“Vamos limpar a Amadora” – este é o mote do deputado Rui Paulo Sousa, que se candidata à autarquia local pelo Chega e tem colocado a alegada criminalidade deste subúrbio de Lisboa na agenda política. Ainda na semana passada, um dos braços direitos de André Ventura perguntava em tom retórico: “Até quando queres viver no Gueto de Lisboa?… Vamos limpar a Amadora da Bandidagem, vamos devolver a Cidade aos Amadorenses de bem.”
Para sustentar esta tese, Rui Paulo Sousa apresentou um ranking surpreendente, da plataforma Numbeo, que colocava a cidade da Amadora no “17.º lugar no ranking das cidades mais perigosas da Europa… à frente de Odessa na Ucrânia!!!”, escreveu o candidato. Aliás, descontando o facto de a Amadora surgir ex-aequo com a cidade ucraniana, confirma-se o lugar no ranking do primeiro semestre de 2025 desta plataforma colaborativa.
Contudo, aquilo que mais surpreende é que a Amadora, cidade com cerca de 180 mil habitantes, nem sequer aparece na lista de 132 cidades europeias analisadas em 2024, onde apenas surgiam Lisboa (na posição 95) e Porto (na posição 87), ambas classificadas como cidades com baixo índice de criminalidade. No ranking de 2025, Lisboa ocupa a posição 76 e o Porto o lugar 110, embora ambas com percepção de risco baixo. A entrada de rompante no ranking causa estranheza, desde logo.
Porém, mais surpreendente ainda é constatar que a Amadora, mesmo figurando no 17.º lugar deste ranking europeu, ocupa apenas a posição 104 a nível mundial, numa lista liderada por duas cidades da África do Sul (Pietermaritzburg e Pretória), país que conta com cinco cidades no top 10.
Entre as 25 cidades consideradas menos seguras do mundo, segundo o ranking do Numbeo, seis são brasileiras (Salvador, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre e São Paulo) e quatro são norte-americanas (Memphis, Detroit, Baltimore e Albuquerque). A cidade europeia considerada menos segura, Bradford (Reino Unido), surge na 33.ª posição.
Embora a Amadora surja com frequência na narrativa mediática como cidade com problemas de segurança, os dados estatísticos não confirmam essa percepção. Pelo contrário.
De acordo com os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE), o concelho da Amadora ocupa apenas a 131.ª posição entre os 308 municípios portugueses em termos de criminalidade total em 2024, com 28,9 crimes por mil habitantes — ligeiramente abaixo da média nacional, fixada em 30,0. O topo da lista é ocupado por Albufeira (78,2), Avis (74,5), Mourão (64,6), Loulé (61,4) e Porto (60,6). Já Lisboa regista 53,6 crimes por mil habitantes — quase o dobro da Amadora em termos relativos.
No caso dos roubos por esticão e na via pública — tipologias particularmente traumáticas —, a taxa de criminalidade em Lisboa é quase cinco vezes superior à da Amadora (3,2 contra 0,7 por mil habitantes). E nos crimes contra o património, os mais numerosos, a Amadora também está longe do topo nacional — quanto mais do europeu. Com 13,9 crimes por mil habitantes em 2024 nesta categoria, está abaixo da média nacional (17,3), enquanto Lisboa e Porto apresentam rácios quase três vezes superiores: 34,6 e 39,9, respectivamente.
Intrigado com os dados, o PÁGINA UM questionou o CEO do Numbeo, Mladen Adamovic, sobre a posição concreta da Amadora, que confirmou a que, em 2025, esta cidade portuguesa registou um número anormalmente elevado de avaliações por usuários em comparação com anos anteriores. Mas mesmo assim, o total é absurdamente pequeno: apenas 27 entradas válidas relativas à Amadora em 2025, contra apenas 9 em 2024 e 11 em 2023. O aumento das submissões começou, segundo Adamovic, “em Julho”, admitindo que “se deveu a uma maior atenção mediática”.
Embora o Numbeo admita ser frequentemente alvo de spam, Adamovic assegura que existem algoritmos de detecção de padrões suspeitos, incluindo cruzamento de endereços IP e outros dados de utilizador, que permitem eliminar participações manipuladas. No caso da Amadora, garante que “não foi detectado um número elevado de actividades suspeitas que pudessem ser manualmente classificadas como spam”, embora fique agora patente que bastam 27 contribuidores para colocar qualquer cidade europeia numa posição relativamente negativa.
Apesar destas garantias, saliente-se que o modelo do Numbeo assenta exclusivamente em percepções subjectivas — como medo de ser assaltado, presença de vandalismo ou consumo de drogas — recolhidas por meio de questionários voluntários, não havendo validação por dados criminais oficiais. Isso torna o índice vulnerável a flutuações motivadas por fenómenos mediáticos ou campanhas organizadas. A própria ascensão abrupta da Amadora, sem justificação demográfica ou criminal, poderá ter sido amplificada pelo uso político em vésperas de eleições autárquicas.
Mladen Adamovic, CEO da Numbeo revelou ao PÁGINA UM que em 2025 houve apenas 27 avaliações sobre a cidade da Amadora.
O Numbeo não divulga os perfis dos utilizadores, nem os critérios detalhados do seu sistema de ponderação, o que dificulta a verificação externa da robustez estatística dos seus rankings. Ainda assim, os dados são amplamente divulgados e frequentemente tomados como factualidade. Percepções, ainda que subjectivas, tornam-se instrumentos de disputa eleitoral.
O Numbeo é uma base de dados colaborativa, disponível online desde 2009, que recolhe e divulga indicadores sobre qualidade de vida em cidades e países de todo o mundo. A plataforma tornou-se particularmente conhecida pelos seus rankings de custo de vida, segurança, poluição, sistema de saúde e criminalidade.
Ao contrário de organismos oficiais — como o Eurostat ou os institutos nacionais de estatística —, o Numbeo não trabalha com dados administrativos ou criminais oficiais, baseando-se unicamente em inquéritos voluntários anónimos, preenchidos por utilizadores registados de forma contínua. A recolha dos dados depende, portanto, das percepções subjectivas dos respondentes, sem qualquer validação externa ou auditoria metodológica independente.
O índice mais citado — e também o mais polémico — é o chamado Crime Index, que pretende expressar a percepção do nível de criminalidade numa cidade, numa escala de 0 a 100. Um valor mais elevado traduz maior sensação de insegurança. O índice resulta de perguntas como: “Tem medo de ser assaltado?”, “Acha que há muitos casos de vandalismo?”, “É seguro andar sozinho à noite?”, “Há consumo e tráfico de drogas?” ou “Considera a sua cidade corrupta?”.
As respostas, todas subjectivas, são agregadas com maior peso para as mais recentes, embora não se saiba quantos inquéritos são considerados por cidade nem qual a sua representatividade. Complementarmente, o Safety Index representa o inverso: é calculado como 100 menos o Crime Index.
Ao fim de três décadas a escrever, com intervalos mais ou menos voluntários, reencontrei-me num modo de estreia: não com a pena, mas com a pulseira de imprensa, perdido no mundo ruidoso do jornalismo festivaleiro. Ali estive eu — uma espécie de estagiário com barba branca, uma Maria João Pires metida num concerto errado de Mozart — a cobrir o NOS Alive como se fosse um neófito do ofício, atordoado pelo estrépito da música e pelos brados da multidão, entre barracas de Heineken e Licor Beirão, e os lounges da Galp e da Fidelidade — e desculpem-me todas as outras marcas por não as citar, porque não apontei. Nem tinha de apontar.
Ali estive, portanto, estoicamente, nesta feira pós-moderna de comes, bebes e branding — não é só música. Aliás, a haver performances, são para o consumo, o happening estético, o enclave publicitário.
Primeiro ponto desta minha experiência: ao contrário da Prime Artists, com a Everything is New, do Álvaro Covões, os jornalistas são bem tratados. E compreende-se. São eles os olhos de três públicos: dos que estiveram lá e precisam de validação; dos que não estiveram, mas anseiam por ter estado; e, sobretudo, daqueles que lá estiveram e não viram quase nada — porque ninguém consegue estar em todos os palcos ao mesmo tempo, mesmo com mapas, horários e fé.
Eu próprio fui um desses: e só por acaso vi, na primeira noite, Parov Stelar – que vou passar a acompanhar – porque me entretive mais a perceber os fenómenos Benson Boone (com os saltos mortais) e, sobretudo, Olivia Rodrigo (a quem falta energia e alguma voz em palco, com um ou outro acorde fora de tom — mas isso sou eu a falar, uma autêntica cana rachada).
No Media Press — com balcão elevado e vista para o palco principal a uns 200 metros de distância, e com muitas milhares de cabeças em baixo — serviu-se cerveja, cidra, água, café e refrigerantes sem fim, e boa comida em abundância. Não foi a frugalidade quase beneditina das sandochas no camarote da Varanda da Luz, que o Benfica distribui em noites da Liga e da Champions. Aqui, houve dignidade digestiva. Cinco em cinco pontos para a Everything is New.
Além disso, fui afortunado com lugar VIP, porque, nos dois dias de espectáculo que assisti (faltei ao dia 11), tive oportunidade de estacionar a bicicleta eléctrica defronte à entrada — malgrado no sábado ter andado em ‘conferências’ com um comissário da polícia sobre questões de acesso.
