Gil Vicente 2.1


Há quem me acuse, e com razão, de sofrer de um problema crónico de pontualidade. Admito-o sem resistência, embora com um pequeno pedido de contexto: eu, que tantas vezes chego tarde, nunca falho uma promessa. Se digo que vou, vou. E é aí que nasce o meu outro problema — o da assiduidade. Porque, sendo pontualmente atrasado, sou assiduamente presente. E, assim, como uma pescadinha de rabo na boca, lá vou eu: presente mas atrasado, assíduo mas em cima do apito. Só que, ultimamente, nem isso. A minha pontualidade, já de si vacilante, entrou em colapso existencial.

A verdade é que, nesta época, o atraso ganhou corpo, fôlego e até uma certa dimensão metafísica. Tenho chegado tão tarde que já nunca assisto ao ritual aéreo da Glória — ou da Vitória, ou da Luz, já me baralho entre as águias — nem tão-pouco me cruzo com uma delas no elevador, como acontecia noutros tempos em que o atraso era ainda um luxo de minutos. Agora, é uma eternidade.

Entre o excesso de trabalho, o excesso de jogos e a crónica pressa de quem quer fazer tudo e acaba por fazer quase nada a tempo, os meus atrasos tornaram-se sistemáticos. E esta época já são mais os golos do Benfica que perdi do que os que vi, sobretudo porque até tem havido golos iniciais, e depois minga tudo. Um número triste, quase estatístico.

O caso mais doloroso foi, talvez, o jogo com o Qarabag. Um desastre desportivo – e para mim muito pior: não vi um único golo do Benfica. Quando finalmente subi as escadas e alcancei a bancada — aos 15 minutos —, já o marcador registava 2-0 a favor do Benfica. Depois, foi o que se viu — e eu vi. Um duplo (ou triplo) murro no estômago. Não há timing que resista a isto.

Desde então, parece que o destino decidiu ensinar-me que, quanto mais corro para chegar a tempo, mais o tempo foge. Porque, desde essa partida, o que tenho visto é só desgraça, mesmo com o José Mourinho, mostrando que até eu arriscaria a não fazer pior.

E assim sucedeu mais um atraso com o jogo do Gil Vicente – e mais uma desgraça, apesar da sorte de um resultado de 2-1 a favor do Benfica, muito lisonjeiro face ao desempenho. Tinha regressado do Porto na tarde anterior, exausto, depois de um julgamento tão bizarro que só a tragicomédia portuguesa o poderia engendrar. Ainda tive de passar por um concerto – menos mau, ou muitíssimo bom, para ser sincero.

Esta sexta-feira, o corpo pedia repouso, a mente clamava por pausa, mas a agenda — essa entidade diabólica — já tinha decidido por mim. Enfim, os dias atropelam-se, as horas evaporam-se e o relógio parece conspirar. Há um momento, aliás, em que dou por mim a pensar — com um certo temor — que o trabalho mata. Mata o descanso, mata o tempo livre e, sobretudo, mata a capacidade de chegar antes do minuto quinze.

Mas a pior parte nem foi essa. Ao chegar ao estádio, com mais de meia hora decorrida da primeira parte, e o resultado (sem eu o saber então) já feito (o Gil Vicente adiantou-se aos 11 minutos e o PAVlidis deu a reviravolta aos 18 e 26 minutos), soube que uma agência de comunicação — a JLMA — me boicotara uma cacha sobre a Impresa. Uma irritação monumental. O corpo cansado, a cabeça a latejar, o jogo correr e, ainda assim, havia notícia.

Respirei fundo e decidi: havia matéria para se escrever — e nãopodia ficar para a amanhã. Afinal, a Impresa tinha de comunicar à CMVM as negociações com os italianos da MFE — os herdeiros de Berlusconi, antigo dono do AC Milan — por se tratar de informação privilegiada.

Entre o som do público e o rumor de fundo das teclas, falei com a Elisabete e lá fomos redigindo o artigo, a meias — eu sentado na Varanda da Luz, com o portátil perto do famoso farnel do Benfica, metendo de vez em quando um olho no relvado, outro no ecrã, e um terceiro (imaginário) no relógio.

E foram nesses instantes, no meio desta fusão absurda entre futebol jogado pessimamente, jornalismo e cansaço, que me veio à mente uma das frases mais sombrias da História da Humanidade: Arbeit macht frei — “O trabalho liberta.”

A expressão, hoje impregnada de horror, nasceu num contexto muitíssimo menos macabro do que aquele que a imortalizou. Surgiu na Alemanha do século XIX, num tempo em que o trabalho começava a ser exaltado como instrumento de regeneração moral e de ascensão social.

O lema foi popularizado pelo escritor Lorenz Diefenbach, num romance publicado em 1873, intitulado precisamente Arbeit macht frei: Erzählung von Lorenz Diefenbach. Nele, o autor apresentava o labor como antídoto contra o vício e a degradação, um caminho para a virtude — a ideia de que o esforço dignifica e redime. Adoptada por movimentos culturais e associações laborais, a expressão ganhou o estatuto de máxima edificante: uma versão germânica do “pelo trabalho se vence”.

Foi, no entanto, essa mesma frase, esvaziada do seu sentido moral e apropriada pelo nazismo, que viria a adornar os portões de Auschwitz, Dachau e outros campos de concentração. Aí, transformou-se na mais cruel das ironias: aquilo que prometia dignidade passou a anunciar aniquilação. O trabalho já não libertava o espírito — esmagava o corpo; já não regenerava — exterminava. Tornou-se símbolo da perversão total da linguagem, prova de que até as palavras podem ser escravizadas.

Essa metamorfose semântica — da virtude à infâmia — mostra como as palavras têm destino, e como um ideal moral pode ser capturado e deturpado por uma ideologia que faz da mentira o seu alicerce.

Enfim, ali sentado na bancada, de portátil aberto e olhos divididos entre o relvado e a notícia sobre a Impresa, dei por mim — perante as contingências de mais um jogo deplorável, mesmo com Herr Mourinho nas redes — a cometer uma pequena heresia semântica: a paráfrase. Sim, arrisco dizê-lo — e que me perdoem os deuses da semântica e da História —, o trabalho liberta.

Mas liberta-nos de quê? No meu caso, libertou-me de ver um jogo confrangedor. Libertou-me da angústia dos passes errados, dos cruzamentos para o nada, dos remates à figura e das expressões perdidas de quem já não sabe o que fazer à bola. Aliás, nem sequer vi em directo o jogo anulado ao Gil Vicente por seis centímetros – uma dimensão completamente obtusa como escrevi em tempos.

Portanto, o trabalho libertou-me… de sofrer mais do que o necessário. Se não estivesse a escrever sobre a Impresa, teria sido tortura em directo. E assim, decidi que esta época vou passar a levar sempre um tema noticioso para a Varanda da Luz — um colete de salvação emocional. Se o Benfica tropeçar em campo, eu refugio-me no texto e poupo-me à agonia. Será a minha nova estratégia defensiva — mais eficaz do que qualquer lateral esquerdo improvisado.

E se algum dia conseguir convencer os benfiquistas a seguir este método, trabalhando para se anestesiarem do que se passa no relvado, acredito que o PIB nacional vai subir em flecha, invertendo o mito de que a Economia portuguesa se expande quando o Benfica é campeão.