O Relatório Preliminar do Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários (GPIAAF) sobre o acidente do Elevador da Glória de 3 de Setembro hoje revelado pode e deve ser confrontado com todo o trabalho de investigação do PÁGINA UM – e que demonstra a virtude do jornalismo independente. Confronte-se aquilo que diz o relatório com aquilo que fomos revelando desde o dia do acidente:
O que o relatório estabelece, em pontos-chave
1) Onde e como falhou o sistema? A ruptura do cabo ocorreu dentro do destorcedor do trambolho superior da cabina 1, a poucos centímetros da pinha (soquete) de amarração. A análise macroscópica realizada pelo GPIAAF mostra roturas progressivas dos arames (degrau a degrau, ao longo do tempo). Após a libertação, formou-se a meio do traçado um laço no sentido de torção — assinatura típica de rotação acumulada. Este ponto de ruptura não era visível numa inspeção convencional sem desmontar o destorcedor.

2) Que cabo estava montado? O cabo era um 6x36WS-FC, grau 1960, 32 mm, torção Lang direita (zZ), com alma de fibra sintética. Entrara em serviço a 1 de Outubro de 2024; à data do acidente tinha 337 dias. Embora a sua carga mínima de rupttura (662 kN) fosse “largamente suficiente” para a carga do sistema, não estava conforme com a especificação interna da Carris para o Ascensor da Glória e, mais grave, o certificado do fabricante proibia o uso com destorcedor — exatamente o que existe no Glória.
3) Porquê a incompatibilidade com destorcedor? A norma EN 12385-3 classifica cabos que não são resistentes à rotação e não devem trabalhar com extremidades livres de girar (caso de destorcedores). O cabo 6x36WS-FC enquadra-se nesse grupo; o certificado entregue ao operador também o dizia. Nada disto foi considerado na recepção e aplicação do cabo.
4) A pinha (soquete): defeitos internos e método empírico. Radiografias às duas pinhas do trambolho, realizadas pelo GPIAAF, onde a ruptura ocorreu detectaram zonas menos densas e vazios numa delas. A execução das pinhas seguia um processo empírico histórico, registado num “caderno antigo” da Carris fora do sistema documental, sem norma interna específica para preparação do cabo, composição da liga, ensaios ou critérios de aceitação. O procedimento não cumpria os preceitos das normas EN 12927 (instalações por cabo – requisitos de segurança) e EN 13411-4 (terminações metálicas/resina), que exigem preparação, qualificação e inspeções periódicas à zona da pinha.

5) Sequência operacional e falência da redundância. Após a ruptura do cabo no acidente do Elevador da Glória, a cabina 1 acelerou pela calçada; o guarda-freio actuou corretamente, mas os freios não imobilizaram o veículo. O primeiro embate, já com descarrilamento e tombamento parcial, deu-se entre 41 e 49 km/h, cerca de 20 segundos após o início de movimento. A cabina 2 recuou e ficou presa no limite inferior. O relatório descreve um sistema de frenagem cuja eficácia não estava assegurada para o cenário de falha de cabo, sem ensaios regulares para esse caso.
6) Manutenção, aceitação e qualidade. Existia um plano de manutenção, mas os registos nem sempre correspondiam ao executado. A MNTC actuava de facto como “mão de obra” sob orientação da Carris. Não houve ensaios/controlo após a execução das pinhas nem inspeções magneto-indutivas que cobrissem os últimos 2 metros junto às terminações. Em 2024–25 ocorreram ainda dois incidentes (colisão da cabina 1 nas escadas e embate com veículo de manutenção) que solicitaram anormalmente o cabo e as fixações.
7) Compras e especificação do cabo: o desvio de 2022. A investigação do GPIAAF documenta como, numa consulta lançada para o Elevador de Santa Justa, foram adicionados os artigos do Glória/Lavra e acabou contratualizado (e depois rececionado e aceite) um tipo de cabo divergente da especificação interna da Carris para o Elevador da Glória (que pedia 6x19S-IWRC gr1770, admitindo 6x19S-FC gr1770 como alternativa). Desde Dezembro de 2022 passou a ser usado no Glória o cabo 6x36WS-FC gr1960 zZ, não conforme com a especificação. O primeiro desses cabos durou 601 dias sem incidentes registados; o segundo foi o do acidente.

