Autor: Pedro Almeida Vieira

  • E o vencedor em ano autárquico é… Tony Carreira, mas por pouco

    E o vencedor em ano autárquico é… Tony Carreira, mas por pouco


    Se dantes o ano autárquico era o calendário das inaugurações — a rotunda pintada, o jardim rematado, a piscina municipal com fita para cortar —, em 2025 a música tomou de assalto a praxe. Às vésperas do voto deste domingo, 12 de Outubro, uma boa parte das câmaras e juntas de freguesia abriu os cordões à bolsa para contratar artistas “a rodos”, sob o pretexto das festas populares e de uma programação “gratuita” que, como sempre, sai do dinheiro público.

    Nunca antes — e muito menos em 2021, quando a pandemia tolheu agendas — se assistiu a tal euforia de espectáculos suportados por contratos públicos.

    Em ano de autárquicas, em pouco mais de nove meses, Tony Carreira triplicou a sua receita em comparação com todo o ano de 2024.

    O PÁGINA UM analisou os contratos publicados no Portal BASE até 10 de Outubro, incluindo ajustes directos e concursos para “animação” cultural, considerando os valores sem IVA e, quando o contrato abrangeu vários artistas no mesmo cartaz, atribuindo ao cabeça-de-cartaz o valor médio por actuação em 2025. E encontrou o top 20, por coincidência aqueles que facturaram, este ano, mais de 200 mil euros.

    E, em vez de começarmos de baixo para cima, vamos mesmo para o vencedor do ‘arraial autárquico’: Tony Carreira é o campeão do ano. Trinta concertos contratados por entidades públicas somam 1.332.203 euros, pulverizando as marcas recentes do próprio artista nos anos anteriores: em 2023, tinha facturado 492.050 euros por 13 actuações; no ano passado, 426.901 euros por 11. Além do volume, subiu o cachet médio, que este ano ronda os 44.407 euros por espectáculo (face a cerca de 37.850 em 2023 e 38.809 em 2024).

    Ou seja, Tony Carreira praticamente triplicou a sua facturação, e ainda faltam quase três meses e a Passagem de Ano que sempre dá para encaixar ainda mais do que o cachet habitual.

    Os Calema estão perto de destronar Tony Carreira na preferência dos autarcas.

    A perseguição ao trono está perto e só surpreende quem não percorre a ‘moda musical: dupla são-tomense Calema, que se tornou coqueluche do circuito municipal com pop lusófona de acento dançável, contabiliza 25 concertos este ano, tendo já facturado, segundo as contas do PÁGINA UM, cerca de 1,24 milhões de euros, um cachet médio próximo dos 50 mil euros por concerto. Logo depois surgem os Xutos & Pontapés – decanos do rock português, que assinaram 23 actuações por ajuste directo de autarquias, totalizando 1.125.635 euros, quase tanto quanto os Calema em média por concerto) – e Pedro Abrunhosa, com a sua pop-rock de sala cheia, a igualar o patamar de 30 espectáculos, com os quais facturou um pouco mais de 1,1 milhões de euros, com um cachet médio próximo dos 37 mil euros.

    Estes quatro são os únicos que superaram já a fasquia de um milhão de euros de concertos pagos pelos contribuientes, mas Nininho Vaz Maia — pop de pulsação latina e raízes ciganas — está próximo desses valores. Para já, o ano de 2025 está a correr-lhe de feição em termos de contratos públicos: já contabiliza 22 concertos e uma facturação de 845.174 euros, com um crescimento de 63% face ao ano passado, onde registou 518.191 euros por 12 actuações). Comparando com 2023, quando surgiu em força, a facturação mais do que triplicou e o cachet médio passou de 22 mil euros para 38 mil euros por espectáculo.

    O mapa dos mais contratados pelas autarquias completa-se com nomes que dispensam apresentações e cobrem quase todo o espectro da música popular e da canção de autor.

    Xutos & Pontapés continuam a fazer ‘casinhas’ magníficas para os autarcas que os contratam.

    Na faixa acima do meio milhão de euros estão os Quatro e Meia – o sexteto de antigos estudantes de Coimbra, dos quais três são médicos – registam, neste ano de eleições autárquicas, 15 concertos e 569.086 euros, com um cachet médio de 38 mil euros euros por noite; António Zambujo – um dos mais conhecidos fadistas contemporâneos – que soma 18 espectáculos por 553.307 euros, com o cachet médio a rondar os 31 mil euros); o histórico Rui Veloso com 13 espectáculos e uma facturação de 538.778 euros, onde se destaca o concerto nas escadarias da Assembleia da República; a fadista Mariza que marca este ano em solo lusitano um total de 11 concertos por 514.645 euros, com um cachet médio a rondar os 47 mil euros); e ainda o cantor pop Fernando Daniel que se apresentou em 22 concertos com uma facturação total de 510.686 euros, sendo que, do top 10, é aquele que exige um cachet mais baixo: cerca de 23 mil euros por espectáculo.

    Na segunda metade do top 20, estão cantores e músicos de várias gerações. O 11.ª posição é ocupada por Diogo Piçarra que, por 16 concertos ‘públicos’ facturou 437.584 euros, estando com um cachet próximo dos 27 mil euros, seguindo-se Carolina Deslandes (16 concertos e 385.742 euros), Bárbara Tinoco 15 concertos e 328.314 euros).

    Abaixo dos 300 mil euros surgem Miguel Araújo (13 concertos e 287.588 euros), Carminho (12 concertos e 256.300 euros, incluindo um espectáculo em Osaka pago pelo Turismo de Portugal), Bárbara Bandeira (10 concertos e 254.000 euros), Marisa Liz (15 concertos e 227.252 euros), Toy (17 concertos e 216.233 euros), Jorge Palma (14 concertos e 213.420 euros) e, fechando a lista do top 20, José Cid, que aos 83 anos está para dar e durar: este ano já fez 11 concertos e facturou 200.860 euros.

    Top 20 dos grupos e cantores por valor contratualizado este ano até 10 de Outubro (contratos publicados). Fonte: Portal Base. Analise: PÁGINA UM.

    De fora do top 20, estão outras ‘estrelas’ próximas da fasquia dos 200 mil, como são os casos de Camané (15 concertos e 169.975 euros) e Cuca Roseta (12 concertos e 176.130 euros).

    Comparado com 2021, ano em que o rasto da pandemia ainda impôs cancelamentos e apertos orçamentais, 2025 é assim um desvario programático. Muitos eventos foram apregoados como “gratuitos” para as populações, mas, como sempre, os custos são socializados. Somente os 20 mais activos contabilizam um total de 11,15 milhões de euros. Se incluir IVA, ultrapassa-se os 13,7 milhões de euros. Todos os portugueses pagaram e só alguns assistiram, mas muitos autarcas beneficiaram deste ‘feito’, com dinheiros públicos.

    N.D. (15/10/2025) Foi feita uma correcção na lista inicialmente divulgada, que continha a Marisa Liz duplicada no top 20. No caso desta cantora, surgem contratos com o nome Mariza Liz e outros com Marisa Liz. Deste modo, o top 20 fecha com José Cid.

  • Jornal de Notícias introduziu nas eleições autárquicas um modelo inédito: debates patrocinados

    Jornal de Notícias introduziu nas eleições autárquicas um modelo inédito: debates patrocinados


    O Jornal de Notícias introduziu nesta campanha eleitoral uma “inovação”: a realização de debates patrocinados, em que a entidade que paga assume a escolha dos temas a debater. Para agravar, a entidade pagadora foi a secção regional do Norte da Ordem dos Engenheiros (OERN), que está impedida de condicionar a campanha eleitoral por se enquadrar no sector público, uma vez que exerce funções atribuídas pelo Estado.

    Apresentada como uma série de “debates com Engenharia”, promovida em conjunto pela OERN e pelo Jornal de Notícias — que publicou o conteúdo em formato informativo e com a participação de jornalistas, o que constitui uma incompatibilidade legal, já que estes não podem participar em eventos de índole comercial —, a iniciativa decorreu ao longo das últimas duas semanas, em plena campanha eleitoral. Realizaram-se quatro debates com candidatos às Câmaras Municipais do Porto, Braga, Viana do Castelo e Bragança, centrados sobretudo em dois temas escolhidos pela Ordem dos Engenheiros – Região Norte (OERN): habitação e mobilidade.

    Debate eleitoral em Braga pago pela Ordem dos Engenheiros.

    Para isso, a entidade liderada por Bento Aires dispôs-se a pagar quase 25 mil euros, com IVA, para ver – e ele aparecer – os candidatos a debaterem habitação e mobilidade. Presume-se que, se fosse a Confederação dos Agricultores de Portugal a financiar, poder-se-ia ter assistido a debates sobre a produção de couves de Bruxelas e de nabos. Ou, se o patrocínio viesse de uma coligação da Confraria da Alheira de Mirandela, da Confraria do Fumeiro, Salpicão e Linguiça de Vinhais e da Confraria do Bucho Raiano de Sabugal – que efectivamente existem – , talvez os candidatos discutissem o impacto dos enchidos no desenvolvimento regional. O Jornal de Notícias demonstra que tudo agora será possível se houver 25 mil euros.

    De facto, segundo o contrato celebrado entre a OERN e a Notícias Ilimitadas, proprietária do Jornal de Notícias, as condições desta esdrúxula relação comercial com vista à realização de um debate político determinavam que seriam convidados apenas os representantes dos partidos com assento na Assembleia Municipal de cinco concelhos — sendo que o debate previsto para Vila Real acabou por não se realizar. Esta cláusula restringia o número de participantes, levando à exclusão de várias candidaturas legalmente registadas nas eleições autárquicas de 2025.

    Assim, no Porto, onde existiam 12 candidaturas activas, apenas oito participaram no debate de 30 de Setembro. Ficaram de fora o Partido Liberal Social, o ADN, a CDU e o Partido Trabalhista Português. Em Braga, onde o debate se realizou no dia 1 de Outubro, estiveram presentes sete das dez listas concorrentes. Em Viana do Castelo, a CDU ficou igualmente excluída do debate de 29 de Setembro, e em Bragança, realizado no dia 25 de Setembro, participaram apenas quatro das sete candidaturas registadas.

    Debate eleitoral no Porto dinamizado pelo Jornal de Notícias e pago pela Ordem dos Engenheiros. Presidente da secção regional do Norte, Bento Aires, teve direito a foto de conjunto no meio dos candidatos.

    A própria OERN não escondeu as suas intenções nesta parceria: “colocar em evidência a influência da Engenharia e dos/as Engenheiros/as nas políticas locais e como as autarquias podem crescer e inovar quando a decisão é feita com Engenharia”. Contudo, em nenhum dos debates — disponíveis nos sites do jornal e da OERN — é feita qualquer referência a esta parceria ser remunerada, nem os diferentes candidatos terão sido informados de que a escolha dos temas resultou de um pagamento da Ordem dos Engenheiros ao Jornal de Notícias.

    Este inédito (ou pelo menos até agora desconhecido) modelo de debates patrocinados levanta questões legais e éticas. A Ordem dos Engenheiros é uma associação pública profissional, mas com um enquadramento jurídico que a equipara às entidades públicas, razão pelo qual tem de cumprir as regras de contratação pública.

    Uma vez que exerce “poderes públicos”, a Ordem dos Engenheiros está sujeita aos princípios da legalidade, imparcialidade e prossecução do interesse público, não podendo as suas actividades envolver interferência político-partidária nem favorecimento de interesses particulares, sendo obrigatória a neutralidade institucional. Assim, a celebração de um contrato comercial para promover debates políticos durante o período eleitoral pode violar estes princípios e colocar em causa a natureza pública e independente da instituição.

    Com 25 mil euros, Bento Aires pôde brilhar junto dos candidatos autárquicos.

    Por outro lado, a participação do Jornal de Notícias enquanto parceiro e beneficiário financeiro da iniciativa suscita dúvidas sobre a independência editorial e a necessária separação entre jornalismo e patrocínio institucional. O contrato previa que o jornal assegure a divulgação dos debates, seleccionando temas previamente acordados com a OERN, o que introduz uma clara condicionante à autonomia editorial. Os debates foram também moderados por um antigo jornalista, Paulo Ferreira, agora com funções de direcção-comercial. Paulo Ferreira é também investigador do Centro de Estudos de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, sendo assim colega da actual presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Helena Sousa. O regulador tem sido particularmente condescendente com a promiscuidades nos grupos de media,

    Questionado pelo PÁGINA UM sobre a eventual ilegalidade do contrato e sobre as exclusões verificadas, o presidente do Conselho Directivo da Região Norte da Ordem dos Engenheiros, Bento Aires, respondeu apenas por escrito, dizendo que a realização dos debates se deveu ao facto de que “a Engenharia está envolvida no desenvolvimento das autarquias em diferentes dimensões, como habitação, mobilidade, segurança e planeamento”. Acrescentou, apesar de ser contrariado pelo próprio contrato assinado entre as partes, que “todos os candidatos a Presidente de Câmara Municipal foram convidados atempadamente, tendo comparecido os que aceitaram o convite”, assumindo ainda que “os debates decorreram com total imparcialidade e isenção, sendo um contributo cívico para aprofundar o debate público das temáticas referidas.”

    O PÁGINA UM também contactou a Comissão Nacional de Eleições (CNE) para obter comentários sobre se a realização de debates patrocinados por entidades com funções públicas durante o período pré-eleitoral é compatível com a lei eleitoral, mas não obteve ainda resposta, embora o pedido tenha sido confirmado como recebido.

    Paulo Ferreira, ex-jornalista, agora com funções comerciais no Jornal de Notícias, foi o moderador dos debates. É também investigador do Centro de Estudos de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho.

    Além das dúvidas jurídicas, especialistas em ética dos media alertam que a introdução de debates patrocinados — onde o financiador define os temas e as regras de participação — compromete a independência jornalística e cria precedentes de condicionamento editorial por via contratual. Este caso ocorre num contexto em que a linha que separa jornalismo informativo e conteúdos pagos se tem tornado cada vez mais difusa, nomeadamente em iniciativas de branded content e “parcerias institucionais”.

    Contudo, ao envolver debates entre candidatos em plena fase eleitoral, a iniciativa da OERN e do Jornal de Notícias ultrapassa o domínio publicitário e entra na esfera da comunicação política condicionada, levantando questões sérias de transparência, legalidade e equidade democrática.

  • A soberania como pilar da democracia

    A soberania como pilar da democracia


    1. O conceito de soberania: origem, decadência e usurpação

    Poucas palavras carregam tamanha densidade histórica e ideológica como o termo “soberania”. Olhada ora como escudo da liberdade colectiva, ora como instrumento de opressão estatal, a soberania é um conceito que, ao longo dos séculos, oscilou entre a justificação do poder absoluto e a consagração da autodeterminação popular. No entanto, é precisamente nesta ambiguidade fecunda que reside a chave para compreender a arquitectura política de qualquer regime que se pretenda democrático. A soberania é, em última instância, uma decisão fundadora sobre quem manda em quem — e porquê.

