Os fariseus do jornalismo


O jornalismo constrói-se sobre um princípio simples: a busca dos factos e da verdade factual. Para isso, o verdadeiro jornalista, antes de ser escritor, é um investigador: recolhe documentos, analisa informação, ausculta testemunhos, consulta especialistas e contacta entidades sempre que tal seja necessário para confirmar dados ou esclarecer dúvidas.

Neste processo, confirmar factos pode, ou não, implicar ouvir os visados. Mas ouvir os visados não serve para confirmar factos em si mesmo, porque estes têm, à partida, uma posição subjectiva, por vezes bastante enviesada, que procuram até, em muitos casos, deturpar ou tentar desmentir factos verdadeiros recolhidos com base em documentação e outros elementos objectivos. As palavras ditas são maleáveis, manipuláveis – e tem de ser o faro jornalístico a determinar, após a recolha de outros meios de prova, se haverá necessidade de recorrer à auscultação do visado.

André Carvalho Ramos: a ERC lava mais branco…

Aliás, defendo que nem sempre é aconselhável ouvir os visados em casos polémicos: nem sempre acrescenta rigor; e, por vezes, até o prejudica. Dar o mesmo relevo à opinião do visado – que nada acrescenta para o conhecimento da verdade – e ao facto indesmentível pode lançar uma falsa dúvida no leitor, transformando um elemento comprovado numa suposta controvérsia.

Isto não significa, longe disso, que nunca se ouçam os visados. Seria absurdo defender isso. Aquilo que se defende é que ouvir um visado é uma decisão editorial — tão útil na esmagadora maioria dos casos quanto dispensável noutros. Não é uma imposição legal nem sequer uma exigência deontológica. Ouvir o visado não é qualquer espécie de obrigação fundada num alegado “direito ao contraditório”.

A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e, tristemente, o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas insistem, porém, em tratar este procedimento técnico – o de auscultar um visado – como um “direito de contraditório” erigido a dogma regulatório. E fazem-no mesmo quando os factos são públicos, auto-evidentes ou comprovados documentalmente — alguns, até, baseados em declarações anteriores do próprio visado.

Por exemplo: se um jornalista anuncia publicamente que vai participar num curso de media training incompatível com o Estatuto do Jornalista — como sucedeu com André Carvalho Ramos, pivot de um canal televisivo por cabo — e outro jornal noticia esse facto, que sentido teria “ouvi-lo” apenas para cumprir um pseudo-imperativo de um “direito ao contraditório” que não existe na lei? O facto estava assumido pelo próprio, estava já publicado anteriormente na imprensa, documentado. Ouvi-lo seria irrelevante. Exigir que fosse ouvido antes da publicação da notícias seria absurdo, porque permitiria ao visado negar uma evidência com o mesmo destaque da evidência.

Chegados aqui, eis a verdade crua: o “direito de contraditório” é um termo que não existe como direito autónomo no ordenamento jurídico português no contexto do jornalismo. Não está na Lei de Imprensa, não está no Estatuto do Jornalista, não está no Código Deontológico. A ERC e o Conselho Deontológico não citam nenhuma norma porque não a podem citar. Inventaram o conceito. Fantasiaram-no. E, não encontrando suporte normativo, produzem relatórios com malabarismos interpretativos, defendendo que tal direito estaria “implícito”. Implícito onde? Em que frase? Em que artigo? Fica sempre por demonstrar.

O que existe, e apenas isso, é o direito de resposta e de rectificação, exercido após a publicação e regulado de forma clara e restrita. O resto é imaginação regulatória. A ERC tenta transformar uma prática editorial — útil em certas circunstâncias, desnecessária noutras — numa obrigação universal, aplicável mesmo quando o jornalista dispõe de documentos autênticos, muitos assinados pelo próprio visado, ou de observações directas e inequívocas que não carecem de comentário adicional. Pouco lhe importa que a ausência de auscultação prévia nada altere quanto à verdade factual.

O resultado desta imposição à força de um “direito de contraditório” — que permite ao visado, em muitos casos, preparar uma resposta estratégica para mitigar o impacto da notícia, funcionando quase como uma contra-narrativa antecipada — é uma tentativa de redefinir o jornalismo como uma actividade dependente da vontade do visado, tornando impossível qualquer investigação séria.

Mais grave: esta invenção terminológica é agora usada para classificar como “violação do rigor informativo” qualquer notícia que desagrade ao poder ou às corporações, mesmo quando assente em provas irrefutáveis. O truque é simples: não se contestam os factos; acusa-se o jornalista de não ter cumprido um “contraditório” imaginário. É o expediente perfeito para quem prefere silenciar, intimidar ou adiar o escrutínio público.

O PÁGINA UM conhece bem esta táctica abusadora da ERC, que é safadamente reincidente. Investigamos com documentos, relatórios oficiais, pareceres, registos públicos, e-mails e comunicações assinadas pelos próprios protagonistas. Mas para a ERC nada está bem: insiste no relambório da ficção jurídica do contraditório, concedendo “trunfos” até a jornalistas promíscuos como André Carvalho Ramos, que agora até apresenta um programa ao lado de Pedro Costa, filho de António Costa e actual director-geral da empresa de comunicação onde o pivot da CNN Portugal anunciou dar aulas de media training. Seria cómico, não fosse trágico: nunca nenhum tribunal desvalorizou um documento autêntico por falta de contraditório. Só a ERC seria capaz de semelhante alquimia.

Aquilo que está em causa não é doutrina; é liberdade. Se um jornalista tem de telefonar ao visado para “equilibrar” documentos autênticos, então está condenado a produzir notícias anémicas, domesticadas, inócuas — notícias que servem o visado, não o público.

Helena Sousa, presidente da ERC.

Obviamente, as repetidas deliberações da ERC – um regulador que não cumpre as suas verdadeiras atribuições no combate às promiscuidades na imprensa e que esconde documentos numa obscuridade incompreensível – moem, mas estão longe de vergar o PÁGINA UM. São actos administrativamente inócuos, ao nível do bitate de um treinador de bancada, e vindos de um regulador cuja presidente tem um passado jornalístico pouco superior ao medíocre.

Por isso, continuaremos a cumprir a lei e a deontologia, mas não aceitaremos deveres que a lei não contém. A ERC e o seu séquito podem continuar a inventar o que quiserem — mas não conseguirão impor aos jornalistas aquilo que não tem existência jurídica. Pelo menos aqui no PÁGINA UM.