Mas passemos à música. Tendo sido esta, curiosamente, a minha estreia em festivais como jornalista, foi também — incrivelmente — a primeira vez que vi os Muse ao vivo. E não por desinteresse, preguiça ou desdém: simplesmente nunca calhou. E, se era para ter ido, deveria ter sido logo da primeira vez, porque no longínquo Verão de 2000, quando actuaram no festival da Ilha do Ermal, eu já conhecia os putos do Showbiz, editado em 1999. Digo ‘putos’ porque, enfim, eu nesse ano fiz 30, e Matthew Bellamy, Dominic Howard e Chris Wolstenholme andavam entre os 20 e os 22 anos, já a ensaiar o estrondo que haveriam de provocar no rock (alternativo) mundial.
Origin of Symmetry, no ano seguinte, em 2001, foi o seu primeiro grito de grandeza, onde os riffs colossais se misturam com falsetes operáticos, pianos barrocos e uma energia quase messiânica. Foi a confirmação de um grupo que começava no topo — e isso, por vezes, não é bom.
Com apenas esses dois discos, a banda britânica passou a ter material para sustentar trinta anos de concertos, o que pode condicionar a criatividade futura — e, de facto, com mais baixos do que altos, os Muse tornaram-se mais uma banda de estádios do que de estúdio: se entre 1999 e 2009 editaram cinco álbuns, nos últimos quinze anos apenas lançaram quatro, todos com desequilíbrios.
Este trajecto notou-se no concerto deste sábado, no palco principal, para onde os Muse foram chamados de urgência a substituir os Kings of Leon — baixa de última hora por lesão vocal do frontman Caleb Followill. Aquilo que para uns terá sido uma desilusão, para muitos (eu incluído) acabou por ser um presente tardio. E, de facto, não foi qualquer presente: foi um concerto em crescendo, milimetricamente orquestrado, com teatralidade, peso sonoro e emoções medidas ao compasso da luz e do fumo.
Os Muse abriram o concerto com Unravelling, o novo single — ainda não lançado oficialmente, mas já testado ao vivo nesta digressão. Uma faixa que funde o rock progressivo com a electrónica e aquele pathos dramático que se reconhece logo na banda de Bellamy. E logo aí se notou: aos 47 anos está ele vocalmente em forma, a banda continua precisa, e o público respondeu com entusiasmo, como quem adivinha que algo maior está por vir.
O alinhamento foi uma retrospectiva compacta, bem escolhida: os êxitos de sempre — Time is Running Out, Hysteria, Uprising, Plug In Baby — surgiram com a pujança que se exigia. Notava-se a sintonia com o público, que foi enchendo o recinto: coros aqui e ali, braços no ar, numa espécie de comunhão pagã que somente um concerto com milhares pode gerar. O som estava bom. Quando surgiu Supermassive Black Hole, a pulsação do festival tornou-se palpável — embora para mim esta fase mais pop dos Muse me pareça um pouco desinteressante, porque se aproxima de música de discoteca.
Mas foi na recta final que tudo atingiu o seu auge. Primeiro com New Born, que condensa o ADN dos Muse e me faz recuar ao início deste século: intro delicada ao piano, crescendo progressivo, explosão eléctrica e a voz inconfundível e única de Bellamy.
Depois, houve o clímax inevitável, já habitual em concertos ao vivo: Knights of Cydonia. A música — essa mistura de space rock, western e revolta épica — tornou-se o hino de fecho perfeito, primeiro com a harmónica dramática de Chris Wolstenholme e o seu célebre grito de resistência: “No one’s gonna take me alive!”
Mas a abertura com a harmónica solitária — que não faz parte da versão de estúdio do álbum Black Holes and Revelations (2006) — soou, desta vez, mais dramática, porque o baixista dos Muse envergava uma camisola da selecção nacional com o número 21 e o nome de Diogo Jota. A música foi dedicada ao malogrado futebolista do Liverpool. Houve emoção partilhada, quase ritualística — e aquela música foi uma espécie de missa laica de celebração em nome da música, da vida e da memória.
Posto isto, saí do recinto, depois de ainda ter dado uma oportunidade aos Nine Inch Nails — mas a banda de Trent Reznor nunca entrou no meu léxico musical quando se fundou em 1988, e não ia ser agora que inverteria o meu gosto. Não sou particularmente aficionado pelo chamado rock industrial. Assim como assim, para música visceral, preferi ver um pedaço do concerto dos Future Islands, antes de rumar com as botas e a bicicleta para casa.
Na vida, cometem-se erros e equívocos, mesmo quando as intenções iniciais são as melhores. Há cerca de três meses, abriu-se a possibilidade de uma colaboração sem custos para o PÁGINA UM por parte de João de Sousa, ex-inspector da Polícia Judiciária, com o passado público que se conhece. Esse passado, para mim, era irrelevante: acredito na reinserção social. O que interessava era a sua experiência.
A melhor forma de oficializar essa colaboração, centrada na área da Justiça, implicava o acesso a fontes de informação e, por vezes, a audiências com limitação de lugares. Por isso, foi formalmente solicitada à CCPJ a emissão de uma carteira de colaborador. Assim, João de Sousa passava a deter, para todos os efeitos, os mesmos direitos e deveres dos jornalistas. Contudo, ficou acordado que, nesta fase, a sua colaboração seria no registo de cronista, o que lhe conferiria simultaneamente liberdade e responsabilidade editorial.
Escrever num jornal como colunista é algo totalmente distinto de ser colaborador com estatuto equiparado ao de jornalista. Mesmo em textos de opinião, não se pode escrever “o que sai da real gana”, nem utilizar o espaço editorial para acertos de contas pessoais.
Durante o curto período da sua colaboração, João de Sousa publicou três crónicas. Todas escritas num português correcto, mas com um estilo que, pela minha experiência jornalística e literária, considerei merecer, aqui ou ali, alguns retoques. Esses ajustes visavam garantir maior equilíbrio editorial e tornar o conteúdo mais acessível aos leitores menos familiarizados com os temas tratados. Essa prática – corriqueira, habitual e até necessária no jornalismo e na edição literária – causava, porém, um indisfarçável incómodo ao João de Sousa, que fui sempre gerindo com diplomacia.
Nunca lhe manifestei que, por exemplo, discordava absolutamente do prisma de uma das suas crónicas, quando comparou o malogrado Diogo J. ao ex-primeiro-ministro José Sócrates, por me parecer despropositado ao contexto do início de um julgamento e de parecer uma colagem emocionalmente ilegítima. Nem tampouco me opus à publicação do texto, mesmo não concordando com o facto de ele justificar na crónica que não acompanhara o início do julgamento por estar em choque com a morte de um futebolista – e que quisera ir para casa beijar os filhos. Ambos sabíamos que, na verdade, houvera um lapso que não permitira a autorização do Tribunal para que ele tivesse garantia de assistir à primeira audiência como colaborador do PÁGINA UM. Enfim, mas no âmbito de uma crónica, existe liberdade de interpretação, e mesmo não sendo este o meu estilo, não deveria opor-me à publicação da crónica, que foi publicada, por razões de liberdade de expressão e de opinião.
Na passada sexta-feira, depois de receber à noite a sua quarta crónica, sobre a última audiência do julgamento Anjos vs. Joana Marques, enviei-lhe uma curta mensagem a sugerir a inserção de uma simples frase de transição entre a introdução e os três blocos seguintes. Sem qualquer conversa prévia por telefone, recebi a seguinte resposta:
“Acabou a colaboração, depois entrego-te o Cartão de Colaborador. Não tenho idade, vida ou paciência para isto. O texto já está publicado nas minhas redes sociais. Grato pela experiência. Bom concerto. Abraço.”
Hoje, João de Sousa decidiu ainda vitimizar-se nas redes sociais, acusando-me de “tiques de Citizen Kane” e mandando-me mais uns mimos. Eu teria preferido colocar uma pedra sobre o assunto, mas sou agora obrigado a explicar publicamente o meu modus operandi:
Com mais de três anos e meio de existência enquanto projecto de jornalismo independente, o PÁGINA UM acolheu a colaboração de João de Sousa com respeito e integridade, tal como já fez com muitos outros colaboradores, de qualquer quadrante ou ideologia. No caso dele, ainda com maior atenção. Ainda na própria sexta-feira, estive pessoalmente a tratar de uma providência cautelar para contestar judicialmente o indeferimento da sua acreditação por parte da Assembleia da República — providência que, naturalmente, já não será submetida. Este empenho mostra-se incompatível com o desrespeito evidenciado na sua mensagem abrupta e pouco cordata, em que rompe a colaboração por não aceitar que o director de um jornal lhe sugerisse a introdução sequer de uma vírgula.
Ao informar-me que publicara já o texto nas suas redes sociais, a publicação das crónicas no PÁGINA UM deixou de fazer sentido — até por razões legais. Aliás, ao decidir colocar as suas crónicas no site da sua empresa de consultadoria, João de Sousa rompeu de facto com o princípio de exclusividade e de vínculo editorial.
A sua remoção da ficha técnica e a comunicação do fim da colaboração à CCPJ constituem, além de uma imposição legal, uma forma de proteger o PÁGINA UM de quaisquer responsabilidades que possam surgir, a partir da passada sexta-feira à noite, da associação entre o nome de João de Sousa — detentor de cartão de colaborador 1520, passada pela CCPJ — e este jornal.
