Eu, (mesmo) arguido, denuncio


Esta quinta-feira, no Campus de Justiça, com a primeira de sete audiências, começa o meu julgamento que resultam de duas queixas-crime que, apesar de formalmente autónomas, nascem do mesmo caldo corporativo e político: o almirante Henrique Gouveia e Melo, a Ordem dos Médicos, o seu ex-bastonário Miguel Guimarães, e os médicos Filipe Froes e Luís Varandas decidiram que eu, Pedro Almeida Vieira, mereço estar sentado no banco dos arguidos, acusado de difamação e calúnia. E o Ministério Público foi atrás, sem sequer se incomodar sobre as notícias com factos que fui escrevendo sobre os visados ao longo destes anos.

Não deixa de ser irónico — e, para quem tem sentido crítico, também esclarecedor — que este duplo processo judicial tenha sido brandido, noutro julgamento em curso, como ‘prova’ de que eu seria um ‘difamador intratável e profissional, alguém que deve ser silenciado judicialmente. Uma espécie de delinquente da palavra, um perigo social armado em jornalista. Eis o primeiro sinal: os lobos, quando querem parecer ovelhas, uivam em coro sobre a “honra” ferida.

Mas vamos aos factos — porque são eles, sempre eles, que sustentam o meu trabalho.

Quem é, afinal, o arguido?

Sou o mesmo cidadão e jornalista que lutou três anos para obrigar a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) a libertar 38 milhões de registos hospitalares dos últimos 25 anos — dados essenciais para escrutínio científico e jornalístico, indevidamente escondidos pelo Estado. A minha luta resultou numa sentença, em dois acórdãos e numa sanção pecuniária compulsória dirigida pessoalmente aos quatro membros do Conselho Directivo.

Sou também o cidadão que recorreu à Justiça por mais de duas dezenas de vezes para defender o direito constitucional de acesso à informação pública, vendo até o Conselho Superior da Magistratura — imagine-se — resistir ilegalmente à entrega de documentos. Neste caso, só cedeu quando uma sentença do Tribunal Administrativo ameaçou, novamente, com um sanção compulsória o próprio presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Cura Mariano.

Sou ainda o jornalista que, ao longo de quatro anos, escreveu críticas e investigações fundamentadas em documentos, análises estatísticas rigorosas, conhecimento académico e escrutínio independente — num país onde a transparência continua a ser vista como afronta, e onde certos poderes só aceitam elogios, nunca perguntas.

woman holding sword statue during daytime

A ironia dos processos

Dizem que os processos judiciais são cegos a conveniências. Permitam-me sorrir. Aqui, a ironia é demasiadamente luminosa para ser ignorada.

A queixa da Ordem dos Médicos e dos seus três digníssimos representantes — Miguel Guimarães, Filipe Froes e Luís Varandas , que se assumem como funcionários públicos para nem sequer pagarem custas de justiça nem honorários dos advogados— nasce directamente de uma intimação que apresentei em 2022 para aceder aos documentos operacionais e contabilísticos da campanha “Todos por Quem Cuida”. Uma campanha com mérito, sem dúvida, mas envolvida em indícios sérios de contabilidade paralela, fuga ao fisco e declarações falsas — matéria sobre a qual, pasme-se, ainda se aguarda decisão do Ministério Público sobre as ilegalidade cometidas por, entre outros, a própria ministra da Saúde.

Ora, a primeira vez que soube que os três médicos e a Ordem me queriam criminalmente perseguir foi… no meio desse processo administrativo.

Na ausência de argumentos legais, tentaram convencer um juiz do Tribunal Administrativo de Lisboa de que eu não deveria ter acesso aos documentos da campanha porque estaria, alegadamente, ‘a perseguir’ os senhores doutores escrevendo sobre as suas ligações à indústria farmacêutica durante a pandemia. A tentativa foi tão ridícula quanto reveladora: queriam impedir um direito cívico através de uma acusação pessoal fantasiosa.

Ana Paula Martins e Miguel Guimarães foram dois dos gestores (em conta pessoal) da campanha “Todos por quem cuida”: a participação criminal contra o director do PÁGINA UM foi feita para tentar evitar o acesso aos documentos.

O Tribunal, naturalmente, não foi na conversa.

Mas a Ordem dos Médicos tem bolsos profundos — ou melhor, tem as quotas de todos os médicos, que financiam estas aventuras — e a queixa criminal seguiu viagem, permitindo que os três “ofendidos” se pudessem exibir como vítimas da minha suposta maldade.

E o almirante?