    O jurista francês Jean Bodin foi, no século XVI, talvez o primeiro a sistematizar a ideia moderna de soberania: o poder supremo, indivisível e perpétuo de legislar, isento de qualquer sujeição. A soberania, para Bodin, repousava no monarca — mas não era um despotismo sem limites: deveria submeter-se à lei divina e à ordem natural. O seu conceito viria a ser radicalizado pelo britânico Thomas Hobbes, no século seguinte, que viu no soberano o Leviatã necessário para conter a barbárie da guerra de todos contra todos. A paz social exigia um poder absoluto, não por capricho, mas por necessidade lógica. O francês Jean Jacques Rousseau, por sua vez, operaria uma viragem já na segunda metade do século XVIII: a soberania não pertence ao rei, mas ao povo. E a vontade geral torna-se o novo trono.

    Mas a transição histórica da soberania monárquica para a soberania popular não apagou o seu traço fundamental: a soberania é sempre uma fonte última de decisão política. A questão nunca é se há ou não soberania, mas onde reside e a quem serve. E é precisamente essa questão que o nosso tempo procura dissimular com neologismos administrativos como governança, resiliência institucional, cooperação reforçada, multilateralismo funcional — fórmulas pensadas para despolitizar o acto de decidir, camuflando relações de poder sob retóricas de consenso técnico.

    Se a modernidade política se construiu sobre o princípio de que o povo é soberano, o século XXI parece ter-se encarregado de esvaziar esse princípio da sua substância. O processo não foi abrupto, mas gradual — e, por isso, mais eficaz. O poder soberano foi-se deslocando silenciosamente para entidades não eleitas – como a Comissão Europeia –, tribunais constitucionais com vocação supranacional, organismos técnicos com competência normativa, bancos centrais com autonomia inquestionável. Aquilo que permanece nos parlamentos nacionais é, cada vez mais, a função de carimbar decisões tomadas noutros areópagos. A soberania transformou-se num ritual constitucional – e ainda por cima desprovido da sua força performativa.

    A decadência da soberania não se fez apenas pelo alto, mas também pelo baixo. O cidadão comum, embrutecido por décadas de propaganda globalista, passou a ver a soberania como um resquício reaccionário, uma palavra tóxica associada a muros, autoritarismos e isolacionismo. O cosmopolitismo tecnocrático triunfou ao convencer as massas de que a renúncia à soberania era sinal de progresso, de maturidade democrática, de integração no concerto das nações civilizadas. Assim se forjou o paradoxo contemporâneo: o cidadão vota em representantes que não têm poder soberano, mas confia que os “órgãos competentes” farão o necessário — ainda que sem prestar contas a ninguém.

    Esta renúncia voluntária ao exercício da soberania constitui, em si mesma, uma tragédia política. Quando um povo abdica de decidir sobre o essencial — as suas leis, os seus impostos, a sua moeda, os seus tratados, as suas fronteiras —, deixa de ser um corpo político e transforma-se numa clientela social. Os grandes pactos do século XX, como as constituições democráticas ou os contratos sociais pós-guerra, pressupunham a existência de comunidades soberanas. A sua erosão corrói a base sobre a qual repousa qualquer legitimidade política duradoura. Onde a soberania se eclipsa, o Estado torna-se apenas uma agência de execução.

    A usurpação da soberania, no entanto, não é – ou não foi – feita com violência, mas com protocolos. Não exige – ou exigiu – tanques nas ruas, mas pareceres jurídicos. Não convoca – ou convocou – assembleias, mas workshops. Não declara – ou declarou – estados de sítio, mas ajustamentos estruturais. O golpe pós-moderno contra a soberania é tecnocrático e silencioso: não precisa de abolir a Constituição, basta interpretá-la à luz dos “compromissos europeus”. A excepção torna-se norma, o provisório torna-se estrutural, e o soberano torna-se amnésico — incapaz de recordar quando perdeu o direito de decidir sobre si mesmo.

    O filósofo alemão Carl Schmitt, com a sua célebre frase sobre o estado de excepção, recorda-nos que o verdadeiro soberano é aquele que, num momento de crise, suspende a norma para ‘salvar’ a ordem. Mas no mundo actual, quem decide sobre a excepção? Não são os parlamentos. Não são os cidadãos. São os políticos, mas já com base em conselhos científicos, em directórios financeiros, em consórcios reguladores. Isto equivale a dizer que a soberania não desapareceu — apenas mudou de mãos.

    É tempo, portanto, de resgatar o conceito de soberania não como bandeira de guerra, mas como instrumento de emancipação. A soberania não é um fetiche nacionalista, nem um capricho autoritário: é a condição para que uma comunidade se reconheça como autora das suas leis e responsável pelo seu destino. Sem soberania, não há cidadania plena — há obediência condicionada. E uma democracia sem soberania não passa de uma ilusão coreografada, onde todos dançam ao som de uma música que já não compuseram.

    A restauração da soberania exige coragem intelectual e acção política. Mostra-se necessário romper com a anestesia discursiva que reduz a política a compliance. É preciso declarar que a legitimidade de um Estado não se mede pelo número de pareceres que respeita, mas pelo grau de autonomia com que decide e responde aos seus cidadãos. E, sobretudo, torna-se fundamental recuperar a ideia simples — mas hoje quase subversiva — de que um povo que não manda em si mesmo, não é livre. É apenas governado.

    2. A União Europeia como laboratório da pós-soberania

    Se o conceito de soberania passou, nas últimas décadas, por uma erosão sistemática, então a União Europeia é o seu laboratório mais avançado. Nenhuma outra estrutura política contemporânea foi tão eficaz a transformar a abdicação da soberania numa virtude moral, num imperativo económico e numa inevitabilidade institucional. A União Europeia não combateu a soberania de frente: dissolveu-a em regulamentos, derreteu-a em comissões, despolitizou-a em nome do progresso. O golpe foi subtil e inicialmente lento, mas depois mais rápido e profundo: não tirou o poder aos Estados; convenceu-os de que já não valia a pena exercê-lo.

    A génese da integração europeia não nasce da vontade de criar uma comunidade política plena, mas de impedir a repetição das tragédias do século XX. Foi um projecto fundado no trauma e erguido sobre a promessa de estabilidade, comércio e convergência. No seu alvorecer, era uma engenharia económica com pretensões civilizacionais. Mas cedo se percebeu que, para que o mercado comum florescesse, seria necessário conter os ímpetos soberanistas dos Estados-membros. A moeda única — introduzida com solenidade e propaganda — foi o dispositivo mais eficaz desse condicionamento.

    Ao abdicar da sua política monetária, os Estados aceitaram um novo tipo de tutela: não a de uma potência estrangeira, mas a de uma arquitectura institucional que fala com o timbre neutro da razão técnica. A Comissão Europeia, o Banco Central Europeu, o Tribunal de Justiça da União Europeia — eis os vértices de um poder que decide sem se submeter ao escrutínio de um povo. A legitimidade não é democrática, mas funcional: a União decide “bem” porque decide “com competência”, porque tem “experts”, porque tem “estudos”. Mas quem define o que é “bem”? Quem decide os termos da competência? Quem fiscaliza os experts? O povo europeu, esse mito sem corpo nem voz, não entra na equação.

    A União Europeia é, portanto, o lugar onde se inverteu a ordem clássica da soberania: em vez de os Estados fundarem uma união, é a união que reformata os Estados. Os tratados europeus funcionam como constituições não ratificadas: vinculam os parlamentos nacionais a políticas predeterminadas, sujeitam decisões orçamentais a metas comuns, impõem regras que nenhuma maioria eleitoral pode facilmente revogar. O caso grego, durante a crise da dívida, foi paradigmático: um povo inteiro disse “não” nas urnas, mas Bruxelas respondeu com um “sim” irrevogável. O referendo foi apenas uma pausa na austeridade.

    Aquilo que temos, portanto, é uma transferência de soberania sem transferência de responsabilidade. Os líderes nacionais escondem-se atrás de “obrigações europeias” para justificar cortes, reformas ou imposições fiscais. A democracia é subcontratada. A impopularidade é externalizada. E assim o pacto entre governantes e governados vai-se dissolvendo numa névoa de relatórios e calendários comunitários. O cidadão não elege quem decide, nem pode demitir quem impõe. O seu único gesto político é o protesto infrutífero ou o voto simbólico num parlamento europeu que não legisla de facto.

    A União Europeia, neste modelo, não é um império clássico — porque não conquista territórios — nem uma federação madura — porque não tem povo constituinte. É antes uma tecnocracia expandida, uma cúpula administrativa com pretensões normativas. E como toda a tecnocracia, vive do simulacro de neutralidade: os seus comissários não têm partidos, os seus pareceres não têm ideologia, os seus regulamentos não têm alternativa. Mas o facto de se apresentar como “apolítica” é precisamente o seu acto mais político.

    Dir-se-á que tudo isto foi livremente aceite pelos Estados-membros. Mas o que significa “aceite” quando a pressão é feita sob chantagem económica? Quando se financiam campanhas de adesão com fundos europeus, quando se sancionam Estados desobedientes com cortes ou bloqueios, quando se condiciona o acesso a fundos a reformas estruturais que alteram profundamente o modelo social — o que resta da soberania senão um selo cerimonial? A adesão voluntária torna-se adesão extorquida.

    A retórica da solidariedade europeia apenas esconde a assimetria de poder entre os Estados centrais e periféricos. A soberania não é apenas erodida; é hierarquizada. A França e a Alemanha têm direito ao déficit estratégico. Os pequenos Estados têm a obrigação da austeridade virtuosa. Os grandes bancos são salvos. As pequenas economias são auditadas. A soberania é selectiva — e, portanto, é privilégio.

    Por isso, o projecto europeu, tal como hoje está desenhado, exige uma crítica profunda, não para ser destruído, mas para ser desmitificado. Já não se trata de um projecto comum de povos soberanos, mas de uma engrenagem institucional que sobrevive melhor quanto menos soberanias lhe resistirem. A verdadeira questão europeia deixou de ser o estar dentro ou fora da União — é se dentro dela ainda podemos ser donos do nosso destino.

    Recuperar a soberania no contexto europeu não significa recuar para o isolacionismo, mas restaurar o princípio de que só há legitimidade política quando há capacidade efectiva de decidir com autonomia. Uma Europa de nações soberanas não é uma contradição: é uma necessidade democrática. Mas para isso, é preciso dizer o óbvio: uma união que exige obediência cega, que impõe regras sem voz, que apaga fronteiras sem fundar um povo — não é uma união, é uma simulação.

    3. Soberania fiscal e monetária: o mito da convergência e a verdade da dependência

    A perda de soberania raramente se anuncia em fanfarras. Não há decretos com brasões dourados, nem tanques a cruzar fronteiras. Há, isso sim, gráficos com curvas descendentes, relatórios de convergência, decisões técnicas ditas “inevitáveis”. E no centro desse processo silencioso está a renúncia ao controlo fiscal e monetário — os dois nervos centrais da autonomia de um Estado moderno. Um país que não pode determinar os seus impostos nem emitir a sua moeda já não é plenamente soberano: é um gestor subalterno da vontade alheia.

    No caso europeu, a promessa da moeda única foi apresentada como um instrumento de convergência: os países do sul poderiam beneficiar da estabilidade germânica, e os países do norte ganhariam mercados estáveis para os seus produtos e capitais. A teoria era elegante, mas como em muitas fábulas da integração europeia, a prática revelou-se assimétrica. A convergência prometida tornou-se divergência estrutural. Os países mais frágeis perderam a capacidade de ajustar a sua economia através da desvalorização cambial e da flexibilidade monetária. E em troca receberam metas orçamentais rígidas, reformas impostas e vigilância permanente.

    A independência do Banco Central Europeu (BCE), celebrada como garantia de estabilidade, tornou-se um dogma tecnocrático imune ao escrutínio popular. O BCE não responde a governos eleitos, nem a cidadãos. Decide com base em modelos macroeconómicos, projecções inflacionistas e pressões dos mercados. A sua missão não é a prosperidade de cada Estado-membro, mas a estabilidade da moeda — uma moeda que, não tendo dono político, acaba por ser capturada pelas conveniências do mais forte. Os juros sobem ou descem, não em função das necessidades de Lisboa ou Atenas, mas do humor de Frankfurt.

    Este modelo cria uma divisão fundamental entre Estados de dívida soberana e Estados de dívida tutelada. A Alemanha pode emitir dívida sem grande risco de especulação. Portugal, Grécia ou Itália estão permanentemente sob ameaça de reacções adversas nos mercados. O resultado é uma transferência de soberania orçamental: quem quer emitir dívida deve convencer primeiro os mercados — e depois, implicitamente, o BCE. Não há autonomia fiscal sem margem orçamental. E não há margem orçamental sob uma moeda única desenhada sem união política.

    Os Pactos de Estabilidade e Crescimento, os Semestres Europeus, os Programas de Ajustamento, os Planos de Recuperação e Resiliência — todos estes dispositivos transformaram a política orçamental interna numa extensão da política de contenção da inflação. A despesa pública é vigiada, os investimentos são avaliados por critérios de sustentabilidade financeira, as reformas estruturais são exigidas em troca de fundos. A política torna-se contabilidade. E o sufrágio universal, uma formalidade sem alcance real.

    A dependência que daí resulta é mais profunda do que uma simples subordinação técnica – ela corrói a legitimidade interna. Governos eleitos com promessas de investimento público ou de justiça fiscal veem-se impedidos de cumpri-las por constrangimentos externos. Cria-se uma dissonância permanente entre o que se promete em campanha e aquilo que se executa no governo. Os políticos fingem governar; os burocratas fingem não mandar. No meio, o eleitorado afasta-se.

    O euro, longe de ser um instrumento de coesão, funcionou como acelerador de desequilíbrios. Os países periféricos passaram a importar mais do que exportam, acumularam défices externos e viram os seus sectores produtivos fragilizarem-se. Sem possibilidade de ajustamento cambial, a única via de “competitividade” tornou-se a compressão de salários e o desmantelamento de direitos laborais. A famosa “austeridade expansionista” foi um eufemismo para dizer: empobreçam-se os povos para salvar a moeda.

    O caso português é exemplar. Desde a entrada no euro, perdeu-se controlo sobre a moeda, sobre os juros, sobre as reservas. A política orçamental tornou-se prisioneira de metas externas e de agências de rating. A margem para uma política económica contra-cíclica desapareceu. Ficou a retórica europeísta como consolo simbólico. Mas perdeu-se mais do que ferramentas técnicas: perdeu-se a capacidade de decidir com base na realidade nacional.

    Há quem acredite que tudo isto é o preço da integração e que a resposta será mais Europa — uma união fiscal, um governo económico comum. Mas essa proposta ignora a assimetria de interesses dentro da própria União Europeia. Uma união fiscal sem união política será apenas a formalização da tutela. Uma união política sem povo comum será um simulacro de democracia. E enquanto se espera por esse horizonte longínquo, a realidade continua a ser a de Estados que não podem decidir quanto gastar, onde investir, como tributar. Estados amputados da sua vontade.

    Assim, recuperar a soberania fiscal e monetária não é um capricho nacionalista, mas uma exigência democrática. Significa devolver à deliberação política aquilo que nunca deveria ter sido expropriado pela gestão tecnocrática. Significa aceitar que o risco faz parte da liberdade — e que a estabilidade imposta de fora é, muitas vezes, apenas um outro nome para a servidão voluntária.

