do proprietário. Madeira, caça, turismo, segundas casas — continuam a ser dele, e só dele.

    photography of tall trees at daytime

    Reduzir tudo isto à caricatura do “estatismo arrogante” é fácil, mas é intelectualmente pobre. O Luís Gomes parece aquele condutor preso no trânsito que insiste em que a solução não são semáforos nem polícia, mas mais liberdade de acelerar. Podemos até deixá-lo carregar no pedal, mas ele vai limitar-se a bater no carro da frente a vociferar sempre que a culpa é do Estado.

    Ora, a floresta portuguesa é esse engarrafamento: milhões de parcelas, custos de coordenação altíssimos, risco partilhado que não respeita limites, benefícios públicos invisíveis no mercado. Não chega gritar “menos Estado”; é preciso desenhar instituições que alinhem incentivos e tragam justiça para quem até hoje tem sido sacrificado em silêncio.

    Chamar “bandido estacionário” ao Estado pode render aplausos numa tertúlia libertária, mas não resolve um único hectare de sustentabilidade e equidade. A questão útil não é essa; é antes perguntar que desenho institucional minimiza abusos e maximiza resultados.

    A resposta é clara: regras simples, contratos curtos, auditorias independentes, pagamentos por resultado, competição por preço através de leilões, acesso aberto a cooperativas, associações, baldios ou empresas, e possibilidade de delegação em entidades não estatais. O Estado coordena e paga, através de taxas (e não impostos) por serviços (por vezes intangíveis) prestados pela sociedade aos proprietários; a execução é descentralizada e disputada.

    a dirt road in the middle of a forest

    E para não restar qualquer equívoco, resumo em três linhas: 1) a propriedade permanece plena e quem tem terra mantém posse, uso, fruição e exclusão dos seus bens; 2) as externalidades negativas, como o risco de incêndio, são mitigadas com custos de protecção pagos; as externalidades positivas, como os serviços de ecossistema, são remuneradas com pagamentos justos e contratos transparentes; e 3) as instituições asseguram uma coordenação mínima, com execução diversificada e concorrencial, sujeita a escrutínio.

    A floresta portuguesa é, na verdade, um condomínio gigantesco onde só uns poucos condóminos são obrigados a pagar os extintores — e alguns nem sequer os compram —, mas, quando há fogo, arde o prédio todo. Aquilo que proponho não é tirar casas a ninguém: é apenas que o condomínio, em conjunto e de forma contratual, compre os extintores, mantenha as saídas de emergência e pague a quem faz a prevenção. Só assim a liberdade individual de cada condómino terá futuro. Até lá, continuaremos a ver o país a arder todos os verões, embalados por discursos inflamados contra o Estado que não passam disso mesmo: slogans sem chama para um mundo utópico, incapazes de resistir ao primeiro clarão.

  • Imigrantes nos fogos: mas, afinal, será que a desinformação é filha da má informação na imprensa?

    Imigrantes nos fogos: mas, afinal, será que a desinformação é filha da má informação na imprensa?

    Mais de 14,6 milhões de euros de subvenção estatal no ano passado, 221 jornalistas no quadro, uma editoria de fotografia com orçamento próprio de quase 600 mil euros – e, no entanto, enquanto o país ardia, a agência noticiosa Lusa decidiu retratar a participação de imigrantes no combate aos incêndios rurais com uma reportagem preguiçosa, redigida a partir de uns telefonemas, da “cópia” parcial de um artigo do Dhaka Post e ‘enfeitada’ por fotografias de arquivo .

    Nada de repórteres no terreno, nada de fotografias tiradas por fotojornalistas, nada de confronto com os protagonistas principais, nada de validação junto das entidades responsáveis. Acrescia a tudo isto um tom laudatório, quase missionário, ao qual se somava um pormenor inadmissível até num estagiário de jornalismo: alguns dos imigrantes referidos pela Lusa eram identificados apenas com um nome. A peça acabou reproduzida sem pestanejar pelo Expresso, que — mais uma vez — demonstrou ser apenas correia de transmissão de uma informação mal apurada. E ainda fez pior: em vez de fotografia de arquivo (como fez a Lusa), alguém se lembrou no Expresso de ‘enfeitar’ uma reportagem manca (por ter sido feita ao telefone nem sequer ter sido enviado um fotojornalista) com imagens de má qualidade pescadas nas redes sociais.

