Gustavo Carona vs. PAV: De pé no teatro da justiça


Tenho, talvez felizmente, pouca experiência em tribunais. Como arguido, tenho de recuar aos idos de 1998 — salvo erro — quando fui responder a um processo judicial em Amarante, movido pelo então presidente da autarquia local, Armindo Abreu. O motivo foi uma investigação jornalística publicada em 1997 na extinta revista Forum Ambiente — um ranking sobre o desempenho ambiental dos municípios, em que Amarante surgia na última posição.

O edil, ferido no seu orgulho, decidiu acusar-me de difamação, insinuando até que havia uma intenção persecutória contra Francisco Assis, então uma promessa em ascensão no Partido Socialista. Fui absolvido. E, já agora, dessa investigação resultaria um livro — Eco-Grafia do País — que acabou por ser de leitura obrigatória para as provas de acesso ao Centro de Estudos e Formação Autárquica em 1998.

O conteúdo do meu livro ‘Eco-Grafia do País Real’, aqui mostrado num programa televisivo da RTP em 1998, foi a causa para me sentar no ‘banco dos réus’ em Amarante há mais de 25 anos. Fui absolvido.

Depois disso, a minha relação com os tribunais foi escassa: servi de testemunha abonatória em dois ou três casos de difamação e, felizmente, os arguidos foram justamente absolvidos. Passaram-se, portanto, quase três décadas desde que estive pela última vez no denominado “banco dos réus”, diante de um juiz, de um procurador e de um advogado de acusação. Daquela primeira experiência mal recordo como prestei declarações. Sei, isso sim, que nesta quinta-feira, no Tribunal do Bolhão, reencontrei o cenário — mas agora, talvez por maturidade, percebi melhor como a própria configuração da sala e a disposição dos protagonistas desembocam numa desequilibrada forma de fazer Justiça.

Nos tempos modernos, a sala de audiências não deveria ser apenas o palco onde se decide a culpabilização ou a absolvição, mas um espaço de verdadeira justiça. E aí tudo falha: sobretudo na forma como os arguidos são tratados. Durante horas, permaneci de pé, separado da sala por uma estrutura de madeira, encarando uma janela demasiado luminosa, como se fosse parte de um teatro que insiste em conservar cenários herdados da Outra Senhora, ou até de tempos ainda mais recuados. E com uma garrafa de água que tinha de ter no chão por não haver sequer uma mesinha para a manter.

Esta teatralidade dos tribunais não é acidental. Herdámos disposições espaciais e coreografias de poder com raízes seculares. A posição da sala, a disposição dos intervenientes, a imposição do silêncio e da reverência: tudo isto é herança da Inquisição, que fazia da encenação parte essencial do julgamento. O arguido era colocado numa posição inferior — não apenas física, mas também simbólica — sob o olhar altivo dos julgadores, como se já estivesse condenado pelo simples acto de estar ali. O Estado Novo não corrigiu esse traço; pelo contrário, consolidou-o. E a democracia, com estranha indiferença, deixou-o permanecer.

‘Banco de réus’ no Tribunal do Bolhão, ontem antes da audiência. De pé, prestei testemunho, no triângulo…

Compreendo que, em processos de gravidade extrema — crimes violentos, ameaças à ordem pública, suspeitos perigosos —, possa haver necessidade de contenção e até de encenação dissuasora. Mas será aceitável que, em 2025, um arguido por difamação — ou, mais rigorosamente, por alegado abuso da liberdade de expressão e de imprensa — seja tratado com os mesmos mecanismos de humilhação simbólica de séculos atrás? Onde está o princípio moderno, humanista e constitucional da presunção de inocência?

Que sentido faz que eu, arguido, tenha de me defender em posição desconfortável, enquanto quem acusa e quem julga permanece comodamente sentado em cadeiras almofadadas, numa encenação que não serve a justiça, apenas a liturgia? E qual a razão para que em Portugal — ao contrário do que sucede em outros países europeus e americanos — os arguidos não possam sentar-se, depois do seu depoimento, ao lado dos seus mandatários legais, podendo prestar-lhes instruções ou esclarecer detalhes relevantes para a defesa?

Perguntei aos meus advogados, Miguel e Bruno Santos Pereira, se esta obrigação de permanecer de pé durante horas consta de alguma norma. A resposta foi clara: não. É apenas um hábito anacrónico, um resquício mantido apesar das queixas de muitos arguidos ao longo dos anos. E, no entanto, nada muda. Porquê? Por que razão se insiste neste ritual — que não é barroco, mas bacoco —, que mais não é do que um vestígio de uma justiça que ainda trata os cidadãos como súbditos e não como iguais perante a lei?

… enquanto os outros protagonistas (juíza, procuradora, advogada de acusação e os meus advogados) estiveram confortavelmente sentados. O oficial de Justiça tinha ao dispor uma cadeira de qualidade inferior, mas esteve sentado.

Ontem, em tribunal, desafiei a própria lógica deste estrambólico processo em que até sou acusado de 31 crimes de difamação, entre os quais ter criticado um péssimo poema de Gustavo Carona. Não requeri sequer a abertura de instrução, porque quis testar se, em Portugal de 2025, alguém que escrevesse exactamente o que eu escrevi sobre Gustavo Carona durante a pandemia — contestando a sua visão maniqueísta do mundo, onde acusava todos de “negacionistas” e não aceitava ser chamado de mentiroso, alarmista e demagogo — poderia ser condenado por difamação. O mínimo que se esperaria era que esse debate fosse feito em condições de igualdade e respeito. Mas não: a tradição dita que o arguido fique de pé, como se a postura confessasse a culpa antes mesmo do julgamento.

Ora, se o conceito de liberdade de expressão se molda e consolida com o tempo, acompanhando as exigências democráticas e os avanços de uma sociedade plural, também a justiça não pode ficar cristalizada em liturgias herdadas da Inquisição e do Estado Novo. Se a democracia evoluiu, se o jornalismo evoluiu, se os direitos fundamentais evoluíram, então é altura de mudar igualmente a teatralidade dos tribunais. O que se exige é uma justiça moderna, digna, em que a encenação não se sobreponha ao essencial: a verdade dos factos, o equilíbrio das partes e a igualdade de todos os cidadãos perante a lei.

No próximo dia 23 de Outubro haverá a segunda audiência. Continuarei a prestar o meu testemunho. De pé?

N.D. (que também é pessoal)
Foi reconfortante, e sobretudo comovente, sentir o apoio de dezenas, que nos últimos dois dias foram chegando sobre este processo judicial — a mim e ao PÁGINA UM. Mais do que um estímulo para continuar a lutar pelos princípios, encaro-o como um compromisso assumido. Na impossibilidade de agradecer individualmente a cada um, deixo aqui este sinal de gratidão.