Autor: Brás Cubas

  • Nuno Markl, o heróico bobo pandémico

    Nuno Markl, o heróico bobo pandémico


    A História, essa ilustre cronista de enganos, tem um curioso passatempo: pega na vaidade dos homens e converte-a num espelho côncavo, onde eles, distorcidos, se observam, ora ampliados na presunção, ora reduzidos ao grotesco. E nunca nos últimos anos, desde o afamado dilúvio universal, quando um tal Noé, presunçoso e abstémio, salvou, entre toda a caterva de animais e plantas, até um par de pulgas da catástrofe — como se a sarna fosse essencial ao futuro da humanidade —, se viu tanto homem sério em tão solene comédia.

    Confesso que observei do meu túmulo, comodamente deitado sobre as tábuas de mogno onde jaz este meu esqueleto ilustrado, e lustrado pelos vermes, os acontecimentos que na vossa época deram em chamar pandemia. E não fosse a indisposição do meu ânimo e o desconforto de já ter abandonado a carne, teria gargalhado até desgastar os ossos. Porque vi, senhores e senhoras, uma plêiade de criaturas convictas de que seriam os novos Prometeus; roubariam o fogo da Ciência — por vezes já em cinzas — e, com ele, iluminariam as cavernas das gentes.

    E que fizeram? Acenderam um fósforo e puseram-se a gritar: “Eis a luz do mundo!”

    A História, volto a dizê-lo, minhas venerandas leitoras – porque homens não lêem, apenas comentam –, não passa, de igual modo, de um imenso armário repleto de ossadas e ridículos. Nas suas poeirentas prateleiras, entre um Carlos Magno e um Egas Moniz – não aquele que ficou com a mão entalada na porta, mas o outro, que tratou maleitas da alma extirpando pedaços de cérebro como quem arranca dentes cariados –, jazem esqueletos menos ilustres, mas não menos instrutivos. Uns pereceram por valentia, outros por estupidez, e há aqueles que, não morrendo logo, vegetaram confortavelmente na soberba de se julgarem importantes. Desses últimos gosto mais: são os tolos que se crêem faróis.

    Ora, se houve figura que nestes recentes tempos se agigantou pela sublime tolice, foi o homem tomado pelo pânico. Esfarrapando-se na taciturna angústia da morte, alegremente esqueceu-se de viver; e querendo salvar-se, condenou entusiasticamente os outros. E a História — essa arquivista impiedosa — registará que o século XXI inventou um novo flagelo: o opinador higiénico, criatura devota ao gel, à máscara e, sobretudo, ao imperativo categórico de não parecer tolo, ainda que o seja irremediavelmente. Na Antiguidade, tais criaturas se chamavam sátiros; nestes tempos de plástico, chamam-se influencers – embora os sátiros tivessem ao menos a decência de embebedar-se em honra de Baco, enquanto estes se inebriaram em álcool-gel por mor da higienização pública.

    Nuno Markl no seu depoimento ao Público.

    Esses sacerdotes da nova liturgia sanitária, que deambularam por praças e vogaram no éter durante os anos da pandemia, tomaram para si a tarefa grandiosa de evitar a extinção da Humanidade. Suponho que algum ímpeto divino os tenha visitado e tocado; talvez Mercúrio — deus dos logros e das comunicações ligeiras — lhes tenha sussurrado ao ouvido.

    Certo é que, dentre tais heróis de pacotilha, sobressaiu, ao menos pela abundância das palavras e pela parcimónia das ideias, um cavaleiro chamado Nuno Markl. Sem cavalo, sem espada e sem causa, nem tendo nascido em Atenas para merecer a toga de Demóstenes, acabou trajando, em Lisboa, a casaca de bobo pandémico, não resistindo sequer a ganhar uns cobres com campanhas patrocinadas pela indústria farmacêutica para a Sociedade Portuguesa de Pneumologia. Digo bobo, aliás, com respeito: os bobos antigos sabiam rir-se de si próprios; Markl, como tantos da sua estirpe, ri-se dos outros sem perceber que os outros riem dele.

    De facto, Markl — que se propôs outrora fazer rir os tristes e acabou por entristecer os alegres — regressou agora para dizer de sua justiça sobre a pandemia, após pelo menos duas públicas acamações, sem aclamações, apesar das inúmeras ‘jardas’ que injectou. E veio como um dos ‘heróis pandémicos’, num vídeo evocativo do jornal Público, com ares de filósofo da decadência, para explicar o inexplicável. E fê-lo, segundo o cânone dos penitentes sem culpa, com uma frase digna de um Dom Quixote que perdeu Rocinante e adquiriu o cavalo de Tróia: “Eu próprio achei que ia ficar tudo bem.”

    Oh, excelsa esperança! Esse mesmíssimo homem que passou pelo menos dois anos a insuflar o medo como quem sopra um balão de festa — até este rebentar-lhe em lágrimas — anuncia agora, pesaroso, que tudo piorou. E não apenas uma vez; piorou por duas vezes, Markl dixit. Não por sua culpa, claro. Jamais! A culpa foi dos outros. Dele não, nunca! Lavou as mãos, ora essa!

    Não vos recorda Pilatos? A mim sim, embora com uma ligeira diferença: Pôncio Pilatos, ao menos, sabia exactamente que Cristo tinha diante de si; já Markl lavava as mãos, cumprimentando com o cotovelo, e excomungava desalinhados sem sequer saber se sacrificava judeus, gregos ou romanos no seu fervoroso rito de ablução.

    Markl, que agora se denomina iludido bondoso, esclarece-nos que depositou demasiada esperança no ser humano – como quem deposita um cheque sem cobertura e depois se espanta com a falta de fundos. E lamenta que “na verdade, tudo piorou, tudo piorou”. Seria cómico, se não fosse tragicamente verdadeiro. Markl e muitos outros formaram uma assembleia de faunos que, antes da festa, se perfumavam com gel hidroalcoólico, esfregando mãos e consciência, certos de que cada gota de desinfectante absolvia pecados próprios e alheios.

    Olharam para a covid-19 tal como outrora os atenienses contemplavam a peste que lhes desfalcava a pólis: com temor reverencial e resignação supersticiosa. Disseram sim a todas as loucuras impostas pelos sacerdotes modernos da ciência higiénica: confinavam-se, purificavam-se e isolavam-se com zelo digno de anacoretas.

    Enquanto isso, os velhos eram privados das consultas que lhes permitiriam morrer mais tarde e de forma mais cómoda; os doentes oncológicos ficavam entregues à sorte e à metástase, poupando assim incómodos aos serviços de saúde; as mães pariam sem maridos, talvez para que a criança nascesse já preparada para a solidão futura; os moribundos iam-se embora discretamente, sem uma mão amiga a perturbar-lhes a paz terminal; os filhos, pobres deles, eram poupados ao drama do último adeus ao caixão, essa morada eterna das tristezas derradeiras; os netos sabiam da partida dos avós sem aquele beijo final que os infectologistas consideraram uma evitável transmissão de germes; as crianças, enfim, ficavam sem escola, mas com máscara, ganhando desse modo em prudência o que perdiam em inteligência; os desempregados, esses, viam multiplicar-se os seus números com rapidez viral, em nome do zelo sanitário que considerou a ruína financeira um mero dano colateral; pequenas e médias empresas sucumbiam silenciosamente à pandemia do medo, deixando às futuras gerações o legado de portas fechadas e cofres vazios; e, por fim, para coroar tão virtuoso zelo higiénico, germinou alegremente a inflação, não já moderada como convém a economias civilizadas, mas hipertrófica, exuberante, digna dos tempos em que moedas valiam menos que papel higiénico, talvez numa subtil homenagem à higiene que tão cegamente se idolatrara.

    E tudo isto sem que o ilustríssimo comediante perdesse sequer um minuto do seu precioso sono — talvez por dormir o sono tranquilo e virtuoso daqueles que, convencidos da sua santidade higiénica, julgam ter adquirido imunidade não apenas ao vírus, mas também à consciência.

    Agora, meia década volvida, eis que Nuno Markl reaparece, erguendo uma vez mais a cabeça grisalha, ajustando os óculos que lhe emolduram a douta miopia e ostentando o nariz — generoso nariz! — digno herdeiro da tradição nasal de Cícero ou Cyrano. E ali está ele, sorridente e alarve, afirmando, com a inocência peculiar dos culpados sem consciência, que não foi ele quem falhou, mas os outros. Como um Saturno pós-moderno, devorou os filhos da dúvida e da ponderação, poupando somente os filhos da obediência e da credulidade. Todos os erros foram alheios; ele não passou de um laborioso Sísifo, empenhado em empurrar a pedra da salvação pública, ignorando, na sua olímpica cegueira, que a sua pedra esmagava já os cadáveres esquecidos de causas mais dignas e urgentes.

    Confesso, com a modéstia de quem jamais errou em vida (excepto uma ou duas vezes por semana), que muito aprecio a arte singular e subtil de transformar um falhanço, ademais civilizacional, em autobiografia de boa vontade. Markl encarna o homem moderno, sem escrúpulos, que deseja o perdão sem reconhecer o pecado, porque foi o carrasco e não a vítima. Pede compreensão pelo que fez, sem reconhecer o que fez. E isto quando tudo fez com o alarde e entusiasmo de um Torquemada, apenas trocando as fogueiras pela luz azul das redes sociais.

    Markl e os seus pares criaram uma religião: a seita dos puros. Ele, e outros como ele, afirmaram que foi a maldade alheia — sempre alheia! — a impedir o paraíso profiláctico da Humanidade. Que enquanto eles alisavam as máscaras, outros não usavam. Que enquanto eles dobravam a cerviz perante a Ciência (ou algo parecido que lhes venderam como tal), outros ousavam perguntar. Assim, declararam guerra aos maus, esquecendo que, na cegueira, todos se tornaram maus.

    Eles eram os cândidos salvos, enquanto os que hesitavam ou pensavam eram os negros hereges. Uns eram “do bem”, outros eram “os maus”, como nas histórias que se lêem às crianças para adormecerem sem chorar. E quando o castelo caiu, quando o mundo pós-pânico revelou ser um pântano, eis que surgem — como generais da derrota certa — dizendo: “Fomos traídos pelos bárbaros!”

    Não, Markl: foste traído por ti próprio. Traído pela ânsia insaciável de seres virtuoso aos olhos dos teus amos e pares; traído pela vã ilusão de que a História absolve aqueles que lavam as mãos quando deveriam lavar a alma. Repito, pois, a máxima que, não tendo escrito em vida, deixo agora aos vindouros: o homem que, ufano e presunçoso, se julga em tempos de crise mais responsável que os demais, torna-se primeiro ridículo; depois irresponsável; e, finalmente, debate-se como peixe fora de água, em esforços desesperados para convencer o mundo de que ainda respira sabedoria, quando já não é mais que um cadáver ictiológico convencido de possuir as virtudes proféticas de um oráculo.

    Mas não estás só, Nuno Markl. A História guarda, em generosas gavetas, inúmeros exemplares da tua espécie: médicos da alma que prescrevem medo como panaceia universal; cientistas que trocaram a humilde incerteza pela arrogante certeza dogmática; curandeiros da opinião oferecendo soluções milagrosas em formato de bolso; e bobos que, tendo perdido o riso e a graça, tentam desesperadamente salvar a face, recolhendo fragmentos quebrados de porcelana que colam com saliva, jurando depois, com solenidade burlesca, que é ouro o que era caco.

