Quatro anos depois, Filipe Froes, o ‘marketeer das farmacêuticas’, ainda não ganhou vergonha


Quatro anos depois, Filipe Froes continua igual a si mesmo: sem ética nem vergonha.

No processo judicial que ele intentou contra mim, cujo julgamento decorre no Campus da Justiça de Lisboa, falou-se hoje, manhã e tarde, em vários dos textos que sobre ele escrevi em 2021, razão pela qual estou ali a responder como arguido.

Filipe Froes, um dos médicos portugueses com mais ligações à indústria farmacêutica, mantém-se como consultor da DGS e com intenso palco mediático.

Dos vários textos (quase uma vintena), chamou-me a atenção este – considerado difamatório (logo se verá na sentença) pelo Ministério Público, a Ordem dos Médicos e, claro, o doutor Filipe Froes —, escrito em 27 de Agosto de 2021, e que reza assim:

“[Filipe Froes] não quer admitir que há uma evidente e flagrante diferença entre Lei e Ética, e que a existência de transparência (por imposição legal) não significa a existência de Ética; em muitos casos a transparência somente revela que não se tem nem Ética nem vergonha na cara. O Doutor Filipe Froes pode e tem o direito de aproveitar a sua inteligência e saber para angariar palestras e serviços de farmacêuticas. Longe de mim limitar esse seu objectivo, conquanto que ele não esteja a dar palestras e a prestar serviços às farmacêuticas durante o período em que deve estar a exercer as suas funções, pagas pelo SNS, de director de serviços do Hospital Pulido Valente. Não pode é o Doutor Filipe Froes achar que é só a sua inteligência e saber que fazem as farmacêuticas contratarem os seus serviços. Se porventura o Doutor Filipe Froes se demitisse – como deve e me parece de irremediável caminho – das suas funções de consultor da DGS (e aliás, convinha conhecer os seus pareceres, sobretudo as eventuais recomendações para aquisição de fármacos), de membro do painel de especialistas da Comissão Técnica de Vacinação e de líder do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos, prevejo que as solicitações das farmacêuticas se reduziriam… E mais ainda se reduziriam as solicitações e pagamentos se o Doutor Filipe Froes – que sempre se apresentou como um especialista isento e falando apenas ‘baseadas na melhor evidência disponível e independente’ (blá blá blá) – começasse a ser apresentado como consultor de farmacêuticas quando fosse convidado para falar aos media… Por exemplo, quando ele recomenda que se compre mais vacinas para a gripe, deveria ser apresentado também como consultor da Sanofi… Bom, talvez a própria Sanofi não gostasse disso. A discrição é a alma dos bons negócios.

Post integral publicado no Facebook em 27 de Agosto de 2021

Ironias da vida: hoje mesmo, o doutor Froes publica no Diário de Notícias um artigo de opinião, “Gripe ou Flu a mesma solução: vacinar!”, onde apela fervorosamente à vacinação no seguimento de um alerta do ECDC — o centro europeu de prevenção e controlo das doenças — sobre uma nova mutação do subtipo H3N2. Alega que tal mutação implica uma “provável menor efectividade da vacina”, mas garante, paradoxalmente, que “o objectivo deste alerta é reforçar a preparação e aumentar as taxas de vacinação, sobretudo nas pessoas com 65 ou mais anos, que tendem a sofrer maior impacto pelo subtipo H3N2”.

Nada tenho contra apelos à vacinação — desde que feitos com transparência. E que o médico não funcione como marketeer. Porém, Froes reincide no seu velho hábito: esconde o essencial e funciona como ‘delegado de propaganda médica’. De facto, tal como sempre fez durante a pandemia – em que escondia as suas relações com farmacêuticas que beneficiavam dos seus conselhos junto da administração de saúde, neste seu texto no DN identifica-se simplesmente como “doutorado em Saúde Pública e membro do Conselho Nacional de Saúde Pública”.

E omite, obvia e descaradamente, as suas relações financeiras com a Sanofi, principal fornecedora de vacinas da gripe. E não se diga que, ao menos oficialmente, tais ligações são pequenas. Eis apenas os registos deste ano (seria fastidioso revelar a de todos os anos conhecidos) dos financiamentos da Sanofi: 5.942,06 euros pela participação no Scientific Meeting on Influenza (por quatro dias em Viena); 1.698,94 euros pela participação nas Jornadas de Medicina Geral e Familiar; 1.130,74 euros por uma palestra no Flu Summit 2025; e mais 1.070,10 euros pela participação no Congresso de Pneumologia do Centro-Ibérico.

Artigo do Diário de Notícia em papel onde Filipe Froes se identifica como “Doutorado em Saúde Pública e membro do Conselho Nacional de Saúde Pública” para falar sobre vacinas da gripe, sendo que este ano a Sanofi lhe pagou quase 10 mil euros, incluindo uma viagem a Viena de Áustria.

Tudo somado, apenas um relance do “gato escondido com o rabo de fora”. A estratégia é antiga: nunca, jamais, em tempo algum, Froes revela as suas ligações às farmacêuticas enquanto exibe as credenciais públicas. E não se pense que este padrão é apenas doméstico.

Agora, pavoneia-se ele por ser membro do Advisory Committee on Public Health Emergencies da União Europeia — um comité que, em regra, é zeloso quanto à transparência dos conflitos de interesses. Mas, chegada a ficha do doutor Froes, nada consta: apenas autorizou a divulgação da última página (a sexta de seis), sem qualquer informação sobre as suas ligações comerciais.

Convém notar que, entre os 44 peritos desse comité, 34 revelam os seus conflitos; 10 optam por esconder. Froes, coerente consigo mesmo, integra o segundo grupo – daqueles que esconde.

person holding orange and white plastic bottle

Neste aspecto, Froes é coerente na escuridão e na falta de vergonha. Até para me meter em tribunal, por lhe dizer umas verdades, decidiu poupar no advogado. Quem está a pagar a conta é a Ordem dos Médicos.

Afinal, quem aufere um salário público de director de serviços num hospital público e uns 50 mil euros anuais de pagamentos oficiais de farmacêuticas prefere que os honorários de patrocínio para perseguir judicialmente um jornalista seja distribuídos pelos seus colegas médicos. Isto não é para qualquer um…