Estado da União das Repúblicas Socialistas Europeias (URSE)

Cctv camera is mounted on a red wall.

No ano passado, no Porto, a não eleita Ursula von der Leyen, a actual presidente da Comissão Europeia, discursava perante uma plateia obediente. O ambiente era cuidadosamente coreografado, como em todos os eventos do poder europeu; de repente, um manifestante a favor da Palestina ousou interromper. O que fez a senhora? Com a arrogância típica de quem nunca teve de responder a votos, atirou-lhe: “Se estivessem em Moscovo, estavam agora na prisão”.

A frase saiu-lhe com a naturalidade de quem confunde liberdade com obediência e democracia com espectáculo. O mais irónico é que, nesse mesmo instante, quem estava a ser esmagado pela polícia portuguesa era o manifestante, não na Rússia, mas na cidade do Porto, sob as ordens de uma União Europeia que se autoproclama campeã da liberdade!

O momento em que um manifestante é detido após interrupção do discurso de Von der Leyen no Porto. (6 de Junho de 2024) / Foto: Captura de imagem a partir de vídeo da TVI / D.R.

Na mesma altura, na Finlândia, repetia-se o mesmo número. Armando Mema, um político local de Nurmijärvi, interpelou von der Leyen durante a campanha para as eleições europeias. O tema era simples: questionar a dirigente não eleita sobre as suas políticas.

O mesmo número: enquanto lhe dizia que tinha a sorte de viver na União Europeia, em que a liberdade de expressão é protegida, Mema era detido no local, multado e advertido de que seria preso novamente caso ousasse repetir o atrevimento de falar em público. Hoje, enfrenta julgamento em Helsínquia, acusado do crime de “desobediência a um funcionário público”.

Estas duas cenas – Porto e Helsínquia – são perfeitas para compreender a União Europeia em que a nossa classe política nos meteu ao longo de 50 anos. Trocaram soberania por sinecuras, autonomia por subsídios, liberdade por regulação, tudo embrulhado na linguagem piedosa do “projecto europeu”.

Von der Leyen ao lado de Luís Montenegro numa acção de campanha, no Porto. / Foto: D.R.

O resultado é hoje inescapável: a União Europeia tornou-se uma organização directamente descendente da extinta União Soviética. Um corpo burocrático sem escrutínio, governado por dirigentes não eleitos, que multiplica reguladores como coelhos e legisla sobre tudo o que mexe. O seu objectivo é claro: destruir liberdades individuais e reduzir-nos a vassalos.

Comecemos pela legislação já em vigor: o chamado Regulamento Europeu relativo à Liberdade dos Meios de Comunicação Social. O nome é, por si só, uma fraude. Sempre que o poder fala em “liberdade”, trata-se de um eufemismo para controlo. Tal como os partidos comunistas invocavam o “bem-comum” para justificar os campos de concentração, hoje, Bruxelas invoca a “liberdade” para erguer uma rede de vigilância e censura.

O artigo 4.º, apesar de aparentar proteger as fontes jornalísticas, proibindo buscas e detenções, abre a porta a excepções, em nome de “razões imperiosas de interesse público”. Ninguém sabe o que isto significa; é precisamente por isso que serve para tudo. O mesmo artigo autoriza a instalação de spyware em telemóveis, desde que haja crimes puníveis até cinco anos de prisão. O que impede que amanhã um jornalista crítico seja vigiado em nome da “segurança pública”? Nada. É o método clássico: proclama-se a liberdade na regra e destrói-se a liberdade na excepção.

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O artigo 7.º concede aos reguladores o poder de exigir informações não apenas às empresas visadas, mas a “qualquer outra pessoa” que possua dados relevantes. Traduzido: um profissional liberal, um fornecedor de vídeos, ou uma agência de publicidade podem ser coagidos a entregar ficheiros internos para alimentar investigações políticas. É a infiltração difusa do Estado em todo o ecossistema mediático.

O artigo 14.º introduz a “cooperação acelerada” entre reguladores de diferentes países. Em 14 dias, uma página web acusada de “prejudicar a segurança pública” num determinado Estado pode ser silenciado em toda a União. Conceitos vagos como “risco grave” bastam para justificar reacções em cadeia. Num exemplo prático: um jornal cobre protestos públicos e é acusado de instigar a violência. Em duas semanas, as autoridades de vários países podem coordenar a sua limitação. Tudo legal, tudo em nome da “liberdade”.

O artigo 17.º cria um mecanismo para restringir os meios de comunicação social “provenientes de fora da União”. Basta dois Estados-Membros considerarem que um serviço “prejudica a segurança pública”. Desta forma, abre-se a porta para banir canais estrangeiros incómodos, rotulando-os de propaganda – não é novidade, já o fizeram com vários canais informativos russos. Em suma: a União Europeia acusa outros de censura enquanto ergue os seus próprios muros informativos.