    Eis aqui, portanto, a ironia suprema, digna de um epitáfio: julgaste-te arauto da bondade colectiva e sentinela máxima da saúde pública, e terminaste reduzido à comovente resignação. “No que toca a coisas positivas, aprendi a lavar as mãos e a andar sempre com desinfectante. Acho que não se perde nada com isso” – dizes no patético vídeo do Público, onde te colocam como um dos “heróis pandémicos” (ou pindéricos), ao lado da antiga ministra da Saúde Marta Temido e da reformada directora-geral da Saúde Graça Freitas. Não perdeste nada, realmente — excepto, talvez, a vergonha, o senso crítico, a coragem, a honestidade intelectual e, acima de tudo, a capacidade de reconhecer que, por muito álcool que se use nas mãos, certas nódoas da alma não saem com gel.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

  • O Tesla do Manzarra e a Virtude

    O Tesla do Manzarra e a Virtude


    Nunca me queixei, como bem sabeis, de ter morrido sem filhos; antes, considerei mérito não legar a ninguém as misérias do mundo. Mas creio que me queixaria, e com razão, se o destino, com a minha morte, me houvesse privado do singular prazer de assistir ao triunfo supremo da hipocrisia sobre a virtude — espectáculo tão notável que ouso chamá-lo de verdadeira Escola da Conveniência. Sim, a conveniência: essa divindade moderna que veste a virtude segundo a estação do ano, como um chapéu novo ou um slogan reciclado de uma campanha esquecida.

    Na verdade, para a virtude e a ética já não se exige nem sacrifício nem vergonha, se é que alguma vez tais predicados lhes assistiram. Basta, para os tempos que correm, manter o tom adequado de indignação e escolher o filtro de luz apropriado para a fotografia. Nada mais cómodo do que parecer justo sem o incómodo de sê-lo.

    Em tempos remotos, a Virtude — coloquemos maiúscula para lhe emprestar a dignidade que outrora lhe atribuíram — era senhora vestida de burel, ar severo e sandálias rotas, como as do velho Diógenes, que calcorreava as ruas com um candeeiro aceso em pleno dia à procura de um homem honesto, encontrando, no máximo, um vendedor de ilusões. Os homens, vendo-a descalça, davam-lhe esmolas de aplauso ou de desprezo, pois não lhes convinha seguir-lhe os passos, que eram ásperos e cheios de calhaus. Mas havia quem nela cresse, como quem crê nas assombrações: sem ver, mas temendo.

    Vieram depois os romanos, que tomaram a Virtude pela força bruta e lhe deram o nome de Virtus, com pose de couraça e gládio de fio curto — porque, diziam eles, não havia moral mais elevada do que reduzir Cartago a cinzas, ainda que fosse preciso obrigar Aníbal a jantar lagosta em Roma, de sorriso nos lábios e um punhal cravado no rim. Desde então, a Virtude passou a comandar legiões e a pregar bons costumes à ponta da espada, como um cobrador de impostos que ensina ética ao devedor enquanto lhe confisca o último par de sandálias e dá graças aos deuses pelo dever cumprido.

    Na Idade Média, a Virtude transformou-se em frade gordo e complacente, e trancou-se no claustro, rezando ladainhas e distribuindo indulgências ao peso, como se fosse carne seca vendida na feira. Foi tempo em que a Ética se pesava em maravedis, e um pecador diligente ganhava o Céu à força de missas pagas, bandeiras hasteadas e procissões bem remuneradas, de preferência com damas de boas posses e maus maridos. A Virtude, neste caso, vestia-se de cilício por cima de um gibão de veludo, mais para impressionar do que para redimir.

    No Renascimento, pintou-se a Virtude com tintas florentinas, e estudava latim e grego, escrevia tratados sobre a dignidade do Homem, enquanto encomendava envenenamentos discretos no boticário da esquina. Era sábia, a moça, e sabia manter a pose de Apolo mesmo quando contratava um Bruto para se livrar de um rival.

    Por sua vez, o Iluminismo, sempre convencido da sua luz, vestiu-lhe uma máscara de cera, igual à das óperas de Paris, e ali andava ela: à sua sombra discutia-se a liberdade dos povos com um escravo a segurar o tinteiro e a soprar o chá. E a sua companheira, a Ética, tornou-se coisa de mesa de botequim e de cadeira de salão, onde perucas falavam de fraternidade enquanto contavam o lucro do tráfico negreiro.

    Passemos, sem mais melancolia, de coche e trem pelos meus tempos, e aceleremos — agora sim — em quatro rodas, sem carta de moralidade nem inspecção em dia, até aos dias hodiernos. E eis que aqui me detenho, não sem um certo assombro, ao contemplar a Virtude — outrora de rosto austero e olhar elevado — agora reduzida a vendedora de feira franca, de avental singelo e banca improvisada, mercadejando-se ao preço que dita a ocasião. Cada qual aliena a sua Virtude com ligeireza e logo a recompra, debitando pontos de fidelidade, exibindo certificados de pureza verde e colhendo um aplauso digital que dura o breve instante de um story… ou até que a rede o permita.

    Foi neste cenário, tão próprio do vosso século apressado, que me chegou, através de uma tertúlia de espectros ociosos e bem informados, a notícia de um vivo chamado João Manzarra — desses que, em vida, sorriem com mais denodo do que filosofam com gravidade — o qual decidiu abdicar do seu automóvel, não por falta de conforto, mas por excesso de escrúpulo moral. Tratava-se de um Tesla Model Y Long Range — não um simples veículo, mas antes um altar rodante da consciência ecológica.

    Confessou o virtuoso Manzarra que já não podia suportar a presença invisível de Elon Musk, industrial de reputação duvidosa e amicíssimo do satânico Trump, sentando-se-lhe como um espectro no banco traseiro e sussurrando-lhe impropérios ideológicos ao ouvido. Assim, resolveu desfazer-se do artefacto por trinta e sete mil e quinhentos euros e, em gesto que se quis magnânimo, prometeu doar dez por cento à Sunrise Movement, seita moderna consagrada à salvação do planeta — empresa que, ao que parece, se conduz à custa de slogans biodegradáveis, tendas em festivais e chapéus de palha com certificação ética.

    Não me espanta. A Virtude do homem contemporâneo circula sobre quatro rodas, desde que com etiqueta eco e painel solar no tejadilho. O automóvel não é já um transporte; antes, um púlpito a pregar à boa consciência. E foi precisamente no volante — ou melhor, na venda — que Manzarra encontrou redenção: libertou-se do peso simbólico do Tesla, renegando Musk e desfazendo-se de um pecado de estimação com o plantio de uma árvore imaginária no bosque virtual da boa reputação.

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    Concedamos, pois, que um Tesla possa ser tido como objecto de desconforto ético — tão imaculado em superfície, tão carregado de culpa nas suas entranhas. Mas se, como afirmava Manzarra, ou Santo Agostinho, “não há verdadeira justiça senão na cidade de Deus”, que juízo caberá aos restantes veículos que sulcam, em passo apressado ou eléctrico, as estradas tortuosas desta civitas terrena, onde reina mais a concupiscência do que a razão? Perguntar-me-eis se há pureza possível nas obras dos homens, e respondo com Pascal: “Quem se exalta será humilhado.” Moveu-me, pois, aquela curiosidade inquieta, própria de quem suspeita da Virtude alheia exibida em praça pública, e dei por mim a folhear o almanaque das genealogias automóveis — uma verdadeira crónica das duas cidades, onde o engenho humano e a soberba competem pela primazia.

    A Volkswagen, mãe do pequeno Carocha, foi criada sob a égide de Adolf Hitler. O “carro do povo” destinava-se à mobilidade das arianas massas, e as suas fábricas empregaram prisioneiros de campos de concentração. A BMW, essa que hoje brilha nos semáforos das avenidas, forneceu motores para a Luftwaffe e cresceu na desgraça alheia. A Mercedes-Benz, que transporta banqueiros e ministros, engordou com contratos militares que sustentaram a Wehrmacht e os seus camiões de sombra sinistra.

    E o que dizer da Audi, esse estandarte de status moderno, que poucos sabem ter sido um dos pilares do esforço de guerra nazi? A Auto Union, predecessora directa da Audi, colaborou activamente com o regime nacional-socialista, beneficiou do uso de trabalho escravo e forneceu veículos e tecnologia para a maquinaria militar de Hitler. Bem sei que, depois da guerra, se apagaram registos, como quem queima arquivos comprometedores, mas a História, minhas esbeltas donzelas e galantes cavalheiros, não se desfaz com polimentos de capot.

    Viajemos para Itália. Ah, Itália! Pátria de poetas, de santos e navegadores — e, porque não dizê-lo, de industriais de mão firme e consciência maleável. A Fiat, império erguido por Giovanni Agnelli, floresceu à sombra de Mussolini, vendendo tanques, aviões e camiões à máquina de guerra fascista com a mesma elegância com que vendia automóveis aos burgueses de Turim. O velho Agnelli, homem de gravata impecável e dedos cobertos de pólvora e dividendos, entendeu cedo que as rodas do poder giram melhor se lubrificadas pelo óleo da conveniência.

    Mas não esteve sozinho no festim bélico. A Alfa Romeo, orgulho da engenharia italiana, foi propriedade do Estado fascista e converteu as suas linhas de montagem na forja de motores de aviões, carros de combate e outros prodígios mecânicos que serviram a causa imperial de Mussolini. Dizia-se que as suas máquinas rugiam com o fervor de uma legião romana, levando o made in Italy às planícies de África e aos céus da guerra europeia.

    E não vos esqueçais da Lancia. Tão discreta nas crónicas do poder quanto eficaz no fabrico de veículos militares, esta casa de Turim forneceu camiões e blindados ao exército italiano, garantindo que as tropas de Il Duce marchassem com logística de primeira classe. Se os soldados por vezes fraquejavam, estas máquinas sempre se mostraram fiéis — dizia-se que os motores Lancia aguentavam o calor africano melhor do que os próprios legionários.

    E na bela França? Ah, França! Onde os salões sempre exalaram perfume de jasmim, mesmo quando as fábricas cheiravam a pólvora. Na terra de filósofos e chansonniers, ergueu-se, volumoso e imponente, Louis Renault — o temido ogre de Billancourt, que fundou um império sobre chassis e cilindros, transformando o seu nome num sinónimo de mobilidade e de modernidade. Mas a modernidade, como a Virtude, tem muitas faces, e Louis Renault escolheu a que melhor pagava no tempo da ocupação alemã. Na Segunda Guerra Mundial, as fábricas da Renault, em Billancourt, produziram com zelo camiões para a Wehrmacht, motores para a maquinaria militar nazi e peças sobressalentes para blindados que percorriam as estradas da França humilhada.

    Mas Renault não caminhou só por essa vereda. Também a Peugeot, herdeira dos velhos artesãos do Doubs, colaborou com o ocupante, produzindo veículos e componentes para o esforço de guerra nazi, embora com mais pudor e menos publicidade. E a Citroën, que hoje se exibe como campeã da inovação, não escapou a essa servidão industrial, ainda que se conte, talvez mais por consolo do que por verdade, que Pierre-Jules Boulanger terá saboteado discretamente os produtos entregues ao inimigo. Menos mal. Verdade ou mito, o resultado foi o mesmo: as fábricas laboraram, os motores rodaram, e os camiões seguiram o seu caminho — sempre carregados.

    E no Japão? A Mitsubishi produziu aviões de guerra, incluindo o famoso caça Zero, símbolo do ataque a Pearl Harbor. E a Toyota, antes de ser sinónimo de híbridos e economia de combustível, fabricou camiões para o exército imperial japonês, contribuindo para o esforço de um regime que ocupou, pilhou e massacrou na Ásia Oriental com a meticulosidade de um engenheiro de precisão.

    Deixemos a Guerra. Nos Estados Unidos, os Cadillac, os Lincoln e os Buick foram os tronos motorizados de Al Capone e Bugsy Siegel. Nenhum mafioso de respeito dispensava um carro blindado, com bancos em pele de primeira e espaço de sobra para malas de dinheiro ou cadáveres. O Cadillac de Al Capone, como a ironia manda, acabou por servir Roosevelt, que combateu o gangsterismo ao volante de um automóvel que cheirava a pólvora e whisky de contrabando.

