A Universidade de Braga e o taberneiro Monteiro


A universidade deveria ser um espaço de saber e decantação, onde o pensamento se eleva pela dúvida e o confronto de ideias se faz com argumentos, não com insultos. Mas a academia contemporânea, minada por egos frágeis e pelo culto da visibilidade digital, transformou-se num antro de maledicência — um mercado de vaidades onde se confunde opinião com autoridade e onde a inveja se disfarça de erudição. Já não se disputa a verdade; disputa-se a atenção. E o que deveria ser diálogo científico converte-se em guerrilha tribal, em que o ódio se exibe em nome da virtude.

Nos últimos anos, as universidades multiplicaram equipas interdisciplinares na área da comunicação, reunindo sociólogos, filósofos, jornalistas e tecnólogos. Tal diversidade, em princípio, enriqueceria o pensamento. Mas implica, por isso mesmo, uma responsabilidade acrescida. Quem trabalha no campo da comunicação deve compreender que as palavras têm peso, que a reputação é um bem público e que o rigor não se desliga à porta do campus. Não se pode ser investigador meticuloso de dia e taberneiro digital à noite. A liberdade académica não é licença para difamar.

Eis que surge o caso paradigmático do senhor João Lourenço Monteiro, licenciado e mestre em Biologia e doutorado em História e Filosofia das Ciências — um percurso respeitável, até se conhecer o uso que faz dele. Monteiro estudou a produção e circulação do conhecimento médico no Instituto de Medicina Tropical durante o Estado Novo, recorrendo, diz-se, a ferramentas de Humanidades Digitais. Integra o Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho, uma das principais unidades de investigação do país nesta área.

E, talvez crente na sua própria infalibilidade, decidiu exercitar o insulto público, deixando no perfil da historiadora Irene Pimentel a seguinte proclamação:

“O Página Um é uma plataforma de desinformação que surgiu há poucos anos para apoiar uma narrativa contra as medidas de contenção à COVID. Não é um jornal imparcial, portanto não leve a sério o que lá é escrito.”

Comentário de João Monteiro que consta como investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho

Não conheço — nem reconheço — mérito científico a João Monteiro, até porque isso nem é o mais relevante. Mas levo estas suas palavras a sério, não pelo seu conteúdo, que é miserável, mas pela sua origem: um investigador associado a uma universidade pública (Universidade de Braga) e a um centro dedicado precisamente ao estudo da comunicação (Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade) proclama publica e gratuitamente que um jornal independente é uma “plataforma de desinformação”.

As suas afirmações não são um mero desabafo de rede social; são uma acção discursiva que fere o princípio da integridade académica, pois difundem falsidades em nome de uma autoridade institucional. Quando um académico abdica da dúvida e abraça o insulto, não apenas degrada a sua credibilidade: compromete a da instituição que o acolhe.

Presumo — com generosidade académica — que o doutor Monteiro tenha aplicado um método, um quadro teórico, uma amostra e uma análise de conteúdo para concluir, com tão firme convicção, que o PÁGINA UM é “uma plataforma de desinformação”. Talvez, entre cafés e indignações digitais, tenha cruzado palavras-chave, medido enviesamentos ou estruturado um modelo conceptual digno da Nature Human Behaviour. Ou talvez não. Talvez — quem sabe — estas conclusões “científicas” do taberneiro Monteiro nada tenham a ver com ciência, mas antes com os ódios de estimação que o PÁGINA UM tem suscitado em certos círculos académicos.

João Monteiro, á direita, investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho ‘decretou’ que o PÁGINA UM é uma “plataforma de desinformação“. Foto: DR

Não será certamente o caso — Deus nos livre de tal coincidência — que esta súbita vocação inquisitorial derive do incómodo que o PÁGINA UMA tem causado a alguns nomes em destaque no próprio CECS, como a doutora Helena Sousa, actual presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, instituição que, curiosamente, continua a resistir com zelo quase bíblico às ordens judiciais que a obrigam a libertar documentos públicos requeridos por este jornal.

Seria injusto suspeitar que a animosidade se alimenta do simples facto de o PÁGINA UM não ser um órgão domesticado — e, portanto, mais difícil de controlar pela cartilha institucional. Não, deve ser tudo fruto de uma sofisticada inferência empírica, construída com os instrumentos mais rigorosos da epistemologia minhota.

Eis o drama da academia contemporânea: nela habitam muitos doutores do conhecimento e poucos senhores do carácter. A instrução multiplica-se, mas a verticalidade definha. O título de doutor já não é penhor de honra — é apenas ornamento de vaidade. E o que vemos, demasiadas vezes, é o triste espectáculo de investigadores que dominam teorias, citam autores e publicam papers, mas não distinguem verdade de intriga, nem probidade de conveniência. São letrados na superfície e miseráveis na substância: confundem inteligência com esperteza, e confundem autoridade com soberba.

Que valor tem, afinal, o saber, quando o seu portador é incapaz de o exercer com decência? Que utilidade possui a ciência, quando se usa o prestígio universitário para lançar lama, e não luz? A mediocridade ética tem hoje estatuto de normalidade, e o insulto académico faz carreira nas redes sociais com a mesma leveza com que se troca um “like”. É o triunfo do investigador sem gravidade moral, do estudioso que conhece todas as teorias da comunicação, menos a da sua própria responsabilidade.

E assim, entre publicações indexadas e financiamentos competitivos, floresce um novo tipo de intelectual: o erudito da calúnia, versado em bibliografia mas desprovido de vergonha. São eles os novos inquisidores do debate público, que medem a virtude pela conformidade ideológica e confundem a crítica com blasfémia. Talvez João Monteiro se veja nesse espelho — mas temo que não reconheça o reflexo. Afinal, a vaidade académica é uma lente deformante: quanto mais se olha, menos se vê.