Foi um professor catedrático de Engenharia Mecânica do Instituto Superior Técnico (IST), Tiago Lopes Farias, que decidiu em Abril de 2022, um mês antes de deixar a presidência da Carris – que ocupou durante seis anos – substituir os tradicionais cabos de tração do elevador da Glória – e dos outros ascensores – passando de alma de aço por cabos com alma de fibra. E foi ele próprio, mais um dos seus vice-presidentes, quem assinou o contrato com a Sociedade de Aprestos por Navios, de acordo com documentos a que o PÁGINA UM teve acesso.
Qual a razão desta alteração, Tiago Lopes Farias mantém um comprometedor silêncio. Aliás, apesar de inúmeros especialistas e investigadores do IST já se terem pronunciado sobre o desastre de 3 de Setembro, este professor catedrático – que esteve durante cerca de seus anos à frente da Carris e teve outros cargos em empresas públicas no sector dos transportes – mantém um comprometedor silêncio.

O PÁGINA UM questionou Tiago Lopes Farias, através de e-mail, sobre os fundamentos da troca dos cabos em 2022, sobre a existência de pareceres técnicos que sustentaram a mudança, se foram realizados ensaios de fadiga e de durabilidade antes da instalação, se houve comparação da vida útil dos dois materiais em condições reais de operação e se a alteração partiu da Carris ou foi sugerida pelo fornecedor. Nenhuma destas perguntas obteve resposta.
A troca do cabo de alma de aço por cabo de alma de fibra não reside, segundo apurou o PÁGINA UM, na resistência à tracção, porque aí são praticamente semelhantes, se cumprirem as normas europeias de segurança. A diferença poderá estar no comportamento distinto sobretudo no ponto mais sensível: a zona de amarração, onde o cabo é fixado por terminais, grampos ou cunhas. É nesse local que se concentram esforços e curvaturas e onde se inicia, na maior parte das vezes, situações de degradação, por vezes lenta, que pode levar à ruptura ou ao deslizamento.
O processo de amarração do cabo, que devem ser substituídos a cada cerca de dois anos, consiste em prender o cabo de forma a que este não deslize nem se solte, transmitindo toda a carga ao terminal. No caso de cabos com alma de aço, o núcleo metálico ajuda a manter a geometria interna e distribui parte das tensões, resistindo melhor ao esmagamento provocado pela pressão do terminal.

Já nos cabos com alma de fibra, como o núcleo é deformável existe o risco de processos de ‘compactação’ ao longo do tempo, o que, a ocorrer, reduz o diâmetro do cabo, criando folgas internas e permitindo micro-movimentos dos fios exteriores. Esses movimentos não causam uma falha imediata – e, portanto, não é detectável no momento da substituição do cabo –, mas funcionam como uma espécie de ‘corrosão’ mecânica invisível, acumulando desgaste até gerar uma zona de fragilidade crítica.
Caso suceda, como é uma hipótese plausível no acidente do elevador da Glória, o risco pode manifestar-se de duas formas. A primeira é o deslizamento lento: à medida que a alma de fibra se acomoda, a pressão do terminal deixa de ser suficiente para garantir a fixação, e o cabo pode começar a ceder milímetro a milímetro até perder totalmente a ancoragem. A segunda é a ruptura progressiva: os fios exteriores, sobrecarregados porque o núcleo não absorve esforços, vão sofrendo fadiga, partindo-se um a um até que o conjunto já não resiste à carga e colapsa subitamente. Ambos os processos podem ser demorados, desenvolvendo-se ao longo de meses – e pior: sem sinais visíveis até à iminência do acidente.

É por isso que, segundo especialistas consultados pelo PÁGINA UM que preferem o anonimato, os manuais técnicos e normas europeias, como a EN 12385-8, insistem que a escolha da alma do cabo não se deve limitar à resistência nominal, mas ao comportamento em serviço real, com destaque para a zona de amarração. A ciência dos materiais destaca, aliás, que falhas como as que terão ocorrido no elevador da Glória, raramente são instantâneas: começam com pequenas deformações internas, prossegue com micro-movimentos repetidos, instala-se com a fadiga acumulada e termina num colapso que, quando ocorre, já não pode ser evitado.
Um presidente da Carris com formação em Engenharia Mecânica ou os departamentos de segurança e manutenção da empresa municipal tinham a obrigação de ter noção destes riscos? A resposta pode ser dada pelo senso comum – que já pouco vale para as 16 vítimas mortais.