    E eis que agora chegam os chineses, com as suas novas carruagens eléctricas, imaculadas e reluzentes como se saídas de um templo taoísta, mas com uma pegada tão pesada quanto os exércitos de Qin Shi Huang. A BYD, a Geely, a Changan e a Great Wall Motors soam a promessas de futuro verde, mas em condições de trabalho que fariam corar de vergonha o velho Dickens. Há relatos abundantes de jornadas extenuantes, salários miseráveis, ausência de direitos laborais, e não vos esqueçais, claro, da cumplicidade com sistemas de vigilância social e repressão de minorias — um luxo que nenhum veículo chinês dispensa. Os automóveis chegam ao Ocidente com autonomia invejável, mas à custa da liberdade de quem os monta.

    Pergunto-te, pois, Manzarra: que automóvel sobra no teu parque de estacionamento da Virtude? Talvez um carrinho de pedais, montado por monges veganos numa aldeia autossustentável do Tibete, sem parafusos que escravizem. E, ainda assim, convém saber se o bambu foi colhido de modo responsável.

    Enfim, parece-me que nenhuma marca automóvel escapa à nódoa do pecado original. Além disso, as estradas são rios de petróleo e suor, e se olharmos com atenção, veremos que o telemóvel com que se anuncia a penitência foi montado por operários exaustos da Foxconn, e que a camisa orgânica que veste foi cosida por dedos infantis no Bangladesh. E a rede social onde proclama a Virtude? Um manicómio de algoritmos que vendem a alma ao melhor licitador.

    Se verdadeira pureza de intenções movesse Manzarra, não teria ele vendido o Tesla como quem lava as mãos no mercado de escrúpulos alheios. Antes, tomaria uma marreta ou um martelo pneumático — ou, quem sabe, um simples escopro filosófico — e reduziria o altar rodante a um monte de sucata indistinta, onde os metais e os plásticos recicláveis, cuidadosamente separados em contentores certificados, renderiam talvez os tais dez por cento que prometeu doar à seita ecológica. E ainda lhe sobraria ferro-velho para fabricar, quem sabe, uma bicicleta sem mudanças, montada por artesãos neutros em carbono e castos em ideologia.

    Mas não. A opção de Manzarra foi, como é costume nesta era, simbólica e higiénica: vende-se, transfere-se, passa-se adiante o pecado como quem revende uma má consciência com garantia ainda em vigor. Porque destruir seria um acto definitivo, e exigir-se-ia coragem — ou loucura — e isso, convenhamos, é mercadoria rara até nas feiras da Virtude reciclada.

    Porém, não censureis demasiado o virtuoso Manzarra. Faz o que pode, ou o que o seu público lhe exige, mesmo se a sua Virtude pública esbarre sempre na sua incoerência privada. E quanto mais ele se exibe, e exibe a sua hipócrita Virtude, mais se vê que é verniz sobre verniz.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

  • Assim, estamos assados…

    Assim, estamos assados…


    A ignorância é um verme insidioso que corrói a cultura de um povo com maior avidez do que os vermes das carnes – asseguro-vos eu, que, desde que me tornei um defunto autor, passei a conhecer intimamente ambos os espécimes. Porém, ao contrário dos vermes das carnes, que, chegando ao osso, se dão por satisfeitos e cessam a ceia, a ignorância alastra sem pudor nem limites: penetra o tutano, envenena o espírito e, não raro, apodera-se da alma inteira. E o mais espantoso – ou trágico, se assim preferirdes – é que, enquanto os vermes comuns anunciam o seu labor com fétido odor, a ignorância exala, aos olhos do mundo, um perfume de virtude e sapiência.

    Deste meu cómodo além-túmulo, livre das peias terrenas e sem o incómodo das paixões humanas (que, confesso, em vida tanto me distraíam), observo as cenas de ignorância com a lente da ironia e um travo de melancolia… por não poder aplaudir com as mãos, nem assobiar com os lábios. Em todo o caso, nenhum espectáculo humano me diverte, espanta e desconcerta tanto quanto a ufana exibição da ignorância, essa senhora loquaz, presunçosa e impudente, que desfila pelas praças e academias com ar de douta erudição, quando não passa de uma criatura mal letrada, rotunda e cega.

    Vivemos – eu, defunto, ainda me incluo por nostalgia e vício – numa era em que a confiança ruidosa suplanta o saber silencioso; em que muitos bradam opiniões quais estandartes tremulando ao vento, sem reparar que, às vezes, empunham bandeiras ao contrário… ou, pior ainda, empunham trapos sem cor. Que saudades do velho Sócrates, o grego, que ao menos sabia que nada sabia – ao passo que hoje tantos nada sabem, e julgam, com peito inchado e voz tonitruante, saber tudo. Mas que quereis? A ignorância, quando adornada com lauréis de vaidade, faz mais estragos do que uma peste e mata mais do que uma guerra.

    Lembro-me dos meus tempos do Império: discutia-se política nos cafés, conspirava-se nos bailes, e um sujeito precisava de fingir erudição até para opinar sobre latim ou francês. Hoje, na res publica digital, todos têm voz – o que seria uma beleza, não fosse o efeito colateral de amplificar tolices. Outrora, poetas e estadistas debatiam ideias; agora, influencers e celebridades, em redes sociais e podcasts, arvoram-se em catedráticos sobre aquilo que mal conhecem. Não condeno a democratização – também prefiro a praça viva e ruidosa à aristocracia mofada – mas arrisco o comentário: amiúde se troca a tirania dos doutos pela república dos ignorantes, e não sei qual das duas é mais risível.

    Uma conferência sobre a língua portuguesa, no trigésimo quinto aniversário do jornal Público, ilustra a desventura. Em palco, prolongando podcastAssim ou Assado”, que me dizem ser deveras popular, logo reencarnado na forma de simpósio performático, surgiram duas ilustres personagens: um músico popular, Sam The Kid – cujo nome artístico inglês já anuncia a nova informalidade campeando na língua de Camões – e um professor universitário, o doutor Marco Neves, presumível guardião do vernáculo lusitano da douta Universidade Nova de Lisboa. A plateia, julgo, esperaria uma conversa instrutiva e divertida, em louvor da língua de Camões e do meu Machado.

    Mas qual o quê! Nada. Nanja. Em vez de iluminação, veio a treva cómica em redor da expressão “passou-bem. Ora, “passou-bem” – que deliciosa velharia! Para todos, desde as velhas tias, menos para o bom do Sam The Kid, “um curioso da língua portuguesa”, que, com a confiança dos incultos, afirmou ser a expressão “não muito vista na escrita”. E assim, como para ele “é mais da oralidade”, sentiu-se com a desavergonhada liberdade defender o uso de “possou-bem“. Tudo isto em pleno auditório, enquanto o seu interlocutor, talvez por diplomacia, não o corrigiu – e, ademais, até aditou que, em tempos pensava que “papo seco” se dizia “pape-seco”.

    Como anda a língua lusitana a levar sopapos nestas eras de mediatismo! Confesso que naquele momento experimentei um misto de riso e desalento. Riso pela cena – digna de um folhetim satírico, com o rapper a disparatar e o lente a anuir timidamente –; desalento porque, se até os supostos guardiões (ou guardiães) do idioma vacilam, que será dos demais? E daqui do lado, Quincas Borba gritou-me: “Ao vencedor, as batatas! E aos ignorantes, as cascas!”

    Mas vejamos: o que mais me custa nem são as alarvidades do Sam The Kid, certamente um bom rapaz, apesar da idade para ter juízo, mas a fleuma do douto lente, que tinha obrigação, com doçura e firmeza, de mostrar à plateia que o “passou-bem” é expressão comezinha, que surgiu da cortesia, daquela civilidade que hoje reputam de opressiva, mas que fazia os homens polir os sapatos e aprender latim. O “passar bem” de antanho é o fare well dos ingleses, o passez bien dos franceses, o pase bien dos castelhanos.

    Marco Neves e Sam The Kid a darem um “passou-bem”… numa conversa em que a língua portuguesa passou mal.

    Contudo, por um destes caprichos da língua da terrinha, evoluiu para “passou-bem”, substantivo gracioso e distinto que, em Portugal, passou – e bem! – a designar o acto formal de cumprimentar apertando as mãos. Assim, nada se precisa de dizer, porque o gesto assim o faz, embora denote elegância, no momento do aperto, um “passou bem” vocal – tal como se pode afirmar “passe bem”, quando se cumprimenta na despedida.

    Ou seja, o verbo conjugado no pretérito, “passou”, junto ao advérbio “bem”, criaram o nome do gesto. E note-se: com hífen, que isto não é feira de retalhos gramaticais. O lente Marco Neves não sabe? Ou teve vergonha de desbroncar o neófito rapsódico? Que estoiro! Temos um rapper como linguista e especialista em etimologia que, perante a sua própria ignorância – ou, para dizer com mais galhardia, perante o seu vazio filológico adornado de confiança tonitruante – decreta que o “passou-bem” passe a “possou-bem”. E isto numa expressão usada, e bem usada, desde os salões do século XVIII até aos cafés do século XX.

    Camilo, que conhecia tanto a etiqueta quanto a desgraça, não se furtou a enfiar um “passou bem” no diálogo entre fidalgos e criadas. O meu Machado de Assis não deixou por menos. Por exemplo, em Esaú e Jacó, onde se lamentou a ausência deste ritual no final de uma visita de cerimónia. Sempre atento à pose da burguesia lisboeta, nem sei a razão para Eça não ter posto Carlos Eduardo a saudar Ega com um “passou bem?”, seguido de um aperto de mão digno de um contrato assinado no Grémio Literário. Mas isso são tempos idos – e livros não lidos por Sam The Kid. E, às tantas, também por Marco Neves.

    Isso pouco importa. Agora, nos auditórios de celebrações públicas, a língua portuguesa é tratada como um instrumento de percussão barata: golpeiam-na até produzir som, sem se importunarem se o timbre é desafinado ou se o compasso anda errático. Sam The Kid, coitado, ignorava que “passou-bem” se escreve com hífen e que o advérbio “bem” não admite plural. Disse “possou-bem”, como quem manda no verbo e o conjuga a bel-prazer. E Marco Neves, o gramático de ocasião, manteve-se silente, quiçá com receio de parecer pedante ou antiquado.

    Ai de vós, viventes, que temeis corrigir um erro, que tal é visto como afronta pessoal, preferindo assim que a ignorância seja promovida a virtude cidadã! O bom doutor, em vez de assumir o papel de mestre de cerimónias, preferiu a complacência do silêncio. Era como se viesse um maestro, testemunhando a orquestra a tocar em fá sustenido quando a partitura exige dó menor, e ao invés de erguer a batuta e emendar a nota, acenasse com um sorriso indulgente, como quem diz: “Cada um toca o que quer.”

    Mas não vos enganeis: a etimologia de “passou-bem” não é matéria esotérica reservada aos iniciados. É coisa de ler num dicionário, como o Priberam, onde consta o vocábulo e se explica que se trata de um cumprimento formal, sinónimo de aperto de mão. É certo que o vosso cronista de saudades e idiossincrasias lusas, Miguel Esteves Cardoso, já lamentou que o “passou-bem” estivesse em desuso, comparando-o a um aperto de mão dos nossos avós – mas uma coisa é o desuso; outra, bem diversa, é a ignorância.

    Confesso que, da próxima vez que Sam The Kid disser mais disparates sem ser corrigido por Marco Neves, vou soprar-lhes ao ouvido, como fazia Virgílio a Dante: “Filhos, estudai! Abri um romance do Camilo, uma crónica do Trindade Coelho, lede os diálogos do Machado – e não apenas as rimas e os riffs do vosso cancioneiro digital!”

    Não deverá dar grandes resultados, porque agora a confiança ignara se pavoneia em auditórios e podcasts, e a erudição verdadeira se recolhe à sombra, talvez enfastiada de pregar a surdos. Quando o “possou-bem” triunfar sobre o “passou-bem”, só porque um rapper não lê, então a língua do zarolho Camões, o espelho da alma lusitana, estará irremediavelmente partido – e um espelho estilhaçado só reflecte fragmentos.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

  • A última golfada de Montenegro em p menor

    A última golfada de Montenegro em p menor


    Algo de profundamente encantador existe em todos aqueles que, aspirando à grandeza, tropeçam nos próprios pés e caem com estrondo perante uma divertida plateia. Tem um quê de teatralidade clássica o espectáculo da ambição desastrada – e se os gregos nos deram a tragédia, os políticos de província brindam-nos, e não sem menor esforço e muito maior talento, com farsas incessantes.