    Reportagem ‘original’ do Expresso, via Lusa.

    Analise-se as ‘imagens’ usadas pelo Expresso – e aqui aplica-se o ditado de que uma imagem vale por mil palavras, embora neste caso signifique que uma má imagem pode destruir a credibilidade de mil palavras. A dúvida saltava à vista.

    Numa, um grupo de 14 homens com camisolas amarelas posa sentado a uma mesa de madeira, com garrafas de Coca-Cola e copos de plástico. Na outra, vê-se um conjunto de sapadores de capacete amarelo e fato anti-fogo laranja e verde segurando uma mangueira, alinhados em plena serra, mais um a olhar para a câmara de uniforme amarelo e verde e chapéu, enquanto um pequeno fogo de mato lavra a alguns metros de distância.

    Na primeira fotografia, os traços dos sapadores denotavam a sua origem étnica, mas a qualidade da imagem e diversos elementos causavam estranheza. Na segunda, além da fraca qualidade, a aparente descontração do elemento que olhava para a câmara levantava dúvidas num cenário de fogo activo, embora também pudesse tratar-se de uma acção preventiva de fogo controlado noutra época do ano.

    Fotografia usada pela ‘reportagem’ do Dhaka Post e depois usada pelo Expresso.

    Seriam fotografias ilustrativas de equipas de sapadores? Eram, afinal, imagens autênticas ou fruto das manipulações correntes em tempos de inteligência artificial? Foi o que muitos começaram a questionar nas redes sociais — e até um deputado do Chega, Rui Paulo Sousa, aproveitou para lançar suspeitas sobre a veracidade da reportagem. Ao longo do dia de ontem, a rede social X inundou-se de publicações a pôr em causa a autenticidade das fotos – e, por arrasto, da própria reportagem –, não faltando análises sobre a probabilidade de recurso a inteligência artificial que a classificavam como altamente suspeita.

    Esta polémica não teria nascido, sublinhe-se, se a Lusa e o Expresso tivessem feito o mínimo trabalho jornalístico: produzir as suas próprias imagens – é para isso que existem fotojornalistas numa agência que teve rendimentos no ano passado de mais de 18,8 milhões de euros – ou, na pior das hipóteses, confirmar a origem das fotografias, ouvir responsáveis da associação que supostamente emprega os homens retratados e garantir que as declarações encaixavam no contexto real. Mas nada disso foi feito.

    Na pseudo-reportagem da Lusa, depois amplificada pelo Expresso com uso de imagens não validadas, não surge uma única palavra de Vasco Campos, presidente da Caule – Associação Florestal Beira Serra, uma das mais dinâmicas da região Centro e alegado empregador dos sapadores florestais retratados. Não há confirmação, não há enquadramento, não há sequer números. Apenas uma narrativa romanceada sobre imigrantes da região do Indostão que estariam “na linha da frente” do combate às chamas.

    Segunda fotografia da polémica ‘reportagem’.

    Perante a quantidade absurda de reacções sobre a eventual manipulação de imagens e de informação usada pela Lusa e Expresso, o PÁGINA UM fez aquilo que se exige a quem leva o jornalismo a sério: foi ouvir Vasco Campos. E, embora tenha lamentado que o jornalista da Lusa (e o Expresso) não o tenha contactado, este dirigente da associação com sede no concelho de Oliveira do Hospital confirmou ao PÁGINA UM, sem rodeios, que as fotos eram verdadeiras, embora captadas antes dos incêndios recentes com recurso a um telemóvel antigo — daí a fraca qualidade — e que 70% dos seus sapadores florestais são hoje estrangeiros.

    Na verdade, fundada em 2001, a Caule possui actualmente seis equipas de cinco elementos cada, portanto 30 pessoas, não incluindo técnicos, a proteger cerca de seis mil hectares de floresta nos concelhos de Oliveira do Hospital e Seia. “Sobretudo a partir de 2019, foi esta a solução que encontrámos. Estou muito satisfeito”, afirma. Entre os trabalhadores, predominam, conforme destaca, cidadãos do Bangladesh, Paquistão e Índia, a que se juntam alguns africanos, incluindo dois angolanos e um marroquino.

