Nos últimos 13 meses, a associação Mundu Nôbu, presidida pelo músico Dino D’Santiago e gerida pela sua parceira Liliana Valpaços, conseguiu encontrar um verdadeiro mundo novo de financiamento público através de alegadas prestações de serviços a empresas municipais de Lisboa.
À margem dos habituais concursos e candidaturas públicas, a que estão sujeitas dezenas de organizações não-governamentais, a associação criada no final de 2023 pelo músico residente no Algarve, mas com forte projecção mediática na capital, já conseguiu firmar, desde Agosto do ano passado, quatro contratos directos com estruturas da Câmara Municipal de Lisboa, no montante global de 481 mil euros (equivalente a 385 mil euros acrescidos de IVA).

O expediente foi simples: em vez de subsídios ou apoios sujeitos a regras de concurso, a Mundu Nôbu passou a figurar como prestadora de serviços, assinando contratos de aquisição directa — ora para a execução de projectos sociais com a Gebalis, empresa municipal de habitação, ora para a organização de concertos a preços manifestamente inflacionados com a EGEAC, responsável pela gestão cultural da cidade.
O primeiro grande contrato surgiu em Agosto do ano passado, quando a EGEAC assinou com a recém-criada associação um acordo de 130 mil euros para a “concepção, coprodução e apresentação ao público do Festival Mundo Novo 2024”. O evento, integrado nas Festas na Rua, foi apresentado com o tema “A interculturalidade portuguesa no topo do Spotify”, mas, na prática, resumiu-se a uma conferência com Dino D’Santiago e convidados, seguida de um concerto nocturno na Praça do Município, com actuações de Dino D’Santiago, Irma, Soluna, Crioulo, Maro e Bateu Matou. Pelas imagens disponíveis, o público presente não terá ultrapassado o milhar de pessoas, embora o evento tenha contado com a presença do presidente da autarquia, Carlos Moedas.
O ritmo de contratos acelerou este ano. Em Junho, a Gebalis adjudicou à Mundu Nôbu um contrato de 20 mil euros, por ajuste directo, para um projecto de intervenção comunitária denominado “O Teu Lugar no Mundo”, destinado a jovens entre os 14 e os 22 anos. A descrição contratual era vaga: realização de reuniões semanais de duas horas com até 160 participantes, divididos por grupos. Não há registos fotográficos nem informação sobre o local de realização das sessões, mas a empresa municipal pagou integralmente a verba correspondente a oito encontros, uma vez que o contrato teve a duração de 60 dias. Curiosamente, o valor adjudicado coincidiu com o limite máximo legal que dispensa concurso público.

Mal terminou esse contrato, a Gebalis renovou a prestação de serviços por mais doze meses, agora no valor de 125 mil euros, sob a designação “fase de desenvolvimento”. Este novo acordo, celebrado em Agosto, foi classificado como uma “contratação excluída” — expressão que, na prática, significa um procedimento fora das regras habituais da contratação pública, situação de legalidade duvidosa no contexto deste serviço. Assim, um apoio temporário transformou-se num contrato anual que assegura mais de 10 mil euros mensais à associação de Dino D’Santiago, com cláusulas invulgares.
Mais do que um instrumento de intervenção social, o contrato revela-se um veículo de promoção da própria associação. De acordo com o documento, e sob o pretexto de “articulação” com a empresa municipal, prevê-se a realização de visitas mensais aos bairros para “apresentar o projecto e convidar jovens e famílias a conhecer a Mundu Nôbu”, bem como a produção de conteúdos digitais com menções expressas à entidade.
Em vez de actividades concretas e metas mensuráveis, o contrato estabelece uma rotina de reuniões, relatórios e intercâmbios vagos, que acabam por servir sobretudo para dar visibilidade e notoriedade à associação beneficiária, mais do que para gerar resultados tangíveis junto dos moradores dos bairros municipais.

O quarto e mais recente contrato foi assinado no passado dia 19 de Setembro, novamente com a EGEAC, para a coprodução e apresentação do “Mundo Nôbu Experience 2025”, por um valor total de 110 mil euros. O evento, previsto para 12 de Novembro no Capitólio, está descrito apenas como um “concerto” entre as 20h30 e as 23h00. O documento não especifica o conteúdo artístico, nem há qualquer referência a orçamentos detalhados. Curiosamente, nem o Capitólio, nem a EGEAC, nem a Agenda Cultural de Lisboa incluem o espectáculo nas respectivas programações, o que levanta dúvidas quanto à efectiva execução do contrato.
Mais surpreendente ainda é o contraste entre estes valores e os cachês de Dino D’Santiago. Nos últimos anos, os concertos do músico, de ascendência cabo-verdiana, têm oscilado geralmente abaixo dos 20 mil euros. A Câmara de Lisboa pagou-lhe 6.000 euros em 2018, no âmbito da Moda Lisboa; em 2019, recebeu 5.500 euros da Associação Vicentina, 17.000 euros da Câmara de Alcobaça e 15.000 euros da de Aveiro (num espectáculo conjunto com Branko). Em Viana do Castelo o valor foi de 10.500 euros, na Figueira da Foz de 5.000 euros, e apenas em Albufeira, sua região natal, atingiu o valor excepcional de 71.400 euros no ano passado. Em 2024, só se encontra um contrato público de espectáculo, com a Câmara de São João da Madeira, no montante de 9.000 euros.
A associação Mundu Nôbu parece, assim, ter descoberto um modelo engenhoso: usar uma figura pública de grande visibilidade para obter financiamentos públicos regulares, com um modelo de gestão pouco transparente, sem depender de candidaturas competitivas ou de voluntariado associativo. Apresentando-se como uma organização sem fins lucrativos, actua de facto como uma estrutura profissional, concentrada e opaca. Apesar de se afirmar aberta a novos sócios, apenas duas figuras estão visivelmente associadas ao projecto: Dino D’Santiago, presidente, e Liliana Valpaços, responsável pela execução dos contratos e, desde o ano passado, alegadamente remunerada após uma alteração estatutária.

O PÁGINA UM contactou por duas vezes a associação Mundu Nôbu, solicitando esclarecimentos sobre as contas do exercício de 2024, o plano de actividades dos seus dois anos de existência, os órgãos sociais e o número de sócios efectivos. Não houve qualquer resposta — talvez por se entender que não é necessário prestar contas à imprensa quando se gerem dinheiros públicos.
No site da associação surge a equipa da Mundu Nôbu constituída por uma psicóloga, uma responsável pela comunicação e marketing, um responsável administrativo e financeiro e três monitores. Nada consta de relatórios, nem os nomes dos órgãos sociais (direcção, assembleia geral, conselho consultivo e fiscal único), nem planos de actividades. Apenas se exibem fotografias genéricas e frases inspiracionais sobre “interculturalidade” e “empoderamento”.
Não há sequer referências a eventos realizados nem a iniciativas futuras, e mesmo o anunciado concerto de 12 de Novembro no Capitólio permanece envolto em silêncio. Já a lista de parceiros institucionais e privados é extensa e bem exposta — mais de uma dezena —, uma espécie de convite da Mundu Nôbu para se apoiar uma história de sucesso: só com sorrisos, palmadinhas das costas, dinheiro público… e sem questionamentos.