    Não me refiro, bem entendido fica, aos grandes homens que moldaram a História, às figuras que, pela mão do destino ou pelo engenho do espírito, desenharam com traço firme o curso e decurso dos sucessos. Refiro-me, sim, aos pequenos Napoleões de esquina, aos Césares de rotunda, aos Bismarcks das vielas, aos De Gaulles dos boqueirões, aos Roosevelts das valetas, aos estrategas que confundem a governação com um jogo de damas no café da terra. São eles os artífices das maiores pérolas da Administração Pública, os inventores da política de pastelaria, onde, entre um croquete e um licor de ginja, se traçam alianças e se decidem orçamentos, como se a res publica fosse um salão de jogos de província.

    Esquecem eles que, para governar, se exige um certo decoro nos actos, uma parcimónia nas palavras, uma elevação para evitar o grotesco, uma lucidez que distinga o interesse público da conveniência privada. Os antigos chamavam-lhe prudência; Maquiavel preferia astúcia; e o comum dos mortais, não se dando a tais subtilezas filosóficas, chamaria simplesmente bom senso.

    Mas o político de província não se detém em tais subtilezas. Aspira ao fulgor dos grandes estadistas, almeja a eternidade dos anais históricos, mas, alheio à própria pequenez, arrisca acabar relegado à nota de rodapé das crónicas do ridículo, onde nem a posteridade se dará ao trabalho de o procurar.

    Veja-se o mais recente primor do engenho nacional: Luís Montenegro, um primeiro-ministro no auge da sua luta pela credibilidade que decide que o mais adequado, o mais sensato, o mais conveniente que deve fazer com o seu tempo livre não é reflectir sobre a erosão da confiança pública, fortalecer a solidez do seu Governo ou, quem sabe, simplesmente evitar a aparência de promiscuidade entre negócios e política. Luís Montenegro achou que o mais adequado, o mais sensato, o mais conveniente era, nada mais, nada menos, que ir jogar golfe com um empresário dos casinos que, por singular coincidência, financia a empresa da sua família. Isto no mesmíssimo país onde, dois dias antes, uma moção de censura ameaçara os alicerces do seu Governo.

    Sim, leitoras queridas e leitores amigos, assim se desenha a posteridade. Outros terão esculpido na pedra, promulgado leis imortais, vencido batalhas gloriosas; o vosso moderno estadista Montenegro preferiu, contudo, brandir com o seu hercúleo braço um taco de golfe e, munido das meninges que Deus lhe facultou, alinhar-se, casual e impávido, ao lado do benfeitor que lhe paga uma avença mensal.

    Ah, mas é claro que não há aqui sombra de parcialidade! Ele próprio vos assegurará, em tom sereno e institucional, que, sendo amigo do magnata da Solverde, se impõe a si mesmo um regime de auto-inibição. Confio, leitoras e leitores, que tereis contido uma gargalhada, pois sei não serdes ingénuos a ponto de acreditar que o mundo somente se move por impulsos nobres. Se bem me recordo, Montesquieu, ao teorizar a separação de poderes, nunca imaginou que, no século XXI, um chefe de governo poderia substituir os freios institucionais pelo próprio código de honra. E que código de honra! Um que, presumo, considera perfeitamente ético manter uma ligação financeira directa com uma empresa familiar ligada a um sector regulado pelo mesmo Estado que governa.

    Nunca tendo eu praticado golfe, questiono-me se Montenegro terá pensado, entre um putt e outro, na percepção pública do seu acto. Terá ponderado que um chefe de Governo que se pretende isento não deve, em circunstância alguma, ser visto a conviver descontraidamente com aqueles cujos interesses podem ser directa ou indirectamente afectados pelas suas decisões? Ou terá, simplesmente, considerado que a política é um jogo onde a impunidade é a regra e a memória do eleitorado, um borrão passageiro?

    Compadeço-me de políticos como Luís Montenegro, pela sua ingénua imprudência – ou pelo seu atrevido destemor, que, não sendo virtude, confunde-se muitas vezes com a estupidez obstinada dos que julgam que a sorte política se confunde com a indulgência perpétua do eleitorado.

    Nem todos os políticos são vencedores, mas todos visaram grandes feitos, embora falhando. Houve aqueles que almejaram ser lembrados por construírem impérios – e saíram derrotados: e há outros, como o ainda primeiro-ministro português, que se preocupou apenas em sair vencedor do Nearest to the Pin patrocinado pelos Vinhos Pousio, no 2.º Torneio da Ordem de Mérito de 2025 By PKF, organizado pelo Clube de Golfe dos Economistas – e falhou. E falhou e falhou em tudo o resto, porquanto há uma diferença fundamental entre esses dois tipos de derrotados: os primeiros sonharam alto e caíram ao tentar tocar o firmamento; os segundos nunca ergueram a cabeça do chão e, ainda assim, tropeçaram nos próprios pés.

    Talvez Luís Montenegro se convença de que tudo isto passará, que o povo esquecerá, que o tempo alisará os escândalos como a água desgasta a pedra. Talvez. Mas a História, essa entidade implacável, tem um humor peculiar: não regista as desculpas esfarrapadas – fixa antes, com indelével precisão, os actos.

    Resta-vos, pois, assistir ao próximo acto no Parlamento deste grande teatro da política lusitana – pois, como ensinava Aristóteles, a tragédia só se consuma quando o protagonista, cego pela hybris, dá o passo final rumo ao despenhadeiro. E, ao que parece, Montenegro já empunhou o taco e mirou o seu abismo, com um admirável zelo desportista.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

  • Luís Montenegro é o gato de Schrödinger: morto e vivo em simultâneo

    Luís Montenegro é o gato de Schrödinger: morto e vivo em simultâneo


    Se há conjuntura que me concede um certo deleite metafísico, agora que desfruto do repouso eterno sem as agruras da política terrena, é a contemplação da Humanidade no seu perpétuo vai-e-vem de contradições e hesitações. Como se os séculos não lhe tivessem ensinado o mais fundamental dos preceitos: a arte de decidir entre estar morto ou estar vivo. Física e, já agora, politicamente. Porque a dúvida existencial, outrora apanágio dos filósofos, alastrou-se como praga à governação, convertendo os parlamentos em coliseus de incerteza e os governos em felinos hermeticamente fechados.

    Tal preceito haurido por Epicuro na sua defesa da ataraxia, polido por Montaigne entre um ensaio e um cálice de bom vinho e subsequentemente sufocado sob a poeira metódica da dúvida cartesiana, haveria de ressurgir séculos depois sob uma nova roupagem – não mais em máximas filosóficas, mas na forma de um gato hipotético, trancado no limbo quântico pelo engenho de Schrödinger.

    Para quem ignora, o austríaco de nominata Erwin Rudolf, que venceu o Prémio Nobel da Física em 1933, muito dado à metafísica, engendrou um pobre felídeo encerrado numa caixa hermeticamente fechada, na augusta companhia de um engenhoso dispositivo mortífero – um frasco de veneno e um mecanismo delicadamente ligado ao decaimento de um átomo radioactivo. Se o átomo se desfizesse num lampejo de irreverência nuclear, o frasco partia-se e o nosso desventurado gato passaria a integrar o coro eterno dos bichanos fenecidos das sete vidas. Se, pelo contrário, o átomo decidisse manter-se íntegro e recatado, o gato manter-se-ia em paz e aguardando a abertura da caixa com a altivez de quem já foi divinizado pelos egípcios.

    Mas eis o busílis da questão: enquanto a tampa não for levantada, o gato não está nem vivo nem morto – está ambas as coisas em simultâneo! Suspenso num estado de indeterminação, onde a realidade se recusa a fixar-se numa das duas possibilidades, esperando apenas que a curiosidade de um observador se digne a colapsar a sua existência num dos dois extremos possíveis. Eis, pois, a mais refinada metáfora da hesitação política e da natureza equívoca de certos governos, que se encontram num perpétuo estado de indefinição, não sabendo se estão firmemente investidos no poder ou se, por mero acidente do destino, já não passam de um cadáver.

    Ora, se há um domínio em que este dilema quântico encontra terreno fértil – mais do que os debates entre Schrödinger e os seus contemporâneos (Einstein, Podolsky e Rosen) – é na política portuguesa.

    Diante de todos, pelo menos desde a noite deste sábado, um espectáculo digno dos melhores entremezes da política lusa toma forma: tem-se um primeiro-ministro, Luís Montenegro, que deseja ser simultaneamente um governante investido e um mártir da instabilidade, enquanto há um líder da oposição, Pedro Nuno Santos, ensaiando a arte da indecisão, oscilando entre o verdugo e o cúmplice. Assim, num prodígio de prestidigitação parlamentar, temos um governo que está e não está, governa e não governa, enquanto a oposição se entretém num jogo de paciência, à espera de que a caixa se abra sozinha

    Portanto, a governação portuguesa, neste momento, não se encontra nada distante do tal felino enlatado do cientista austríaco: o Governo existe e não existe, é sólido e gasoso, é legítimo e ilegítimo, governa e não governa – mas é tudo isso em simultâneo porque ninguém parece se atrever a abrir a caixa. 

    Prevejo, perante tão supremo nível de indefinição, que os deputados da Nação tenham de contratar físicos teóricos para determinar a posição exacta do Governo no espectro da realidade. Bohr e Heisenberg, chamados, postumamente, para resolver a crise, deverão concluir que a única forma de saber se o Executivo luso existe é observá-lo sem interagir com ele – como um panda tímido num jardim zoológico.

    A verdade, caríssimas leitoras e caríssimos leitores, é que o paradoxo do Gato de Schrödinger foi concebido para demonstrar os absurdos da mecânica quântica, mas acabou por se tornar um excelente modelo para vislumbrar e compreender a política contemporânea nas terras de Camões, que ainda por cima era zarolho. Quando um primeiro-ministro coloca a hipótese de se submeter a uma moção de confiança e a oposição se recusa a decidir se o sustenta ou o derruba através de uma moção de censura, temos, sem sombra de dúvida, uma superposição de estados políticos.

    Luís Montenegro está e não está no poder. O seu governo existe na condição felina de um gato que não pode decidir se já expirou ou se ainda tem alguma das sete vidas para gastar. Como sucede com a gestão da Spinumviva, Montenegro não governa nem deixa de governar, embora tenha andado a governar-se. Está num estado quântico de hesitação, como um Santo António de barro que, em vez de ajudar a encontrar coisas perdidas, perdeu-se a si mesmo.

    E aqui entra Pedro Nuno Santos, um homem que, qual Hamlet burocrático, se recusa a ser o carrasco de Montenegro, e ao mesmo tempo se abstém de lhe oferecer salvação. Na prática, o Partido Socialista é ambas as coisas: carrascio e salvador, mas sem querer abrir a caixa e verificar o estado do gato, optando antes por assobiar para o lado. Finge que não está de martelo em punho, mas também não querendo parecer relutante em esmagar o frasco de veneno que poderá matar o felino Montenegro. Eis o teatro da indecisão, onde todos os actores se movem como sombras chinesas projectadas numa parede cambaleante.

    Neste preciso momento, Pedro Nuno Santos é como uma estátua romana hesitante, uma espécie de Discóbolo de Míron que nunca chega a lançar o disco. Montenegro, por seu turno, aparenta a solenidade de um busto de bronze – fixo, mas já com pombos metafóricos a sobrevoá-lo, esperando que a gravidade política decida o seu destino.

    Mas, afinal, qual o sentido desta coreografia de hesitações? Se um Governo só cai com o chumbo de uma moção de confiança ou com a aprovação de uma moção de censura e a oposição fica hesitante qual opção escolher, então o Governo não cai, mas também não se fortalece. E Luís Montenegro, qual gato de Schrödinger da política nacional, continua fechado na sua caixa governativa, vivo e morto, suspenso entre a permanência e a extinção. 