    Os números são, portanto, claros, apesar de omitidos na pseudo-reportagem da Lusa: de 30 sapadores da Caule, duas dezenas são imigrantes. E a experiência, garante Vasco Campos, tem sido positiva. “Na generalidade, são excelentes trabalhadores, cumpridores e cordatos. Sentam-se à mesma mesa que eu”, diz, frisando que a integração local é boa e que várias famílias já vivem na região, com filhos, alguns já nascidos em Portugal. “Aqueles que andam na escola são muito bons alunos”, acrescenta ainda, notando com graça que alguns dos mais jovens até bebem uma cerveja de vez em quando, ou fumam, “mas às escondidas dos mais velhos”.

    Publicação no X do deputado Rui Paulo Sousa.

    O verdadeiro problema para a manutenção destas equipas multiétnicas, admite Vasco Campos, é financeiro: “Não conseguimos pagar mais do que o salário mínimo nacional. O salário bruto ronda os 1.500 euros, mas reduz-se no líquido porque há descontos pesados para impostos, segurança social e seguros, que são caríssimos nesta profissão de alto risco.” Os apoios estatais cobrem menos de metade das despesas, e muitas tarefas de silvicultura têm de ser asseguradas como contrapartida. Em todo o caso, vários destes elementos estão em casas disponibilizadas pela associação e os membros isolados juntaram-se para alugar habitações em aldeias próximas. Nestas condições, um salário mínimo numa aldeia de Oliveira do Hospital vale muitíssimo mais do que o mesmo rendimento numa cidade como Lisboa, o que permite a estes imigrantes pouparem dinheiro para enviarem para os seus países, como aliás sucedeu com as remessas dos emigrantes portugueses que rumaram sobretudo para países europeus e americanos a partir da década de 60 do século passado.

    Na frente de combate, a eficácia destas equipas de sapadores que integram imigrantes ficou demonstrada nos incêndios recentes: ainda arderam cerca de 1.500 hectares de terrenos florestais da associação Caule, mas a intervenção dos sapadores foi decisiva para travar a propagação em zonas críticas. “Trabalhámos noite dentro, que é quando as condições meteorológicas são mais favoráveis para um ataque ao fogo em zonas bem geridas”, acrescenta Vasco Campos.

    Conclusão: de facto, há equipas de sapadores maioritariamente estrangeiros, como a da Caule — mas também se fica a saber como a desinformação nas redes sociais, criticada rudemente pela imprensa, é afinal muitas vezes gerada paradoxalmente a partir de má informação da própria imprensa.

    Ontem, rapidamente circularam no X diversas publicações a atribuírem manipulação de imagens por inteligência artificial.

    Quando a principal agência de notícias do país publica uma reportagem sem fotografias próprias in loco, sem validar fontes e sem ouvir quem devia ouvir, o resultado é um produto jornalístico frágil, permeável a dúvidas legítimas e combustível perfeito para suspeições populistas. A verdade passa a ser refém do amadorismo. E quando depois um jornal que se autoproclama de referência ‘saca’ fotos de má qualidade e coloca como créditos as redes sociais, sem identificar sequer a fonte em concreto, não se pode queixar da perda de credibilidade, que o afecta a si, mas também a todo o jornalismo.

    Este caso ilustra uma tendência cada vez mais preocupante: o jornalismo português, mesmo aquele subsidiado com milhões de euros do erário público, prefere poupar nos custos mais elementares — deslocar repórteres, enviar fotojornalistas, gastar combustível — para se refugiar na comodidade do telefone e no saque às redes sociais. As redacções deixam de fazer trabalho de campo e transformam-se em escritórios de copy-paste. A diferença entre notícia e boato, entre reportagem e comentário laudatório, esbate-se perigosamente.

    Neste caso em concreto, além das falhas na reportagem, destaca-se o uso de fotografias obtidas em redes sociais, sem qualquer validação, em vez de serem feitas por um fotojornalista, ainda mais relevante por se tratar, supostamente, de uma reportagem, que nem sequer faz sentido ser feita a partir de uma secretária.

    Agência Lusa fez uma reportagem ser ir ao local. O Expresso republicou e decidiu ir ‘pescar’ fotos amadoras nas redes sociais sem sequer identificar correctamente a fonte.