Como o próprio João de Sousa foi informado no mesmo dia, o podcast A Corja Maldita, que contava com três elementos, foi suspenso até ser possível conversar com o terceiro participante do grupo. Havia, naturalmente, abertura para a continuação do podcast, incluindo com o João de Sousa — possibilidade que agora se afigura pouco provável. Os episódios já realizados do A Corja Maldita mantêm-se disponíveis nas plataformas Spotify e YouTube.
Conclusão:
Lamento profundamente que uma colaboração que procurou, desde o início, ser respeitosa e construtiva tenha terminado desta forma precipitada. E sobretudo de forma acintosa por parte do João de Sousa. O PÁGINA UM não aceita condutas que coloquem em causa a seriedade e a responsabilidade editorial que se exige a quem escreve sob a sua chancela — seja como cronista, seja como jornalista. A liberdade de expressão é um valor inalienável, mas no jornalismo deve sempre coexistir com a responsabilidade editorial, o respeito mútuo e o compromisso com os leitores.
Fizemos este percurso de 43 meses com cerca de 3.500 conteúdos, e deixar de ter este colaborador que escreveu três crónicas acaba por ser somente um pequeno percalço, que apenas a sua vitimização, que pretende colocar em causa a minha idoneidade, faz justificar estas linhas de esclarecimento.
Fica apenas mais um lamento e um mea culpa: a dimensão do PÁGINA UM — e sobretudo o seu estilo de independência — torna-o vulnerável a tentativas de aproveitamento. Tenho procurado evitar propostas de colaboração, mesmo a título gratuito, que possam insinuar uma futura associação de conveniência com este projecto. Por isso, tenho sido particularmente criterioso nessas decisões. Ainda assim, contra alguns sinais e avisos, aceitei a colaboração de João de Sousa, confiando na sua compreensão das regras do jornalismo e na natureza deste jornal. Enganei-me, até pela sua reacção de vitimização – e de ‘lavagem de roupa suja’ – quando foi ele a decidir ‘bater com a porta’ por uma ninharia editorial. E esse erro (de o aceitar como colaborador) é inteiramente da minha responsabilidade, e um redobrado aviso da vulnerabilidade do PÁGINA UM, da qual tenho consciência.
Durante décadas, Portugal debateu-se com a desertificação do interior, o envelhecimento galopante da população, o encerramento de escolas por falta de crianças, a perda de jovens qualificados para a emigração, a estagnação do mercado interno e a degradação progressiva da sua pirâmide etária. A narrativa dominante nas instituições e nos media era — e em muitos casos ainda é — de que Portugal precisava desesperadamente de gente. Precisava de imigrantes. Precisava de população activa. Precisava de fertilidade — ou, na falta dela, de uma infusão humana vinda de fora para compensar o seu destino estatístico de nação decadente.
E, aparentemente, conseguimos isso.
Só nos últimos três anos, entre 2021 e 2023, o país registou um saldo migratório líquido de mais de 400 mil pessoas. Nunca, em democracia, se exceptuarmos o período da descolonização — que remete para um período complexo da vida social e económica do país — se tinha registado um fluxo migratório tão intenso. Mas as diferenças são abissais, não apenas porque os imigrantes do pós-25 de Abril tinham raízes lusófonas e, em certa medida, culturais, como também porque o saldo natural ainda era fortemente positivo: nasciam, naquele período, cerca de 200 mil crianças — e agora são pouco mais de 80 mil.
Aliás, nos últimos três anos, apesar de todas as campanhas de incentivo à natalidade e da tão proclamada retoma pós-pandémica, o saldo natural (diferença entre nascimentos e mortes) manteve-se consistentemente negativo em cerca de 100 mil pessoas. Ainda assim, a população total cresceu, passando de 10,4 milhões para 10,7 milhões.
À superfície, este crescimento por via da imigração pareceria um sucesso. Um sinal de revitalização. Uma inversão histórica da decadência demográfica das últimas duas décadas. Mas é precisamente esta leitura apressada, quase eufórica, que precisa de ser contrariada — mas numa óptica de planeamento (futuro) e não de ideologia,que inquina qualquer debate sério.
Na verdade, nos últimos anos Portugal não assistiu a um qualquer crescimento planeado, equilibrado e sustentável. Deparou-se, pelo contrário, com um choque migratório desorganizado, com profundas assimetrias regionais, impactos negativos na habitação, sobrecarga dos serviços públicos, polarização social e nenhuma correspondência com uma política estruturada de acolhimento e integração.
A questão não está, pois, em discutir se o país precisa de população. Está, isso sim, em perceber que tipo de crescimento demográfico é possível e desejável num Estado social europeu com limites orçamentais, um parque habitacional envelhecido, um tecido económico frágil e serviços públicos a rebentar pelas costuras.
Porque — e convém que se diga sem rodeios — crescer demograficamente não é, por si, sinal de progresso.
Vejamos, numa síntese, aquilo que está em causa
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Um crescimento sem mapa
Em teoria, uma população pode crescer de forma equilibrada se o ritmo for ‘absorvível’: isto é, se os serviços de saúde, educação, habitação e transportes forem capazes de acompanhar a nova procura. Países com forte planeamento estratégico (como os escandinavos) conseguiram manter durante décadas ritmos de crescimento populacional moderados — na ordem dos 0,7% a 1,0% ao ano —, mas alinhados com investimentos em infraestruturas, formação de quadros, habitação pública e redes de mobilidade.
Portugal, em contraste, teve nos últimos três anos um crescimento médio superior a 1,2% ao ano apenas por via da imigração, sem que o Estado ou as autarquias tivessem feito qualquer planeamento prévio. Em Lisboa, na Amadora, em Loures ou em partes do Algarve, e mesmo em zonas mais rurais (Odemira é um exemplo gritante, com um crescimento de mais de 3% ao ano), o número de residentes cresceu de forma abrupta, mas sem novas escolas, sem reforço dos centros de saúde, sem redes de transportes ajustadas, sem parques habitacionais acessíveis.
A resposta do Estado foi a de sempre: nenhuma.
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Polarização territorial: crescimento desigual e desertificação persistente
Enquanto se celebrava o crescimento da população ao nível nacional, ignorava-se o facto de que esse aumento foi profundamente desigual.
Os grandes centros urbanos e metropolitanos absorveram quase todo o acréscimo populacional, alavancados por fluxos migratórios intensos, sobretudo de imigrantes em situação económica vulnerável. Lisboa, por exemplo, registou mais de 24 mil novos residentes entre 2021 e 2024, o que equivale a mais de 22 pessoas por dia, invertendo,de forma abrupta e sem qualquer planeamento, um declínio populacional de quatro décadas. O Porto, Sintra, Braga, Seixal, Amadora ou Cascais seguiram tendência semelhante. Nessas zonas, o crescimento agravou os problemas pré-existentes: congestionamento habitacional, encarecimento da habitação, pressão sobre escolas e centros de saúde, sobrelotação de transportes.
Em contrapartida, cem concelhos — quase um terço do país — perderam população nesse mesmo período, confirmando a persistência da desertificação e o falhanço continuado das políticas de coesão territorial. Municípios do interior centro e norte, bem como várias zonas do Alentejo e do interior algarvio, viram partir os poucos jovens que ainda restavam, enquanto a população envelhecida se reduzia naturalmente. Esta erosão silenciosa, muitas vezes fora do radar mediático, representa uma perda real de futuro.
Ou seja, cresceu a pressão nos territórios já saturados e aumentou o deserto nos territórios já esvaziados. É o paradoxo português por excelência: conseguimos perder coesão territorial ao mesmo tempo que ganhámos população.
E nem o Governo nem as autarquias fizeram algo de significativo para inverter ou atenuar esta tendência. Não houve incentivos sérios à fixação no interior. Não houve reconversão de habitação devoluta. Não houve planeamento dos fluxos migratórios por concelho. Houve, sim, omissão deliberada e aproveitamento político da ilusão de “crescimento populacional saudável”.
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Mercado habitacional: da crise à catástrofe
Basta olhar para o que se passa no mercado de habitação para se perceber que este crescimento populacional, longe de resolver problemas, amplificou-os até ao limite.
Com mais de 400 mil pessoas a entrarem no país em três anos — grande parte delas em zonas urbanas — o desequilíbrio entre oferta e procura disparou. O número de fogos construídos anualmente continua a ser residual face às necessidades, e a habitação pública é quase inexistente.
Resultado: os preços de venda subiram, as rendas explodiram, o alojamento local avançou sobre os bairros populares e muitos migrantes foram empurrados para zonas degradadas, insalubres ou para situações de sobrelotação ou informalidade.
Sim, Portugal cresceu. Mas à custa de bairros precários, tendas improvisadas, sobrecarga de transportes e famílias portuguesas a serem empurradas para longe dos centros onde vivem há décadas.
Note-se que, em zonas urbanas, se critica o exagero do alojamento local como causa para a escassez de casas, esquecendo, porém, dois aspectos essenciais. Primeiro, grande parte dos alojamentos locais no casco histórico são fogos de pequena dimensão (T0, T1) ou com características pouco atractivas para famílias jovens (p. ex., sem elevadores, com escadas íngremes, sem estacionamentos, com tráfego condicionado), pelo que só marginalmente contribuem para a crise habitacional — e já sem explorar muito que o parque habitacional de Lisboa e Porto foi recuperado com o boom turístico. Segundo, grande parte dos imigrantes em zonas urbanas — em zonas rurais é a actividade agrícola —, a imigração está associada directa ou indirectamente ao turismo, através da prestação de serviços.