    Se as minhas pacientes leitoras e os meus estoicos leitores ainda não sucumbiram ao riso, permitam-me que acrescente um último paralelismo: nos tempos áureos da diplomacia europeia, o Congresso de Viena (1815) viu-se enredado em negociações infinitas porque ninguém queria ser o responsável por decidir o que fazer com os destroços do Império Napoleónico. Agora, como antes, na sua versão parlamentar do problema, Portugal transforma a governação num jogo de paciência onde a solução, em vez de surgir pela acção, aparecerá pelo esgotamento dos participantes. 

    E, assim, neste imbróglio governativo digno do mais refinado teatro do absurdo, assistimos a um primeiro-ministro que implora sustento e a uma oposição que, num requinte de indecisão quântica, oscila entre a misericórdia e o punhal, mas sem jamais empunhar nenhum dos dois. Schrödinger, se porventura tivesse paciência para estas trivialidades terrenas, talvez suspirasse com aquele seu ar de cientista desencantado e murmurasse: “O Governo está vivo ou morto? Eis a questão. Mas interessa a quem?

    Ao que o próprio gato, lá do fundo da caixa parlamentar, entre um bocejo e um olhar de superior desinteresse, se limitaria a dar uma lambidela na pata e a concluir, com a fleuma daqueles que já tudo viu: “Interessa? Bah! Desde que me tragam atum, tanto faz.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas

    N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

  • Poema póstumo de Natália Correia ao Aguiar-Branco

    Poema póstumo de Natália Correia ao Aguiar-Branco


    Dizei-me, caríssimas leitoras e digníssimos leitores, se a morte não tem ironias de fino recorte. Aqui estou eu, Brás Cubas, livre da compostura dos vivos, mas atento às suas manobras, a assistir a um feito curioso: um tribuno de sólidas relações e escassas inquietações, de seu nome José Pedro Aguiar-Branco, maestro dos tribunos do Parlamento da República Portuguesa, evocou e invocou Natália Correia como musa protectora de políticos em apuros.

    Afiançou ele que, se ela por cá andasse, zurziria sobre aqueles que ousassem fazer da sua “declaração de rendimentos manchete de jornal”. Ah, Aguiar, Aguiar, Aguiar… Eis um homem que se aproveita da ignorância alheia com a destreza de um alfaiate da retórica. Bem sei que tinhas 36 imberbes anos quando Natália se finou, mas talvez devesses saber que se saiu daí rica em valias literárias mas pobre em rendimentos. Os seus pares fecharam-lhe as portas, e o país que a venerava na teoria, na prática já não lhe comprava os livros nem lhe oferecia palco. Na verdade, julgo que Natália Correia nem se importaria que lhe metessem os rendimentos em papel de banca, em letras garrafais, para vergonha dos seus contemporâneos, pelo escândalo do teatro hipócrita de um país que celebra os seus grandes quando mortos, depois de em vivos os ter deixado definhar.

    Lê, filho, lê.

    E vens agora tu, Aguiar-Branco, homem de discursos bem alinhavados e interesses que te assentam ainda melhor, puxar a memória de Natália Correia para suavizar embaraços da política e da transparência? Como se a poetisa, que nunca poupou os medíocres e os dissimulados, pudesse servir de escudo para manobras de conveniência? Chamá-la para branquear conflitos de interesse é coisa para fazer rir os mortos — e, no caso dela, também para fazê-los rimar.

    Eu até estava para deixar passar mais esta diatribe, mas eis que a Eternidade tem os seus caprichos. E, entre as brisas do além, surgiu-me um pergaminho nas mãos. Natália, que jamais se prestaria a servir de álibi a políticos de mão leve e discurso pesado, quis que fizesse de mensageiro de um recado seu, em versos.

    Não me acuseis de embustes, pois nem a cova enterra a sátira.

    Aqui está, pois, o poema póstumo que a musa quis lançado sem hesitação — e com a precisão de quem nunca escreveu para agradar aos salões do poder.

    Branco a guiar sua suja mão

    Invocar-me, ó cavalheiro,
    para a tua absolvição,
    é tramar, no ardil primeiro,
    uma torpe encenação,
    como quem se faz cordeiro
    com o lobo na intenção.

    Se tens prédios, se tens rendas,
    se a escritura te convém,
    não queiras, com frases brandas,
    dar-me a pose de quem vem
    proteger-te das oferendas
    que te enchem o próprio bem.

    Pois se eu vivesse, ai, que tombo!
    Dar-te-ia uma bofetada,
    que num hipócrita faz rombo,
    nessa face desavergonhada.
    Mas se a morte me deu chumbo
    levas com a rima aqui laçada.

    E te aviso, Aguiar: não me tomes por tua santa,
    não me vistas de recato,
    pois a moral que a turba canta
    não se engana com o trato.
    E se a justiça se alevanta,
    nada te protegerá, nem o fato!

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas

    N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

  • Sonata de Rui Moreira para papalvos em Lá Maior

    Sonata de Rui Moreira para papalvos em Lá Maior


    A música, essa arte sublime que eleva os mortais aos domínios do indizível, sempre foi considerada um portal para o divino. Platão, em ‘A República’, advertia, e nem sequer usava o Spotify, sobre o poder moral das harmonias, embora defendesse já que tanto enobreciam o espírito como o corrompiam. Já Pitágoras, esse visionário e exímio matemático, vislumbrava na música uma expressão de ordem cósmica, dançando os planetas numa sinfonia celeste, inaudível para os ouvidos mundanos, mas presente no mais profundo do universo. Não será por acaso que os grandes teólogos e místicos sempre atribuíram à música uma conexão directa com Deus. Por exemplo, Santo Agostinho, arrebatado pelo canto gregoriano, sentia a alma desatar-se dos grilhões terrenos.

    Poderia ficar por aqui, graciosas leitoras e harmoniosos leitores, mas não. A música merece ser celebrada como um oratório majestoso, cada nota ressoando como um eco do transcendente, cada acorde se elevando ao empíreo, cada pausa um sopro de eternidade.

    Por isso, adito São João da Cruz, o místico carmelita, que sentia na música sacra não somente um ornamento litúrgico, mas sobretudo a fusão do espírito humano com o divino. Não posso calar a abadessa Hildegarda de Bingen, que dizia ser a música um reflexo da harmonia celeste, um eco da Criação, capaz de restaurar a alma à sua pureza primordial. E como esquecer Santa Cecília, a mártir melómana, cuja fé inquebrantável se entrelaçou para sempre com a própria essência da música? No momento do martírio, dizem, enquanto os verdugos empunhavam a lâmina, ela entoava cânticos na mais pura harmonia dos angélicos coros.

    Mas a música, essa entidade dupla e caprichosa, também pode ser a arte da dissimulação. Se sublima os homens aos coros angélicos, também pode seduzi-los para os círculos infernais. Não foi por acaso que Goethe nos apresentou Mefistófeles a murmurar tentações em forma de melodia, ou que Mozart fez de Don Giovanni um maestro da devassidão, ou que Nietzsche, perdido nos abismos do eterno retorno, se rendeu ao fascínio hipnótico da valsa e do wagnerianismo.

    A música pode bem ser sopro divino, mas também a fístula maldita do Flautista de Hamelin, atraindo os incautos para o precipício. Ou, se quisermos ser mais pragmáticos, será o violino bem tocado por políticos que pretendem adormecer a vigilância popular com suaves adagios de candura. E é aqui que chego ao senhor Rui Moreira, edil do Porto e exímio maestro na arte de tocar música para papalvos, persuadido de que rege uma sinfonia impecável, ainda que a orquestra desafine e o público, cada vez mais desperto, já não aplauda por reflexo.

    Comecemos pela sua melodia nuclear, publicada no jornal Sol, à laia de defesa do honra do seu ‘convento’, leia-se, classe política, em sinfonia de uma só nota: “Sempre desconfiei dos desconfiados, porque, conhecendo-se a si próprios, temem que os outros sejam iguais.” Ah, que maravilha! Temos a retórica da inversão! Neste compasso de abertura, o senhor Moreira, bisneto de um armador da Marinha Mercante, navega em terrenos rudes e movediços, defendendo que a suspeita é atributo exclusivo dos canalhas, e que os vigilantes da res publica são, no fundo, apenas espelhos de corrupção ambulantes.

    Não posso deixar de lembrar René Descartes, que no seu Discurso do Método proclamava a dúvida como princípio do conhecimento: “Que pour examiner la vérité il est besoin, une fois dans sa vie, de mettre toutes choses en doute autant qu’il se peut.” A suspeita, para o filósofo francês, não era sintoma de torpeza moral, mas sim a primeira etapa para se alcançar a verdade.

    Porém, Moreira, fiel à sua partitura, prefere uma variação própria: a dúvida já não ilumina, mas denuncia o suspeitador, como se o próprio acto de desconfiar fosse prova de culpa. Se duvidais de um político, sereis seguramente pior do que ele. Coitado do francês: ensinou-nos a pensar para que viesse depois Moreira pensar que pode dar raspanetes que alguém ousa desconfiar. O respeitinho é muito bonito…

    Estou a avançar em demasia para a coda, porque no interlúdio, em tom de andante cantabile, o edil da Foz do Douro recorda-nos que os sacrificados políticos lusitanos não são eremitas, que têm cônjuges, filhas e filhos, irmãs e irmãos, cunhadas e cunhados, sobrinhas e sobrinhos, pai e mãe, avós e avôs, netas e netos, talvez bisavós e tetravós, mas mortos como eu, tias e tios, primas e primos, genros e noras, sogros e sogras, enteados e enteadas, padrasto  e madrasta – e que não se pode exigir que sejam imaculados monges franciscanos.

    Pois claro! Quem haveria de supor que laços familiares no poder, alguma vez, conduziriam a favorecimentos? Quem, no pleno uso da razão, ousaria imaginar que os lexicógrafos cunharam a palavra nepotismo para descrever algo que realmente existia? Não! Nepotismo é somente, para Rui Moreira, um ornamento etimológico, uma curiosidade sem aplicação prática, seguramente um mero capricho linguístico, um conceito abstracto sem qualquer reflexo na realidade, tal como os unicórnios do seu homólogo Moedas ou as utopias incorruptíveis.

    Enfim, o próprio Maquiavel, que bem conhecia os corredores do poder, já nos advertia em ‘O Príncipe’ que um governante deve evitar parecer corrupto, mais do que evitar a corrupção em si. Mas para Moreira, os políticos são sacrossantos, e toda esta conversa de transparência e ética em cargos públicos não passa de uma histeria, uma moda passageira, como os perucões empoados da corte de Luís XIV.

    E eis que vai Moreira em crescendo até à cadenza para, em momento virtuoso, dar a ideia de que um “conflito de interesses” somente é uma fabricação de uma escabrosa indústria – a indústria da pseudotransparência.

    Aqui, permito-me recordar uma lição clássica da Roma Antiga. Durante a República, Cícero bradava contra Catilina, acusando-o de conspirações para pilhar o Estado, cujos aliados ripostavam com argumentos familiares: Cícero era alarmista, um homem obcecado por suspeitas, buscando apenas palco para si próprio. Mas a verdade foi implacável: Catilina era, de facto, um conspirador. Dois mil anos depois, a estratégia não mudou – ridicularizar os que fiscalizam o poder, transformá-los em caricaturas, desacreditá-los para jamais exporem desvios e desvarios políticos.

    Por isso, a grande apoteose da peça de Rui Moreira vem na forma de um ataque a João Paulo Batalha, identificado como o “grande guru da suspeita”, que faz “pela sua vidinha a vilipendiar políticos”. Tadinhos. Diz-nos Moreira anda Batalha a apontar dedos injustos a políticos íntegros, enquanto ele próprio gere uma organização que, imagine-se, vende serviços de formação e consultoria sobre transparência!