    E aqui remete-se para um problema que começa a ser crónico: a perda da relevância da fotografia como elemento fulcral do jornalismo, e sobretudo na reportagem jornalística, no seio da imprensa mainstream. Até porque se pensa que, agora, com a democratização dos smartphones com câmaras fotográficas, se generalizou a ideia de que a fotografia pode ser obtida de qualquer forma.

    José Manuel Ribeiro, um dos mais reputados fotojornalistas portugueses, afirma que “o primeiro problema é que os cursos de comunicação social e jornalismo têm vindo a eliminar o ensino de fotografia”, algo que se agravou com a crise financeira na imprensa.

    “Com a redução das redacções, são pessoas impreparadas profissionalmente que estão a escolher as fotografias a publicar”, salienta este antigo fotojornalista da Lusa, Público e Reuters, que lamenta que “os órgãos de comunicação social tenham deixado de ter editorias de fotografia”. Para José Manuel Ribeiro, agora “o tratamento das fotografias é mau; antes, a foto era uma garantia de autenticidade e dava credibilidade às notícias e reportagens.”

    Alegadamente, o próprio Grok atribuiu manipulação nas fotografias. A possibilidade de ‘falsos positivos’ aumenta, contudo, quando fotos amadoras são tiradas com telemóveis mais antigos.

    Para agravar, hoje existe uma tendência na imprensa, que não ocorria há alguns anos, de se usar material da Lusa sem validação posterior. Assim, no caso da “reportagem” sobre os sapadores imigrantes, o Expresso publicou-a tal como estava, como quem despeja mercadoria numa banca, sem edição crítica, sem escrutínio. E coloca a cereja em cima do bolo do descrédito: usa fotos amadoras fazendo crer que estavam na reportagem original da Lusa.

    Este é o retrato de uma dependência estrutural: o jornal que em tempos se quis referência torna-se refém de uma agência que lhe serve material pronto a usar, mesmo que esse material seja deficiente. Resultado: os leitores foram confrontados com uma reportagem que não esclareceu, não quantificou e não contextualizou — apenas contribuiu para a cacofonia em torno dos fogos e da imigração.

    Em suma: sim, é verdade que hoje em Portugal há equipas de sapadores florestais compostas maioritariamente por estrangeiros. Sim, eles são protagonistas na prevenção e no combate inicial aos fogos. Mas aquilo que a Lusa e o Expresso entregaram ao público foi uma pseudo-reportagem sem rigor, com fotografias duvidosas, sem protagonistas ouvidos e sem dados fiáveis. O debate público sobre imigração e incêndios não precisa de peças romantizadas; precisa de factos sólidos, de vozes directas, de números verificados.

    Brigadas de sapadores florestais da Caule. O PÁGINA UM falou ontem com o presidente desta associação, Vasco Campos. Fonte: Caule – Associação Florestal da Beira Serra

    Este episódio mostra como nasce e se propaga a desinformação: não da sombra obscura das redes sociais, mas do coração de órgãos que deviam ser guardiões da informação fidedigna. Quando os meios de referência falham no básico, abrem caminho ao boato, ao populismo e à descrença.

    A desinformação, neste caso como em tantos outros, começa não no X ou no Facebook ou no WhatsApp, mas sim em redacções preguiçosas, com a chancela oficial da agência nacional de notícias. E o aplauso da imprensa generalista que, com as reportagens da Lusa, fica satisfeita por encher chouriços.

    com Elisabete Tavares

  • 339 hectares por cada incêndio em Agosto: conheça os números do verdadeiro colapso do sistema de combate

    339 hectares por cada incêndio em Agosto: conheça os números do verdadeiro colapso do sistema de combate

    Agosto de 2025 ficará gravado como o mês mais negro na já longa história do combate aos incêndios rurais em Portugal. E não por pouco. Embora o número de ocorrências não seja particularmente elevado – 2.255 registos, muito aquém dos mais de 10.486 ignições em Agosto de 2003 (o pior mês de sempre, em que arderam 312 mil hectares em 31 dias) –, a devastação ultrapassa qualquer parâmetro aceitável em termos de eficácia na extinção.

    Até ao dia de hoje, de acordo com dados oficiais do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), os 211.240 hectares de floresta, matos e áreas agrícolas já consumidos pelas chamas desde o dia 1 de Agosto farão deste mês o terceiro pior, assumindo que os 212.917 hectares dizimados em Agosto de 2005 serão ultrapassados.