Limitar ainda mais o alojamento local ou o turismo — cujo crescimento tem de ser limitado, mas por outras razões relacionadas com a própria capacidade de carga dos ‘bens turísticos’ — seria afectar dramaticamente o emprego dessa ‘massa’ de imigrantes, uma vez que a esmagadora maioria ocupa funções de trabalho menos qualificado.
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Serviços públicos: a pressão (in)visível
A entrada de centenas de milhares de pessoas numa rede de serviços públicos já fragilizada por anos de subfinanciamento e má gestão resultou naquilo que era previsível: congestionamento.
Quase não houve novos centros de saúde planeados com base nas novas densidades demográficas. Não houve reforço efectivo dos recursos humanos nos agrupamentos escolares onde a pressão aumentou. A expansão de linhas de transportes urbanos segue a conta gotas. Os serviços públicos, em geral, estão a prestar piores serviços, mesmo com a ajuda tecnológica — aliás, paradoxalmente, por vezes parece que funcionam pior por causa disso.
O resultado é o que qualquer utente percebe: esperas eternas nos serviços de saúde, turmas sobrelotadas, comboios a abarrotar, urbanizações novas sem transportes.
Estamos a viver o efeito de um crescimento súbito sem contrapartida de investimento público.
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Um Estado passivo e um discurso simplista
O mais grave de tudo isto é que, perante este cenário, a comunicação oficial continua a vender a ideia de que Portugal está “a inverter a crise demográfica”, que a imigração está a “compensar a baixa natalidade”, e que “temos finalmente mais população” — e, pior, que debater estes temas da imigração e do crescimento abrupto é coisa para instigar o ódio e fazer o serviço à direita radical e populista (ou, para simplificar e envenenar qualquer discussão, a extrema direita). Isto, sem colocar em causa o discurso a roçar a xenofobia e a discriminação por parte do Chega — mas este é o grande problema: digladiam-se soundbites, não se confrontam ideias.
E, no entanto, estamos perante realidades cada vez mais incómodas:
Que a baixa natalidade continua crónica, com um índice de fertilidade entre os piores da Europa (cerca de 1,4 filhos por mulher);
Que o saldo natural permanece negativo, com mais de 30 mil mortes a mais do que nascimentos por ano;
Que a maior parte dos imigrantes chega em condições de precariedade, não como resposta a uma estratégia nacional de qualificação, fixação territorial e sustentabilidade fiscal.
Um dos grandes desafios de um país é saber questionar-se para onde quer ir. Como quer crescer e definir um equilíbrio entre o presente e o futuro. E isso requer perceber, como até faz uma família, em perceber que uma comunidade tem de ser demograficamente equilibrada — e no caso português, seria necessário:
Que o crescimento fosse lento, previsível e absorvível (entre 0,7% e 1,0% ao ano);
Que houvesse planeamento infraestrutural antecipado, com metas em educação, saúde, habitação, mobilidade e coesão social;
Que o Estado regulasse e distribuísse os fluxos, incentivando a fixação em territórios periféricos ou em desertificação;
Que se apostasse na integração efectiva e no combate à precariedade, em vez de aceitar a marginalidade como inevitável;
E que se fomentasse, paralelamente, uma estratégia séria de incentivo à natalidade, com políticas de conciliação familiar, creches acessíveis e rendimentos dignos para jovens.
Nada disso está a acontecer.
Estamos a crescer — mas como um corpo descompensado, que incha num lado e emagrece noutro. Um crescimento assim não fortalece: deforma.
Podem definir-se diversos modelos para prever o que sucede a um país com o ‘quadro de partida’ de Portugal em 2025. Com este tipo de país, se este crescimento demográfico (e com as bases em que se sustenta), não for acompanhado por um planeamento coerente e por investimento público proporcional, o que parece um sinal de vitalidade poderá transformar-se numa bomba de pressão social e orçamental. E sem incluir a parte social e de choque cultural.
Com base numa simulação desenvolvida para este cenário, avaliando os efeitos entre 2025 e 2035, fiz uma análise simples, apenas para exemplificar, em quatro eixos principais: cuidados à população idosa, construção de escolas, reforço de centros de saúde e expansão habitacional. A abordagem parte de rácios realistas — e até conservadores — de prestação de serviços e de custos médios por unidade funcional.
1. O envelhecimento que não desaparece
Apesar do aumento líquido da população, a estrutura etária mantém-se envelhecida, com cerca de 23% da população acima dos 65 anos — ou seja, mais de 2,6 milhões de idosos em 2025 e quase 2,7 milhões em 2035. Este grupo consome, naturalmente, mais recursos de saúde, pensões e cuidados continuados. Assumindo um custo anual médio de 4.000 euros por idoso para cuidados públicos (entre lares, apoio domiciliário e saúde crónica), Portugal já gasta perto de 10 mil milhões de euros por ano só neste segmento — valor que aumentará para mais de 11 mil milhões em 2035.
Ou seja, só o envelhecimento populacional representa quase 5% do PIB actual em despesa social contínua, mesmo sem considerar aumentos salariais, inflação médica ou necessidades específicas de dependência severa.
2. Educação: crescer sem lugar nas escolas
A pressão sobre o sistema educativo será desigual. Embora a natalidade se mantenha baixa, o fluxo migratório — em particular de famílias jovens — tenderá a criar focos de aumento de procura escolar nas zonas urbanas e periurbanas, onde o parque escolar é antigo, subdimensionado ou desajustado.
A simulação indica que será necessário planear entre 43 e 46 novas escolas básicas ao longo da década para dar resposta ao crescimento projectado. Cada unidade representa, em média, 6 milhões de euros de investimento em construção, apetrechamento e pessoal de arranque. Isso traduz-se numa despesa anual da ordem dos 260 a 275 milhões de euros. Estes valores, ainda que relativamente modestos em termos agregados, tornam-se cruciais se forem ignorados — pois qualquer atraso resultará em sobrelotação, degradação da qualidade pedagógica e fuga para o privado, ampliando desigualdades.
3. Centros de saúde: serviços já saturados
Actualmente, a maioria dos centros de saúde nas áreas metropolitanas opera no limite da capacidade. Com o crescimento populacional previsto, será necessário construir pelo menos 10 a 12 novos centros de saúde até 2035, apenas para manter a mesma proporção de cobertura (1 por cada 100 mil habitantes, renovado a cada 10 anos). Cada centro exige cerca de 3,5 milhões de euros, totalizando um investimento acumulado de 35 a 42 milhões por ano. No entanto, esse número esconde a realidade: não basta construir paredes — é preciso recrutar médicos, enfermeiros, técnicos e garantir funcionamento efectivo. Os custos operacionais serão, provavelmente, superiores ao investimento em infraestruturas.
4. Habitação: o verdadeiro elefante na sala
O crescimento de 1 milhão de pessoas em 10 anos exigirá pelo menos 400.000 novas habitações, assumindo uma média de 2,5 pessoas por casa. Isso corresponde a 40.000 casas por ano, muito acima da capacidade actual de construção em Portugal, que tem oscilado entre 15 mil e 20 mil fogos. A discrepância entre procura e oferta acentuará a inflação imobiliária, expulsará famílias da classe média dos centros urbanos, e potenciará fenómenos de guetização e habitação informal.
Mesmo assumindo um custo médio de 125 mil euros por unidade habitacional (preço de construção, excluindo especulação e lucro de promotores), isso implicaria investimentos da ordem dos 5 mil milhões de euros por ano, seja por privados, seja com apoio público. A ausência de uma política habitacional estruturada transforma este valor em potencial bolha social.
5. Pressão fiscal e armadilha do crescimento deficitário
Com um custo anual cumulativo (cuidados a idosos, educação e saúde) a ultrapassar 11,5 mil milhões de euros em 2035 — ou seja, mais de 15% do valor actual —, e com o investimento habitacional exigido a aproximar-se de outros 5 mil milhões por ano, o país enfrentará um desafio orçamental de enorme envergadura. Isso só será sustentável com:
Um aumento significativo de contribuintes líquidos no saldo migratório;
Um mercado de trabalho que absorva imigrantes com estabilidade e salários dignos;
E uma redução da informalidade e da precariedade no trabalho migrante.
Sem isso, Portugal crescerá populacionalmente e empobrecerá estruturalmente — pois as receitas fiscais não acompanharão o custo do novo modelo social. Em suma, poderá haver mais gente, mas menos coesão, menos redistribuição e mais desigualdade.
Perante este cenário, queremos mesmo, como povo (e contribuintes) continuar a meter ideologia pelo meio — com as suas diatribes partidárias e guerrilhas infantis — ou já será tempo de exigir que os políticos se comportem como adultos e deixem de disputar o poder de um país que ameaça ruína?
Numa qualquer semana estival, entre festas de aldeia e campanhas com cânticos ecológicos, volta e meia sopra um ventozinho moral que gela a espinha dos que ainda pensam. Não por causa do que se diz — até porque já se espera tudo —, mas por aquilo que se esquece. E se há caso paradigmático da moral selectiva e da indignação plastificada das consciências contemporâneas, esse caso tem nome: Tesla. E um rosto catalisador: Elon Musk.
