Democracia autárquica: manual de boas aparências


No passado dia 12 de Outubro, o país engalanou-se uma vez mais para a grande missa cívica do regime: as eleições autárquicas, pomposamente designadas como “a festa da democracia”. As televisões rejubilavam com a coreografia das urnas, os comentadores fingiam sabedoria enquanto contavam votos como quem conta indulgências, e o povo, esse bom crente da religião republicana, acorreu em romaria a depositar no altar do sufrágio o seu grão de fé.

Tudo se passou com a serenidade das cerimónias litúrgicas: filas ordeiras, abraços entre adversários, promessas de redenção municipal e, por fim, o hino à maturidade democrática. É nestas alturas que o português se sente súbdito e rei, explorado e soberano, escravo e legislador.

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Em cada concelho reergueram-se os mesmos santos do panteão local, as mesmas estátuas humanas de betão armado, cuja biografia mistura expediente administrativo com génio do compadrio. Voltou, claro, o senhor Isaltino, apóstolo penitente das finanças municipais, a provar que em Portugal a ressurreição é um direito constitucional.

O povo de Oeiras, magnânimo e distraído, deu-lhe nova unção eleitoral, como se a passagem por Évora fosse um estágio em virtude. Em Loures, Almada, Matosinhos e outros reinos menores da república, sucederam-se idênticos milagres de reeleição, como se a eternidade tivesse assento no orçamento camarário. São os mesmos de sempre, com o mesmo ar de sacristia e o mesmo zelo missionário pelo erário público.

No tempo do rei absoluto, sabíamos quem roubava. Tinha nome, brasão e barriga. Se abusasse dos tributos, arriscava-se a ser pendurado num poste, espectáculo moral que a modernidade suprimira por indecoroso.

Com a democracia, porém, o ladrão perdeu corpo e ganhou instituição. Já não há gordos a quem lançar a corda, há departamentos e secretarias. O saque tornou-se anónimo, e a pilhagem, regulada por decreto. A moral fiscal converteu-se em dogma patriótico: quem paga é virtuoso, quem recebe é indispensável, e quem rouba em nome do bem comum é apenas gestor de interesses superiores.

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A nação divide-se em dois bandos que fingem não se ver – os que produzem e são espoliados e os que vivem e são sustentados – mas o regime chama-lhes apenas cidadãos, e até lhes concede a mesma cruzinha no boletim, essa hóstia de papel que legitima o festim.

Chamam a este ritual a “festa da democracia”, expressão que cheira a mofo parlamentar e vinho verde institucional. Dizem-nos que é o menos mau dos regimes, fórmula que só um povo resignado poderia aceitar como elogio. É o mesmo que preferir a febre à peste. Todavia, o que é, no fundo, esta democracia que veneramos?

Uns dizem que é o governo do povo, outros que é o povo a escolher quem governa. Uns crêem que decide o destino, outros que escolhe apenas o carrasco. No primeiro caso, dispensaríamos o parlamento; no segundo, bastaria um sorteio. Assim se constrói o paradoxo: o povo é soberano, mas a soberania não lhe pertence; manda por delegação, e obedece por costume.

Como se não bastasse essa ambiguidade, a vontade popular depende ainda da geometria dos mapas. Uma linha mais a norte ou mais a sul, um círculo maior ou menor, e a maioria muda de dono. A soberania, afinal, é uma questão de régua e compasso. Um governo eleito pela perícia do cartógrafo. A vontade do povo é como a água: toma a forma do recipiente.

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Os democratas entusiastas costumam dizer que a maioria tem o direito de se separar da minoria, como a Catalunha de Espanha, mas calam-se quando a minoria dentro da maioria quer separar-se dessa maioria maior. É a velha contradição que conduz, por degraus lógicos, ou à tirania universal ou à liberdade individual.

Ou admitimos que o indivíduo possa separar-se da comuna e esta do Estado, ou acabamos todos numa prisão planetária de sufrágios perpétuos. A democracia moderna sonha com um governo mundial, isto é, com um cárcere cosmopolita onde todos votam e ninguém escapa.

Também nos dizem que o sistema proporcional é mais justo, mais representativo, mais científico. Pura charlatanice. A justiça das urnas é tão arbitrária como a dos deuses antigos: depende da fórmula usada no templo. Com os mesmos votos se fazem maiorias ou coligações, vitórias ou derrotas, regimes estáveis ou pandemónios ministeriais. O sufrágio é um oráculo de conveniência.

