Há notícias que, pela sua forma e conteúdo, se transformam em peças de estudo sobre a degradação do jornalismo. A notícia elaborada pela Lusa sobre a vacinação de crianças nos Estados Unidos – transmitida de imediato, acefalamente, pelo Público, pelo Observador, pelo Correio da Manhã, pelo Expresso e pela SIC Notícias – é um desses exemplos. Na generalidade, os títulos são similares ao do Público: “Governo dos Estados Unidos deixa de recomendar vacina contra sarampo”.
A frase não deixa margem para segundas leituras – e não se trata de uma mera falha técnica ou de uma distração inocente; é antes uma amostra vergonhosa de desinformação, de enviesamento ideológico e de promoção de erros científicos intencionais, que envergonham a profissão e corroem a confiança pública no jornalismo.

Comecemos pelo óbvio: o título é falso. Os Estados Unidos não deixaram de recomendar a vacina contra o sarampo. Aquilo que o Comité Consultivo sobre Práticas de Imunização (ACIP), ligado ao CDC, aprovou foi somente a substituição da vacina combinada MMRV – que reunia sarampo, papeira, rubéola e varicela numa só injeção – por duas formulações distintas: MMR (sarampo, papeira e rubéola) e uma vacina separada para a varicela.
Ou seja, não houve qualquer recomendação para deixar de vacinar crianças contra o sarampo – e nem por via subtil, porque até foi a varicela que saiu da combinação, e não o sarampo. A proteção contra sarampo, rubéola e papeira continuará exactamente igual, administrada em conjunto. E em vez de uma injeção serão dadas duas – não houve qualquer orientação contrária.
Porém, a Lusa, o Público, o Observador, o Correio da Manhã, a SIC e o Expresso preferiram transformar um detalhe técnico numa manchete explosiva, insinuando que as crianças norte-americanas ficariam subitamente desprotegidas. Isto não é apenas desleixo informativo: é pura manipulação.

A gravidade aumenta porque todas as notícias – similares, ao péssimo estilo churnalism – omitiram o contexto científico. Desde 2008, passando por democratas e republicanos, estudos do Vaccine Safety Datalink e do próprio CDC demonstraram que a vacina MMRV em crianças pequenas aumentava o risco de convulsões febris. Em crianças dos 12 aos 23 meses, a taxa observada foi de cerca de oito casos em cada 10.000 vacinados com MMRV, contra quatro casos em cada 10.000 vacinados com MMR + varicela separadas. Estamos a falar de um risco real, mas raro, que, embora não deixe sequelas a longo prazo, assusta pais e faz sofrer crianças.
Foi esse fundamento técnico – a duplicação estatística do risco, embora baixo – que justificou esta alteração técnica que em nada modificou a administração das quatro vacinas. Nada disto aparece explicado no artigo da Lusa e dos seus sucedâneos. O leitor foi intencionalmente deixado na ignorância, como se a mudança tivesse brotado da cabeça iluminada de Robert F. Kennedy Jr., atual secretário da Saúde dos Estados Unidos.
E aqui está um ponto decisivo que a Lusa e seus “seguidores” intencionalmente distorcem ou omitem. Kennedy Jr. é sistematicamente rotulado como “anti-vacinas”, quando a realidade é mais complexa. O seu discurso, por mais polémico que seja, não se resume a rejeitar todas as vacinas. Ele critica há anos a segurança de certas formulações, questiona a toxicidade de aditivos como o timerosal ou os sais de alumínio, e denuncia alegadas falhas de transparência na farmacovigilância, como foi o caso das ditas “vacinas” contra a covid-19.

Pode-se discordar do tom ou do enquadramento político, mas confundir esta crítica – legítima ou não – com uma campanha para “banir vacinas” é um erro jornalístico grosseiro. Mas Lusa, Público, Observador, SIC Notícias e Expresso – pelo menos estes – escolheram a caricatura fácil, anulando nuances fundamentais e, desse modo, enganaram os leitores.
A consequência é dupla. Por um lado, apagou-se o facto de a decisão do CDC ter base científica consolidada há mais de uma década: minimizou-se um risco raro mas documentado de convulsões febris. Por outro lado, transformou-se a medida numa “vitória pessoal” de Kennedy Jr., sugerindo que o novo secretário da Saúde teria inventado riscos. Este enviesamento reforçou uma lamentável narrativa política, ao mesmo tempo que obscurece a realidade – e, no entanto, o sarampo continua a ser alvo de vacinação e a única mudança concreta foi a separação da varicela.
Do ponto de vista dos princípios jornalísticos, o resultado é devastador: um título falso – que até pode incutir (falsos) argumentos aos movimentos anti-vacinas radicais –, uma omissão deliberada do enquadramento científico, uma simplificação caricatural da figura política em jogo e uma redação preguiçosa, dependente de agências noticiosas, sem esforço mínimo de confrontar fontes primárias, documentos do CDC ou associações médicas. Este é o jornalismo de secretária ideológico e manipulador com consequências reais para a saúde pública.

Num país onde a confiança nas vacinas ainda é elevada, mas onde circulam já rumores e receios amplificados pelas redes sociais, uma manchete destas é gasolina atirada sobre brasas. Os órgãos de comunicação social, a começar pela Lusa, contribuíram activamente para semear a dúvida e a confusão. E quando se trata de vacinas contra o sarampo, não falamos de abstrações: falamos de uma doença altamente contagiosa, que exige mais de 95% de cobertura vacinal para garantir imunidade de grupo.
Não, não é aceitável reduzir tudo isto a uma mera falha. Estes erros começam a ser sistemáticos, mostrando um triste padrão: um jornalismo cada vez mais desleixado, mais rendido à facilidade do copy-paste de agências, mais disposto a sacrificar a verdade factual em troca de títulos apelativos que gerem cliques. Mas aqui ultrapassa-se o limite: a saúde pública não pode ser tratada como carnada mediática.
Jornalistas sérios teriam feito o oposto: explicariam ao leitor que a vacina contra o sarampo continua a ser considerada (ainda mais) segura e recomendável, mostrariam os números sobre convulsões febris, explicariam a diferença entre MMR e MMRV, e enquadrariam politicamente a decisão sob a tutela de um secretário da Saúde que, concorde-se ou não, levanta dúvidas sobre segurança e aditivos.

Se o jornalismo serve para informar, esta peça serviu para desinformar. Se o jornalismo serve para esclarecer, aqui serviu para confundir. Se o jornalismo serve para proteger a cidadania, aqui serviu para fragilizá-la. É um caso de estudo sobre como não se deve fazer jornalismo científico e de saúde pública. E, mais grave ainda, é um exemplo de como o enviesamento ideológico e a preguiça redacional podem transformar um órgão de comunicação social respeitado num veículo de erro.
E sobre a situação do sarampo este ano nos Estados Unidos, voltarei muito em breve para abordar este assunto – e demonstrar como o jornalismo português (e europeu), cego pela paixão ideológica (e comercial), recusa olhar para dentro da sua casa.