    A moeda não é neutra. A dívida não é apolítica. O orçamento não é uma mera folha de Excel. São instrumentos de poder, de decisão, de justiça social. E um povo que os entrega sem resistência abdica, não apenas do seu presente, mas da sua possibilidade de futuro.

    4. A soberania sanitária e o novo paradigma bio-administrativo

    Durante séculos, a soberania assentava-se em dois pilares: o território e a autoridade sobre os corpos em caso de conflito — seja através da guerra, seja por meio da justiça criminal. O poder decidia sobre a vida e morte: quem podia matar, quem devia morrer, quem era punível. O Estado exercia o seu domínio por fora do corpo, ou sobre o corpo, mas não a partir de dentro.

    Com o advento da biopolítica — conceito inaugurado por Michel Foucault e actualizado nas suas implicações mais sombrias por Giorgio Agamben —, a soberania desloca-se para um domínio mais insidioso: o da vida nua, do corpo gestionado, do ser humano transformado em vector de risco e unidade estatística.

    A pandemia da COVID-19 não foi a origem desta mutação, mas recentemente comportou-se como um catalisador. De súbito, a gestão da saúde pública passou a sobrepor-se a todas as restantes dimensões da existência política: liberdades suspensas, direitos relativizados, deveres impostos. Não por imposição de um tirano, mas com o aval de peritos, agências sanitárias e instituições supranacionais. A obediência tornou-se uma virtude, e a dúvida — mesmo que científica — foi rotulada de negacionismo. O corpo deixou de ser sujeito político para ser tratado como possível ameaça bioestatística.

    Este novo paradigma — que aqui designo como bio-administrativo — funda-se na tecnocracia médica, mas vai muito além da medicina: é uma fusão entre gestão, estatística, vigilância e narrativa. O risco sanitário substitui o risco político como fundamento da acção governamental. Os cidadãos tornam-se simultaneamente pacientes e suspeitos. A liberdade de movimento, de trabalho, de reunião e até de expressão passou a estar subordinada ao imperativo sanitário, gerido não por parlamentos mas por comités de crise.

    Nada disto se mostra possível sem uma profunda mutação ideológica na percepção do bem comum. Em nome da saúde pública, aceitaram-se restrições impensáveis poucos meses antes. O confinamento compulsivo de saudáveis, o encerramento de escolas, a imposição de injecções periódicas, o rastreio digital de contactos, a segregação de não-vacinados — tudo isto foi normalizado, muitas vezes celebrado. As garantias constitucionais foram suspensas ou reinterpretadas à luz de uma urgência sanitária que passou a ser o novo estado de excepção.

    Esta soberania sanitária não se exerce apenas sobre os corpos, mas sobre os dados dos corpos. A saúde digital, os certificados de vacinação, as plataformas de rastreio e os registos centralizados transformam o cidadão num fluxo contínuo de informação. E essa informação, longe de ser neutra, torna-se fundamento para decisões automatizadas: quem pode viajar, quem pode trabalhar, quem pode entrar num edifício, incluindo num restaurante ou num ginásio. A democracia transforma-se, assim, numa arquitectura condicional: os direitos tornam-se permissões.

    A suposta neutralidade científica que sustenta as decisões é uma das maiores falácias deste novo modelo. O discurso técnico mascarou opções políticas, muitas vezes ideologicamente carregadas. A censura de alternativas terapêuticas, o monopólio narrativo das terapias genéticas catalogadas de vacinas, a criminalização de protestos — tudo foi justificado com base numa autoridade científica tão consensual quanto opaca. E quem ousou divergir, por mais qualificado que fosse, foi ostracizado, silenciado ou até perseguido judicialmente.

    É neste contexto que a soberania sanitária revela o seu verdadeiro rosto: não é a saúde que comanda a política, mas a política que instrumentaliza a saúde para reforçar o seu poder. O corpo torna-se a última fronteira da soberania: um corpo disciplinado, injectado, rastreado, isolado, sacrificado se necessário. A medicina já não cura — administra. E o cidadão já não decide — consente, por vezes impelido a consentir mesmo sem compreender.

    Este paradigma bio-administrativo tem ainda uma dimensão moral. A saúde passa a ser um imperativo ético, e quem o recusa é visto não como alguém com uma opção legítima, mas como um delinquente cívico. A vacinação ou a administração de um fármaco, por exemplo, torna-se um dever social, a máscara um sinal de obediência, o confinamento um acto de solidariedade. A política de saúde converte-se em liturgia, com os seus rituais, dogmas e heresias. E os apóstatas — os que questionam — são tratados como perigos públicos.

    Esta nova forma de soberania é particularmente perigosa porque invisível e até desejada. Não exige polícias nem exércitos — basta uma aplicação, uma directiva sanitária, um boletim epidemiológico. A submissão não é forçada: é interiorizada. O cidadão exige ser controlado, pede que os outros sejam vigiados, denuncia infractores. A servidão é voluntária, porque se acredita estar a salvar vidas.

    Mas o que se perde neste processo é incalculável: perde-se a ideia de que a liberdade é um valor em si, mesmo em tempos de risco. Perde-se o princípio de que o Estado existe para garantir direitos, e não para suspender vidas. Perde-se a distinção entre cuidado e controlo. E ganha-se uma sociedade mais segura, talvez — mas menos humana, seguramente.

    É por isso defender a ponderação da soberania sanitária não é um apelo ao obscurantismo, nem uma recusa da ciência. É, pelo contrário, a exigência de que a ciência permaneça livre, que o debate permaneça aberto, e que a saúde nunca seja usada como cavalo de Tróia para destruir as liberdades que ainda nos restam. A soberania sanitária deve ser, acima de tudo, uma soberania cidadã — não um decreto de emergência perpétua.

    5. Soberania energética e a ideologia da transição verde

    Se outrora a soberania energética significava a capacidade de um Estado controlar as suas fontes de energia, vital para a sua independência económica e até política, gerir os seus recursos estratégicos e garantir o abastecimento em nome da autonomia nacional, o discurso contemporâneo — dominado pela retórica da transição verde — dissolveu essa noção num nevoeiro ideológico. Sob a aparência virtuosa do combate às alterações climáticas, assiste-se hoje à edificação de um novo sistema de dependências, mais difuso e tecnológico, mas não menos assimétrico e coercivo.

    Durante o século XX, a soberania energética estruturava-se segundo os 4S clássicos: Security (Segurança), Sustainability (Sustentabilidade), Supply (Abastecimento) e Smartness (Racionalidade Tecnológica). Estes quatro princípios procuravam equilibrar as dimensões geopolítica, ambiental, económica e científica da energia: garantir fornecimento estável, reduzir a poluição – e não apenas a questão das emissões de dióxido de carbono, mas também a conservação de áreas sensíveis e a qualidade de vida das populações –, assegurar autonomia de recursos e aplicar a inovação com prudência.

    Com a globalização digital e a financeirização da energia, contudo, este equilíbrio foi capturado por lógicas corporativas e tecnocráticas. O poder decisório passou dos Estados para oligopólios tecnológicos e financeiros, que controlam redes, algoritmos e fluxos de dados, substituindo a prudência política pela eficiência algorítmica. O apagão de Abril de 2025 na Península Ibérica veio demonstrar essas fragilidades.

    O abandono progressivo dos combustíveis fósseis é hoje apresentado como um imperativo científico inquestionável, um dogma moral acima de qualquer divergência. Contudo, a substituição do petróleo (um produto demasiado precioso para ser simplesmente como combustível) e do gás natural por energias renováveis e mobilidade eléctrica não dissolve as lógicas geopolíticas da energia — apenas as transmuta. As torres eólicas, os painéis fotovoltaicos e as baterias de lítio não emergem do ar nem se alimentam do sol: dependem de cadeias de valor globais, assentes em matérias-primas críticas, tecnologias proprietárias e processos de extracção frequentemente violentos e ambientalmente agressivos.

    A nova soberania energética não é nacional, mas corporativa. Aquilo que outrora era domínio das políticas públicas tornou-se mercado regulado por fundos de investimento, tratados climáticos e bolsas de carbono. A Europa, que antes edificara a sua segurança energética sobre uma base industrial diversificada, rendeu-se à ‘teologia da neutralidade carbónica’, aceitando como inevitável a dependência de semicondutores asiáticos, de lítio sul-americano, de cobalto africano e de turbinas chinesas. Em nome do clima, sacrificou-se a autonomia e até sectores ambientais relevantes como a preservação de habitats e da paisagem natural.

    Não se trata de negar a necessidade de uma transição energética — mas de questionar o modo como ela é conduzida: verticalmente, sob hegemonia tecnocrática, fora do escrutínio democrático e do debate plural. E com pouco ênfase para a eficiência. A transição verde, em vez de projecto emancipador, tornou-se um processo pós-político, onde as decisões são impostas por agências multilaterais que definem metas, calendários e custos à revelia das comunidades. Qualquer dissidência é rapidamente considerada patológica: quem ousa criticar é rotulado de negacionista climático ou reaccionário energético, anulando-se o espaço para uma ecologia crítica e plural. Mimetiza-se o que se fez na pandemia.

    A retórica verde oculta também a violência material da sua própria infraestrutura. A mineração intensiva de lítio, a expropriação de terras para megaparques eólicos e solares, a precarização laboral e os danos ecológicos são efeitos colaterais silenciados, apresentados como preço inevitável de um futuro limpo. Não há neutralidade quando os custos recaem sobre o Sul global e os benefícios se concentram no Norte financeiro.

    Neste quadro, o conceito de soberania energética converteu-se em ornamento discursivo. Os Estados já não governam os seus recursos: executam agendas internacionais, medindo o êxito não pela resiliência dos cidadãos, mas pela adesão a metas de descarbonização definidas em conferências e gabinetes. A democracia energética cedeu lugar à governança tecnocrática, onde a legitimidade deriva de algoritmos, e não do voto.

    Mais preocupante ainda é o uso do paradigma verde como nova gramática de austeridade. Sob o pretexto da sustentabilidade, impõem-se políticas regressivas: tarifas elevadas, proibição de veículos de combustão, taxação de carbono e imposição de obras coercivas de eficiência habitacional. Os ricos compensam com painéis solares e viaturas Tesla; os pobres pagam a factura da virtude climática. Assim, a transição verde corre o risco de reproduzir as desigualdades que prometia corrigir.

    Há também uma dimensão simbólica nesta nova dependência. A bandeira ecológica tornou-se instrumento de legitimação política, substituindo a promessa de prosperidade pela retórica da sobrevivência. Os governos já não prometem direitos, mas metas ambientais; já não garantem bem-estar, mas salvação climática. A energia, outrora domínio da soberania, transforma-se em credo moral, onde a dúvida é heresia e a obediência é cidadania.

    E, como em todas as cruzadas morais, os lucros concentram-se. Os fundos globais dominam as redes de distribuição, as multinacionais monopolizam a inovação, e as plataformas digitalizam e comercializam a pegada de carbono. O verde deixa de ser cor da terra: é o novo verniz do capital financeiro.

    O verdadeiro desafio, portanto, não é recusar a transição energética, mas repolitizá-la. O combate às alterações climáticas não pode servir de cavalo de Tróia para a erosão da soberania e o agravamento das desigualdades. Uma autêntica soberania energética deve assentar em quatro princípios: diversidade de fontes, resiliência territorial, transparência dos custos e participação cidadã.

    A dependência verde é, na verdade, sempre uma dependência; a soberania amputada é mera gestão da escassez com selo ecológico. Devolver à energia o seu estatuto de bem comum, e não de activo financeiro é, sim, a verdade emergência – e só uma cidadania energética consciente poderá converter o imperativo ambiental em instrumento de liberdade, e não em novo grilhão dourado da servidão tecnológica.

    6. Soberania alimentar e a submissão aos mercados globais

    A alimentação, por mais banal que pareça no quotidiano dos supermercados, é a forma mais íntima de dependência de um cidadão face ao seu Estado. A soberania alimentar, portanto, não é uma questão de agricultura nem de ambiente — é uma questão de poder. E, como acontece frequentemente na história dos impérios, a perda de controlo sobre os alimentos assinala a queda silenciosa da soberania.

    No discurso político contemporâneo, a expressão “segurança alimentar” tornou-se uma espécie de calmante semântico, como se estivesse em causa uma mera classificação biológica. Tudo parece garantido desde que os lineares estejam cheios. Mas o que se omite neste conforto aparente é o seguinte: os alimentos chegam, mas a que custo? De onde vêm? Quem os produz? O que se adiciona? Quem os controla? E sobretudo: quem define o que comemos e como comemos?

    A globalização dos sistemas alimentares criou uma estrutura em que as cadeias de produção são tão longas quanto opacas. Um tomate consumido em Lisboa pode ter sido produzido com sementes patenteadas por uma multinacional suíça, cultivado em estufas espanholas com mão-de-obra marroquina, embalado na Holanda e distribuído por uma cadeia sediada na Alemanha. Nada neste processo é soberano. Tudo é funcional a um mercado global onde as decisões são tomadas por empresas cotadas e intermediários logísticos. Os Estados limitam-se a assegurar que não haja protestos populares — ou, quando muito, no limite, que haja alimentos suficientes para as escolas e os quartéis.

    Esta submissão é frequentemente disfarçada de modernidade. Fala-se em eficiência da globalização, em segurança no controlo alimentar, em produtividade, em livre comércio. Mas por trás desta retórica, oculta-se a verdade crua: a dependência alimentar da Europa — e de Portugal em particular — é estrutural, estratégica e crescente. Por exemplo, a produção nacional de cereais é anémica, com excepção do arroz, a balança comercial de bens alimentares é deficitária, e as políticas agrícolas são cada vez mais determinadas por directivas comunitárias negociadas entre gabinetes e lobbies, em Bruxelas, onde a terra é apenas uma abstração.

    A Política Agrícola Comum (PAC), que foi frequentemente apresentada como um pilar de coesão europeia, tem funcionado sobretudo como um instrumento de uniformização e submissão dos sistemas produtivos nacionais. Sob o pretexto de eficiência e competitividade, a PAC impôs quotas, penalizações e modelos de financiamento que favorecem grandes explorações mecanizadas e penalizam o agricultor tradicional, aquele que, com o corpo e o saber, sustenta a fertilidade de uma comunidade. Em Portugal, a PAC contribuiu para a liquidação do sector pesqueiro e leiteiro tradicional, o abandono da cultura cerealífera e a reconversão forçada de zonas produtivas em áreas de conservação “passiva”, geridas por burocratas e organizações não-governamentais que vivem do culto do “reverdecer sem cultivar”.

    Mas o problema não é apenas externo. A degradação da soberania alimentar é também cultural e institucional. A pressão regulatória, ambiental e sanitária sobre os pequenos e médios produtores tem conduzido à desertificação rural e ao colapso de estruturas locais de produção. A agricultura de proximidade é tratada como folclore ecológico, boa para feiras de fim-de-semana e relatórios de responsabilidade social. O modelo dominante é o da agricultura intensiva para exportação — ou da monocultura subsidiada —, gerida por operadores financeiros mais interessados em fluxos de capital do que em alimentos.