8) Enquadramento legal e supervisão pública. O relatório do GPIAAF reconstrói a “zona cinzenta” jurídica que deixou os Elevadores da Glória e Lavra fora da supervisão regular do IMT/ANSF, ao contrário da Bica e de Santa Justa. Mas afirma explicitamente que nada impedia a aplicação adaptada de regras e supervisão efetiva — por iniciativa do operador ou do IMT — e recomenda agora um quadro legislativo que cubra todos os funiculares e sistemas assimiláveis.
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Onde a nossa investigação bateu certo — e cedo
O Relatório Preliminar do GPIAAF hoje conhecido confirma, com linguagem pericial, o essencial do que o PÁGINA UM apurou e publicou entre 5 e 27 de setembro. Abaixo confrontamos, ponto por ponto, as constatações oficiais com as nossas peças — com títulos e datas — mostrando como o jornalismo independente chegou primeiro aos nós críticos desta tragédia.
1) O ponto de falha estava “escondido” — e nós avisámos
O GPIAAF localiza a ruptura dentro do destorcedor, a poucos centímetros da pinha/soquete, com rupturas progressivas e formação de laço por rotação acumulada — um local invisível numa inspeção visual sem desmontar. Já a 27/09/2025, explicámos que a questão decisiva não era “partir como corda velha”, mas ceder na união cabo–soquete, um ponto que exige processos e ensaios formais de selagem, e não meras rotinas visuais.
2) O cabo aplicado desde 2022 era de alma de fibra — e isso importa na amarração
O relatório descreve umcabo 6x36WS-FC, grau 1960, 32 mm, torção Lang (zZ), colocado 01/10/2024, com 337 dias de serviço — não conforme com a especificação da Carris e vedado pelo próprio certificado a uso com destorcedor. Em 22/09/2025, mostrámos a viragem de 2022 de IWRC (alma de aço) para CF (alma de fibra), e revelámos as facturas, e a poupança de 43%, sublinhando que o risco não estava na carga mínima de ruptura (CRM) nominal, mas no comportamento em serviço na amarração. Em 25/09/2025, detalhámos por que a CF é mais vulnerável à compactação e à perda de eficácia no soquete.

3) Incompatibilidade cabo–destorcedor-soquet: a regra técnica que foi ignorada
O relatório preliminar do GPIAAF regista que o próprio certificado do cabo proibia o trabalho com extremidade livre para girar (destorcedor), pelo facto de o cabo não ser resistente à rotação — justamente o caso do 6x36WS-FC. Na nossa leitura técnica (27/09/2025) já alertávamos para a eventual não conformidade normativa das terminações e da compatibilidade geometria–material, por serem determinantes na segurança.
4) Pinha executada por “método empírico” e sem ensaios — aquilo que denunciámos
Radiografias revelaram vazios internos numa das pinhas e um procedimento transmitido por “caderno antigo” da Carris, sem norma, sem ensaios e sem critérios de aceitação. A 27/09/2025 já escrevêramos que a selagem não é artesanato: exige materiais, provas de carga e qualificação em linha com as normas europeias de segurança. A ausência destes controlos deixava o sistema exposto.
5) Falhou a redundância: travões que não param sem o cabo
O guarda-freio (que morreu no acidente) actuou, mas os travões não imobilizaram a cabina; o primeiro embate deu-se entre 41–49 km/h, cerca de 20 segundos após a rutura do cabo. Nunca se ensaiou o cenário de falha de cabo. Em 05/09/2025, denunciámos a “inspeção por olhómetro” feita sem parar o equipamento (tempo real de paragem: 00:00:00), sem testes funcionais sob carga; e em 06/09/2025 provámos que o caderno de encargos nem exigia ensaios mecânicos ou não destrutivos ao cabo. Revelámos também em 13/09/2025 que, ao contrário do que sucedia na Carris, a manutenção no Porto, feita para os eléctricos dos STCP também pela MNTC, eram muitíssimo mais exigentes.