Convém recordar — porque a memória mediática é de curta duração e a moral pública é de plástico biodegradável — que, nos últimos anos, a Tesla tem sido alvo de campanhas de desdém e boicote, não por aquilo que produzia (carros eléctricos, limpos, bonitos e até eficientes), mas por causa do seu CEO. Com efeito, ainda recentemente, e depois de a compra do X (ex-Twitter) ter desencadeado uma onda contra a Tesla, o ódio dos media e de uma certa clique piorou porque, a certa altura, Elon Musk teve o desplante de estar próximo de Donald Trump — imagine-se, o pária-mor da civilização ocidental.
Ainda no início do ano, antes mesmo de se saber a causa — o suicídio de um militar veterano norte-americano — uma explosão em Las Vegas serviu durante dois dias para colocar a Tesla no centro das atenções, induzindo a ideia de que o problema estava no carro — e afinal, por triste ironia, foi a estanquicidade do Cybertruck a evitar danos envolventes maiores.
Sobretudo ao longo do último ano, tenho assistido a uma verdadeira maré moralista, onde desaguaram todas as figuras da ‘nova espiritualidade parvinha’. Recordo, entre tantas figuras menores, João Manzarra, que não hesitou em declarar publicamente que ia vender o seu Tesla por razões de consciência. À data, as notícias correram, os likes brotaram, os moralistas aplaudiram: o espírito crítico meditava ao volante da coerência. O problema? Não se sabe se vendeu, nem se trocou por um Renault Clio a gasóleo ou por uma bicicleta com travões de cortiça orgânica.
A verdade é esta: os modismos de indignação funcionam como nuvens de Verão — carregadas de trovões, mas sem consistência. Parece que anunciam o Inverno, mas duram meia hora e desaparecem ao primeiro raio de sol. Os apóstolos da consciência ecológica, tão velozes a apontar o dedo a Musk e ao seu imaginário político, nunca se detiveram a pensar que, se há empresa que verdadeiramente revolucionou o transporte ligeiro — mesmo com impactes ambientais significativos (v.g., baterias de lítio) —, foi a Tesla, com inovação real e lógica disruptiva.
Esta é, contudo, apenas a face anedótica de um fenómeno mais grave: a hipocrisia que governa o discurso político e ideológico sobre o ambiente, em particular sobre o clima. Como tenho repetido ao longo das últimas décadas — bem antes de a Greta Thunberg saber apontar para um mapa —, as alterações climáticas são uma realidade, independentemente da causa, mas a noção de emergência climática é uma falácia e acabou por ser criada como instrumento político: serve para abrir caminho à desresponsabilização dos governos e à concentração de fundos públicos em projectos de duvidosa eficácia ambiental, mas altamente rentáveis para empresas amigas. Um mercado paralelo de virtudes.
E, se dúvida restasse, a realidade tem-se encarregado de a dissipar. A Comissão Europeia, com os seus ‘ministros do carbono’ e os seus ‘comissários do catastrofismo’, vive obcecada com a liderança verde, embora a sua capacidade política e diplomática valha zero sobre políticas ambientais de âmbito mundial. Por exemplo, nas emissões de gases com efeito de estufa, os países da União Europeia emitem cerca de 8% e não determinam aquilo que os Estados Unidos, a Índia e a China emitem, por muito que esbracejem.
Não liderando nada, a Europa tem vindo, sim, e lamentavelmente, a tornar-se a vanguarda da fraude ambiental — e o sector automóvel é a ilustração suprema desta decadência.
Depois do escândalo do Dieselgate — cujo impacte em termos de saúde pública não foi irrelevante, havendo um estudo que aponta para a causa de 124 mil mortes prematura —, em que a Volkswagen foi apanhada a aldrabar os testes de emissões com softwares aldrabões, parecia que se tinha aprendido a lição. Parecia.
Esta semana, soube-se que a Justiça francesa abriu um novo processo contra a Peugeot e a Citroën (ambas do grupo Stellantis), por fraude agravada. O motivo? A comercialização, durante anos, de veículos a gasóleo com sistemas informáticos programados para contornar os testes de emissões de óxidos de azoto.
Segundo a acusação, os veículos estavam “especialmente calibrados” para se comportarem bem apenas durante o teste de homologação — como estudantes que decoram a resposta certa para o exame, mas nada sabem da matéria. No uso real, os níveis de emissão superavam largamente os limites regulamentares, com consequências para a saúde pública: doenças respiratórias e degradação ambiental.
A acusação vai mais longe: a burla é qualificada como agravada por colocar em risco a saúde humana. E, mais uma vez, os autores da fraude foram empresas acolhidas com louvores em Bruxelas, promovidas como campeãs da inovação sustentável. Em 2021, estas mesmas empresas já tinham sido acusadas por factos semelhantes. O modus operandi repete-se. E repete-se também o silêncio da imprensa portuguesa — sobretudo da mainstream — que há muito se enamorou por figuras como Carlos Tavares, ex-presidente da Peugeot, que deixou de ser CEO da Stellantis em finais do ano passado.
Na imprensa nacional, Tavares é descrito como uma coqueluche da gestão, um génio da eficiência e da competitividade. Um português de sucesso no Mundo. Mas, à luz dos processos agora abertos, talvez devêssemos perguntar: será uma coqueluche da gestão ou da encenação, do ultraje e da fraude?
A resposta é incómoda. Mas as evidências são claras. Enquanto se apontam dedos a Musk por piadas ou posicionamentos políticos — e ele põe-se a jeito em muitos casos —, escondiam-se crimes ambientais sistemáticos na santa Europa. Enquanto se vendia a narrativa de que a União Europeia era líder da sustentabilidade, enterravam-se debaixo do tapete os dados reais de emissões poluentes do sector automóvel. E enquanto se usava o selo verde para certificar negócios bilionários, envenenava-se o ar dos cidadãos.
A moral da história — e é sempre preciso haver uma — é que a verdade ambiental não se mede pelos slogans, mas pelos actos. A Tesla, goste-se ou não do seu CEO, mudou radicalmente a indústria automóvel em direcção à electrificação. As grandes marcas europeias, com décadas de privilégios e lobbying, enganaram clientes e reguladores. E hoje, no pico do Verão, são elas que anunciam o Inverno — não o das alterações climáticas, mas o da confiança pública nas elites políticas, tecnocráticas e industriais.
Sejamos claros: a hipocrisia ambiental mata mais do que o dióxido de carbono — e quem o diz sou eu, que defendo uma melhoria na eficiência energética e uma contenção no consumo de petróleo (a começar por ser uma matéria-prima demasiado preciosa para ser simplesmente queimada em motores de propulsão). A hipocrisia ambiental, de facto, mata a confiança, mata o rigor, mata o sentido de urgência verdadeiro. E por isso me irrita tanto ver que, enquanto os Manzarras desta vida se preocupam em dar lições de moral ao volante dos seus Teslas de segunda mão, os verdadeiros poluidores continuam a circular à vontade, com selo europeu — e aplausos.
Infelizmente, ainda, neste novo teatro do mundo, aquilo que parece contar não é a verdade — é a encenação.
O CEO da Impresa, Francisco Pedro Balsemão – que se entretém a fazer podcast informativos no semanário Expresso sem ter carteira da CCPJ, enquanto vende e recompra e volta a vender o edifício-sede para não entrar em bancarrota – decidiu convidar ontem para o seu ‘Geração de 80’ o intensivista Gustavo Carona, de quem diz ser “provavelmente o primeiro verdadeiro herói com quem fala”.
Na imagem partilhada pelo Expresso e pelo próprio Gustavo Carona, o dito não está em estúdio mas repousa em casa, deitado, coberto por uma manta e apoiado num suporte hospitalar de computador Apple. E lê-se uma pergunta retórica que serve de mote a este texto: “Se é proibido fazer comentários racistas, ser xenófobo, porque é que não é proibido desacreditar a Ciência?”. Existem outras frases tão ou mais aterradoras do que estas, mas quero centrar-me nesta por ter ganhado escola duramente a pandemia da covid-19 e estar a servir como argumento principal em qualquer debate.
A frase, aparentemente ingénua ou “inspiradora” – como muitos admiradores deste herói, feito mártir, julgarão –, encarna o perigo maior da era que atravessamos: a tentativa de blindar a Ciência contra a crítica, elevando-a não ao patamar do rigor, mas ao altar da infalibilidade. E, pior ainda, subentende-se que quem a questiona deva ser, senão punido judicialmente, pelo menos ostracizado, silenciado, deslegitimado.
Tenho razões pessoais para abordar este tema sem subterfúgios: sou arguido num processo judicial por suposta difamação a Gustavo Carona, movido na sequência de críticas públicas que lhe dirigi durante a pandemia da covid-19 — críticas essas sempre sustentadas em dados epidemiológicos, estudos internacionais e análises racionais. O processo irá a julgamento em Setembro – e sou acusado de mais de 30 crimes e um pedido de indemnização de 40 mil euros, porque Gustavo Carona culpa-me de ser o responsável (presumo único) da sua condição de saúde. De entre os crimes até estão críticas que lhe fiz, gozando, à sua veia (variz) poética.
Enfim, mas uma coisa deve ficar clara: nada disso me calará – e mesmo se a sua condição de saúde de dá alguma comiseração, não fragilizas as minhas convicções, sobretudo quando o homem diz mais do que disparates: diz coisas perigosíssimas. Aliás, convém referir que a intimidação judicial, quando motivada por divergência de ideias e interpretação científica, é a arma dos que se sentem inseguros na sua posição — ou, pior, dos que confundem prestígio mediático com autoridade epistémica.