    Esta indignação de Moreira revela um moralismo peculiar: um político – incluindo o primeiro-ministro, que alterou a Lei dos Solos – ter uma consultora com negócios imobiliários no objecto social, é bastante natural e mais que aceitável, mas um activista anti-corrupção que se sustenta com formação em transparência já é um ‘mercador da suspeição’. Sun Tzu, no seu ‘A Arte da Guerra’, ensinava este estratagema: se não podes enfrentar um exército mais forte, ataca a sua reputação.

    E, finalmente, chegamos ao adagio finale de Rui Moreira: um apelo quase litúrgico à perseguição de suspeitas infundadas, conclui que levantar dúvidas é fácil e gratuito – e pior ainda, que certas denúncias são feitas por interesse ou de forma discriminatória.

    Ah, os violinos! Como soam doces quando se pede ao povo que feche os olhos e confie na bondade dos governantes! Daqui, ouço ao fundo o eco de outras figuras que nos brindaram com discursos semelhantes: Danton, nos estertores da Revolução Francesa, clamava contra os que denunciavam os excessos do Terror, alegando que era tudo fruto de “calúnias e má-fé”. O resultado? Perdeu a cabeça para a guilhotina.

    Eis-nos, pois, nesta Sonata para Papalvos em Lá Maior – uma composição que nos embala num leito de belas palavras e harmonias convincentes, escondendo dissonâncias sub-reptícias. Como escrevi nas minhas memórias – e se não escrevi, devia ter escrito –, “a vida é uma ópera bufa em que cada um canta a sua ária sem reparar na desafinação do coro.” É esse o destino de todos os músicos que, ao invés de compor para a verdade, decidem orquestrar ilusões e tocá-las para um auditório que desejam ser de surdos.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas

    N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

  • Gouveia e Melo, e as ‘duas tábuas’ de perigosa trivialidade

    Gouveia e Melo, e as ‘duas tábuas’ de perigosa trivialidade


    Se há uma verdade insofismável na História do Pensamento Universal, é que toda a filosofia, desde Heráclito até Kant, e desde Hegel até Foucault, andou às voltas com o conceito de Poder. Sofismas, paradoxos e exegeses, laboriosamente decantados ao longo das centúrias, serviram ora para sustentar a sua legitimidade vinda dos Céus, ora para justificar a sua necessidade terrena, ora para denunciar os seus abusos despóticos. O Poder foi, de Platão a Maquiavel, o eixo em torno do qual se construíram utopias e se ergueram impérios, se redigiram tratados e se travaram batalhas.

    Mas eis que, após tanta especulação metafísica, depois de tantos volumes encadernados em couro a tentar deslindar a natureza do mando e da obediência, emerge, qual novo arquétipo do engenho humano, um espírito singular que resolve, de um só golpe, a questão que atormentou as mentes mais argutas da Humanidade: Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo, nado em terras de Quelimane, e que nadou pelos mares durante décadas em esquifes profundos, apenas para agora se firmar como timoneiro de terra firme, sem mar, sem navios e, ao que parece, sem bússola.

    Falo-vos do conhecido Almirante dos Sete Egoceanos, que, através de duas singelas páginas do Expresso – essa prestigiada gazeta de respeitável antiguidade, onde agora se cultiva o jornalismo com a delicadeza de um florista a vender cravos murchos ao preço de orquídeas raras – vos explica, ensina, elucida e, por fim, esclarece, que a arte de governar é, afinal, um mero e esmerado exercício de equidistância entre tudo e nada, entre a firmeza e a vacuidade, entre a ordem e o flutuante acaso das marés.

    Lendo a sua bula iluminada, onde o truísmo se veste de revelação – e onde aquilo que mais se destaca é um S garrafal da revista do Expresso, com honras de manchete –, eis que o Almirante dos Sete Egoceanos “explica pela primeira vez o seu entendimento sobre a Constituição e as funções que julga serem da competência do Presidente da República”.

    Eu, por mim, que morto estou, muito me diverte a prosápia de quem, num raro assomo de artificial humildade, julga que o seu entendimento sobre as coisas rivaliza com o de Deus ao esculpir, com fogo e trovões, as tábuas da Lei para Moisés. Porque sim, o Almirante Gouveia e Melo, sempre avesso a protagonismos, não se limita a interpretar a Constituição – ele desce do Monte Sinai mediático, envolto numa nuvem de luz e autoconvencimento, para vos revelar, a vós, mortais, a palavra definitiva sobre os destinos da República Portuguesa.

    Revelações, ou o que quiserdes chamar, de Henrique Gouveia e Melo nas páginas do Expresso.

    E vós, simples viventes, só podeis tremer perante tamanha iluminação, gratos por serdes dignos de assistir ao momento em que um oficial de Marinha, recém-chegado ao território seco das ideias políticas, decide, magnanimamente, explicar-vos como deve funcionar um Estado. Eu, que já não padeço dessas tribulações mundanas, observo tudo com a leveza de quem, desde a eternidade, já viu profetas mais ambiciosos e charlatães mais convincentes.

    Com a leitura das suas duas tábuas de revelação – tantas quantas as páginas que o generoso Expresso lhe ofertou –, Gouveia e Melo concede a todos os que nelas pousarem os olhos a oportunidade rara de uma iluminação súbita: a epifania de que a governança assume finalmente o seu formato mais puro, destilado, quintessencial – ou seja, uma enxurrada de platitudes embalada na majestosa certeza de que a democracia precisa de democracia, a liberdade de liberdade e o equilíbrio de equilíbrio.

    Para quê, então, as tribulações de um John Stuart Mill, os labirintos de um Tocqueville, os sofismas de um Weber? Tudo se resolve com a estonteante simplicidade de uma linguagem naval: navegamos pelo mar proceloso da incerteza, mas avistamos o farol da unidade nacional, e que ninguém ouse contestar o Capitão da Nau!

    Ora, mas todo o grande pensador necessita de uma introdução sobre o seu pensamento ideológico. E que prodígio de equilíbrio, que sublime demonstração de ginástica intelectual! Gouveia e Melo, homem de proas firmes e lemes resolutos, não se limita a navegar os mares revoltos da política – ele flutua, lépido e tépido, entre duas margens, sem nunca molhar os pés.

    Situo-me politicamente entre o socialismo e a social-democracia“, escreveu ele – ou alguém por ele. Brilhante!

    Um posicionamento tão inovador e arriscado quanto afirmar que a água é húmida, que o vento sopra ou que um pão de forma é, de facto, um pão com forma. O Almirante, esse visionário, descobriu o meio-termo entre dois conceitos que, no fundo, são já uma variação um do outro, com a ousadia de quem anuncia ao mundo que acaba de descobrir um arquipélago… entre duas ilhas que já existiam no mapa e figuravam há décadas nas brochuras turísticas locais.

    E, claro, defende ele, uma “democracia liberal como regime político” – porque nada como reafirmar o óbvio com solenidade de estadista. Eis uma revelação grandiosa: Gouveia e Melo, vivente em democracia nos últimos 51 anos da sua vida de 64, não defende a autocracia, nem a teocracia, nem um sistema baseado no sorteio dos cargos em rifas de feira. Não! Ufa! Ele defende a democracia liberal!

    Um verdadeiro farol de lucidez, portanto. E mais: um bastião do pensamento político, um cruzador da evidência que, sem arriscar o naufrágio do comprometimento real, segue seguro pelo profundo oceano das generalidades, sem um só vagalhão de dúvida ou sequer uma brisa de originalidade a perturbar-lhe o curso. Tivesse sido eu a substituir o seu amanuense e acrescentar-lhe-ia na boca: “Encontro-me politicamente entre o vago e o redundante, defendendo que é preciso liderar com liderança e governar com governo.

    Ao longo da sua epístola de obviedades, como acrobata de conceitos, o Almirante nunca arrisca quedas: ele equilibra-se sempre na corda mais segura, no discurso mais inatacável, no território onde nada é verdadeiramente dito, mas tudo soa impecável.

    Por exemplo, qual Aristóteles de casaca e galões, eis uma epifania política com um axioma de vibrante originalidade: os partidos políticos são fundamentais, garante ele. Eis um postulado tão revolucionário que não duvido que Platão, se reencarnado fosse, repensasse todo o seu ‘A República’ e, envergonhado, substituísse o governo dos filósofos pelo governo dos partidos – ou, melhor ainda, pelo governo dos não-partidos, aqueles seres incorruptíveis e elevados que o Almirante sugere como alternativa.

    Mas não nos apressemos! A ciência política moderna, segundo esta nova escola de pensamento naval, desenvolve-se com algumas inovações paradigmáticas, autênticos axiomas paradoxais – ou seja, princípios autoevidentes que se contradizem, mas que, ditos com solenidade, adquirem o brilho de verdades inatacáveis. Se quiserem um nome mais técnico, chamemo-los de “teoremas de elasticidade política” – aqueles que servem para tudo e para nada, conforme a conveniência do momento.

    No primeiro teorema, defende Gouveia e Melo que a democracia deve ser tolerante, mas com mão de ferro contra aqueles que, na sua visão iluminada, ousam abusar dessa tolerância – mesmo que tal implique podar, com o rigor de um cirurgião inquisitorial, liberdades fundamentais como a de informação, de expressão e de contestação. Eis um ensinamento digno de figurar nas academias de filosofia política, talvez sob o título “A Democracia expurgada dos seus excessos”!

    Coitado do Karl Popper, ingénuo que era: escreveu longo ensaio sobre o paradoxo da tolerância, e vem agora o Almirante dos Sete Egoceanos esquartejar-lhe a tese com a destreza de um açougueiro doutrinário, destilando-a num raciocínio primário. Para Gouveia e Melo, a verdadeira tolerância, na sua forma mais pura e sublime, reside precisamente em excluir quem diverge, garantindo assim um campo de discussão livre… mas apenas dentro dos limites devidamente autorizados e supervisionados pelo novo Guardião do Pensamento Justo.

    E, claro, não faltarão mecanismos de reabilitação para os desafortunados que, por desatenção ou irreverência, ousem extraviar-se dos dogmas da moderação certificada. Prevejo, aliás, que tais desviantes sejam reintegrados com a ternura de um instrutor de ioga que, ao menor deslize na postura, corrige os alunos com descargas elécricas – um choque de realidade para que aprendam, enfim, a flexibilidade da obediência aos ditames do Almirante.

    Eis, pois, a evolução da democracia liberal em versão almirantesca: tolerância para os toleráveis, censura esclarecida para os desviantes e uma liberdade rigorosamente regulamentada, para que ninguém se extravie no incómodo hábito de pensar pela própria cabeça. O Santo Ofício já tinha intuído algo semelhante – só faltava vesti-lo de linguagem moderna e embrulhá-lo num discurso sobre a defesa da democracia.

    No segundo teorema, o Almirante dos Sete Egoceanos defende que o Estado não deve intervir na Economia, salvo quando for necessário intervir – uma variante do célebre “digo-te que fujas, mas mando que fiques”, um daqueles enunciados de precisão matemática flexível que, ao contrário do rigor newtoniano, não serve para descrever leis universais, mas sim para garantir que o enunciador tem sempre razão, independentemente do contexto.

    O livre mercado deve ser livre, mas também deve ser regulado – não muito, nem pouco, mas na medida exacta, aquela que apenas Gouveia e Melo pode determinar com a régua invisível da moderação conveniente. Aqui reside um dogma maleável do intervencionismo selectivo, uma verdadeira doutrina quântica da governação, onde o Estado é simultaneamente presente e ausente, regulador e não-regulador, guiado por uma lógica insondável que apenas os iluminados conseguem interpretar.

    Se há um nome para esta teoria, e evocando Adam Smith, chamemos-lhe “A Teoria da Mão Invisível do Almirante” – uma variante sofisticada do liberalismo intervencionista, onde o Estado não deve intervir, a menos que se decida que deve, e só nos momentos certos, que ninguém sabe exatamente quando são. Um prodígio de elasticidade doutrinária, um verdadeiro “laissez-faire dirigido”, onde o mercado navega livremente… até que o timoneiro decida que é tempo de agarrar no leme e ajustar o rumo.