6) Manutenção e aceitação: registos formais ≠ trabalho real
O GPIAAF aponta registos que não batiam com as tarefas, formação sobretudo on-the-job, ausência de ensaios após execução das pinhas e inspeções magneto-indutivas que não cobriam os últimos 2 metros junto à terminação; documenta ainda incidentes em 2024–25 que solicitaram cabo e fixações. A 08/09/2025, revelámos a opacidade documental (sem relatório de instalação de 2024, sem prova de qualificações) e exigimos traçabilidade técnica e ensaios de aceitação. Em 06/09/2025, expusemos o modelo de manutenção reduzido a checklists visuais e a ausência de prescrições técnicas para desmontagens/medições/ensaios.
7) Compras e especificação: o pivot de 2022 ficou provado
O GPIAAF reconstruiu o processo que levou à escolha, para o elevador da Glória, de um cabo de alma de fibra em 2022. Em 22/09/2025, já tínhamos ligado os pontos: 2020 (cabos IWRC com certificação EN 12385-8) vs 2022 (CF), com uma poupança de 43% no preço e dúvidas de certificação — uma poupança ilusória com custos de segurança. Em 25/09/2025, identificámos a decisão de topo (de Tiago Lopes Faria, então presidente da Carris e professor do Instituto Superior Técnico) em 2022 e a ausência de ensaios/pareceres prévios à mudança.
8) Enquadramento legal e supervisão: a “zona cinzenta” não desculpa ninguém
O relatório do GPIAAF explica por que os elevadores da Glória e Lavra ficaram fora da supervisão regular do Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres (IMT), mas acrescenta que nada impedia regras e supervisão adaptadas. Em 11/09/2025, demonstrámos que a substituição do cabo é alteração significativa: exige projecto, plano de ensaios, análise de segurança independente e autorização prévia do IMT, além de documentação e inspeções periódicas.

9) Quem tinha a incumbência de trocar o cabo — e quem o fez
Revelámos em 08/09/2025 que a substituição do cabo era incumbência contratual da MNTC, sem prova pública de que a equipa tivesse as certificações exigidas. A Carris nunca respondeu e confirmou-se agora que foram técnicos da empresa municipal que procederam á substituição sem garantias de cumprimento das normas.
Linha do tempo das nossas publicações (antes do relatório)
- 05/09/2025 — Elevador da Glória: do OK ao KO, ou crónica da inspecção por olhómetro
- 06/09/2025 — Elevador da Glória: caderno de encargos da manutenção não exigia qualquer ensaio mecânico ao cabo que colapso
- 08/09/2025 — Cabo do elevador da Glória: Carris esconde relatório de instalação em 2024 e não revela fornecedor
- 11/09/2025 — Lei exigia que a substituição do cabo do elevador da Glória tivesse autorização e concordância do Instituto da Mobilidade e dos Transportes
- 13/09/2025 — Carris vs. STCP: manutenção pela MNTC é uma ‘balda’ em Lisboa mas rigorosíssima no Porto
- 22/09/2025 — Cabo de aço do elevador da Glória custou 7.783 euros em 2020, mas Carris decidiu depois ‘poupar uns cobres’
- 25/09/2025 — Mais flexíveis mas mais vulneráveis na amarração: cabos de alma de fibra foram escolha de um professor de Engenharia Mecânica
- 27/09/2025 — Elevador da Glória: o que se sabe, o que eles escondem e o que você precisa (já) de saber
Balanço
O relatório preliminar corrobora o núcleo das nossas revelações: cabo errado e não conforme, incompatível com destorcedor e aplicação no soquete; falha na terminação com método empírico; manutenção/aceitação deficitárias; e supervisão pública omissa onde devia existir. A diferença é que hoje tudo isso vem escrito na gramática da peritagem. O jornalismo do PÁGINA UM chegou lá antes, e continuará acompanhar este caso para que o acidente da Glória modifique práticas e responsabilidades.