A fortuna de Dino d’Santiago: em cinco anos, Estado dá-lhe 1,6 milhões de euros para ‘empoderamento social’


No final de 2021, Dino d’Santiago — o músico português nascido no Algarve mas com orgulhosas raízes cabo-verdianas — dizia ao Observador: “Hoje já me sinto merecedor de tudo.” E tem sido isso mesmo que sucedeu a Claudino Jesus Borges Pereira, hoje com 42 anos.

Ao sucesso musical, Dino d’Santiago somou o reconhecimento político, tendo sido, em 2023, condecorado com a Medalha de Mérito Cultural, é agora membro da Comissão para a Igualdade e Luta Contra a Discriminação Racial e até do Conselho Geral da Universidade de Aveiro . Tudo isto muito por ter assumido um papel de relevância pública nos projectos sociais em que se envolveu, sobretudo nas áreas da raça e da discriminação. Publicou recentemente o livro Cicatrizes, com prefácio da escritora (e conselheira de Estado) Lídia Jorge, e recebeu ainda um convite para conceber uma ópera “estrelada” no Centro Cultural de Belém, numa encomenda da Bienal de Artes Contemporâneas. Por isso, é amiúde visto em companhia de figuras públicas e de poder.

Dino d’Santiago com Carlos Moedas em Osaka, numa acção social da Mundu Nôbu, que levou um jovem á Exposição Mundial de Osaka: Foto: DR.

Mas há outro lado da história: Dino d’Santiago tem sido copiosamente apoiado, como poucos, pelos poderes públicos. E o apoio não é apenas de solidariedade e ‘pancadinhas nas costas’. É com ‘txeu dinheru’ – como se dirá na ilha de Santiago para ‘”muito dinheiro”. Com efeito, ao longo dos últimos cinco anos, Dino d’Santiago tem conseguido implementar, graças à sua popularidades nos corredores da política, um modelo de financiamento que, sendo formalmente escorreito, choca pelas verbas envolvidas.

Na passada terça-feira, o PÁGINA UM revelou que, através da associação Mundu Nôbu — que fundou em finais de 2023 e que preside, sem se conhecerem outros membros da direcção além de Liliana Valpaços —, Dino d’Santiago conseguiu garantir, nos últimos 13 meses, 481 mil euros de duas empresas municipais (Gebalis e EGEAC) para a prestação de serviços sociais e para dois espectáculos musicais contratualizados por valores inflacionados. Mas essa era apenas uma parte da história.

Uma investigação mais aprofundada nos últimos dias apurou que, de forma directa e indirecta, desde 2021, Dino d’Santiago já garantiu muito mais em subsídios e contratos públicos: quase 1,6 milhões de euros, grande parte através de uma empresa da qual é o único sócio.

Ligações privilegiadas ao poder não têm trazido apenas capacidade de intervenção, mas também muito dinheiro. Foto: DR.

Antes de fundar a associação Mundu Nôbu — nome retirado do álbum homónimo de 2018 —, o músico criou, em 2019, a empresa unipessoal Batuku Roots, com sede em Albufeira, que incluía, além das actividades musicais, o arrendamento de imóveis e a comercialização de vestuário e brindes. Contudo, foi em Lisboa, e sobretudo a partir de 2021, que a empresa começou a facturar em grande escala.

Nesse ano, ainda com fortes limitações impostas pela pandemia — período em que muitos artistas foram severamente penalizados —, a Câmara Municipal de Lisboa entregou-lhe 250 mil euros de subsídio para lançar um projecto online denominado “Lisboa Criola”. No mesmo ano, o Turismo de Portugal, no âmbito das medidas de mitigação dos efeitos económicos da pandemia, concedeu-lhe mais de 20 mil euros.

Em 2022, já sem restrições sanitárias, o projecto de Dino d’Santiago manteve-se activo, centrando-se num festival de música com workshops e conferências durante três dias. Resultado: mais 250 mil euros atribuídos à Batuku Roots, valor que, segundo as demonstrações financeiras consultadas pelo PÁGINA UM, representou praticamente a totalidade das suas receitas desse ano. E, como não há duas sem três, em 2023 a empresa de Dino d’Santiago voltou a receber 250 mil euros da autarquia liderada por Carlos Moedas. Nesse exercício, a Batuku Roots registou receitas de 346 mil euros, não se sabendo se os cerca de 100 mil euros adicionais provêm de actividade empresarial ou de outros subsídios públicos.

Em três edições da ‘Lisboa Criola’, uma das quais online, a empresa unipessoal de Dino d’Santiago, a Batuku Roots, recebeu 750 mil euros da autarquia liderada por Carlos Moedas.

Na lista de entidades subvencionadas em 2024 pela autarquia de Lisboa, a Batuku Roots já não surge, mas a razão parece simples: com a criação da associação Mundu Nôbu no final de 2023, Dino d’Santiago deslocou as suas atenções e passou a beneficiar de um estatuto ainda mais privilegiado nos corredores do poder — deixando de necessitar de apresentar candidaturas e passando a celebrar contratos directos com a Câmara de Lisboa, através da Gebalis e da EGEAC. Entre 2024 e 2025, essas contratações já totalizam 481 mil euros.

A associação Mundu Nôbu recebeu ainda, em Setembro de 2023, um apoio adicional de 314.863 euros no âmbito do Portugal Inovação Social, destinado a um projecto de “empoderamento e capacitação de jovens afrodescendentes” com duração de três anos. O projecto é um dos que a autarquia de Lisboa apoiou este ano.