    Eis, pois, a evolução da política económica em versão Gouveia e Melo: um mercado livre; mas sob vigilância, uma Economia desregulada, mas controlada; um sistema em que a mão invisível opera, mas com supervisão militar! A arte de governar resume-se, assim, à precisão de um compasso de navegação etéreo, que ninguém sabe onde está – mas que o Almirante assegura possuir.

    No terceiro teorema almirantesco, a Presidência da República deve ser independente e equilibrada, mas também deve convocar eleições antecipadas sempre que o Presidente considerar que o equilíbrio está desequilibrado. Uma neutralidade interventiva, um poder discreto mas decisivo, uma imparcialidade cirurgicamente orientada.

    Como complemento, Gouveia e Melo defende que o Presidente deve pairar acima dos partidos, mas manter um olhar atento sobre as movimentações partidárias; deve evitar imiscuir-se, mas também deve intervir cirurgicamente, garantindo que tudo se mantém como ele deseja. Uma magistratura de influência, mas sem parecer influente; um garante da estabilidade, pronto a desestabilizar quando necessário.

    Aqui está, pois, a reinvenção da física política: o movimento simultâneo na inércia, a acção que não age, a neutralidade que puxa cordelinhos. Uma democracia em equilíbrio dinâmico, onde o Chefe de Estado é ao mesmo tempo espectador e maestro, árbitro e jogador, presença e ausência.

    Mas isto não parece mais uma democracia fantoche? Uma encenação política em que o equilíbrio é mantido pela constante ameaça de desequilíbrio, e a imparcialidade é apenas um nome mais elegante para o controlo estratégico?

    Porém, não penseis que a ciência política do Almirante se limita a reflexões teóricas. Nada disso! Ele é um homem de acção, de comando, de orientação decisiva. Prova disso é a sua visão geopolítica totalizante: o perigo já não vem só do Leste, mas agora é de 360 graus, incluindo assim também o asteroide 2024, a Grande Mancha Vermelha de Júpiter e eventuais ataques de caranguejos revolucionários do Pacífico, mais virulentos do que os do Índico.

    Eis uma doutrina de defesa notável: ao contrário da banalidade dos que acreditavam que os inimigos vinham de um lado ou de outro, o Almirante percebeu a Verdade Superior – o perigo está em todo o lado, é omnipresente, como Deus.

    E como responder a esta ameaça global, difusa e perpétua? O Almirante, na sua infinita clarividência estratégica, vos oferta a solução: “É tempo de ir além do óbvio e dos interesses imediatos, sem afunilamentos”. Perante tal fórmula mágica, resta apenas a dúvida cartesiana: como nunca ninguém pensou nisso antes? A Humanidade, perdida em debates estéreis sobre a organização política das sociedades, falhou em compreender que a solução era apenas… não se afunilar!

    Concluo, neste momento, que o grande erro de Maquiavel, Rousseau e Montesquieu não foi a ilusão republicana ou a crença ingénua na separação de poderes; foi não perceberem que o verdadeiro inimigo da liberdade não era a tirania, mas sim… o afunilamento ideológico! Em todo o caso, se estais agora permanentemente cercados, sabei também que estareis permanentemente seguros – desde que tenhais em Belém um Gouveia e Melo a “cuidar, proteger e honrar a democracia”…

    Mas, atenção! O Almirante já sabe que não agradará, em simultâneo, a gregos e a troianos, a liberais e a estatistas, a terráqueos e a marcianos. Ele assume, com a segurança de quem nunca se questiona, que o Presidente deve representar todos os portugueses sem, no entanto, ser de todos – e ainda bem, segundo a sua tese, pois, de contrário, comprometeria a sua isenção.

    Este nobre paradoxo merece um estudo minucioso: a unidade nacional deve ser promovida, desde que o representante da unidade pertença a uma determinada não-facção, garantindo assim que representa todos sem estar, de facto, ligado a ninguém. Como convém a uma magistratura independente, mas estrategicamente interventiva; imparcial, mas atenta às dinâmicas partidárias; elevada, mas com os pés bem assentes nos corredores do seu poder.

    Em suma, com Gouveia e Melo, tereis um Presidente omnipresente na neutralidade, invisível na acção, uma figura que se moverá com a leveza de uma sombra e a firmeza de um decreto – e que, por um milagre da engenharia política, conseguirá ser simultaneamente árbitro e jogador, ausente mas vigilante, passivo mas decisivo. Um verdadeiro Yin e Yang presidencial de soma zero – uma dramática nulidade.

    Eis, pois, em súmula, o novo modelo de liderança presidencial à la Almirante, destilado pela fina ciência do pensamento naval: a democracia a ser salva da democracia; a liberdade a precisar de ser restringida para ser mantida; o Presidente a ser independente, mas activo; a política a não poder ser partidária, salvo quando o Presidente decide que pode.

    A conclusão inevitável: em duas tábuas do Expresso, tendes a pureza dos grandes tratados filosóficos, a clareza dos manuais de navegação e a força das frases esculpidas em bronze, tudo isto em concentrado. Nos próximos meses, nos anos seguintes e nas décadas e séculos vindouros, se o deixarem à solta e sem acompanhamento psiquiátrico, os ensinamentos do Almirante dos Sete Egoceanos serão entoados com a reverência de máximas imortais, repetidas com solenidade e acolhidas com o fervor reservado aos dogmas supremos, como versículos inquestionáveis das Scripturae Sanctae da Razão Impecável.

    Estátuas serão erguidas, cátedras serão inauguradas, e talvez – se o zelo for suficiente – ainda testemunhareis em vida o primeiro evangelho apócrifo da Nova Ordem Estratégica Naval, onde, entre parábolas de tempestades e calmarias, o Almirante revelará o Quarto Segredo de Fátima.

    Depois do Almirante – isto é, d.A. –, a retórica jamais precisará de ideias; a erudição medir-se-á em clichés; e a profundidade política será tão rasa quanto um lago de três palmos. A grande lição do Almirante Gouveia e Melo, durante a próxima campanha presidencial, será demonstrar aos eleitores que nada é mais eficaz na política do que o solene e pomposo uso do perigoso nada.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas

    N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

  • Pinto da Costa, um caixão no relvado

    Pinto da Costa, um caixão no relvado


    Meus bons amigos e minhas bondosas amigas – e para todos aqueles que, em vida, beijam a face direita do outro enquanto a esquerda ainda seca o golpe da bofetada anterior. Daqui vos escreve, do Além, este vosso humilde autor, neste infinito exército de espectros, defuntos, extintos, finados e outros tantos sinónimos que os vivos arranjam para evitar pronunciar a palavra fatídica, como quem espanta um fantasma com uma metáfora.

    E digo “humilde” não por natural modéstia – que a modéstia, como bem sabeis, é a vaidade dos discretos –, mas porque a morte nivela as coisas, e aqui deste lado do túmulo, o epíteto de “finado” basta-me. Já não há títulos, condecorações ou distinções: reis e mendigos compartilham o mesmo silêncio, presidentes e pedintes dividem a mesma eternidade, e até os mais prolixos políticos se calam – ainda que, por costume, alguns continuem a prometer ressurreições em três tempos.

    Entretanto, não vos iludais – sim, vós que ainda respirais, porque esta legião de almas aumenta sem cessar. Sim, meus prezados viventes, cada dia que passa são 160 mil a menos no vosso lado e 160 mil a mais no nosso. Uma simples questão aritmética vos dirá que, somados os séculos, o nosso exército, aqui, há muito ultrapassou a população dos vivos.

    Podeis numerar os vossos frívolos soldados e fanfarrosos generais. São eles, parecendo muitos, poucos perante a legião de mortos que vos espreita na sombra dos tempos. Se isto, por aqui, fosse físico, estaríamos mais atafulhados do que os indostânicos nos beliches do Benformoso. Contas feitas, desde que Cristo guinchou nas palhas de Belém, já se esganiçaram, espernearam e respiraram entre 108 mil milhões e 120 mil milhões de almas. De todos estes, só ‘restam’ do vosso lado pouco mais de oito mil milhões. Sois vós uma triste minoria, cerca de 7% – o que, em democracia, significa que valeis pouco mais do que o Bloco de Esquerda, ou talvez agora bastante mais, dado o desmoronamento dessa gloriosa trincheira revolucionária depois do partido da Mariana Mortágua andar a escorraçar lactantes como um alfaiate republicano varrendo fidalgos.

    Portanto, continuai a brincar por aí com o sufrágio universal, a liberdade de expressão, as lutas de classe e a empresa familiar do Montenegro, mas aqui, do lado de cá, a verdadeira maioria já decidiu: cedo ou tarde, todos vós vos juntareis a nós.

    De resto, dir-vos-ei que a única desigualdade real que subsiste entre vivos e mortos é a ilusão. Vós julgais que a vida é uma estrada infinita, enquanto nós sabemos que não passa de um atalho curto para este lado da existência. A cada suspiro vosso, o tempo afia a foice, e se hoje ainda tendes carne nos ossos, amanhã sereis como eu, um narrador póstumo a rir-se da vossa vã pressa em acumular riquezas, títulos, diplomas e afazeres.

    Cuidai-vos, pois, se vos apraz; fazei exercícios, comede verdes e bebei águas minerais ou até água do mar e suplementos vitamínicos; mas sabei que, por mais que vos esforceis, a estatística não falha: a taxa de mortalidade entre os vivos permanece, desde o início dos tempos, firmemente fixada nos 100%.

    Alguns chegam aqui atónitos, outros indignados, muitos incrédulos. Mas todos, sem excepção, terminam por entender o derradeiro ensinamento: a vida é um empréstimo curto. Porém, antes disso, há os funerais – esse espetáculo sublime!

    Que concerto de lágrimas e discursos, que sinfonia de soluços e elogios post mortem! No meu tempo, quando me finei, onze amigos levaram-me ao jazigo com uma tristeza de quem leva um fardo incómodo. Não que fossem desalmados; eram apenas vivos, e os vivos têm essa qualidade inescapável: ainda vivem. Mas hoje, ao espreitar os cortejos fúnebres modernos, noto que a comédia atingiu um nível superior.

    Hoje, no Porto, por exemplo, até tivemos um caixão no relvado de um estádio de futebol – o que, em abono da verdade, nem é assim algo tão inaudito, porque eu já vi coisas bem mais extraordinárias. Contudo, deu-me pretexto para a crónica. E defendo não ser inaudito porque já vi um ministro inaugurar uma obra sem existir, um economista com menos acerto do que um horóscopo de jornal, e até um treinador avaliar como belíssimo o desempenho da sua equipa depois de levar cinco secos. Já também vi debates políticos onde a inteligência entrou morta, e já assisti a funerais onde o defunto aparentava mais ânimo do que certos congressos partidários. Já vi, de igual modo, gente a votar em mortos – e mortos a votarem, dependendo das freguesias. E vi, mais de uma vez, quem estivesse vivo apenas por teimosia, como certos presidentes de empresas públicas que ninguém sabe bem para que servem.

    Portanto, um caixão num relvado? Bah! Nada que me surpreenda.

    Bom, mesmo bom num funeral, é a vista que o defunto tem sobre a plateia para ver quem realmente chora e quem apenas marca presença para garantir que o testamento não os esqueceu. E, portanto, Pinto da Costa, homem que tanto soube afastar as más-línguas em vida, deve estar agora divertido por se ter visto rodeado de tantas na última hora – ou primeira na eternidade. Nos últimos dias, aqueles que lhe atiraram peçonhas, ergueram-lhe loas sentidas, os que o odiavam competiram por um lugar de honra na despedida. Até a águia que há muito esperava ver o dragão tombar se mostra condoída, e o leão de igual modo. Que teatro delicioso!