    É nesta lógica que se impõe a ditadura do “custo por quilo” ou do “preço à saída da fábrica”, como se a alimentação de um povo devesse ser gerida com os critérios de uma cadeia de montagem. A qualidade nutricional, a resiliência do território, a justiça intergeracional ou a saúde pública tornam-se externalidades ignoradas. E quando surgem crises — guerras, pandemias, disrupções logísticas —, descobre-se que não há cereais suficientes, que os fertilizantes vêm todos de fora, que os circuitos de distribuição estão concentrados, que os preços disparam e que o país é apenas um entreposto.

    A própria relação com os alimentos tornou-se precária e artificial. O saber culinário — que outrora garantia variedade, aproveitamento e saúde — foi substituído por uma dependência de alimentos ultra-processados, formatados para vício e longevidade de prateleira. A perda da soberania alimentar começa também na ignorância do que se come. E continua na renúncia voluntária a cozinhar, a plantar, a guardar sementes, a cuidar do solo e a conhecer o seu ciclo.

    Mais recentemente, a subordinação alimentar assumiu contornos ainda mais inquietantes com a entrada em cena das novas narrativas tecnológicas: agricultura de precisão, carnes sintéticas, proteínas de insecto, agricultura vertical, alimentos geneticamente modificados. Tudo é apresentado como solução moderna e inevitável – e sempre com um selo científico. Mas quem controla estas tecnologias? Quem detém as patentes? Quem define as normas? A promessa de inovação serve, muitas vezes, para encobrir uma nova camada de dominação — agora biotecnológica — sobre os sistemas alimentares. A soberania, outrora exercida pela terra e pelas mãos, cede agora lugar ao algoritmo e à licença.

    Estas novas formas de controlo alimentar têm ainda uma componente neocolonial. Os países do Sul global são, cada vez mais, tratados como “armazéns vivos” de terras aráveis, aquíferos e mão-de-obra barata. Os fundos soberanos, multinacionais alimentares e grandes investidores de tecnologia agrícola compram, em silêncio, milhões de hectares em África, Ásia e América Latina. Aquilo que aí se produz já não alimenta os povos locais — alimenta os mercados de capitais e as projecções de lucros dos fundos de investimento. E esta apropriação silenciosa da terra reverte-se, num dia, em chantagem alimentar sobre os que, nas cúpulas diplomáticas, dizem querer combater a fome no Mundo.

    E não faltam novos sacerdotes deste culto alimentar: consultores do Fórum Económico Mundial, filantrocapitalistas entusiastas da agricultura sem solo, ecologistas que pregam o fim da pecuária e da cozinha tradicional, políticos que recitam metas de sustentabilidade sem nunca ter plantado um nabo. Todos dizem agir pelo bem do planeta, mas raramente pelo bem do cidadão concreto, que apenas quer pão digno, carne limpa, leite de verdade, preços justos e um campo vivo.

    A soberania alimentar, em sentido estrito, não significa auto-suficiência integral – estamos muito preconizar políticas na linha da famigerada Campanha do Trigo que devastou campos agrícolas no Alentejo durante o Estado Novo. Significa, isso sim, a capacidade de um povo determinar o seu modelo agrícola, proteger os seus produtores, garantir o acesso justo aos alimentos e decidir, sem imposições externas, aquilo que come e o que recusa comer. Significa também saber dizer não à chantagem das sanções, aos diktats dos tratados de comércio, às imposições fitossanitárias que mascaram guerras económicas. E significa recusar a lógica que transforma a alimentação numa, em mais uma, mercadoria volátil ao sabor dos mercados de futuros.

    Reabilitar a ideia de soberania alimentar como pilar de independência política é, por isso, uma prioridade. Um povo que não se alimenta a si mesmo não decide por si mesmo. Um Estado que não protege os seus produtores entrega-se, aos poucos, à servidão económica. E uma sociedade que aceita comer o que lhe mandam, não perde apenas um dos pilares da sua soberania – perde o último resquício de liberdade.

    7. Soberania digital e o império dos algoritmos

    A soberania, que outrora se media pelo controlo da moeda, do território ou das fronteiras, é hoje silenciosamente dissolvida nos cabos de fibra óptica, nos servidores remotos e nos centros de decisão algorítmica que orbitam acima da soberania clássica dos Estados. Aquilo a que se chama “transformação digital” é, na sua essência, uma operação de desmaterialização do poder, mas não da sua concentração. A materialidade do mundo político cedeu espaço à opacidade do ciberespaço, e a democracia passou a ser modulada por métricas, plataformas e inteligências artificiais que não prestam contas a ninguém — excepto aos seus accionistas. E são inalcançáveis aos cidadãos.

    Quando se diz que os dados são o novo petróleo, diz-se mais do que se imagina. O petróleo serviu para alimentar a revolução industrial, mas também para cimentar hegemonias e alimentar guerras. Os dados não são diferentes. São matéria-prima, mas também instrumento de controlo. E os Estados que não controlam os seus dados, nem as infra-estruturas onde eles circulam, tornaram-se protectorados tecnológicos, mesmo que mantenham as cores da sua bandeira e os hinos da sua soberania.

    O cidadão médio, iludido pela ubiquidade do digital, imagina-se mais livre por ter mais acesso à informação, mais meios de comunicação, mais serviços online. Mas esta aparente emancipação é, na verdade, uma nova forma de sujeição. A economia da atenção extrai da mente humana o seu rendimento mais cobiçado — o comportamento previsível. Através de sistemas de vigilância consentida, as grandes plataformas analisam padrões, antecipam decisões, moldam preferências e, a pouco e pouco, anulam a liberdade. A manipulação algorítmica não é ficção distópica — é prática corrente.

    O modelo das plataformas é hoje a forma dominante de organização digital, e a sua arquitectura não é neutra. Foi desenhada para maximizar lucros por via da captura de dados, da modulação do comportamento e da intermediação de relações. A própria linguagem da rede — os gostos, as partilhas, os seguidores — transformou-se em sistema simbólico de legitimação, onde o mérito foi substituído pela visibilidade e a verdade pelo engajamento. O algoritmo substituiu o editor. E quando o algoritmo se torna a autoridade editorial, a censura deixa de ser um acto explícito: torna-se um desvio estatístico.

    Não há aqui apenas um problema de concentração económica. Há um problema de concentração civilizacional. Nunca, em tempo algum, meia dúzia de empresas privadas teve tanto poder sobre a linguagem, a memória, a comunicação e a imaginação de biliões de seres humanos. E nenhuma destas empresas é europeia. O velho continente, ao abdicar da sua soberania digital, colocou-se numa posição de subalternidade histórica, à semelhança de colónias tecnológicas que importam ferramentas, lógicas e dependências, sem ousar construir alternativas.

    Os governos, quando não colaboram, acobardam-se. Em nome da segurança digital, da inovação ou da luta contra o “discurso de ódio”, crimes de pornografia infantil ou abusos de opinião, aceitam mecanismos de vigilância e de filtragem de conteúdos que nunca passariam por referendo popular. Delegam nas plataformas privadas o policiamento da linguagem, entregam dados sensíveis a operadores externos e compram sistemas críticos a fornecedores estrangeiros. A soberania digital, entendida como a capacidade de um Estado garantir o controlo estratégico das suas redes, dos seus dados e das suas infra-estruturas, é sacrificada em nome da conveniência.

    Durante a pandemia, este processo acelerou-se de forma brutal. Os passaportes sanitários digitais, os sistemas de rastreio, a monitorização de movimentos e a partilha compulsiva de dados médicos tornaram-se normalizados. A privacidade foi tratada como luxo burguês ou excentricidade conspirativa. Quem questionava os mecanismos digitais de controlo era silenciado, rotulado, banido. O que era provisório tornou-se estrutural. E as populações habituaram-se a não decidir, mas apenas a clicar.

    Mas a perda de soberania digital não é apenas uma questão de governança técnica – é um problema filosófico. A substituição da mediação humana por sistemas automatizados implica uma nova ontologia do poder. O algoritmo não apenas executa uma ordem: interpreta, decide, antecipa. A inteligência artificial, mesmo quando limitada, actua como filtro da realidade e, por conseguinte, como poder constituinte. E se esse poder não é sujeito a controlo democrático, então temos uma nova forma de tirania — uma tirania sem rosto.

    Repare-se como os sistemas de inteligência artificial já são usados para decidir sobre crédito bancário, admissões universitárias, prioridades de tratamento médico e medidas de vigilância policial. E como, perante decisões erradas ou discriminatórias, não há responsabilidade pessoal: o erro é do sistema, que não pode ser julgado, nem processado, nem removido por voto. Cria-se assim uma imunidade estrutural, onde os novos tiranos não usam uniforme nem ceptro, mas código e contrato de adesão.

    Recuperar o conceito de soberania digital como parte integrante da soberania política é um dos desafios dos próximos anos. Isso implica exigir transparência algorítmica, limitar a concentração de plataformas, proteger dados sensíveis, reforçar infra-estruturas públicas de comunicação e, acima de tudo, promover uma cultura de autonomia tecnológica. Um país que não domina os seus sistemas digitais – e isso já se verifica, uma vez que, por exemplo, a ANACOM não tem intervenção diercta sobre as plataformas – está condenado a ser governado por entidades que não controla de facto por mais regulação e ameaças de multa que prometa.

    Mais do que “inclusão digital”, o que mais falta é uma independência digital. Mais do que “competências digitais”, o que se precisa é de visão estratégica. A Europa, em particular, tem de decidir se quer ser uma colónia digital dos Estados Unidos e da China, ou se pretende construir uma civilização tecnológica própria, assente nos seus valores — incluindo o da liberdade.

    E para isso, talvez seja preciso recusar o encantamento com a inovação pelo simples facto de ser nova. Nem toda a tecnologia é emancipadora. Nem todo o progresso é libertador. A soberania digital, enquanto condição de liberdade, exige não só engenharia, mas também coragem intelectual e vontade política. Exige dizer não ao servilismo tecnológico, e sim a uma nova ideia de civilização — onde os algoritmos não sejam senhores, mas servos.

    8. Soberania institucional e o ocaso da legitimidade democrática

    Uma instituição viva não se distingue de uma estrutura decadente por via de uma longevidade formal, nem pela pompa dos seus rituais, mas sim pela confiança que nela depositam os cidadãos que a sustentam. Por isso, uma democracia, enquanto arquitectura institucional, depende menos de sufrágios e mais de legitimidade. Mas essa legitimidade está hoje profundamente corroída no mundo ocidental — não por golpes de Estado, ou por riscos dessa natureza, mas por um longo processo de esvaziamento simbólico e captura funcional. Hoje, as instituições continuam de pé, mas muitas já não se têm de pé.

    O apelo contemporâneo à “estabilidade”, à “transparência” e ao “progresso” transformou-se, paradoxalmente, num instrumento de legitimação da excepção política. Em nome da estabilidade, legitimaram-se na Europa governos tecnocráticos sem mandato popular directo, como na Itália de Mario Monti ou na Grécia de Lucas Papademos, ambos investidos em 2011 por via parlamentar e sob tutela da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu, quando o discurso da urgência financeira permitiu suspender a lógica representativa. Em nome da transparência, aceitaram-se decisões opacas de organismos supranacionais, que fixam directrizes políticas sem qualquer sufrágio. E, em nome do progresso, normalizou-se a imposição de políticas públicas — fiscais, sanitárias ou ambientais — por peritos não eleitos, cujo saber técnico se tornou uma nova forma de autoridade moral.

    Esta mutação semântica — em que valores emancipatórios são invocados para restringir a deliberação colectiva — representa um dos traços mais insidiosos da modernidade política. O filósofo alemão Jürgen Habermas descreveu este fenómeno como a “colonização do mundo da vida”: o momento em que a racionalidade burocrática e económica subjuga a comunicação pública, substituindo o diálogo pelo imperativo técnico. A estabilidade e o progresso, outrora promessas de emancipação, converteram-se afinal em narrativas de contenção, justificando governos de excepção.

    Em Portugal, esta inversão atingiu o seu ponto mais visível durante a intervenção da troika (2011–2014). Sob o pretexto da salvação nacional, impuseram-se reformas estruturais — cortes salariais, privatizações e desmantelamento de serviços públicos — sem mandato eleitoral e sob condicionalismos externos. As eleições mantiveram-se, mas a soberania material foi transferida para instâncias externas, num modelo que aparentava legalidade democrática, mas operava segundo lógicas de tutela. Um padrão semelhante reapareceu durante a crise pandémica, quando restrições severas de direitos fundamentais foram legitimadas por autoridades sanitárias e comités científicos, frequentemente imunes a escrutínio.

    O pensador italiano Giorgio Agamben identificou neste tipo de situações a consolidação do “estado de excepção permanente”: um regime em que a suspensão temporária da norma se torna condição habitual do poder. E se outrora a excepção era uma resposta transitória ao caos, hoje ela ameaça ser a gramática da governação. A autoridade democrática dissolve-se na gestão de crises, e o cidadão é convidado a obedecer em nome da sua própria protecção.

    Neste cenário, a crítica e a contestação social, que constituem a essência da cidadania, são frequentemente requalificados como desvios. Quem exige escrutínio, contesta consensos ou questiona a retórica da inevitabilidade é rotulado de “populista”, “negacionista” ou “antissistema”. Este mecanismo de deslegitimação cumpre uma função disciplinadora: neutraliza a divergência e restaura o monopólio interpretativo das elites políticas e mediáticas, ainda mais quando a própria comunicação social se encontra, cada vez mais, sequestrada financeiramente por grupos económicos associados ao poder político.

    Contudo, o verdadeiro problema não se encontra na desobediência dos povos, mas na deslealdade das instituições face ao seu pacto fundacional. Como advertiu o pensador francês Pierre Rosanvallon, as democracias correm o risco de se transformar em “contrademocracias invertidas” — isto é, sistemas em que o voto permanece, mas o poder de decidir se esvai. As estruturas políticas tornam-se autorreferenciais, orientadas não pelo bem comum, mas pela autopreservação.

    Em Portugal, este desvio tem-se manifestado na crescente delegação da decisão soberana em agências reguladoras, tribunais e peritos sob a forma de task forces ou comissões – supostamente independentes, mas quase sempre controladas –, cujos critérios escapam ao controlo público. Sob a aparência da competência técnica, esconde-se uma lógica de distanciamento democrático. O cidadão, reduzido a espectador, é convidado a confiar em vez de deliberar. E quando o consentimento substitui o juízo, o espaço público converte-se num ritual vazio.

    O sociólogo alemão Ulrich Beck defendia que vivemos já na “sociedade do risco”, em que o medo se torna agora um método de governo. A antecipação do perigo — financeiro, sanitário, climático — serve de justificação para medidas extraordinárias: governa-se pelo alarme, e o medo converte-se em legitimidade.