    Se a última semana do mês em curso não piorar os valores, Agosto de 2025 ficará apenas aquém dos tristemente lendários meses de Agosto de 2003 (312 mil hectares) e de Outubro de 2017 (289 mil hectares), neste caso ardidos em pouco mais de 24 horas devido a fenómenos meteorológicos absolutamente atípicos.

    Contudo, a tragédia de Agosto de 2025 atinge proporções históricas na ineficácia do combate, que nunca foi tão baixa, revelando fragilidades profundas no modelo português de resposta aos incêndios.

    De facto, se o retrato absoluto já assusta, o retrato relativo é ainda mais chocante. Em Agosto de 2003, o primeiro mês dantesco da triste história dos fogos rurais em Portugal, cada incêndio destruiu, em média, cerca de 105 hectares, a primeira vez que se superou a fasquia dos 100 hectares. Esse valor manteve-se sempre como um triste recorde até Outubro de 2017, em que, por virtude de uma área ardida de 289 mil hectares em apenas pouco mais de 1.500 incêndios, se atingiu uma média de 189 hectares.

    Evolução mensal da área média ardida por incêndio rural (excluindo fogachos) em Portugal, de Janeiro de 2001 a Agosto de 2025 (até dia 24). O valor registado em Agosto de 2025 é o mais elevado de sempre, atingindo 339 hectares por incêndio, muito acima dos anteriores picos de Outubro e Junho de 2017, Setembro de 2024 e Agosto de 2003. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.

    Se Outubro de 2017 teve condições meteorológicas atípicas, que dificultavam o combate, já Setembro do ano passado devia ter sido mais um sinal do colapso do actual modelo de combate. Esse mês concentrou quase toda a área ardida de 2024 e cada incêndio (num total de 821) destruiu, em média, 154 hectares, um valor também absurdamente elevado.

    Mas em Portugal, o absurdo pode sempre ser ultrapassado, mesmo com valores estratosféricos. No mês de Agosto de 2025, ainda em curso, cada incêndio consumiu em média 339 hectares – ou seja, quase 80% acima do recorde negativo anterior. E o número de ignições acima de um hectare (622) fica muito aquém dos três piores meses em área ardida: Agosto de 2003 contabilizou 2.980 incêndios (ocorrências com mais de um hectare), Outubro de 2017 contabilizou 1.531 e Agosto de 2005 teve 4.518. Ou seja, nesses períodos, o sistema de combate teve provas de fogo e falharam; agora, com menor intensidade de combate alargado, ainda falharam pior.

    Mesmo quando se incluem os chamados fogachos (ignições de reduzida dimensão, inferiores a um hectare), a imagem é igualmente devastadora no presente mês de Agosto: cada ocorrência, mesmo contabilizando as mais pequenas, resultou em quase 94 hectares de área ardida em Agosto de 2025, ultrapassando largamente os 81 hectares de Outubro de 2017 e, sobretudo, os outros meses mais negros. Por exemplo, em Agosto de 2003, ainda o pior mês em área ardida, registaram-se 10.486 ignições (cerca de quatro vezes mais do que em Agosto de 2025), pelo que a média por ocorrência se fixou em 30 hectares.

    Evolução mensal da área média ardida por ocorrência (inclui fogachos, incêndios florestais e agrícolas e ainda reacendimentos) em Portugal, de Janeiro de 2001 a Agosto de 2025 (até dia 24). O valor em Agosto de 2025 é o mais elevado de sempre, atingindo 94 hectares por ocorrência, muito acima dos anteriores picos (Outubro de 2017 e Setembro de 2024). Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.

    Este contraste entre o número relativamente baixo de ignições em Agosto de 2025, sobretudo em comparação com 2003 e 2005, e a dimensão catastrófica dos danos não pode ser explicado pela meteorologia ou pelo acaso. O PÁGINA UM analisou todos os registos mensais desde Janeiro de 2001 até ao presente, e a conclusão é inequívoca: a máquina de combate está em colapso, mesmo com uma tendência de redução de ignições, e Setembro do ano passado já foi o primeiro sinal.

