A Comissão Nacional de Eleições (CNE), presidida pelo juiz-conselheiro Santos Cabral — antigo director da Polícia Judiciária — recusa comentar e revelar se adoptará alguma posição sobre o patrocínio da secção regional do Norte da Ordem dos Engenheiros (OERN), através do pagamento de 25 mil euros, à realização de quatro debates autárquicos promovidos pelo Jornal de Notícias (JN) com candidatos às presidências das Câmaras Municipais do Porto, Braga, Viana do Castelo e Bragança, mas cujo contrato excluía alguns dos partidos concorrentes.
Apesar de três mensagens de correio electrónico enviadas pelo PÁGINA UM desde quarta-feira terem sido confirmadas como recebidas pelos serviços da CNE, não houve qualquer resposta deste organismo independente quanto à legalidade e oportunidade da iniciativa. A menos de um dia das eleições, o silêncio da entidade fiscalizadora deixa sem escrutínio um modelo inédito — e potencialmente perigoso — de “debates patrocinados” em plena campanha. E abre portas, no futuro, para ‘modalidades’ ainda mais promíscuas e desviantes.
Como o PÁGINA UM revelou, o JN introduziu nesta campanha uma “inovação”: debates financiados por um terceiro, que assume a definição dos temas a discutir. No caso, a OERN celebrou mesmo um contrato público para estabelecer as condições dos debates, tendo estes se centrado em exclusivo nos temas da “habitação” e “mobilidade”. A cláusula contratual, firmada entre a OERN e a Notícias Ilimitadas (proprietária do JN), limitou convites a forças com representação nas Assembleias Municipais, provocando exclusões em todos os concelhos abrangidos.

No Porto, por exemplo, apenas 8 das 12 candidaturas estiveram no palco; em Braga, participaram 7 de 10; em Viana do Castelo a CDU ficou de fora; em Bragança subiram ao debate 4 de 7 listas. Para além de condicionar temas e formato, o financiador viu ainda assegurada visibilidade institucional: o presidente da OERN, Bento Aires, foi o centro das atenções, sendo até fotografado no meio dos candidatos.
O carácter polémico destes debates patrocinados decorre de três planos. Primeiro, a natureza da OERN: sendo uma associação pública profissional que exerce poderes públicos (inscrição, disciplina, regulação profissional), está sujeita a legalidade, imparcialidade, prossecução do interesse público e neutralidade institucional. Financiar debates com candidatos, em período eleitoral, pode colidir com a neutralidade e condicionar o pluralismo.
Segundo, a parceria com um órgão de comunicação social, remunerada e com temas predeterminados, fere a necessária separação entre jornalismo e patrocínio, agravada pelo facto de o conteúdo ter sido divulgado em formato informativo e moderado por um ex-jornalista com funções comerciais, o que suscita dúvidas de incompatibilidade ética e autonomia editorial. Terceiro, as exclusões de candidaturas legalmente admitidas afectam a igualdade de oportunidades entre concorrentes, princípio basilar da disputa eleitoral.

Questionado pelo PÁGINA UM, Bento Aires, líder da OERN, justificou por escrito que “a Engenharia está envolvida no desenvolvimento das autarquias em diferentes dimensões”, garantindo, contra o que resulta do contrato, que “todos os candidatos (…) foram convidados”. E assegurou que os debates decorreram “com total imparcialidade e isenção”. Porém, nem nos vídeos alojados nas páginas do JN e da OERN, nem nas peças de enquadramento, é referida a existência de patrocínio remunerado nem a interferência do financiador na escolha de temas. Esse défice de transparência é grave em qualquer circunstância; em campanha, é inaceitável.
Perante este quadro, qual deveria ser o papel da CNE? De acordo com as suas competências, esta Comissão tem o dever de zelar pela regularidade dos actos eleitorais, assegurar a igualdade de tratamento das candidaturas e vigiar a neutralidade das entidades públicas, emitindo recomendações e deliberações quando detecta riscos para a liberdade de voto, a isenção informativa e a equidade. Pode ainda instar correcções imediatas e encaminhar ocorrências para a competente actuação contra-ordenacional quando aplicável.
Num contexto em que uma entidade do sector público financia debates e define regras de participação e temas, esperar-se-ia, no mínimo, um esclarecimento célere sobre se é compatível com a lei eleitoral e com os princípios de neutralidade e igualdade que um patrocinador externo seleccione temas e, por via contratual, condicione quem pode ou não subir ao palco.

A urgência de uma posição não é meramente formal. O precedente criado pela OERN e pelo JN abre a porta a que, no futuro, associações empresariais, ordens públicas, fundações ou grupos sectoriais ditem, mediante pagamento, as agendas de debate e o perímetro dos convidados em plena campanha. Se hoje foram “habitação” e “mobilidade”, amanhã poderão ser interesses agrícolas, energéticos, imobiliários ou securitários, com o risco de privatizar a agenda pública e moldar a cobertura informativa segundo quem paga. O mercado dos debates substitui a mediação editorial e o interesse público por contratos comerciais, dissolvendo a fronteira entre informação e publicidade em matéria eminentemente política.
Recorde-se que, além das exclusões, houve ganhos de imagem para o financiador: a marca da OERN esteve permanentemente associada aos debates, e o seu presidente apareceu em destaque ao lado dos candidatos. Os encontros foram moderados por um quadro comercial do grupo de media, circunstância que aumenta a percepção de promiscuidade entre áreas comerciais e conteúdos editoriais. Tudo isto, em período de campanha, quando a legislação e as boas práticas impõem especial rigor.