    A crise das democracias, portanto, não é uma crise de participação, mas de representação e responsabilidade. O desafio do nosso tempo é restituir sentido político às instituições, reconectando-as ao juízo cívico e à pluralidade de vozes que lhes dá legitimidade. A estabilidade não pode ser pretexto para abdicar da soberania; a transparência não pode servir de cortina à opacidade; e o progresso não pode impor-se por decreto. Enquanto o contraditório for tratado como heresia, a democracia será apenas um eco do poder, e não a sua medida. As democracias liberais do pós-guerra construíram-se sobre a ideia de representação, separação de poderes, garantias de direitos e controlo público da autoridade. No entanto, à medida que a globalização e o neoliberalismo se tornaram hegemónicos, essas instituições foram sendo adaptadas a uma nova realidade em que a política se subordinou à tecnocracia e o eleitor se transformou num espectador irrelevante.

    A União Europeia é, neste ponto, um caso de estudo: o Parlamento não tem iniciativa legislativa, a Comissão não é eleita, o Conselho decide à porta fechada. A soberania institucional foi sacrificada à eficiência burocrática. Em simultâneo, os parlamentos nacionais foram-se tornando caixas de ressonância de partidos cartelizados, mais atentos às sondagens do que à soberania popular. A separação entre poder executivo e legislativo diluiu-se, a fiscalização perdeu vigor, e os poderes de controlo — como tribunais, entidades reguladoras ou órgãos de comunicação social — passaram a agir em simbiose com o poder, não como seu limite. O sistema deixou de ser um jogo de pesos e contrapesos e tornou-se um circuito fechado de legitimação mútua.

    Na administração pública, a situação é igualmente preocupante. A lógica de “governança” substituiu a ideia de serviço público, transformando direcções-gerais em plataformas de execução de políticas externas ou interesses corporativos. A permeabilidade a grupos de pressão e fundações ditas “filantrópicas” compromete a independência decisória, e os organismos de supervisão são frequentemente habitados pelos próprios supervisionados, numa dança de cadeiras que anula qualquer aparência de imparcialidade.

    Mas o mais grave é que esta erosão institucional decorre muitas vezes com o aplauso — ou a indiferença — da cidadania. Viciada no ruído mediático, absorvida por escândalos episódicos, anestesiada por políticas identitárias superficiais, a opinião pública deixou de exigir responsabilidade estrutural. Substituiu a crítica pela indignação – amiúde apenas nas redes sociais –, a acção pela denúncia moral, a participação pelo comentário. E as instituições, percebendo isso, adaptaram-se: tornaram-se mais performativas, mais mediáticas, mais decorativas.

    No plano internacional, a subordinação das instituições democráticas a organismos multilaterais de contornos nebulosos acelerou a perda de soberania real. Decisões com impacto directo na vida dos cidadãos — como políticas sanitárias, fiscais ou ambientais — são frequentemente tomadas em fóruns onde não há representantes eleitos nem mecanismos de escrutínio. A democracia nacional torna-se uma ficção mantida por rotinas eleitorais, enquanto o essencial do poder escapa à deliberação popular.

    Esta crise de legitimidade não é invisível: manifesta-se também em taxas crescentes de abstenção, desconfiança nas instituições, voto de protesto em partidos populistas e surgimento de movimentos alternativos — alguns genuinamente democráticos, outros perigosamente oportunistas. Mas a resposta institucional tem sido, quase sempre, reforçar os mecanismos de blindagem: criminalização da contestação (mesmo que apenas por palavras), censura disfarçada, reformas eleitorais que limitam a pluralidade, concentração dos media em grandes grupos, cooptação de movimentos sociais. Em vez de ouvir o clamor popular, o poder instituído procura abafar-lhe o eco.

    E, contudo, mesmo assim há resistências. Há cada vez jornais de nicho, com linhas editoriais livres. Há plataformas jurídicas e académicas que desmontam narrativas oficiais e expõem as contradições normativas. Há cidadãos que, mesmo sem rede nem tribuna, insistem em escrever cartas, organizar debates, contestar decretos. São minorias — mas são esses elementos que preservam a ideia de que as instituições não são apenas mecanismos, mas formas de dignidade colectiva.

    Se observarmos bem, a soberania institucional começa por uma ideia simples: a de que o poder deve prestar contas. E que não basta ser legal — é preciso ser legítimo. Ora, a legitimidade exige transparência, participação, pluralismo, justiça e memória. Quando as instituições se tornam opacas, exclusivas, dogmáticas, punitivas ou amnésicas, deixam de ser democráticas, mesmo que conservem os nomes e os edifícios. Passam a ser simulacros.

    Recuperar a soberania institucional não é uma tarefa administrativa — é uma missão civilizacional. Exige reconquistar o valor da palavra dada, o peso da responsabilidade, a coragem da dissidência, a centralidade do bem comum. Exige que se diga, sem medo nem cálculo, que o rei vai nu — e que há mais dignidade na verdade solitária do que na mentira partilhada.

  • ‘Deixai vir a mim as criancinhas’, diz Filipe Froes, o zelota das farmacêuticas

    ‘Deixai vir a mim as criancinhas’, diz Filipe Froes, o zelota das farmacêuticas


    Há uma espécie de ironia quase bíblica na crescente preocupação de certos doutores com a saúde das crianças, mas agora sempre associado a fármacos. Ainda ontem, confinavam-nas por decreto, fechavam-lhes escolas, isolavam-nas dos avós e impunham-lhes máscaras que jamais tiveram base científica sólida.

    Hoje, os mesmos cruzados da “proteção total” — que transformaram o medo em catecismo e a obediência em virtude — apresentam-se como novos apóstolos da vacinação infantil universal contra a gripe, anunciando com o medo da morte. Isto num país com uma taxa de mortalidade infantil que nem chega aos três óbitos por mil nascimentos. Há 50 anos era quase 10 vezes superior (cerca de 20 em mil); há século, quase 100 vezes superior (cerca de 250 em mil). Em vez de se celebrar o progresso, os arautos da salvação compulsiva impõem-se reciclando o pânico.

    Durante a pandemia, bastou-lhes uma curva estatística ou um modelo informático às três pancadas para decretar a suspensão da infância. O contacto humano passou a ser visto como contágio, o abraço como ameaça, a escola como foco pestilento. O resultado foi uma geração sujeita a isolamento, atraso pedagógico, distúrbios emocionais e uma perigosa crença de que a vida se gere por decreto e com a bênção das farmacêuticas.

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    Até agora, nenhum desses zeladores da saúde pública pediu desculpa pelo exagero. Ao invés, regressam ao púlpito — se é que alguma vez saíram — com redobrado fervor, revestidos de uma nova missão redentora: vacinar em massa as crianças: no ano passado contra o vírus sincicial respiratório, que não mata crianças em Portugal, e agora contra a gripe.

    O expoente destes zeladores é o pneumologista Filipe Froes, teólatra-mor da farmacologia moderna, que se apresenta com todos os epítetos menos com o de ‘avençado’ da indústria farmacêutica. Durante a pandemia da covid-19 distinguiu-se pela promoção incondicional à doutrina do medo, mesmo entre as crianças, e agora surge, na imprensa, com um inenarrável artigo de opinião no vetusto Diário de Notícias, a dramatizar a mortalidade infantil por gripe, citando números absolutos sem contexto e sem explicar que a letalidade na idade pediátrica é, felizmente, residual.

    É verdade que o próprio Centers for Disease Control and Prevention (CDC) dos Estados Unidos refere que, na época gripal de 2024-2025, morreram 280 pessoas em idade pediátrica (até aos 17 anos) com uma idade mediana de 7 anos, num universo de 43 milhões de infecções e 560 mil hospitalizações — e é curioso que, quando lhe interessa, Froes não se importa de citar uma instituição tutelada por Robert Kennedy Jr.

    Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica, mantém-se como consultor da DGS e com intenso palco mediático.

    Mas convinha ser sério — virtude pouco atreita a Filipe Froes —, assumindo que a vida tem a si associada um risco que jamais será de zero. Essa mortalidade absoluta de 280 crianças e adolescentes está integrada numa população global de 72,8 milhões de pessoas, o que significa que estamos a falar de uma taxa de mortalidade pediátrica de 3,8 por milhão, e em quase 90% dos casos sem vacinação completa. A estatística impressiona no absoluto, mas perde dramatismo quando colocada em proporção: 0,00038% das crianças e jovens norte-americanos morreram de gripe.

    Enquadremos isto melhor para denunciar a falácia de Froes. Um estudo detalhado sobre as causas de mortes em 2016 em idade pediátrica nos Estados Unidos mostra que a maioria dos óbitos não foi por doenças, e muito menos infecciosas. Vejamos os números: 4.074 mortes por acidentes de viação (20% do total); 3.143 mortes por ferimentos de armas de fogo (15% do total), sendo que 1.865 foram homicídios e 1.102 suicídios; 1.430 mortes por sufocação (7% do total); 995 mortes por afogamento (5% do total) e 982 mortes por overdose ou intoxicação por drogas (5% do total). As neoplasias malignas causaram 1.853 mortes (9% do total), enquanto as doenças cardíacas e respiratórias crónicas responderam, em conjunto, por 873 mortes (4,3% do total), sendo que 274 óbitos foram causados por doença respiratória crónica, onde se insere a gripe.

    Assim, perante 20.360 mortes pediátricas totais, é, no mínimo, demagógico — ou mesmo populista — elevar as doenças respiratórias, e em particular a gripe, à condição de prioridade de saúde pública em idade pediátrica. Se há verdadeiros flagelos que merecem essa designação, eles residem na mortalidade evitável: acidentes de viação, armas de fogo, suicídios, afogamentos e drogas, e não na gripe. Basta observar os dados dos Estados Unidos: a letalidade associada à gripe — 280 óbitos numa população de 72,8 milhões de menores — traduz-se numa probabilidade de morte 14 vezes inferior à de um acidente rodoviário e mais de 100 vezes menor do que por arma de fogo.

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    Em Portugal, não temos o flagelo das armas de fogo, mas a gripe também está muito longe de ser o principal risco de vida em idade pediatria para causar este pânico semeado por Froes e seus correligionários. No seu artigo no Diário de Notícias, publicado hoje com o sugestivo título “Mas as crianças,Senhor, porque lhes dais tanta dor?!…“, refere um um estudo (sem referências) que, no período 2008-2018 e abrangendo crianças até aos cinco anos, estima 95 mortes em excesso associadas à gripe em dez épocas sazonais. Ou seja, cerca de nove mortes por época gripal num país com mais de 400 mil crianças nesse grupo etário.

    Mas convém ainda esclarecer mais uma falácia ‘froeseana’: essas “95 mortes em excesso” não representam 95 mortes por gripe, nem há qualquer prova de relação de causa-efeito. Trata-se de um cálculo estatístico que compara a mortalidade observada com a esperada, assumindo que parte da diferença possa estar associada à circulação do vírus. Ora, essa associação será ecológica e indirecta, não causal.

    Tudo isto não interessa para estes pregadores, que ainda por cima omitem o verdadeiro motivo pelo qual os números da gripe dispararam nos últimos anos: não foi a ausência de vacinação, mas o vazio imunológico deixado pelas políticas de confinamento.

    boys green crew-neck shirt

    Durante dois anos, as crianças foram privadas de contacto com vírus comuns — gripe, rinovírus, vírus sincicial respiratório —, criando uma geração imunologicamente “ingénua”. A supressão da circulação viral, longe de proteger, apenas adiou o inevitável: quando os vírus regressaram, encontraram organismos ‘sem treino’, e o resultado foi uma vaga mais intensa de infecções respiratórias, em especial nos mais novos.

    O próprio CDC reconhece esse fenómeno: o ressurgimento simultâneo das estirpes gripais A(H1N1)pdm09 e A(H3N2), após duas épocas quase estéreis, explica o número elevado de mortes pediátricas. Foi o preço da chamada ‘super-proteção pandémica0 promovida por Froes & Ca. — a ilusão de que a saúde se mantém isolando-se da vida.

    E aqui reside o cerne do problema contemporâneo: a crença supersticiosa de que os fármacos são superprotectores e inócuos, achando que a Medicina moderna pode transformar-se em Medicina Veterinária . A ciência — a verdadeira, não a patrocinada — diz exactamente o contrário. Nenhum estímulo farmacológico é neutro: cada intervenção no sistema imunitário tem um custo fisiológico, uma resposta inflamatória, uma reprogramação celular. Vacinar é uma ferramenta racional quando há risco concreto e benefício mensurável; mas fazê-lo em massa, como ritual anual e sem necessidade epidemiológica, é uma forma de medicalizar a infância e atrofiar o treino natural da imunidade.

    Um estudo recente publicado no Journal of Experimental Medicine, já este ano, mostra que a vacinação repetida contra a gripe pode atenuar a resposta imunitária subsequente, o chamado blunting effect. Outro, publicado no Frontiers in Immunology comprova que ainda em existem muitas incerteza sobre as verdadeiras interferências imunológicas em administrar as vacinas da gripe e da covid-19 em conjunto, algo que somente sucede por questões logísticas e não de saúde pública. Ou seja, a prudência está arredada da Medicina associada às farmacêuticas

    a young boy in a wheelchair holding a stuffed animal

    Nada disto significa que as vacinas sejam perigosas — pelo contrário, há vacinas seguras, mas que ganharam esse predicado pela precaução e pelo histórico. O problema é querer vestir-se o ‘hábito’ (chamar vacinas) e querer ser logo ‘monge’ (necessária, segura e eficaz).

    Infelizmente, as autoridades sanitárias parecem hoje reféns de uma nova teologia da prevenção farmacológica. O discurso médico foi sequestrado por uma cultura de submissão económica e simbólica à indústria, que vende tranquilidade em frascos e transforma cada época gripal numa oportunidade de mercado. Muitos dos seus porta-vozes, outrora profetas do confinamento, surgem agora como evangelistas da imunização total — com a mesma linguagem paternalista, as mesmas metáforas bélicas e o mesmo desprezo pela autonomia dos cidadãos.

    O problema não está em defender a vacinação — que é, em muitos contextos, uma conquista civilizacional, sobretudo em países com graves deficiências sanitárias, higiénicas e de cuidados de saúde primária e hospitalar —, mas em transformá-la numa panaceia dogmática.

    Filipe Froes: nunca revela as suas relações com a indústria farmacêutica: só este ano, até Setembro, conta oficialmente com 37.745 euros recebidos.

    O zelo excessivo com a saúde infantil pode degenerar em instrumentalização das crianças como pretexto para novos programas de despesa pública e contratos milionários de fornecimento de vacinas sazonais, que não correspondem a um risco real, sobretudo quando temos ainda mais de um milhão de pessoas sem médico de saúde.

    A pandemia da covid-19 mostrou como a retórica da urgência e da solidariedade pode servir de cortina para interesses económicos. O presente repete-se, agora com roupagem de ternura e discursos piedosos.

    Por isso, quando se lê um artigo como o de Filipe Froes — com invocações poéticas à dor das crianças — convém recordar que muitas dessas dores foram consequência directa das medidas que ele próprio incentivou e promoveu: confinamentos, máscaras obrigatórias, afastamento social. Foram os mesmos que defenderam o “fechar para proteger” que agora se apresentam como salvadores. A medicina deve proteger, não colonizar; a saúde pública deve informar, não moralizar.

    four boy playing ball on green grass

    As crianças precisam de liberdade, ar livre, imunidade construída em contacto com o mundo real. Não precisam de ser transformadas em escudos de campanhas políticas ou de marketing. O cuidado verdadeiro não se mede em doses administradas de fármacos, mas em equilíbrio, sensatez e humildade científica — virtudes raras entre os zelotas que confundem saúde com submissão.