    Vede ali como o choro é inversamente proporcional ao afecto sentido em vida! Que bela cena é aquela em que um rival de décadas verte lágrimas fartas diante do esquife, chorando não a perda do amigo, mas a perda da oportunidade de continuar a odiá-lo. É de virem as lágrimas aos olhos, para quem as tem. E aquele outro, que outrora nem podia ouvir o nome do finado sem cuspir de lado, agora declama sentidas palavras sobre “o grande homem que partiu”. Ah, a hipocrisia! – essa arte superior à diplomacia, porque se pratica sem tratados e sem necessidade de anexações.

    E que dizer daqueles que, cinco minutos antes, ocupavam-se com trivialidades, e cinco minutos depois já narravam aos comensais a sua profunda ligação com Pinto da Costa? Há um fenómeno curioso nestas ocasiões: o falecido, que em vida era um homem de rotinas, de pequenas manias, de carne e osso, converte-se instantaneamente numa figura heróica, um titã de qualidades sobrehumanas. “E eu estava lá”, declara qualquer um, inflando o peito como se as exéquias fossem a tomada da Bastilha. “Nós conversávamos muito”, mente outro, que nunca trocara mais que um aperto de mão protocolar.

    Porém, não nos fiquemos pelos velhos conhecidos. Há também os desconhecidos, aqueles que jamais privaram com o morto, mas que vêem, ali, na morte e nas exéquias uma excelente oportunidade de participação social. São os profissionais do luto, seres que, sem necessidade de ensaio, exibem o rosto embargado, os olhos vermelhos e um ar de pesar tal que um verdadeiro amigo se sentiria descompensado por não chorar tanto. São os chorões públicos, os carpideiros modernos que, de telemóvel na mão, asseguram o registo de ocasião, talvez uma selfie enquadrando o caixão. Afinal, agora o pranto digitaliza-se, e se um lamento não for partilhado nas redes sociais, terá sido mesmo um lamento?

    E do meu lado do túmulo, há risadas. Sim, risadas, porque a eternidade, se nada mais concede, dá-nos perspectiva. Observamos os que se alvoroçam pela herança, os que fazem contas às posses do falecido ainda antes de ele ir comer capim pela raiz ou virar tempero do vento. Vemos aqueles que, com um olho lacrimejante e o outro na agenda, já preparam a próxima ocasião solene. Vemos as viúvas que nunca amaram, os amigos que nunca foram, os elogios que nunca haveria se a vítima ainda tivesse ouvidos.

    E assim se segue o teatro do mundo. Como diria o imortal Shakespeare, “a vida é um palco” e os funerais são o seu terceiro acto, que transforma os personagens em virtuosos por decreto, ainda que na cena anterior fossem vilões. Eu, Brás Cubas, que de lágrimas soube pouco, mas de hipocrisia sei muito, vos digo: não vos apoquenteis com as aparências. Os mortos têm tempo, e a eternidade é longa. Nós assistimos a tudo, do grande além-túmulo, e se há algo que nos diverte, mais do que as louvaminhas póstumas, são aqueles que as proferem com fervor enquanto já fazem cálculos sobre a distribuição da prataria.

    Aos vivos que choram sinceramente, o meu abraço etéreo. Aos que choram com cálculo, um sorriso espectral. E aos que não choram de modo algum, esses sim, têm o meu respeito: pois o silêncio, por vezes, é a única forma honesta de lembrar os mortos. E eu, se calhar, perdi uma boa oportunidade para estar calado – mas não aguentei.

    Em todo o caso, esbeltas leitoras e finíssimos leitores, se esta crónica vos agradar, pago-me da tarefa; se vos não agradar, pago-vos com um piparote, e adeus.

    Brás Cubas

    N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.

  • Advertência epistémica ao Chega: até a infâmia dá fama

    Advertência epistémica ao Chega: até a infâmia dá fama


    Viver para ver! – e nem a morte me salvou desta tragédia. E não é apenas ver, mas continuar a ver, porque há desgraças que, longe de se extinguirem com o tempo e a vida, se reproduzem com uma fertilidade assombrosa. Dizem que o progresso humano nos levaria a um patamar de luz e discernimento, mas, por vezes, suspeito que apenas se fabricam lanternas mais sofisticadas para iluminar a velha e perene estupidez. O ouro e o latão continuam a brilhar indistintamente aos olhos dos incautos, e a multidão, essa infalível congregação de juízes estrábicos, segue a apontar, como se fosse um novo génio, cada novo saltimbanco que sobe ao palco do mundo com gestos largos e retórica enfatuada.

    Não há mistério algum na ascensão desses personagens. Em tempos, a imbecilidade ainda cultivava certo pudor e disfarçava-se sob a capa do estudo ou da compostura; hoje, desfila em despudor, convencida de que a ausência de mérito é afinal, ela própria, um mérito novo. E que direi da fama? Ah, esse bálsamo dos inanes! Se outrora se mostrava necessário algum talento, ainda que medíocre, para conquistar renome, nestes dias basta uma aparição mediática, um bom escândalo, um disparate bem pronunciado, um rasgo de desfaçatez. O mundo, esse augusto areópago de néscios, já nem distingue mais entre o meritório e o ilusório, entre o laudatório e o difamatório, entre o valoratório e o vitatório.

    E eu no meio disto? Eu, que já morri, continuo a ver! Se a vida fosse um romance de boa feição, teria encerrado eu os olhos e deixado isto entregue à ópera bufa. Mas não; cá estou, espectador involuntário desta contínua farsa, assistindo à civilização marchando jamais na direcção desejada. Na verdade, o maior problema de viver para ver – ou de morrer e continuar a ver – não é tanto aquilo que se vê, mas aquilo que se continua a ver, apesar de toda a crença optimista no aperfeiçoamento humano. Quem me dera ter a eternidade me concedido não apenas a imortalidade do olhar, mas também a possibilidade de manter as pestanas para, dessa sorte, nem que fosse por um instante, deixar de assistir a esta tragicomédia incessante.

    E eis que, por tudo isto, tive então de suportar, no mais recente acto desta peça de vaudeville, o deputado Rui Paulo Sousa, do Partido Chega, elevar a lógica política a um novo patamar de absurda simplicidade – ou de complexa imbecilidade. Em momento de arroubo lógico, proclamou ele que o seu líder, André Ventura, é o candidato presidencial mais reconhecido pelos portugueses e, se é o mais reconhecido, então é porque os portugueses o conhecem; e se o conhecem, é porque gostam; e se gostam, votam; e se votam, ganha; e se ganha, há de passar à segunda volta das Presidenciais! Eis a política reduzida à mecânica infalível do óbvio ululante, onde a notoriedade se confunde irremediavelmente com a preferência e a repetição de um nome se torna prova irrefutável do seu sucesso.

    Que se registem, pois, nos anais da ciência política estes novos postulados do silogismo sousaniano, dignos de figurar entre Aristóteles, John Stuart Mill e, por que não, um pasteleiro de génio que conclua que, se um bolo cresce no forno, é porque já nasceu levedado. Não há aqui espaço para hesitações ou incómodos detalhes estatísticos: se um nome ecoa nos ouvidos do povo, nem é preciso discernir se é por motivos deploráveis ou apenas medíocres – a vitória fica certa e é apenas uma questão de tempo e decibéis.

    O Chega, que aprecia apresentar-se como o bastião da moralidade e do combate à corrupção, esquece-se que tem tido um talento assaz curioso para coleccionar figuras que se tornam célebres pelos piores motivos.

    Quem não se lembra do seu deputado que, ao invés de um discurso inflamado com bengaladas no soalho, preferiu dar chapeladas num árbitro?

    Quem já se olvidou do seu dirigente que, feroz defensor da castração química para pedófilos, acabou apanhado em negociações pouco edificantes com um menor de 15 anos?

    Quem se esqueceu do seu deputado que, em vez de fiscalizar a governação, se especializou na arte de desviar bagagens na Portela, tornando o seu check-in nos Açores numa actividade de risco para os passageiros mais distraídos?

    Quem deixará de recordar o seu deputado que, após uma noite de libações, decidiu que as leis de trânsito eram meras sugestões, sendo surpreendido ao volante com uma taxa de álcool digna de um enólogo em plena fermentação vínica?

    Quem não nomeará o seu militante que, empenhado em defender os valores tradicionais, resolveu que o melhor modo de exaltar a família era distribuir umas cachaporras domésticas, fazendo da moral um exercício de punho fechado?

    E que dizer do espectáculo contínuo da polémicas de André Ventura, onde cada semana há um novo sobressalto, uma nova saída de tom, uma nova indignação fabricada para gáudio da turba?

    O reconhecimento sem mais, minhas mui formosas e meus ilustres cavalheiros, é um critério estapafúrdio para o Chega que se nos apresenta como um oráculo do destino eleitoral. Pobres de espírito.

    Se ser conhecido garantisse uma eleição, então Judas Iscariotes, à época do seu infeliz episódio monetário, teria sido proclamado líder de Jerusalém com ampla vantagem sobre Caifás. Pela mesma lógica inexorável, Nero, tão célebre quanto incendiário, teria sido aclamado tribuno perpétuo do povo romano. E que dizer de Rasputine, cujas façanhas místicas e lascivas o tornaram notório em São Petersburgo? Se a popularidade bastasse, teria ele despachado os czares e sentado os abades num concílio para aclamar os méritos terapêuticos da devassidão.

    E não nos esqueçamos do bondoso e tão afamado Barba Negra, que teria sido eleito almirante de Sua Majestade Britânica, desde que os eleitores não se importassem com a ligeira questão dos saques e homicídios em alto-mar.

    Não, caríssimas leitoras e estimados leitores! A fama não é predicado de mérito, e a notoriedade não é atalho para o poder. E há ali, na lógica sousaniana, um perigoso e indesejado sofisma, porque defender que quanto maior a notoriedade maior a fama, também se aplica à infâmia. O criminoso vulgar pode ser conhecido na sua rua, mas não na cidade. O vigarista sofisticado pode ser falado na cidade, mas não no país. E só o déspota e o traidor à Pátria se alcandoram em todas as cabeças e entram nos anais da História.

    Assim, ao proclamar Ventura como o mais reconhecido dos candidatos, o que o deputado do Chega quis dizer? Que o nome do seu chefe ecoa em todas as esquinas, em todas as cidades, vilas e aldeias? Que a sua presença é constante nos debates e nas redes sociais? Muito bem! Mas será esse reconhecimento pelo seu talento e espírito público, ou pelo espectáculo de demagogia e populismo?

    Talvez fosse bom recordar os grandes pensadores. Platão, ao falar dos governantes ideais, não recomendou que fossem os mais conhecidos, mas sim os mais sábios. Aristóteles, que estudou a política com rigor, nunca disse que a fama era critério de excelência. E Maquiavel, que estudou o poder na sua expressão mais nua, não se cansou de advertir que a reputação pode ser fabricada, mas que nenhum príncipe sobrevive apenas da aparência – precisa de astúcia para governar e do consenso real para chegar ao poder, e ali se manter.

    O problema, no fundo, é que os tempos estão para raciocínios fáceis destinados a plateias crédulas, convertendo a notoriedade em critério absoluto, como se o simples eco de um nome fosse suficiente para lhe conferir substância. As redes sociais, essas ágoas vivas, promovem a ilusão de que tudo se mede por números e estatísticas superficiais. Assim, se uma sondagem diz que alguém é reconhecido, não pode a propaganda transformar isso em inevitabilidade eleitoral. Se assim fosse, a Cristina Ferreira e o Tony Carreira disputar-se-iam na segunda volta das Presidenciais, e o José Castelo Branco debateria políticas públicas com os grandes estrategas da Nação.

    Diante de tamanha balbúrdia intelectual, que resta senão rir? Rir como riram os senadores romanos de Nero; rir como riram os cortesãos de Luís XIV quando o rei dançou vestido de sol; rir como riu Voltaire dos dogmas do seu tempo. Porque, ao fim e ao cabo, a política portuguesa já nem se veste de tragédia grega, onde até há um sentido de destino inexorável. Transformou-se sim num teatro burlesco, em commedia dell’arte, com personagens tão previsíveis como risíveis e com truques tão grosseiros como pueris.

    E não há como, fazendo cair o pano, acabar com esta farsa.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas

    N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.