Ora, vamos ao busílis: a frase de Carona é perigosa não apenas pela sua arrogância, mas sobretudo pela sua ignorância. Equiparar “desacreditar a Ciência” a actos de racismo ou xenofobia revela uma incompreensão básica sobre o que é a Ciência, como esta progride, e por que razão deve ser constantemente posta em causa. A comparação, além disso, é altamente falaciosa: o racismo e a xenofobia são ofensas morais e jurídicas, que atingem directamente a dignidade humana. Já criticar ou pôr em causa determinadas posições científicas — ou políticas sustentadas sob o manto da Ciência — é um exercício fundamental da liberdade de pensamento, motor do progresso e da descoberta.
A frase de Carona é, em si mesma, também uma forma de obscurantismo moderno, travestido de zelo científico. Substitui-se o tribunal da razão pelo tribunal da opinião pública domesticada. Substitui-se o diálogo académico pelo anátema moral. Substitui-se o debate empírico pela acusação de “negacionismo”.
É fundamental aqui recordar que a Ciência não é um corpo dogmático de verdades, mas um método de aproximação à verdade, sempre falível, sempre provisório. Procura minimizar o erro, mas não tendo medo de errar. Nenhuma afirmação científica é imune à refutação. Até mesmo os paradigmas mais consolidados — heliocentrismo, evolução das espécies, estrutura do átomo — foram, em tempos, considerados “desacreditadores” da ciência vigente. Aquilo que Carona sugere, com retórica de vigilante moral, é que apenas deve ser permitida a crítica “interna”, a dúvida “tolerável” — como se a dissidência só fosse legítima quando aprovada pelo comissariado do consenso.
Galileu Galilei
Durante a pandemia, houve quem tivesse tentado — com dados e artigos revistos por pares — para os exageros estatísticos, erros metodológicos, medidas desproporcionadas, conflitos de interesse na investigação e distorções mediáticas da evidência científica. Muitos destes nunca negaram o vírus. Não negaram a existência da doença. Aquilo que se negou foi a ideia de que os modelos matemáticos erráticos, as projeções catastrofistas, as vacinas tratadas como panaceia sem robusto escrutínio de risco-benefício ou os confinamentos massivos tivessem um estatuto de verdade inquestionável.
O tempo tem dado razão a muitas dessas críticas. Hoje, muitos cientistas e mesmo autoridade nacionais e internacionais admitem que houve exagero e má gestão da informação científica, reconhecendo falhas na comunicação de risco, na avaliação de eficácia vacinal, e na imposição de medidas que ignoraram a complexidade dos determinantes sociais da saúde. Mas no meio dessa revisão tardia, figuras como Gustavo Carona continuam como paladinos de uma ciência dogmática, reclamando uma imunidade moral e judicial da narrativa dominante, como se estivessem acima do contraditório.
Do ponto de vista epidemiológico, o pensamento de Carona é igualmente anacrónico. “Desacreditar a Ciência”, no contexto pandémico, tornou-se um epíteto para tudo o que fosse discordância da ortodoxia governamental. Falar de taxas de letalidade estratificadas por idade? Negacionismo. Mencionar que o risco de hospitalização em jovens saudáveis era ínfimo? Anticiência. Questionar a eficácia das máscaras em espaços abertos? Crime. Interrogar-se sobre efeitos adversos das vacinas de mRNA? Heresia.
Mas o que diz a epidemiologia de boa cepa? Diz que a Ciência da Saúde Pública e a Epidemiologia – que é uma Ciência multidisciplinar mais próxima (e ‘bebe’ mais) da Estatística do que da Medicina – deve equilibrar risco individual e colectivo, considerando o contexto, a vulnerabilidade, a proporcionalidade das intervenções, e os efeitos secundários das medidas. Nada disto foi feito com rigor. A gestão do medo, a par com a sacralização de figuras mediáticas e o apelo à obediência, substituiu o espírito de prudência. E quando se mistura ciência com medo, o resultado é sempre tecnocracia autoritária, não saúde pública.
Do ponto de vista filosófico, o apelo à proibição do “desacreditar da Ciência” é uma regressão ao positivismo mais primário, combinado com a pulsão inquisitorial. É a morte do espírito socrático, do método cartesiano, da dúvida metódica. É o triunfo de uma nova religião, em que os cientistas não são investigadores, mas sacerdotes; os consensos, não aproximações, mas dogmas; os críticos, não colegas, mas apóstatas.
Aquilo que Gustavo Carona – seguindo a linha de muitos outros que ‘nasceram’ mediaticamente na pandemia – propõe é que se substitua o Estado laico e pluralista por uma espécie de teocracia científica, onde só há lugar para a fé no consenso e para a liturgia dos gráficos apresentados no telejornal. Mas a verdadeira Ciência — aquela que constrói conhecimento — nasce sempre da fricção entre ideias, da ousadia de pensar diferente, da coragem de enfrentar a maioria. O que seria de John Snow, de Ignaz Semmelweis e de Barry Marshall ou de tantos outros se o “desacreditar a Ciência” fosse criminalizado?
A frase de Gustavo Carona revela a deriva perigosa de uma geração de médicos-mediáticos que confundiram protagonismo com sapiência, e influência com autoridade intelectual. Não é por acaso que, nos últimos anos, alguns destes arautos da Ciência televisiva recusaram abertamente qualquer contraditório, afastaram-se de debates abertos e, em alguns casos, responderam com processos judiciais às vozes dissonantes.
Este episódio deveria servir de alerta: quando a crítica fundamentada à Ciência se torna passível de sanção moral ou judicial, já não estamos no domínio da Ciência — mas no da repressão ideológica. E quando se começa a perguntar, com aparente candura, “porque não criminalizar os que desacreditam a ciência?”, o passo seguinte é perguntar “porque não prendê-los?”, ou “porque não bani-los da vida pública?”. A História conhece bem esse caminho. E nunca acaba bem.
A Ciência verdadeira não precisa de escudos penais, nem de clérigos corporativos. Precisa de abertura, pluralismo, humildade e debate. Tudo o resto é superstição moderna, com bata branca.
Nota final: O podcast de Francisco Pedro Balsemão, editado no Expresso, chama-se Geração de 80, porque o CEO da Impresa que nasceu em 1980. Ora, 1980 é geração de 70.
Nota final 2: Carona informa que sofre dores crónicas resultantes de síndrome de Lyme pós-tratamento (SLPT). Se fosse mesmo um Homem de Ciência, deveria colocar, mesmo se por hipótese académica, que é uma das vítimas indesejadas (e silenciadas) das vacinas contra a covid-19, sem prejuízo de defender, como defende, que a vacina salvou vida. Aliás, talvez lhe fizesse bem, pelo menos em perceber como funciona a Ciência, a ler estes dois artigos científicos (aqui e aqui) que tratam da doença que o atormenta. Em todo, pode sempre negar lê-los.
Numa manobra que deixa em aberto sérias implicações jurídicas e financeiras, o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) celebrou ontem, pelas 14 horas, um ajuste directo com a empresa Gulf Med Aviation, com sede na ilha de Malta, no valor de 4.011.500 euros (acrescido de IVA), para garantir a operação de três helicópteros de emergência médica em regime de prontidão diária de 12 horas (H12).
Este novo contrato, com uma duração de 123 dias, anula na prática os efeitos de um polémico contrato de 77.475.160 euros (mais IVA), adjudicado à mesma empresa num concurso público internacional lançado em Novembro do ano passado para vigorar a partir de 1 de Julho deste ano, mas cuja execução não está a decorrer porque a empresa de Malta não conseguiu disponibilizar a totalidade dos quatro meios aéreos em todas as horas do dia.
Na prática, como se a Gulf Med não estava a dar cumprimento do contrato adjudicado após concurso público, o INEM poderia aplicar multas por incumprimento contratual de 730 mil euros por dia, como destacou hoje a TVI.
O ajuste directo agora celebrado – invocando razões de “urgência imperiosa” – prevê agora a disponibilização de três aeronaves: dois helicópteros médios H145 e um helicóptero ligeiro H135, que deverão estar operacionalmente prontos para missões de emergência médica em território continental português. Um dos helicópteros médios só estará disponível a partir do próximo dia 15.
O contrato estabelece um custo diário por helicóptero de 11.300 euros mais IVA, englobando operação, manutenção, tripulação e certificações técnicas, sem possibilidade de indisponibilidade superior a 12 horas sem substituição gratuita por aeronave equivalente.
Este recuo estratégico surge após o falhanço da Gulf Med em garantir a entrada plena em funcionamento das aeronaves a 1 de Julho, como estipulado no contrato público original. Os dois helicópteros baseados em Macedo de Cavaleiros e Loulé só operam de dia, e por tempo indeterminado. O terceiro só estará disponível em Évora a partir de 15 de Julho. A base de Viseu deverá ter aeronave disponível em Agosto, sendo que todas estas operarão, numa primeira fase, exclusivamente em horário diurno. O uso de helicópteros da Força Aérea foi colocada em cima da mesa, mas com limitações técnicas e até jurídicas fortes. O INEM justificava que a passagem para operação 24 horas por dia será “gradual”, de acordo com uma mensagem interna citada pela CNN Portugal.
Recorde-se que o concurso público internacional foi severamente criticado pela limitação de prazos e penalizações avultadas previstas para falhas operacionais (183 mil euros por base inactiva por dia). Apenas três empresas apresentaram propostas, entre as quais a Gesticopter, que já avançou com uma acção judicial para impugnação do concurso, actualmente em curso nos tribunais administrativos.