    Em suma: vacinar pode ser prudente; vacinar massivamente, sem necessidade comprovada, é apenas a versão moderna do confinamento emocional que nos impuseram em nome da segurança. A diferença é que, desta vez, o confinamento é biológico, mascarado de compaixão. Que quem errou em 2020 tenha, pelo menos, a decência de não se reinventar em 2025 como profeta da imunização universal. Mas isso, no caso do doutor Filipe Froes, é pedir-lhe muito.

  • Sede da ‘polícia da bolsa’: Remodelações de interiores ‘às mijinhas’ custarão mais de oito milhões de euros

    Sede da ‘polícia da bolsa’: Remodelações de interiores ‘às mijinhas’ custarão mais de oito milhões de euros


    A ‘polícia da bolsa’ , o jargão usado para nomear a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), queixa-se frequentemente de falta de recursos humanos para melhor fiscalizar os mercados financeiros. Mas, como já se tornou hábito no sector público português, mesmo se os recursos humanos escasseiam, poucos decisores conseguem fugir à tentação de deixar obra feita, literalmente, com placa de inauguração à mistura.

    Neste tipo de cultura vigente, os membros do conselho de administração da CMVM, liderado por Luís Laginha de Sousa – que trouxe a ‘escola’ do Banco de Portugal, de onde foi administrador entre 2017 e 2022 – não fogem à regra e aprovaram um projecto de melhoraria de interiores da sua sede em Lisboa, junto ao Hospital Curry Cabral, que não tem fim à vista nem contas perfeitamente definidas. Mas pelo que se tem já gasto é possível estimar que custarão para cima dos oito milhões de euros,

    A remodelação da sede da CMVM prevê a criação zonas de lounge. / Foto: Projecto de remodelação da sede da CMVM | D.R.

    Só para a remodelação do piso técnico (onde se encontra maquinaria), do piso 1 e metade do piso 11, a CMVM está agora disposta, de acordo com um concurso público, a pagar um pouco mais de dois milhões de euros, que inclui um ginásio com balneários e ainda uma zona de gaming (jogos electrónicos) para os cerca de 220 trabalhadores. Note-se que esta remodelação é apenas de interiores, uma vez que o edifício do final dos anos 80 encontra-se em excelentes condições estruturais.

    No futuro, serão avançadas as remodelações das outras áreas de um edifício com 13 pisos à superfície, não havendo ainda previsão de custos finais. Isto porque a CMVM, para que os gastos possam passar de forma discreta, tem desenvolvido a remodelação por fases. No ano passado, foi adjudicada à Arfus em Abril a remodelação do piso 0, incluindo o auditório, com um custo total de 652 mil euros, com IVA incluído. Contudo, se se juntar os gastos anteriores, incluindo os projectos de arquitectura, para já a factura chega já ultrapassa os três milhões de euros.

    E a ‘procissão’ só agora vai no adro. Fazendo uma estimativa, atendendo às remodelações já adjudicadas e a concurso, que rondam cerca de 600 mil euros por piso, o custo global de melhorar todos os13 pisos aproximar-se-á dos oito milhões de euros, se não houver derrapagens.

    O processo de remodelação do edifício da CMVM iniciou-se há cinco anos. O primeiro contrato conhecido, datado de Maio de 2020, visou uma due diligence técnica ao imóvel, num investimento modesto de 9.450 euros, destinado a avaliar as condições estruturais e funcionais do edifício.

    Actualmente, os dois últimos pisos da sede da CMVM, que são usados pelos quadros de topo do regulador, apresentam uma decoração clássica, com madeiras nobres e tapeçarias. / Foto: Projecto de remodelação da sede da CMVM | D.R.

    Seguiram-se, em 2022 e 2023, novas empreitadas com valores progressivamente mais elevados, nomeadamente estudos prévios, projectos base de arquitectura e especialidades, bem como consultoria para renovação de espaços interiores, incluindo o hall de elevadores e zonas comuns.

    Este ano, o processo atingiu uma nova etapa, com a aquisição de serviços para automatização e controlo do edifício (SACE), sinalizando a transição de uma fase de planeamento e reabilitação física para uma vertente mais tecnológica e de eficiência operacional.

    Ao longo de cinco anos, a CMVM escolheu sucessivamente a Savills Portugal, uma sucursal de uma empresa britânica do sector imobiliário, para estas intervenções. Assim, os contratos celebrados desde 2020 somam 283.843 euros, valor que, acrescido do IVA a 23%, eleva o montante global já gasto para cerca de 349.127 euros.

    Agora, passou-se para a fase do concurso para a escolha da empresa de construção que vai executar o projecto de remodelação profunda da sede da CMVM já está em marcha com um preço base de 1,7 milhões de euros. Com IVA aumenta para os 2,09 milhões.

    Este será o aspecto futuro dos dois pisos superiores da sede da CMVM, após as obras de remodelação. / Foto: Projecto de remodelação da sede da CMVM | D.R.

    Segundo o projecto de remodelação, consultado pelo PÁGINA UM, o objectivo da obra é actualizar os interiores do edifício, criar espaços de trabalho abertos e modernizar os espaços que se encontram “datados”, embora em boas condições.

    Também os dois andares mais altos do edifício, 11º e 12º, que são usados pelos quadros de topo da CMVM, serão alvo de um “extreme makeover“: as madeiras nobres, o mobiliário clássico e as tapeçarias serão substituídos por uma decoração de interiores sofisticada, com um toque de estética escandinava — mas num país sem os recursos financeiros daquela região do Mundo, conforme das imagens que acompanham os documentos de procedimento concursal.

    No final desta remodelação extrema, a sede da CMVM ficará irreconhecível. A intervenção abrange assim a reconstrução dos interiores de 13 pisos – do piso 1 ao 12.º e ainda um piso “técnico”. Cada piso tem cerca de 514 metros quadrados, sendo que o primeiro serve diversos fins, dispondo, por exemplo, de uma cafetaria que será ampliada.

    A “nova” sede da CMVM vai contar com espaço multiusos dedicado ao exercício físico e dois balneários. / Foto: Projecto de remodelação da sede da CMVM | D.R.

    Segundo os documentos do concurso com a “memória descritiva” do projecto de remodelação, “a construção do edifício data do ano de 1989, pelo que a sua linguagem arquitectónica é marcada por uma sobriedade nas formas e volumes, combinada com uma certa ousadia na utilização das cores, tanto no exterior, como no interior”.

    Actualmente, os pisos “encontram-se organizados com base nos critérios de utilização, função, grau de confidencialidade e nível
    hierárquico dos utilizadores”, sendo que “esta lógica é reflectida na compartimentação dos espaços e nos materiais utilizados em cada piso”. Assim, os pisos destinados a quadros de topo têm actualmente materiais nobres e mobiliário clássico. Os restantes pisos, estão decorados de forma mais austera e “fria”.

    O documento destaca ainda que “os dois últimos pisos do edifício apresentam uma organização espacial distinta dos demais, onde a nobreza dos materiais se destaca”, mas “a reduzida incidência de luz natural e o pé direito baixo conferem a estes espaços uma atmosfera mais escura e pesada do que o desejável”.

    Em resumo, o objectivo da remodelação é eliminar o aspecto “antiquado” dos espaços e criar interiores com mais luz e espaços abertos.

    O edifício-sede da CMVM, na Rua Laura Alves, 4, em Lisboa. / Foto: D.R. | CMVM

    Todas as zonas no edifício vão ser renovadas, dos gabinetes da administração às casas-de-banho. No piso 1, a cafetaria vai ser “substancialmente expandida, com o intuito de acomodar um maior número de utilizadores” tendo o novo espaço sido “concebido com uma diversidade de ambientes acolhedores, promovendo a interação e o convívio, incluindo, também, uma zona de gaming, para fomentar a dinamização entre os colegas”.

    Também no piso 1, o espaço multiusos será “significativamente ampliado e relocalizado numa zona mais reservada, proporcionando um ambiente propício à prática de exercício físico, complementado por balneários de apoio”.

    Já que a CMVM tem meios escassos, o regulador concluiu que não precisa de tanto espaço e libertará três pisos, que ficarão disponíveis. Segundo a documentação disponibilizada no concurso. “constatou-se que a utilização integral do edifício pela CMVM se revelava excessiva, decorrente da ineficiência do
    layout dos pisos, da área desproporcionalmente alocada à circulação e da existência de espaços que, face às novas necessidades, se tornaram obsoletos”.

    Nesse sentido, “foi possível determinar que a ocupação necessária poderia ser optimizada, libertando três pisos para um novo inquilino”.

    A nova ‘cantina’ da CMVM. / Foto: Projecto de remodelação da sede da CMVM | D.R.

    Deste modo, na remodelação, os três pisos que serão “libertados” — entre os piso 2 e 4 — vão ser renovados “com os acabamentos básicos de um espaço interior, incluindo as infraestruturas técnicas essenciais”, uma configuração, “frequentemente descrita como uma “tela em branco”, oferece ao futuro ocupante a flexibilidade de adaptar o espaço às suas necessidades específicas”.

    Com este “libertar” de espaço no edifício, o conselho de administração da CMVM consegue encontrar, assim, um argumento para promover esta obra de renovação como trazendo eficiência. Resta saber se o papel do regulador da Bolsa como polícia dos mercados financeiros vai beneficiar com este “extreme makeover” da sede. Uma coisa é certa: os ‘scores‘ dos funcionários nos jogos electrónicos vão melhorar.

  • ‘Low cost’ no contrato  dos eléctricos: Carris nem sequer quis saber se os técnicos da MNTC tinham qualificações

    ‘Low cost’ no contrato dos eléctricos: Carris nem sequer quis saber se os técnicos da MNTC tinham qualificações


    A Carris dispensou a MNTC — a empresa também responsável pela manutenção do Elevador da Glória no momento do acidente mortal de 3 de Setembro — de apresentar qualquer comprovativo das qualificações profissionais dos técnicos afectos à manutenção dos eléctricos históricos e articulados Siemens , antes da adjudicação.

    Ou seja, a empresa municipal está a permitir que a manutenção seja realizada por pessoas sem experiência ou qualificações. Recorde-se, aliás, que, apesar de ser uma obrigação contratual da MNTC, o cabo do Elevador da Glória terá sido substituído por técnicos da Carris, uma vez que a empresa contratada não detinha conhecimentos para essa função.

    a yellow trolley car on a city street

    Aliás, a respeito do acidente do Elevador da Glória, caso se prove que a Carris assumiu a substituição do cabo e a ligação deste ao trambolho, através de um soquete de liga metálica, a responsabilidade passará a recair directamente sobre a própria empresa municipal, por ter violado as regras contratuais — ao intervir num equipamento cuja manutenção estava externalizada —, passando a assumir integralmente o ónus técnico e jurídico de um acto de montagem que exige certificação específica segundo as normas EN 13411-4 e EN 12385-8, com todas as consequências em termos de responsabilidade civil e criminal.

    De acordo com os elementos do procedimento do concurso público da manutenção dos eléctricos de Lisboa, a que o PÁGINA UM teve acesso, o programa do concurso previa que “o júri do procedimento pode solicitar aos concorrentes quaisquer comprovativos das formações, certificações ou experiência profissional mencionados no currículo de qualquer um dos elementos a afectar à prestação dos serviços”.

    No entanto, esse poder nunca foi exercido. Aliás, o júri do concurso — Isabel Cruz, Alexandra Silva e Ana Tomás, técnicas da Carris — acabou por tranquilizar a MNTC, esclarecendo por escrito, ainda antes da decisão final, que não seria necessário cumprir esse requisito durante a fase de concurso, embora tenha ressalvado que a empresa municipal “reserva-se o direito de solicitar, em sede de execução contratual, todas as certificações que se demonstrem necessárias”. Porém, tal nunca sucedeu até agora, segundo apurou o PÁGINA UM.

    Resposta do júri do concurso público de manutenção dos eléctricos, esclarecendo a MNTC de não ser necessário cumprir uma norma do programa de concurso sobre os comprovativos do currículo dos elementos das equipas.

    Com essa flexibilização, a MNTC pôde concorrer e vencer o procedimento, apresentando uma proposta abaixo do preço base (475.200 euros), derrotando a concorrência da Gasfomento. A Carris aceitou, assim, celebrar um contrato de manutenção de três anos sem comprovação prévia das competências técnicas da adjudicatária — uma lacuna grave, tendo em conta que se trata da mesma empresa envolvida no acidente do Elevador da Glória, onde se verificaram falhas estruturais e ausência de certificações válidas no cabo de tracção.

    Mas o problema não se resume ao controlo da adjudicação. O PÁGINA UM analisou o caderno de encargos da manutenção dos 45 carros eléctricos históricos e dos sete eléctricos articulados de Lisboa, tendo concluindo que é tecnicamente pobre, revelando, tal como já sucedia com o caderno de encargos dos ascensores, um nível de exigência muito inferior ao praticado pela STCP, no Porto, em matérias de segurança, rastreabilidade e rigor metrológico. Saliente-se que a MNTC é também a empresa responsável pela manutenção dos eléctricos na Cidade Invicta.

    Com efeito, enquanto a operadora portuense estruturou o seu plano de manutenção segundo princípios de engenharia industrial, com verificações periódicas diferenciadas (diárias, quinzenais, mensais, semestrais, anuais e de revisão geral), a Carris limita-se a prever revisões a cada 3.000 quilómetros no caso dos eléctricos, com verificações diárias, mas sem qualquer diferenciação por subsistema nem definição de critérios técnicos de aceitação ou rejeição.

    Exigências dos eléctricos históricos do Porto são incomensuravelmente superiores aos de Lisboa.

    Por outro lado, o plano da STCP obriga a ensaios não destrutivos (magnetoscopia e ultrassons), medições dimensionais com registo obrigatório, testes de equilíbrio dinâmico conforme a norma ISO 1940 G 2.5, verificação geométrica dos bogies segundo padrões UIC (Union Internationale des Chemins de Fer) e certificação de estanquidade de reservatórios de ar por entidades acreditadas. No caso do Porto, cada operação deve ser registada em ficha própria, com valores medidos, instrumento utilizado, data, técnico responsável e assinatura, garantindo rastreabilidade integral.

    Já a Carris não exige nenhum ensaio metrológico à MNTC, não define instrumentos nem tolerâncias e limita-se a indicar que devem ser efectuadas “verificações” e “revisões”, sem qualquer método prescrito. As “verificações”, como sucedia com os elevadores, podem ser a ‘olhómetro’.

    Essa diferença traduz-se num fosso de cultura técnica: enquanto o plano de manutenção da STCP demonstra a existência de engenharia aplicável a sistemas críticos de transporte, o da Carris é uma listagem funcional, assente na observação empírica e sem referências normativas. Em Lisboa, não há menção a normas ISO, EN ou UIC, nem exigência de certificações independentes de componentes críticos, como rodados, eixos, travões ou molas. Também não se prevê qualquer sistema de rastreabilidade técnica: o controlo documental resume-se a folhas de obra e relatórios administrativos, sem fichas metrológicas nem rastos de auditoria.