Contas feitas, e não tendo sido possível confirmar se houve outros financiamentos por outras entidades públicas de menor dimensão, Dino d’Santiago obteve, através da empresa e da associação, cerca de 1,6 milhões de euros em apoios e contratos públicos desde 2021, sendo que no caso da Mundu Nôbu a verba de subsídios atinge quase 800 mil euros. E a autarquia de Lisboa é, de longe, o principal financiador:Ç mais de 1,2 milhões de euros, entre a Batuku Roots e a Mundu Nôbu. No caso da associação, são também divulgadas mais de uma dezena de entidades privadas como parceiras, designadamente o Banco BPI, a Fundação La Caixa, o BNP Paribas, a Fundação Calouste Gulbenkian, a FNAC, a Emerald Group, a PwC, a Microsoft, a IKEA, a Worten, a Randstad, a Euro M e o ISPA. Mas nada se indica sobre os montantes envolvidos ou se se trata de prestação de serviços ‘pro bono’.

Concerto do ano passado, que incluiu uma conferência, que deu à Mundu Nôbu 130 mil euros pagos pela EGEAC. Como artista, Dino d’Santiago recebe, por norma, menos de 20 mil euros.

Contactados novamente a associação Mundu Nôbu e Dino d’Santiago, houve desta vez resposta — embora evasiva. O PÁGINA UM quis saber o valor total dos financiamentos públicos obtidos desde 2021, quer através da associação, quer da empresa, bem como as respectivas proveniências. Foi ainda questionado se, dado que a Batuku Roots deixou de receber financiamento da autarquia em 2024, Dino d’Santiago passou a prestar serviços remunerados à associação Mundu Nôbu. Reiterou-se também o pedido de relatório e contas de 2024 — que já deveriam estar aprovados até Março —, bem como a lista de membros dos órgãos sociais e o número de associados, informações que continuam a não ser divulgadas.

Em resposta individual, Dino d’Santiago afirmou que “a Batuku Roots é a empresa onde desenvolvo a minha actividade profissional e artística, sendo a Mundu Nôbu uma associação privada sem fins lucrativos, no âmbito da qual procuro, enquanto cidadão, contribuir com o meu empenho cívico, social e solidário”. Garantiu ainda que “até à data, nem eu, nem a minha empresa ou qualquer familiar meu, recebemos qualquer verba por parte da Mundu Nôbu”, acrescentando que, “pelo contrário, tal como a minha co-fundadora Liliana Valpaços, aloquei verbas significativas na Mundu Nôbu, a título pessoal”.

Contudo, sem relatório e contas aprovados nem documentos contabilísticos disponíveis, esta declaração não é comprovável. O PÁGINA UM voltou a questionar Dino d’Santiago sobre os montantes que ele e a sua parceira Liliana Valpaços supostamente alocaram à associação, e que modelo contabilístico foi usado, mas não houve ainda resposta.

O empoderamento de jovens tem incluído visitas de Dino d’Santiago e dos jovens dos projectos da Mundu Nôbu à Presidência da República. Foto: DR.

Já na resposta conjunta de Dino d’Santiago e Liliana Valpaços, enquanto representantes da associação Mundu Nôbu, foram repetidos os mesmos argumentos, e acrescentaram que, quanto às informações financeiras e plano de actividades, “agindo com a transparência que caracteriza a associação, após aprovação em Assembleia Geral, o que se prevê ocorrer a curto prazo, aquela poderá ser disponibilizada para consulta, verificados os pressupostos para tal aplicáveis”.

Importa salientar que os planos de actividades devem ser elaborados no início do ano a que dizem respeito, e os relatórios e contas de um determinado exercício têm de ser aprovados até Março do ano seguinte. Ora, já passaram mais de seis meses do prazo.

Uma associação não está obrigada à mesma transparência que uma empresa privada – e esse modelo está cada a enraizar-se mais -, mas o facto de a Mundu Nôbu receber avultados apoios públicos coloca-a sob a alçada da Inspecção-Geral das Finanças e do Tribunal de Contas, para eventual verificação da boa aplicação dos dinheiros públicos.

Acresce ainda que, recebendo já mais de 800 mil euros em tão pouco tempo, a associação aparenta ser uma estrutura fechada, porque repetidamente Dino d’Santiago não responde aos pedidos de divulgação dos membros dos distintos órgãos sociais. E o facto de, por lei, uma associação não poder distribuir lucros, tão não significa que esteja impedida de desviar receitas através de fornecimentos de serviços ou mesmo remunerações dos seus dirigentes.

Site do Mundu Nôbu com informações genéricas e sem qualquer menção aos órgãos sociais nem ao plano de actividades nem a contas. A equipa não inclui sequer o nome da directora executiva, Liliana Valpaços, e Dino d’Santiago surge como fundador, não havendo indicação dos órgãos sociais.

E apesar de não terem respondido a parte das questões nem revelado documentos sobre a associação — que, mesmo admitindo mérito social, se mantém envolta em opacidade —, Dino d’Santiago e Liliana Valpaços deixam um aviso ao PÁGINA UM: “Gostaríamos de sublinhar que qualquer informação que venha a ser veiculada em canais públicos com carácter difamatório, ofensivo ou contrária à realidade dos factos, bem como os prejuízos, designadamente financeiros, da mesma decorrentes, serão tratados em sede própria. Não pode a Mundu Nôbu permitir que uma missão que se quer humanitária seja alvo de qualquer acção de descredibilização, com impacto em todos os que para a mesma contribuem.

Ou seja, uma associação que já recebeu quase 800 mil euros de dinheiros públicos foi convidada por um jornal a mostrar transparência e, em vez disso, ameaça com um processo judicial – algo que, aliás, pode ser até patrocinada pela pbbr — Sociedade de Advogados, outra das parceiras do Mundu Nôbu.