A opção do INEM por este ajuste directo com a Gulf Med – ignorando por completo os pressupostos e o cronograma do concurso anterior – coloca em risco os próprios gestores públicos, que poderão vir a ser responsabilizados pelo Tribunal de Contas caso haja perdão implícito de penalidades à empresa maltesa, numa alegada “fase de transição”. Em casos semelhantes, os tribunais têm imposto restituição integral de verbas ao Estado e aplicação de multas individuais.
Este novo contrato, ontem assinado entre o presidente do INEM e os representantes da Gulf Med, reforça assim a sensação de improvisação e falta de planeamento que tem marcado a gestão do sistema de emergência médica aérea, agora dependente de um ajuste directo de quase cinco milhões de euros por apenas quatro meses, enquanto se espera pela regularização – ou colapso – do contrato plurianual de 77 milhões.
A polémica está longe de terminar. E os tribunais serão, ao que tudo indica, o palco principal onde se decidirá se houve mera urgência técnica ou fraude ao espírito do concurso público. Uma das empresas que perdeu o concurso público, a Gesticopter, já prometeu uma participação ao Tribunal de Contas e uma queixa-crime por indícios de favorecimento público e também à Comissão Europeia.
O PÁGINA UM interpôs esta terça-feira, no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, uma acção destinada a que seja aplicada uma sanção pecuniária compulsória ao presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo, em virtude do incumprimento reiterado e injustificado de um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS), proferido a 11 de Julho de 2024.
No processo está em causa a recusa do Infarmed – que Rui Santos Ivo lidera desde 2019 e que acumula com a presidência da Agência Europeia do Medicamento – em cumprir na íntegra uma decisão judicial que o condenou a facultar ao PÁGINA UM o acesso às bases de dados contendo informação integral sobre as reacções adversas ao antiviral Remdesivir e, sobretudo, às vacinas contra a covid-19.
Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed.
A acção agora intentada visa compelir a entidade a cumprir de forma integral e rigorosa a decisão judicial, sem novas tergiversações técnicas nem omissões deliberadas, e requer ao tribunal que fixe uma sanção diária não inferior a 200 euros, a incidir pessoalmente sobre Rui Santos Ivo, caso o incumprimento persista.
A iniciativa surge após três anos de resistência institucional do Infarmed, que se escudou durante todo o processo judicial em argumentos tecnocráticos e escassamente fundamentados, tentando impedir o escrutínio cívico e jornalístico sobre os efeitos adversos das vacinas administradas em Portugal. O Infarmed respondeu ao acórdão com um gesto de aparente cumprimento: em Agosto de 2024 remeteu uma ligação com acesso condicionado a uma base de dados.
Porém, como o PÁGINA UM denunciou de imediato, o ficheiro disponibilizado estava manifestamente truncado e manipulado, suprimindo variáveis essenciais como o grau de causalidade (improvável, possível, provável ou definitiva), o número da dose administrada, a identificação do lote, a idade exacta da vítima, o concelho e a qualificação profissional do notificador – todos dados públicos até então disponíveis no Portal RAM e que, além de não constituírem dados pessoais identificáveis, são indispensáveis para qualquer avaliação epidemiológica séria.
A mutilação deliberada da base de dados, contrariando de forma flagrante a letra e o espírito do acórdão judicial, levou o PÁGINA UM a interpelar o Infarmed por carta registada em Outubro de 2024, sem que tenha obtido qualquer resposta ou sinal de correção. Mais grave ainda, o ficheiro entregue continha apenas os dados relativos ao primeiro ano da campanha de vacinação – entre Dezembro de 2020 e Dezembro de 2021 – ocultando os anos seguintes, precisamente quando se iniciou a vacinação em massa de adolescentes e crianças.
Com efeito, mesmo os dados manipulados revelam já um cenário inquietante: durante o primeiro ano, foram registadas 27.220 reacções adversas, das quais 7.110 classificadas como graves. Dessas, pelo menos 104 culminaram na morte do notificado, embora em cerca de quatro dezenas de casos o ficheiro omitisse por completo o intervalo entre a administração da vacina e o desfecho fatal – sinal inequívoco da negligência do Infarmed na recolha e no acompanhamento dos dados clínicos.
Entre os casos mais chocantes identificados pelo PÁGINA UM estão reacções fulminantes que ocorreram minutos após a vacinação. Uma mulher com mais de 80 anos morreu dois minutos depois de receber a vacina da Pfizer; um homem da mesma idade faleceu quinze minutos após a toma, vítima de tromboembolismo pulmonar; uma mulher entre os 65 e os 79 anos morreu em trinta minutos após inoculação com a vacina da AstraZeneca; e outro homem, sem identificação da marca da vacina, morreu de forma súbita uma hora depois de vacinado.
também se registam diversos casos de reacções graves registadas entre jovens adultos e mesmo adolescentes, incluindo episódios de miocardites, tromboses, síndromes inflamatórias pediátricas e paralisias faciais, cujo desfecho clínico o Infarmed indicou como “desconhecido”, revelando uma inacreditável ausência de monitorização – precisamente a função basilar da farmacovigilância.
Entre as 27.220 reacções adversas reportadas no primeiro ano da vacinação, o PÁGINA UM identificou 513 casos classificados como graves ocorridos em pessoas com menos de 25 anos, dos quais 225 permanecem sem qualquer registo de evolução clínica. Nove mortes ocorreram em pessoas com idades entre os 25 e os 49 anos, grupo etário para o qual a mortalidade associada à covid-19 era, mesmo antes da vacinação, residual.
Há ainda casos de recém-nascidos, não vacinados, que sofreram reacções adversas através do leite materno após a vacinação das mães, e situações de embolias pulmonares, acidentes vasculares cerebrais, tromboses venosas cerebrais e perturbações raras do sistema nervoso, todas registadas como graves – mas também, na maioria, sem que o Infarmed tenha feito qualquer seguimento. No caso das alterações menstruais, fenómeno amplamente reportado em todo o mundo, o Portal RAM já contabilizava duas centenas de notificações apenas até Dezembro de 2021, mas nenhuma foi objecto de análise pública ou contextualização por parte do regulador.
O incumprimento por parte do Infarmed da ordem judicial proferida pelo TCAS configura, segundo a acção agora apresentada pelo PÁGINA UM, uma violação do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que determina a aplicação de sanções pecuniárias compulsórias sempre que uma decisão de intimação para prestação de informações não seja cumprida sem justificação aceitável.
Ao pretender compelir Rui Santos Ivo a suportar pessoalmente as consequências do incumprimento do acórdão, o PÁGINA UM coloca a nu uma realidade incómoda: em Portugal, mesmo em face de sentenças judiciais inequívocas, as entidades reguladoras continuam a agir com arrogância institucional, confiando na passividade dos poderes públicos e no silêncio da restante comunicação social. E isso demonstra não apenas uma cultura de opacidade administrativa, como uma deliberada resistência ao princípio da administração aberta.
Recorde-se, aliás, que, apesar de sentenças e acórdãos favoráveis nos tribunais administrativos, começa a ser sistemática a disponibilização dos dados de forma truncada ou insuficiente, o que tem obrigado o PÁGINA UM a interpor novas acções com vista à aplicação de multas diárias aos responsáveis dessas entidades.
Essa situação verificou-se este ano quando o próprio presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que acumula com a presidência do Conselho Superior da Magistratura, Henrique Araújo, teve de acatar um acórdão para ceder sem restrições o inquérito sobre a distribuição da Operação Marquês, sob pena de pagar do seu próprio bolso uma multa de 50 euros por cada dia de atraso.
Também ainda se aguarda uma decisão similar relativamente a uma base de dados dos internamentos hospitalares na posse da Administração Central do Sistema de Saúde, cuja entidade se recusa há dois anos a acatar um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.
Os valores pagos pelo Estado em subsídios de doença aproximaram-se, no ano passado, da fasquia de mil milhões de euros. De acordo com os dados hoje divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística, as prestações de apoio ao longo de 2024 atingiram os 962,1 milhões de euros – o valor nominal mais elevado desde que há registo.
Esta subida foi acompanhada também por um aumento expressivo de beneficiários, que ultrapassaram os 845 mil, o que representa mais 131 mil pessoas do que em 2020, o primeiro ano da pandemia, quando foi comum a atribuição de subsídio de doença a pessoas que, mesmo sem sintomas, mas com teste positivo à covid-19, tinham de permanecer em casa. O envelhecimento da população activa e os problemas de acesso aos cuidados de saúde ajudam a explicar esta tendência, mas uma coisa é certa: os seus impactos são estruturais para a sustentabilidade da Segurança Social.
Com efeito, a evolução dos números, tanto das prestações como do número de beneficiários, não deixa margem para dúvidas quanto ao agravamento estrutural deste tipo de despesa pública: em apenas quatro anos registou-se um crescimento superior a 18%. Já o montante total subiu 15,5% no mesmo período: de 832,7 milhões de euros em 2020 para os actuais 962,1 milhões. Face ao período pré-pandémico, a subida é ainda mais acentuada: em 2019, o valor pago tinha sido de 692,6 milhões de euros, com 650.958 beneficiários.