    Manutenção engloba eléctricos históricos e os modernos eléctricos articulados da marca Siemens. Foto: Carris.

    A pobreza técnica do caderno de encargos da Carris contrasta com a gravidade dos riscos envolvidos. Os eléctricos históricos — tal como os funiculares — são equipamentos antigos, sujeitos a fadiga estrutural e esforços dinâmicos que exigem inspecções especializadas e ensaios periódicos. Ainda mais no caso dos eléctricos de Lisboa, como o famoso 28, que percorrem zonas de grande declive, como a Calçada da Estrela, mesmo ao lado da Assembleia da República, a Calçada do Combro, a zona que liga o Chiado à Baixa, a Rua da Voz do Operário e a Rua Angelina Vida.

    A ausência de critérios técnicos e de medições verificáveis fragiliza o controlo de integridade e aumenta o risco de falhas não detectadas. Mesmo as penalizações contratuais, de 100 a 150 euros por omissão de manutenções, são simbólicas e não contemplam as consequências de incumprimentos que ponham em causa a segurança operacional.

    O PÁGINA UM já havia revelado, ao longo do mês passado, que a Carris tem adoptado um modelo de fiscalização essencialmente formal sem exigências escritas, baseado na confiança contratual. Agora, comprova-se que esse laxismo se estende à fase de planeamento técnico, com um caderno de encargos desprovido de parâmetros objectivos e metodologias de verificação.

    Conselho de Administração da Carris: a privilegiar o baixo custo e a elevada insegurança.

    Na verdade, a Carris aparenta privilegiar o preço baixo, algo que pode sair caro quando se trata de segurança. Com efeito, para a manutenção de 45 carros eléctricos históricos e dos sete eléctricos articulados, a empresa municipal de Lisboa vai gastar, em média, 158 mil euros com a manutenção da MNTC. Por sua vez, a STCP está disposta a gastar 380 mil euros por ano, em média, para a manutenção de apenas oito eléctricos históricos. Numa outra perspectiva, o custo no Porto por veículo é de De um lado, o ‘low cost’; do outro, a segurança.

    A comparação entre a STCP e a Carris – que há poucos dias até suspendera um concurso pública de ‘remotorização’ de 57 eléctricos antigos, que nada tem a ver com manutenção, para melhorar o caderno de encargos, conforme revelou a CNN Portugal – evidenciam dois modelos distintos: enquanto no Porto se seguem regras e se mede com rigor, em Lisboa continua a valer o improviso e o “olhómetro”. Adivinhe-se qual aquele modelo com maior probabilidade de estar sujeito aos ‘azares’ que resultam em desastres.

    N.D. O PÁGINA UM optou, intencionalmente, por desta vez não colocar questões à Carris, uma vez que, invariavelmente desde Setembro, a empresa municipal não remete nem revela quaisquer documentos, alegando que “está a receber inúmeras solicitações de entidades e de órgãos de comunicação social” e prometendo que “a todos está a ser dada resposta com prioridade e a maior brevidade possível”.

    Como há questões formuladas à Carris há mais de três semanas ainda sem resposta, presume-se que novas perguntas não seriam respondidas em tempo útil, juntando-se ao rol de promessas não cumpridas pela administração liderada por Pedro Bogas. Naturalmente, o PÁGINA UM incluirá quaisquer comentários que a Carris entenda relevantes.

  • Direito à informação: Juiz em início de carreira quis fazer ‘jeitinho’ ao Conselho Superior da Magistratura, mas três desembargadoras não deixaram

    Direito à informação: Juiz em início de carreira quis fazer ‘jeitinho’ ao Conselho Superior da Magistratura, mas três desembargadoras não deixaram


    Um juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa, nomeado a título definitivo há apenas um ano, quis criar uma “regra especial” para o Conselho Superior da Magistratura (CSM), defendendo que este órgão não teria de cumprir a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA).

    No entanto, os seus “superiores” — leia-se, três desembargadoras da Secção Administrativa Comum do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) — revogaram por unanimidade a decisão, através de um curto mas demolidor acórdão, considerando que o juiz confundiu conceitos jurídicos e aplicou uma norma errada, afastando-se injustificadamente de jurisprudência consolidada sobre o direito de acesso à informação administrativa.

    Em causa estava um pedido do PÁGINA UM para acesso às actas e deliberações originais e integrais do Conselho Permanente e do Conselho Plenário do CSM, relativas aos anos de 2023 e 2024. Embora essas actas esteja disponível no site da cúpula da Magistratura Judicial, o órgão opta por rasurar nomes e dados processuais sempre que as classificações de juízes são medíocres ou envolvem matéria que eles considerem discricionariamente sensível, mesmo se relativas a processos judiciais que interessariam às partes.

    Porém, o CSM divulga, sem pudor, os nomes daqueles que obtêm avaliações excelentes. Ou seja, as reasuras nada têm a ver com alegada protecção de dados pessoais, tanto mais que esse preceito nem se aplica quando estão em causa actividades públicas.

    Foi precisamente devido a estas rasuras selectivas que o PÁGINA UM requereu ao CSM em Fevereiro passado o acesso às actas integrais, devidamente assinadas, das reuniões ordinárias e extraordinárias, tanto das secções de assuntos gerais e disciplinares como das plenárias.

    Exemplo de uma acta com inúmeras rasuras (sobretudo com X) onde abundam exemplos de rasuras arbitrárias.

    O CSM — como já havia feito noutra ocasião — negou o pedido do PÁGINA UM com base num parecer da sua encarregada de protecção de dados, o que levou o jornal a apresentar uma intimação ao Tribunal Administrativo em Março passado, repetindo, aliás, o que já ocorrera anteriormente noutros processos semelhantes.

    Contudo, de forma insólita, a sentença proferida em primeira instância, no passado mês de Maio, pelo juiz Paulo Ricardo Varela Sezefredo, concluiu pela “incompetência material” dos tribunais administrativos para apreciar o caso. O magistrado sustentou que os actos praticados pelo CSM estariam excluídos da jurisdição administrativa, por força do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).

    Segundo a sua interpretação, o pedido do PÁGINA UM dizia respeito a “actos materialmente administrativos praticados pelo CSM e seu Presidente” e, como tal, apenas o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) poderia decidir. Ou seja, este juiz considerava que seria o Supremo Tribunal de Justiça, liderado por Cura Mariano, a decidir se a recusa no acesso a actas por parte do Conselho Superior da Magistratura, também liderado por Cura Mariano, era legal. A ser possível, não se consegue encontrar melhor exemplo de ‘juiz em causa própria’ numa situação de acesso à informação.

    João Cunha Mariano, presidente do Supremo Tribunal de Justiça é, por inerência, presidente do Conselho Superior da Magistratura. O juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa Paulo Varela Sezefredo queria que fosse o Supremo Tribunal de Justiça a decidir se a recusa no acesso a actas por parte do Conselho Superior da Magistratura era legal.

    Em suma, Varela Sezefredo equiparou qualquer acto administrativo — incluindo o pedido de informação — a uma decisão jurisdicional. Na sua interpretação, o PÁGINA UM teria de recorrer de uma decisão do Presidente do CSM para o Supremo Tribunal de Justiça, que é… presidido pelo mesmo Presidente do CSM.

    Agora, em acórdão datado de 25 de Setembro, a decisão foi considerada “manifestamente errada” por um colectivo de três desembargadoras — Joana Costa e Nora, Marta Cavaleira e Ana Lameira — que concluíram que o juiz confundiu duas realidades jurídicas distintas: o pedido de acesso a documentos (que visa garantir o direito à informação) e a impugnação de um acto administrativo.

    “A intimação para a prestação de informações (…) é o meio processual próprio para reagir contra qualquer forma de recusa de informação”, escreveram as magistradas, frisando que a exclusão do CSM prevista no ETAF não se aplica a pedidos de acesso a documentos administrativos apresentados por cidadãos ou jornalistas.

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    A decisão do TCAS é particularmente relevante porque confirma a competência dos tribunais administrativos para julgar litígios relacionados com o direito de acesso à informação pública, incluindo quando envolvem órgãos de soberania como o CSM ou o STJ.

    Aliás, já existiam decisões anteriores — tanto do Tribunal Administrativo de Lisboa como do próprio TCAS — que obrigaram o STJ a divulgar documentos administrativos. Chegou mesmo a haver uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que impôs uma sanção pecuniária compulsória ao Presidente do STJ por incumprimento de uma decisão judicial sobre o acesso ao inquérito da distribuição do processo Marquês. E o presidente Cura Mariano viu-se na obrigação de acatar para não lhe ‘irem ao bolso’, uma vez que estas multas são aplicadas aos titulares e não às entidades.

    A posição assumida por Paulo Varela Sezefredo destoava, assim, frontalmente da jurisprudência anterior. Este juiz, que apenas se tornou efectivo em 2024, passou grande parte da sua carreira como jurista no Exército Português, tendo concluído um mestrado em Direito há pouco mais de cinco anos sob a orientação do professor Domingos Farinho, docente da Faculdade de Direito de Lisboa, acusado de ter sido o redactor (“ghost writer”) da tese de José Sócrates, num processo que terminou com a suspensão provisória e o pagamento de 10 mil euros.

    Na sentença agora revogada, Varela Sezefredo chegou a defender que o PÁGINA UM deveria ter apresentado a intimação directamente no Supremo Tribunal de Justiça, invocando a “especialidade” do CSM — um argumento considerado sem sentido pelos desembargadores. Além disso, de forma pouco habitual, dispensou o contraditório, apesar de o CSM nem sequer ter respondido ao tribunal, o que é obrigatório. Alegou “manifesto desinteresse e inutilidade”.

    A decisão agora revogada pelo TCAS determina o regresso do processo ao tribunal de origem para ser devidamente apreciado. Ou seja, apesar da sentença obtusa que obrigou a um recurso — com perda de tempo e recursos para corrigir um erro elementar — será o mesmo juiz Paulo Varela Sezefredo a ter de reapreciar o caso. Se voltar a decidir contra o PÁGINA UM, o jornal terá de recorrer novamente para o tribunal superior, embora, nesse caso, ser ‘reprovado’ duas vezes no mesmo processo pode ser visto como uma situação anómala para efeitos da sua classificação.

    N.D. Os processos do PÁGINA UM nos tribunais são apoiados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO.

  • A Universidade de Braga e o taberneiro Monteiro

    A Universidade de Braga e o taberneiro Monteiro


    A universidade deveria ser um espaço de saber e decantação, onde o pensamento se eleva pela dúvida e o confronto de ideias se faz com argumentos, não com insultos. Mas a academia contemporânea, minada por egos frágeis e pelo culto da visibilidade digital, transformou-se num antro de maledicência — um mercado de vaidades onde se confunde opinião com autoridade e onde a inveja se disfarça de erudição. Já não se disputa a verdade; disputa-se a atenção. E o que deveria ser diálogo científico converte-se em guerrilha tribal, em que o ódio se exibe em nome da virtude.

    Nos últimos anos, as universidades multiplicaram equipas interdisciplinares na área da comunicação, reunindo sociólogos, filósofos, jornalistas e tecnólogos. Tal diversidade, em princípio, enriqueceria o pensamento. Mas implica, por isso mesmo, uma responsabilidade acrescida. Quem trabalha no campo da comunicação deve compreender que as palavras têm peso, que a reputação é um bem público e que o rigor não se desliga à porta do campus. Não se pode ser investigador meticuloso de dia e taberneiro digital à noite. A liberdade académica não é licença para difamar.

    Eis que surge o caso paradigmático do senhor João Lourenço Monteiro, licenciado e mestre em Biologia e doutorado em História e Filosofia das Ciências — um percurso respeitável, até se conhecer o uso que faz dele. Monteiro estudou a produção e circulação do conhecimento médico no Instituto de Medicina Tropical durante o Estado Novo, recorrendo, diz-se, a ferramentas de Humanidades Digitais. Integra o Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho, uma das principais unidades de investigação do país nesta área.

    E, talvez crente na sua própria infalibilidade, decidiu exercitar o insulto público, deixando no perfil da historiadora Irene Pimentel a seguinte proclamação:

    “O Página Um é uma plataforma de desinformação que surgiu há poucos anos para apoiar uma narrativa contra as medidas de contenção à COVID. Não é um jornal imparcial, portanto não leve a sério o que lá é escrito.”

    Comentário de João Monteiro que consta como investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho

    Não conheço — nem reconheço — mérito científico a João Monteiro, até porque isso nem é o mais relevante. Mas levo estas suas palavras a sério, não pelo seu conteúdo, que é miserável, mas pela sua origem: um investigador associado a uma universidade pública (Universidade de Braga) e a um centro dedicado precisamente ao estudo da comunicação (Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade) proclama publica e gratuitamente que um jornal independente é uma “plataforma de desinformação”.

    As suas afirmações não são um mero desabafo de rede social; são uma acção discursiva que fere o princípio da integridade académica, pois difundem falsidades em nome de uma autoridade institucional. Quando um académico abdica da dúvida e abraça o insulto, não apenas degrada a sua credibilidade: compromete a da instituição que o acolhe.

    Presumo — com generosidade académica — que o doutor Monteiro tenha aplicado um método, um quadro teórico, uma amostra e uma análise de conteúdo para concluir, com tão firme convicção, que o PÁGINA UM é “uma plataforma de desinformação”. Talvez, entre cafés e indignações digitais, tenha cruzado palavras-chave, medido enviesamentos ou estruturado um modelo conceptual digno da Nature Human Behaviour. Ou talvez não. Talvez — quem sabe — estas conclusões “científicas” do taberneiro Monteiro nada tenham a ver com ciência, mas antes com os ódios de estimação que o PÁGINA UM tem suscitado em certos círculos académicos.

    João Monteiro, á direita, investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho ‘decretou’ que o PÁGINA UM é uma “plataforma de desinformação“. Foto: DR

    Não será certamente o caso — Deus nos livre de tal coincidência — que esta súbita vocação inquisitorial derive do incómodo que o PÁGINA UMA tem causado a alguns nomes em destaque no próprio CECS, como a doutora Helena Sousa, actual presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, instituição que, curiosamente, continua a resistir com zelo quase bíblico às ordens judiciais que a obrigam a libertar documentos públicos requeridos por este jornal.

    Seria injusto suspeitar que a animosidade se alimenta do simples facto de o PÁGINA UM não ser um órgão domesticado — e, portanto, mais difícil de controlar pela cartilha institucional. Não, deve ser tudo fruto de uma sofisticada inferência empírica, construída com os instrumentos mais rigorosos da epistemologia minhota.

    Eis o drama da academia contemporânea: nela habitam muitos doutores do conhecimento e poucos senhores do carácter. A instrução multiplica-se, mas a verticalidade definha. O título de doutor já não é penhor de honra — é apenas ornamento de vaidade. E o que vemos, demasiadas vezes, é o triste espectáculo de investigadores que dominam teorias, citam autores e publicam papers, mas não distinguem verdade de intriga, nem probidade de conveniência. São letrados na superfície e miseráveis na substância: confundem inteligência com esperteza, e confundem autoridade com soberba.