Depois há a apoteose tecnológica. Com o milagre das aplicações, o povo poderia hoje votar em tudo – no IRS, na imigração de terceiro mundo, na saúde, no número de feriados. Mas ai de quem o proponha: logo surge a objecção de que o povo é ignorante, incapaz de compreender assuntos complexos.

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A mesma multidão que é sábia para escolher governantes é estúpida para escolher políticas. Eis o raciocínio circular que sustenta a república moderna: o eleitor é competente no Domingo, quando elege, e imbecil no Sexta-Feira, quando seria chamado a decidir.

Quanto à independência dos juízes, outro dogma do catecismo democrático, bastaria lembrar que quem nomeia os tribunais é quem governa, e quem governa é quem legisla. A toga, outrora símbolo de severidade, é hoje capa de funcionário. A justiça vive do orçamento e o orçamento vive de voto; logo, a independência é uma ficção orçamental.

O eleitor comum, esse santo anónimo do regime, não conhece quem elege. Vota em rostos, em sorrisos, em que promete “casas grátis”, em que promete um futuro radiante, cheio de coisas “grátis”. Julga mérito por simpatia, competência por fotogenia. Um médico não escolheria o seu cirurgião por cartaz, mas o povo escolhe assim o seu primeiro-ministro. A democracia é o único regime onde a ignorância é virtude e a frivolidade, método.

Quando tudo o mais falha, invoca-se o argumento da paz. Dizem que a democracia evita o sangue porque substitui a bala pelo boletim de voto. É meia-verdade que soa a piedade. A história mostra que os regimes de sufrágio universal produziram tantas ou mais guerras que as monarquias, mais brutais, com muito mais carnificina. A diferença é que agora os exércitos partem com mandato popular. O voto não aboliu a violência, apenas a terceirizou.

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A democracia não é um valor moral, apenas um instrumento. Serve tanto ao socialista que sonha com a igualdade como ao libertário que sonha em ver-se livre do bandido estacionário. É um martelo: tanto prega o prego como estilhaça a cabeça. No entanto, há quem veja nela uma divindade capaz de criar o bem do nada.

Mas eis o escândalo que o democrata não suporta ouvir: se o povo, por esmagadora maioria, elege um tirano que decide abolir as eleições, então tal tirania é, segundo o próprio princípio democrático, legítima. A vontade do povo abole a própria vontade do povo – e o regime morre aplaudido. É a serpente a devorar o próprio rabo, entre vivas à liberdade.

E o que dizer da contradição entre a democracia e o socialismo, esse casamento impossível de uma multidão com uma forca. Pois num regime socialista, o partido no poder – detendo os empregos, a imprensa, os tribunais e os subsídios – destruiria economicamente os seus opositores antes que estes pudessem disputar o voto. A igualdade seria mantida pela fome.

Se isto parece uma hipótese teórica, basta visitar certas autarquias portuguesas, esses laboratórios domésticos de planificação: o presidente distribui cargos, o vereador adjudica contratos, o primo recebe avenças e o opositor político descobre que o concurso público tinha critérios retroactivos. A democracia municipal é a caricatura perfeita do socialismo: um partido, todos os cofres, e um boletim de voto a legitimar o saque.

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O “povo”, essa entidade metafísica que o regime invoca em cada frase, não existe senão como ficção. Existem indivíduos, cada qual com a sua vontade, o seu suor e o seu bolso. A vontade do povo é apenas a soma algébrica de obediências, uma criação estatística que confere majestade ao saque. Quando um governo expropria, fá-lo em nome dessa entidade invisível; quando mente, diz que foi mal interpretado por ela; quando falha, declara que o povo não compreendeu o seu génio.

Assim se cumpre o ciclo. O eleitor, submisso, acredita que manda; o eleito, hipócrita, finge que obedece; o Estado, voraz, come os dois. A democracia é o sistema que transforma o roubo em virtude, o suborno em política e a servidão em dever patriótico.

No tempo dos reis, sabíamos onde morava o ladrão. Hoje mora em nós, disfarçado de consciência cívica e orgulho nacional. O voto, essa moeda de fé, é o selo da nossa obediência. O povo deposita o boletim como quem confessa o pecado, e sai da urna absolvido. Mas ao contrário da confissão, aqui o perdão é para o ladrão, não para o penitente.

Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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