Embora o valor médio por beneficiário se tenha mantido relativamente estável – cerca de 1.139 euros por pessoa em 2024, face a 1.167 euros em 2020 –, o número crescente de indivíduos a recorrer a este apoio tem tido um impacto significativo nas contas públicas. E tudo indica que o fenómeno poderá não ser transitório, mas sim reflexo de transformações profundas no mercado de trabalho e na estrutura etária da população portuguesa.
Entre os factores explicativos identificados por analistas e especialistas em segurança social, destacam-se quatro causas principais: o envelhecimento da população activa, as alterações no mercado de trabalho, os problemas de acesso a cuidados de saúde primários e hospitalares e, mais recentemente, a normalização do recurso ao subsídio de doença em contextos menos graves.
Desde 2011, tem-se verificado um crescimento sustentado da população activa com mais de 55 anos, em contraste com a redução dos grupos mais jovens. Ora, esta faixa etária tem naturalmente maior probabilidade de sofrer doenças crónicas, lesões incapacitantes e períodos prolongados de baixa médica, o que contribui directamente para o aumento dos subsídios atribuídos.
Por outro lado, a precarização das relações laborais em alguns sectores e o desgaste emocional associado a profissões altamente exigentes – como as ligadas à saúde, educação ou transportes – geram um contexto propício ao aumento do absentismo.
A existência de ambientes laborais tóxicos, o burnout e os distúrbios de ansiedade são hoje factores relevantes para compreender os padrões de incapacidade temporária. No entanto, não é possível, com os dados disponibilizados pelo INE, destacar qual a tipologia de doenças e afecções que mais têm crescido.
Evolução do número de beneficiários de subsídio de doença por ano desde 1990. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.
Todavia, mostra-se evidente que tem aumentado o número de horas inactivas nos últimos anos. Segundo os dados do INE, em 2024 foram processadas 42.750.697 horas de ausência por doença, valor ligeiramente inferior ao de 2023 (44,3 milhões) e ao de 2020 (44,6 milhões), mas muito superior ao verificado entre 2013 e 2019, período durante o qual a tendência de crescimento foi praticamente contínua: de 25,5 milhões de horas em 2013 para 38,8 milhões em 2019, num aumento superior a 50% em apenas seis anos. Nos últimos cinco anos, desde a pandemia da covid-19, têm sido processadas, em cada ano, mais de 42 milhões de horas de ausência por doença.
Este crescimento não é proporcional ao aumento da população activa, nem ao crescimento da população imigrante residente em Portugal.
Com efeito, a população activa total em Portugal cresceu apenas cerca de 10% entre 2013 e 2024, e o número de imigrantes com actividade profissional tem registado aumentos relevantes, mas longe de justificar isoladamente a duplicação do esforço financeiro do Estado com este tipo de apoio social. Isto significa que o absentismo por doença cresce a um ritmo autónomo e estrutural, exigindo análise e respostas políticas.
Evolução das prestações sociais por subsídio de doença desde 1999, em milhares de euros. Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM
A tudo isto soma-se a fragilidade dos cuidados de saúde primários. A ausência de médicos de família para milhões de portugueses, as longas listas de espera para consultas e exames e a falta de resposta atempada nos hospitais levam a que muitos doentes permaneçam em situação de baixa por mais tempo do que seria necessário se tivessem acesso a um diagnóstico e tratamento céleres. A gestão ineficiente da doença, mesmo quando não grave, pode prolongar a incapacidade e acentuar a despesa.
Comparando com o início da série estatística, a diferença é ainda mais relevante: em 1999, o número de beneficiários era de 417.486 e o montante pago ascendeu a 417,5 milhões de euros, o que corresponde a cerca de mil euros por pessoa. Ou seja, em 25 anos, o número de pessoas apoiadas duplicou e o valor pago também – um crescimento sem paralelo em outras áreas da protecção social.
O relógio já marcava as dez da manhã e o sol de Oeiras – e talvez de boa parte de Portugal – resistia a libertar-se das nuvens. E eu, como umas boas dezenas de jornalistas, fotógrafos e repórteres de imagem, lá estava no Passeio Marítimo de Algés. Não foi a promessa de um croissant e de um sumo de hotel – nem mesmo os dois cafés que pedi – que me puxou da cama, por mais que a organização do NOS Alive tenha tido a gentileza de incluir pequeno-almoço no convite.
Também não se tratava de qualquer contrapartida: nestas coisas de cobertura de espectáculos comerciais, bem sei que os promotores têm, legitimamente, a esperança – e alguns o desejo explícito – de que a imprensa se preste a servir interesses de marketing. Mas a vida, como deveria ser, exige separações claras: uma coisa é jornalismo, outra coisa é publicidade.
E, portanto, não sendo os festivais a ‘praia’ do PÁGINA UM, se tivesse de indicar a razão que me moveu a atravessar Lisboa de lés a lés – aproveitando, já agora, um sempre aprazível passeio de bicicleta eléctrica pela zona ribeirinha –, foi a curiosidade: a de ver os últimos retoques na montagem de um festival de música, e a de confirmar que, por detrás da música e do entretenimento, vive um aparato logístico, político e empresarial de precisão quase militar.
À porta do recinto, ainda fechado ao público, a azáfama era total: carros, carrinhas, camiões, empilhadores, técnicos de som, electricistas. Decoradores ultimavam stands e lojinhas; afinavam-se ângulos, tensões e estruturas. Porque o NOS Alive não é apenas música – apesar dos seus sete palcos e da promessa de mais de uma centena e meia de artistas.
O cartaz é, dizem-me, robusto – como um catálogo de tendências musicais em três actos. Am,anhã, já esgotado, a estrela é Olivia Rodrigo, acompanhada por nomes como Noah Kahan, Barry Can’t Swim, Benson Boone, Glass Animals e Parov Stelar. Mas há também sotaque português, com Johnny Sequeira, Mão Cabeça, Motherflutters, Nuno Cabral, Gisela Mabel e até a Orquestra Chiuinha Gonzaga.
No dia 11, a batuta cabe a Justice, The Wombats, Girl in Red, Finneas, St. Vincent e Sammy Virji. Será, dizem, o dia mais inclinado ao indie e à electrónica, mas com espaço para projectos nacionais como Capicua, Alta Avenue, Herlander, Carlos Contente ou Sérgio Onze.
A fechar, a 12 de Julho, o cartaz carrega peso e decibéis: Muse, Nine Inch Nails, Future Islands, Foster the People e os sempre eléctricos Amyl and the Sniffers. E há mais: Dead Poet Society, Bright Eyes, Cmat, Erol Alkan, Bombazine, Luís Severo, João Maria – e muitos outros para melómanos exploradores.
Confesso, desde já, que não conheço metade – e não pagaria para ver grande parte da outra metade. Mea culpa: não sou crítico musical, apenas curioso. Mas aproveitarei, seguramente, um ou outro dia para ouvir o que ainda não ouvi. E, garantido, estarei no dia 12 para ver os Muse – que, para mim, substituíram em boa hora os King of Leon. As derivas mais comerciais do grupo de Matthew Bellamy pouco me agradam, mas quem os conheceu, como eu, com Showbiz (1999) e Origin of Symmetry (2001), perdoa quase tudo.
Mas voltemos aos bastidores – foi para os ver que aceitei o convite. É aí que pulsa o nervo óptico do evento, e onde se alinham os três elos fundamentais deste festival: Álvaro Covões, director da promotora Everything is New, que conduz a orquestra com ar de maestro em ensaio geral; Isaltino Morais, presidente da Câmara de Oeiras, o anfitrião político omnipresente; e Miguel Almeida, CEO da NOS, o patrocinador-mor.
Este trio – que conduziu a imprensa com o à-vontade de quem sabe o peso das câmaras – não se limita ao cerimonial: constitui o verdadeiro triângulo de poder que sustenta o evento. Entre as três breves actuações musicais (incluindo Iolanda, que canta muitíssimo bem e que merecia melhor palco do que a palermice do eurofestival), houve tempo para paragem no stand oficial do Gov.pt, logo à entrada. Houve discurso institucional. Terá sido um piscar de olho ao Governo? Talvez. Mas se o festival serve também de montra política, que seja: ali vão circular milhões de euros – e recolher-se, presume-se, bastantes impostos.
Até amanhã ainda haverá muito que afinar: estruturas, cabos, fibra óptica, microfones, luzes. Haverá bares a abastecer, carrinhos eléctricos a ziguezaguear como formigas entre bastidores, zonas de imprensa a preparar entrevistas.
Tudo isto faz parte da engrenagem. Porque isto é muito mais do que um festival de música: é uma feira corporativa de alto gabarito, onde o capital se mistura com os decibéis, e onde as marcas não querem apenas vender – querem associar-se à emoção, ao ritmo, à energia e à juventude.
Na verdade, como em muitas outras coisas, a música é um pretexto: para encontros, emoções e recordações. Mas o NOS Alive parece ser mais do que isso: uma alegoria contemporânea do entretenimento enquanto mercado, da política enquanto espectáculo e do jornalismo enquanto convidado de honra – com sumo natural e croissant de manteiga.
Esta quinta-feira, quando se abrirem os portões e os primeiros acordes ecoarem no palco principal, poucos pensarão na logística que ali foi investida. Mas sem esta maquinaria invisível – feita de técnicos, operacionais, políticos, patrocinadores e comunicadores – a música não teria esta pujança.
E talvez seja por isso que o NOS Alive seja mais do que um festival. É um palco onde todos querem actuar – mesmo que sem microfone. E até eu lá fui…