    Que valor tem, afinal, o saber, quando o seu portador é incapaz de o exercer com decência? Que utilidade possui a ciência, quando se usa o prestígio universitário para lançar lama, e não luz? A mediocridade ética tem hoje estatuto de normalidade, e o insulto académico faz carreira nas redes sociais com a mesma leveza com que se troca um “like”. É o triunfo do investigador sem gravidade moral, do estudioso que conhece todas as teorias da comunicação, menos a da sua própria responsabilidade.

    E assim, entre publicações indexadas e financiamentos competitivos, floresce um novo tipo de intelectual: o erudito da calúnia, versado em bibliografia mas desprovido de vergonha. São eles os novos inquisidores do debate público, que medem a virtude pela conformidade ideológica e confundem a crítica com blasfémia. Talvez João Monteiro se veja nesse espelho — mas temo que não reconheça o reflexo. Afinal, a vaidade académica é uma lente deformante: quanto mais se olha, menos se vê.

  • A doutora Irene Pimentel e a tirania dos rótulos

    A doutora Irene Pimentel e a tirania dos rótulos


    Há muito que as sociedades se tornaram arenas onde o combate de ideias foi substituído pelo duelo de rótulos. Já não se busca refutar um argumento, mas extirpar o seu autor com o selo conveniente — “negacionista”, “populista”, “fascista”, “extremista”, “antidemocrático”. Em tempos de redes e reacções instantâneas, a razão perdeu o passo para o reflexo condicionado.

    A vitória, hoje, mede-se em “likes”, “retweets” e palmas digitais; o raciocínio cedeu o lugar à claque. É o triunfo da retórica preguiçosa sobre o debate informado, da vaidade performativa sobre a reflexão demorada. E este dogmatismo, que se disfarça de virtude moral, revela afinal uma patologia intelectual: o medo de pensar.

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    A erosão do diálogo não resulta de mera incivilidade: é o sintoma de um tempo em que a autoridade substituiu a razão. Vence não quem demonstra, mas quem ostenta — um título académico, um prémio intelectual, uma tribuna televisiva. Já não se trata de argumentar, mas de invocar estatuto. Ora, a autoridade sem razão é apenas arrogância legitimada; e o prestígio sem humildade converte-se em censura.

    Confesso que, vindo da esquerda — hoje órfão partidário, mas não de princípios —, aprendi mais pela leitura e pela experiência do que pelos catecismos de ocasião. De Marx a Orwell, de Chomsky a Popper, sempre me ficou a ideia de que a liberdade é o primeiro e o último baluarte da dignidade humana. E foi precisamente durante a pandemia — esse laboratório da servidão consentida — que percebi como é frágil a promessa constitucional de direitos invioláveis.

    Quando mais era necessário pensar, proibiu-se questionar; quando mais urgia duvidar, exigiu-se fé. Vi a Constituição convertida em papel decorativo e a liberdade de expressão reduzida à liberdade de concordar.

    Aprendi então que compreender o outro não é aderir às suas ideias, mas reconhecer-lhe o direito de as ter. E esse exercício de empatia é a antítese do cancelamento moral que hoje domina uma certa esquerda — a mesma que se julga detentora do monopólio da virtude, mas que pratica o linchamento simbólico com zelo inquisitorial.

    À medida que a direita populista cresce, em parte alimentada pelos erros da própria esquerda, esta responde com mais intolerância e menos autocrítica. O resultado é previsível: o eleitorado afasta-se, não por se ter tornado bárbaro, mas por se ter cansado da hipocrisia.

    A polémica recente envolvendo Irene Flunser Pimentel, historiadora premiada e respeitada, é um exemplo paradigmático. No auge da comoção pela morte de Charlie Kirk — um jovem conservador americano, católico e combativo no debate público —, Pimentel não resistiu ao impulso digital de o rotular como “simpatizante nazi”, “anti-democrático” e outros mimos. Não discutiu as suas ideias; decretou-lhe a infâmia. Fê-lo sem rigor, sem contexto, sem compaixão.

    Debate original e integral onde Charlie Kirk defende de os ‘Founding Fathers’ não defendiam a democracia pura e, nessa linha, a palavra Democracia não surge na Constituição dos Estados Unidos.

    E quando a jornalista Elisabete Tavares, no PÁGINA UM, ousou questionar-lhe a leviandade, a historiadora reagiu não com argumentos, mas com indignação. Acusou o nosso jornal de extrema-direita, reivindicou-se vítima e, claro, invocou a autoridade do The Guardian — porque o dogmático nunca erra: é o mundo que o desrespeita.

    E claro, na incandescência das redes sociais, lançou ela as suas Fúrias contra um projecto de jornalismo independente que não confunde isenção com ideologia, nem lucidez com dogmatismo. Fúrias dignas das tragédias áticas, desatadas contra quem ousa existir fora do seu templo moral. E com tantas palmas, a doutora Pimentel, na sua bolha, persistirá, persistirá nos rótulos até não precisar sequer de raciocinar e rebater.

    No universo maniqueísta da doutora Irene Pimentel, ela habita, por direito divino, o lado da luz — e todos os demais, por simples acto de desacato à sua opinião de ‘trazer por casa’, são empurrados para as trevas. Assim, num salto lógico digno de um delirium ad reductum — que já não convoca o inevitável Hitler, mas o omnipresente Trump —, quem ousa apontar-lhe a falta de objectividade ou beliscar-lhe a virtuosa infalibilidade é, ipso facto, lançado ao inferno dos proscritos: cúmplice do Estado Novo, sequaz da PIDE e, por extensão metafísica, aliado de todos os demónios disponíveis para o conveniente contorcionismo ideológico.

    Irene Flunser Pimentel. Foto: DR

    Ora, o problema não é apenas moral: é epistemológico. Um historiador que manipula uma citação trai o próprio ofício, que assenta na crítica das fontes e na integridade da narrativa. Se um académico, habituado a lidar com documentos, não distingue um facto de uma opinião, o que garante que a sua obra — sobre o Estado Novo ou sobre qualquer outro tema — não reproduz o mesmo viés? Que valor tem a autoridade quando a verdade é sacrificada à convicção?

    Já agora, convém salientar que duvidar dos métodos da doutora Pimentel não equivale a negar a existência do Estado Novo ou da sinistra PIDE. Mal estaríamos se a prova da malignidade do regime salazarista dependesse da sua exegese, como se a História só tivesse desvendado os seus horrores porque a doutora Pimentel, num rasgo iluminado, se dignou a investigá-los e a revelar ao mundo o que nenhum outro mortal teria ousado vislumbrar sem a sua intercessão académica.

    Até porque a questão que eu levanto (e a Elisabete já o fizera) transcende a pessoa: é o sintoma de um meio cultural que confunde virtude com militância. O historiador transforma-se em activista, o jornalista em cruzado, o académico em pregador. E, nesse processo, a verdade torna-se refém da ideologia. O resultado é uma sociedade que já não debate — apenas denuncia e confronta o outro com rótulos. Onde a dúvida é crime e o contraditório, heresia.

    Poder-se-á pensar que esta estratégia é eficaz: cala-se o adversário, preserva-se a bolha. Mas, a prazo, o custo reputacional é devastador. Quem vive de anátemas acaba por ser vítima deles. A falácia pode funcionar uma vez, duas talvez; mas a repetição expõe o artifício. Ninguém acredita eternamente em quem grita “lobo!” a cada sombra. O tempo, esse juiz silencioso, revela sempre a impostura.

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    A acrimónia da doutora Pimentel é um aviso exemplar aos que confundem a ligeireza da rede social com a gravidade de uma cátedra, a vaidade opinativa com o exercício do magistério e a mera opinião com sentença definitiva. Não é o PÁGINA UM que está em causa, nem sequer Charlie Kirk; são as Irenes Pimenteis desta vida: é o princípio elementar de que a dignidade do debate depende da honestidade intelectual. A crítica é legítima; a difamação, nunca. A História não se escreve com insultos.

    Por isso, e com a serenidade que a idade deveria inspirar, apelo à Dra. Pimentel: não desça ao rés-do-chão digital. Não comprometa a obra que construiu com o azedume daqueles quem confundem discordância com ataque. O historiador que semeia ódio colherá descrédito. E o académico que troca a fonte pela raiva acabará ele próprio a ser objecto de estudo — exemplo de como a vaidade e o dogma corrompem a ciência.

    O dogmatismo é o ópio dos intelectuais. E quando a inteligência se converte em fé, a liberdade morre sem ruído.

  • 1.610.490 leituras em Setembro: a independência paga-se, mas não se vende

    1.610.490 leituras em Setembro: a independência paga-se, mas não se vende


    Há quase quatro anos que o PÁGINA UM tem vindo a provar que o jornalismo português pode ser diferente — não apenas na forma como se faz, mas sobretudo no modo como se pensa. Desde o primeiro dia assumimos que o nosso compromisso não é com o poder nem com qualquer ideologia, mas com a verdade, a transparência e o escrutínio. E é por isso que, entre tantas incompreensões e desconfianças, fomos afirmando um caminho singular: o de um jornal que denuncia promiscuidades e confronta poderes, sem filtros nem favoritismos.

    Ao contrário de grande parte da imprensa tradicional, que ora se curva ao poder político, ora serve de caixa-de-ressonância ao económico, o PÁGINA UM recusou escolher trincheiras. Nunca mitigámos uma ideologia nem diabolizámos outra. Limitámo-nos — como é dever de um jornal livre — a aplicar o mesmo grau de rigor e exigência a todos. E é precisamente essa coerência, essa recusa em dobrar a espinha perante o peso dos interesses ou das modas, que explica as reacções hostis que ainda hoje recebemos.

    Basta olhar para o que o Google sugere quando alguém pesquisa o meu nome: “Chega”, “Bloco de Esquerda”, “partido”, “covid”, “Gustavo Carona”, “ERC”… as pessoas procuram rótulos, querem caixinhas. Mas o PÁGINA UM não cabe em nenhuma.

    Contra ventos e marés — e, muitas vezes, contra silêncios — temos trilhado o nosso caminho. Com uma redacção fixa de apenas dois jornalistas e alguns colaboradores, somos obrigados a acumular tudo: investigação, edição, resposta a e-mails, gestão de assinaturas e de apoios, coordenação logística e até tarefas administrativas. Não há secretariado, não há assessores, não há agências. Há apenas um jornalismo que se faz com convicção, tempo e sacrifício. E, por isso mesmo, reconhecemos que nem sempre conseguimos responder a todos os leitores como desejaríamos. Falhamos nos agradecimentos, por vezes demoramos nas respostas. Mas não é por desinteresse: é por falta de mãos.

    Nos últimos meses, o PÁGINA UM tem vivido uma das fases mais intensas desde a sua fundação. Reformulámos o nosso site, criámos uma nova plataforma de apoio financeiro, lançámos novos projectos editoriais e aprofundámos investigações que continuam a incomodar. Mesmo com o quase total silêncio da imprensa mainstream — que prefere ignorar o incómodo em vez de o reconhecer —, o nosso trabalho tem chegado a cada vez mais pessoas. Em Julho, atingimos 687.454 visualizações, superando o recorde anterior. Em Agosto, chegámos a 713.941. E, em Setembro, alcançámos um número impensável para um jornal independente e sem publicidade: 1.610.490 visualizações, quase mais 900 mil do que no mês anterior.

    Evolução das visualizações mensais do PÁGINA UM desde Dezembro de 2021 (fundação no dia 21). Fonte: Google Analytics.

    Tudo isto aconteceu apesar dos ataques. O mais recente, vindo do director do Diário de Notícias, Filipe Alves, é paradigmático: em vez de se ocupar da falência técnica da sua própria casa — a Global Notícias, atolada em dívidas de milhões ao Estado e há anos sem publicar contas —, optou por lançar artigos inqualificáveis contra o PÁGINA UM. São os sintomas do velho jornalismo de poder: quem vive à sombra dos subsídios não tolera quem vive da independência.

    Mesmo assim, crescemos. E, com o crescimento, aumentou também o número de leitores dispostos a apoiar este projecto: em Setembro recebemos 747 contributos individuais, com montantes muito diversificados. Um número expressivo, mas ainda aquém do necessário para garantir a sustentabilidade que ambicionamos. Continuamos fiéis ao princípio que nos fundou: acesso livre, sem publicidade, sem patrocínios, sem dívidas e sem empréstimos. Vivemos apenas com o apoio voluntário dos leitores — e é assim que queremos continuar.

    Estamos agora a atravessar uma fase de expansão e diversificação, estando a procurar novos colaboradores para conseguirmos dar resposta aos infindáveis temas e assuntos que gostaríamos de publicar. Por vezes, não fazemos mais por manifesta capacidade física e financeira – não é por falta de coragem ou por desinteresse.

    O Google informa sobre os temas que recentemente estsão associados nas pesquisas ao meu nome…

    Além da componente jornalística, lançámos uma área editorial própria. O primeiro fruto é o livro “Correio Mercantil de Brás Cubas”, um projecto literário pessoal que transporta a nossa irreverência para o campo das letras. Esta é mais uma daquelas tarefas que fizemos com a ‘prata da casa’, o que via incluir o seu envio para os quase 500 leitores que já o adquiriram nesta fase. E temos, obviamente, mais para enviar para quem desejar um exemplar… ou mais.

    Mas o crescimento é, inevitavelmente, lento. O comboio não pode parar — e, ao mesmo tempo que publicamos notícias diárias e mantemos as investigações em curso, tentamos abrir novas frentes sem comprometer a qualidade nem o ritmo a que habituámos os nossos leitores.

    Os próximos meses serão exigentes. Tenho em curso três processos judiciais — intentados por Gustavo Carona, pelo Almirante Gouveia e Melo e pela Ordem dos Médicos (em nome de três médicos) —, que representam não apenas um esforço financeiro acrescido, mas sobretudo uma batalha em defesa da liberdade de imprensa. Até Dezembro estão já marcadas seis audiências, que implicam dias de ausência e muitas horas de preparação. E muitos custos, felizmente ‘amenizados’ pelos nosso leitores, através do FUNDO JURÍDICO.

    Cada um desses processos é um lembrete do preço da independência — e, ao mesmo tempo, a prova viva de que vale a pena pagá-lo. E isto sem contar com os diversos processos de intimação que temos colocado nos tribunais administrativos (mais e duas dezenas). Tudo isto não seria possível sem a inestimável ajuda dos ‘nossos’ advogados, como destaque para o Miguel Santos Pereira, Bruno Santos Pereira e também o Rui Amores (que foi quem liderou a esmagadora maioria das nossas ‘batalhas’ nos tribunais pelo acesso à informação).

    O crescimento que já alcançámos consagra um princípio simples, mas fundamental: a independência paga-se, mas não se vende. Num país onde quase todos os jornais dependem do Estado ou de grandes grupos económicos, o PÁGINA UM é a excepção que confirma a regra — e que a desafia. Somos a demonstração de que é possível fazer jornalismo livre, rigoroso e incómodo sem depender de ninguém, apenas da confiança dos leitores.

    E é por isso que este editorial é, mais do que um balanço, um agradecimento. A todos os que acreditam que o jornalismo ainda pode ser um exercício de liberdade — e não de conveniência —, o nosso compromisso mantém-se inalterável: continuar a perguntar, continuar a investigar, continuar a publicar. Contra ventos, marés e silêncios.