Tondela 3.0


O número três tem uma carga simbólica difícil de ignorar. Não por ser o primeiro número que nos faz sentir a repetição, mas sim por prenunciar uma eventual permanência: depois do um que se arrisca, e do dois que confirma, chega o três que sela, consagra e promete duração. Há quem veja nele a perfeição — Pai, Filho e Espírito Santo; passado, presente e futuro; início, meio e fim. Mas também há quem perceba no três o perigo da rotina, o prenúncio de que uma ideia que começou fresca corre o risco de ficar viciada. E é nesse dilema que se encontra este Da Varanda da Luz, agora a entrar na sua terceira temporada.

As más-línguas já disseram tudo e o contrário de tudo: que um jornalista que se apresenta como independente e rigoroso não deve entregar-se a crónicas futebolísticas, caseiras e subjectivas; que um fervoroso sócio do Benfica não pode sentar-se numa varanda e, de lá, fazer o papel de cronista; que isto é como confundir o relato íntimo de um jantar em família com o relatório de contas da EDP.

Talvez tenham razão, talvez não. O certo é que a varanda, com as suas vistas imperfeitas e o coração a bater pelo vermelho, se tornou, para mim, lugar de reflexão e catarse, e já não é só minha: quem lê acompanha-me nesta liturgia quase quinzenal, entre nervos, vitórias suadas e derrotas que doem como punhais.

Mas há um problema que este número três já carrega consigo, e não é pequeno: se há terceira temporada, tem desta vez que haver caneco. A matemática é cruel. O futebol vive da fome insaciável de conquistas. Um ano sem título para o Benfica é tropeço; dois anos sem título é drama; três anos sem título começa a ser vergonha. E assim, o número que devia trazer perfeição ameaça instalar o ridículo. Não porque esta crónica seja caseira e subjectiva — isso até pode ser um charme, uma espécie de antídoto contra a pompa vazia da crónica oficializada —, mas porque a sucessão de épocas sem festa no Marquês transforma qualquer escrita de um benfiquista numa ladainha de desculpas, revoltas e esperanças adiadas.

O ridículo, afinal, não mora tanto na varanda, mas na equipa. E como separar o cronista do seu objecto? Se a terceira temporada chegar sem campeonato, quem escreve arrisca-se a ser cúmplice de um fado menor, cronista de um vazio, padre de uma missa sem fiéis. É a sina de quem mistura paixão e profissão, casa e ofício. Talvez o mais independente dos jornalistas seja aquele que, ao assumir a sua subjectividade, se entrega sem máscaras, sem as frases feitas da imparcialidade de fachada. Talvez haja mais rigor em declarar a parcialidade do que em escondê-la debaixo de um casaco de cinismo.

Em todo o caso, esta não é a minha estreia esta época. Já aqui estive há duas semanas, a limpar o Nice — e foi uma beleza: daqueles jogos em que tudo parece fácil, em que a equipa acerta passes de olhos fechados e a superioridade se sente como uma evidência. Tive a sorte de ter o Tiago Franco a escrever à distância. Enfim, para começar, não foi mau: uma vitória limpa, fresca, sem nódoas, daquelas que fazem acreditar que o ano vai correr direito. Veremos, na próxima terça-feira, se vamos mesmo apear o Fenerbahçe do José Mourinho. Mas isso são contas para outro rosário, e a missa será rezada na devida altura.

Como qualquer benfiquista que se preze, começamos sempre um campeonato com alguma aflição. Não como no ano passado ou há dois anos, em que entrámos sempre com o pé esquerdo, mas o jogo contra o Estrela da Amadora, na semana passada, não convenceu ninguém. Foi vitória, é certo, mas com exibição deslavada, sem nervo, como se a equipa tivesse decidido entrar em campo de pantufas.

Contra o Tondela, temos meia equipa diferente do ano passado — e não sei ainda se é para melhor. Financeiramente, acredito, é bom para os empresários. Em todo o caso, o Ivanovic parece que vai fazer uma boa parelha com o Pavlidis; Richard Ríos trouxe intensidade, mas parece-me que terá dias; o novo Enzo (depois do Pérez e do Fernández) tem alma; e os laterais, Dedić (sobretudo este) e Rafael Obrador, acrescentam opções. Mas, ironicamente, continuo a achar que a melhor aquisição é um jogador que já cá estava: Aursnes, que a cada época me parece (ainda) melhor, mais completo, ainda mais polivalente, mostrando que até a extremo-direito joga excepcionalmente bem, como se fosse crescendo com o próprio peso da camisola.

Enfim, mas devia estar a falar em concreto do jogo contra o Tondela. E aí, confesso, foi daqueles serões que mais parecem um chá morno ao fim do dia. Uma noite de sábado calma, sem sobressalto algum, a aguardar os golitos, uns bocejos a preencher o intervalo, e uma crónica escrita quase em piloto automático. Nada a apontar de grave, nada a exaltar de épico. Apenas o ofício de ganhar, que também faz falta, mas que não chega para incendiar a alma.

E, nem de propósito, e para fechar a crónica como começou, o miúdo Prestianni — o único jogador do Benfica que está à minha altura, com os seus 1,66 metros — selou a vitória com o terceiro golo, já nos descontos. Bom presságio.