    O país enfrenta hoje menos ignições do que há vinte anos – reflexo provável de maior sensibilização da população, menor incidência de actos dolosos e de práticas negligentes –, mas o dispositivo de supressão não conseguiu impedir que fogos de média e grande dimensão se transformassem em verdadeiros monstros incontroláveis.

    A explicação para esta deriva não reside apenas nas condições de calor extremo ou na acumulação de combustível vegetal, factores que são comuns a outras épocas. O problema mostra-se estrutural: Portugal mantém um modelo de combate anacrónico, assente numa miríade de corporações pseudo-voluntárias, dependentes de subsídios e apoios, mas sem verdadeira coordenação estratégica.

    Evolução do número de ocorrências (inclui fogachos, incêndios florestais e agrícolas e ainda reacendimentos) em Portugal, de Janeiro de 2001 a Agosto de 2025 (até dia 24). O valor registado em Agosto de 2025 é apenas o 80.º mês com mais ocorrências desde Janeiro de 2001. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.

    Multiplicam-se as associações e estruturas locais, cada uma a reclamar mais meios e mais recursos, mas sem um planeamento central eficaz nem uma doutrina clara para debelar incêndios em regiões de risco acrescido, como o Centro e o Norte Interior, onde se concentram vastas manchas de povoamentos florestais, matos e áreas agrícolas abandonadas.

    O país investe anualmente centenas de milhões de euros em meios aéreos, máquinas e dispositivos, mas falha naquilo que é essencial: prever e neutralizar os incêndios que, pela sua localização e condições, têm alta probabilidade de atingir grandes dimensões. Ao invés de uma estratégia nacional que privilegie o ataque inicial rápido e coordenado nos focos críticos, continua-se a gastar energias e recursos numa guerra de desgaste, em que milhares de homens são mobilizados para fogos já fora de controlo, enquanto os decisores políticos se escudam em discursos inflamados sobre a “coragem dos bombeiros”.

    Agosto de 2025 é, por isso, um mês-síntese das contradições portuguesas: menos fogos do que no passado, apesar da tentativa de criar uma percepção diferente, mas incêndios cada vez mais devastadores; mais meios, mas menos eficácia; mais discursos de exaltação, mas menos resultados concretos. Se em 2003 e 2005 o drama pôde ser explicado pela combinação de um número extraordinário de ignições com condições meteorológicas extremas, e se em 2017 a tragédia se deveu ao caos de coordenação e falhas operacionais, o que hoje se observa é ainda mais inquietante: o sistema está, pura e simplesmente, a perder eficácia estrutural.

    Indicadores dos 20 piores meses desde 2001. Fonte: ICNF. Análise: PÁGINA UM.

    Portugal habituou-se a viver com a retórica do “combate heroico” e com a lógica cíclica da “economia do fogo”: cada ano de desastre é seguido de promessas de reformas e investimentos, que logo se dissolvem na espuma das estações. As corporações locais, dependentes de subsídios, clamam por mais recursos, os fornecedores de meios aéreos multiplicam contratos milionários, e os políticos exibem-se nos “postos de comando” a debitar palavras de circunstância. Entretanto, a floresta arde, os solos erodem e as aldeias do interior esvaziam-se, ano após ano, numa espiral de abandono e desolação.

    A tragédia de Agosto de 2025 não é, por isso, apenas o resultado de um verão quente. É o espelho de um modelo esgotado, incapaz de se adaptar à realidade contemporânea. O país reduziu drasticamente as ignições ao longo das últimas duas décadas, sinal de que já não somos a mesma sociedade de descuido e fogo posto dos anos 80 e 90. Mas, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão mal preparados para enfrentar os grandes incêndios que, inevitavelmente, surgem em zonas críticas.

    silhouette of trees during sunset

    Os desastrosos números da eficácia no combate – e há ainda outros indicadores que permitiriam reconfirmar este desastre, se forem disponibilizados – são um retrato fiel da falência do sistema. Não estamos perante um azar estatístico, mas perante um falhanço nacional que exige reflexão séria e reformas profundas.

    Caso contrário, o próximo mês de Setembro, ou um outro qualquer em época de risco, poderá não ser apenas o pior em eficácia: poderá ser, pura e simplesmente, o pior de sempre em todos os indicadores. Com este modelo, todos os recordes negativos são possíveis de bater.