Quanto ao almirante Gouveia e Melo, a sua queixa existe apenas porque, ao analisar os documentos da mesma campanha — entregues por ordem judicial — encontrei evidências de negociações entre ele e o então bastonário Miguel Guimarães para vacinar médicos não prioritários, ao arrepio das normas da Direcção-Geral da Saúde (DGS), envolvendo uma compensação monetária ao Hospital das Forças Armadas.

À data, lembre-se, Gouveia e Melo era adjunto do Planeamento do Estado-Maior-General das Forças Armadas, o que torna a operação ainda mais sensível.

Relatei factos. Apresentei documentos. Registos de e-mails. E, por isso, estou hoje aqui: arguido.

A reputação em julgamento?

Durante as sete audiências, sei bem o que me espera.
Sei que tentarão descredibilizar o meu carácter, a minha idoneidade, o meu profissionalismo. Que tentarão transformar três décadas de jornalismo rigoroso, três licenciaturas, um mestrado, um doutoramento em curso, dezena e meia de livros e zero máculas profissionais numa caricatura de “delinquente digital”.

Nada disso me surpreende. Quando o poder é confrontado com factos, tenta destruir o mensageiro.

Gouveia e Melo

Uma fé racional na Justiça

Apesar de tudo, acredito na Justiça. Critico-a, sim — porque não está acima da crítica, e nunca poderá estar numa democracia madura. Mas acredito na Justiça porque, ao longo dos últimos anos, recorri a ela mais de vinte vezes para defender direitos fundamentais: acesso à informação, transparência, fiscalização do poder público.

E ganhei grande parte dos casos. Ganhei repetidamente, quando a derrota seria o mais natural, por cansaço. E é por isso que aqui estou: porque me querem calar porque incomodo, e querem incomodar-me com julgamentos contínuos até me convencerem que não vale a pena denunciar. Aviso que ainda estão longe dessa vitória.

Se for condenado…

Não vou dizer aqui que estou inocente — a “inocência” é a palavra usada para quem se tem de defender de uma suspeita de culpa, e eu jamais aceitarei esse enquadramento. Não estou aqui para me limpar de suspeitas: estou aqui porque, com a permissão e consentimento do Ministério Público, me acusam de difamação e calúnia, porque, tendo eu confiado nos belos princípios da Constituição de uma República democrática, escrevi com base em documentos, investiguei factos, confrontei poderes e cumpri o meu dever de jornalista e cidadão.

Mas se, porventura, hélas, vier a ser condenado, antecipo já que parafrasearei Galileu Galilei — que, em boa verdade, nunca disse a frase que lhe é atribuída, apócrifa embora célebre.

Marble statue of a bearded man holding scroll

Dizem que, depois de forçado a renegar o heliocentrismo, Galileu murmurou: “E, no entanto, move-se.”

E eu direi então:

“E, no entanto, investiguei.”
“E, no entanto, revelei.”
“E, no entanto, era verdade.”

Porque, tal como a Terra não deixou de girar só porque a autoridade no século XVII assim o exigia, também os factos não deixam de existir porque incomodam ordens, almirantes ou corporações no século XXI.

Por tudo isso, eu, mesmo arguido, denuncio.

E continuarei a denunciar.

Porque esse é — e será sempre — o meu dever.

***

AGENDA DO JULGAMENTO

1) 20 de Novembro – 09h00

(com eventual continuação às 14h00)
– Declarações do arguido Pedro Almeida Vieira
– Declarações dos Assistentes da Ordem dos Médicos:
 • Bastonário Carlos Cortes
 • José Miguel Ribeiro de Castro Guimarães


2) 25 de Novembro – 09h00

(com eventual continuação às 14h00)
– Declarações dos Assistentes:
 • Luís Filipe Froes
 • Luís Manuel Varandas
 • Henrique Gouveia e Melo


3) 27 de Novembro – 09h00

(com eventual continuação às 14h00)
– Inquirição das três testemunhas de acusação
 (processо 144/23.0T9LSB)


4) 2 de Dezembro – 09h00

(com eventual continuação às 14h00)
– Inquirição das primeiras oito testemunhas do PIC
 (processо 1076/22.5T9LSB)


5) 4 de Dezembro – 09h00

(com eventual continuação às 14h00)
– Inquirição das restantes sete testemunhas do PIC
 (processо 1076/22.5T9LSB)


6) 9 de Dezembro – 09h00

(com eventual continuação às 14h00)
– Inquirição das três testemunhas de defesa
 (processо 144/23.0T9LSB)
– Inquirição de duas testemunhas de defesa
 (processо 1076/22.5T9LSB)


7) 11 de Dezembro – 09h00

(com eventual continuação às 14h00)
– Inquirição das últimas cinco testemunhas de defesa
 (processо 1076/22.5T9LSB)
– Demais actos da audiência