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Foto: D.R.

O artigo 18.º institucionaliza o rótulo de “imprensa reconhecida” para redes sociais. Quem não aderir a códigos aprovados pelo poder político ficará sem prioridade nas plataformas. É um sistema de castas: propaganda oficial com privilégios, imprensa independente condenada à invisibilidade.

Os artigos 22.º e 23.º vão ainda mais longe: permitem travar fusões de jornais e rádios não apenas com base em critérios económicos, mas na “influência sobre a opinião pública”. Imaginemos dois jornais regionais a tentarem sobreviver fundindo-se. O regulador pode bloquear a operação por considerar que “influenciam demasiado” os leitores locais. Eis a arrogância: decidir até que ponto os cidadãos podem ou não ser expostos a determinadas opiniões!

Tudo isto, reparem, é vendido sob o rótulo de “pluralismo e liberdade”! Mas a realidade é o exacto oposto: centralização, vigilância e censura. A União Europeia comporta-se como uma União Soviética digital, mas com legislação “bem desenhada”, repleta de palavras pomposas e bonitas!

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Foto: D.R.

Como se não bastasse, prepara-se agora uma legislação ainda mais intrusiva: o Regulamento para prevenir e combater o abuso sexual de crianças. Ninguém ousará levantar-se contra, porque, quem o fizer, será acusado de não querer proteger crianças inocentes. É precisamente esta chantagem moral que dá força ao projecto.

Os artigos 7.º a 10.º obrigam as plataformas de mensagens a detectar automaticamente conteúdos suspeitos em comunicações privadas. Não interessa se a conversa decorre no WhatsApp, no Signal ou no Telegram. Mesmo que esteja encriptada de ponta a ponta, será digitalizada no dispositivo do utilizador, antes da encriptação. Chamam a isto “client-side scanning”.

Traduzido: cada telemóvel e computador terão dentro de si um agente invisível, a vigiar todas as mensagens. É o equivalente digital a colocar um polícia sentado à mesa de cada jantar entre dois amigos.

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Foto: D.R.

As plataformas, por sua vez, ficam obrigadas a informar automaticamente as autoridades de tudo o que o algoritmo possa assinalar como suspeito. O risco de falsos positivos é gigantesco. Uma fotografia de família, uma piada privada ou um ficheiro mal interpretado podem cair numa base de dados. Imaginemos um pai a enviar ao pediatra uma foto do filho nu na banheira para avaliar uma erupção cutânea. No dia seguinte, pode ter a polícia à porta.

O artigo 11.º dá poderes extraordinários às autoridades nacionais: ordens directas às plataformas para aceder a comunicações privadas, sob pena de banimento do mercado europeu! A presunção de inocência desaparece. Todos somos suspeitos até prova em contrário!

O artigo 34.º prevê sanções “eficazes e dissuasivas” para empresas que não cumprirem. Isto significa que qualquer aplicação de mensagens terá de instalar portas traseiras ou desaparecer da Europa. O Signal já anunciou que preferirá abandonar o continente a trair os seus utilizadores. Se esta lei avançar, a União Europeia será pioneira na destruição da encriptação global.

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As consequências vão muito além da Europa. Como a União é um dos maiores mercados digitais, a sua legislação exporta-se por osmose. Regimes autoritários poderão apontar para Bruxelas e dizer: “Se a Europa o faz, porque não nós?” A desculpa será sempre a mesma: “é para proteger as crianças”.

A técnica é sempre a mesma. Fala-se de liberdade para retirar liberdade. Fala-se de segurança para justificar vigilância. Fala-se de proteger as crianças para vigiar os adultos. É a linguagem dupla do totalitarismo. As palavras significam o contrário do que dizem.

Von der Leyen proclama liberdade de expressão enquanto manda prender quem a questiona. A Comissão Europeia fala em “pluralismo” enquanto cria mecanismos para banir vozes incómodas. Agora invoca a infância para obrigar todos os cidadãos a aceitarem espiões digitais nos seus telefones.

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A Europa tornou-se um laboratório do autoritarismo. O seu escol fala de democracia, mas nunca se submete a votos. Criam reguladores independentes, mas todos dependem do poder central. Redigem relatórios cheios de boas intenções, mas todos escondem a mesma obsessão: controlar, vigiar, domesticar.

A pessoa comum é hoje tratada como um inimigo em potência. Cada correio electrónico pode esconder terrorismo. Cada fotografia pode esconder abuso. Cada opinião pode ameaçar a segurança pública. A lógica é clara: todos são culpados até prova em contrário. O Estado, que deveria ser limitado e vigiado, transforma-se no vigilante absoluto, e o indivíduo, que deveria ser soberano, reduz-se a um ficheiro na polícia.

Eis o futuro que nos impõem: jornalistas perseguidos em nome do “interesse público”; manifestantes presos em nome da “segurança”; cidadãos vigiados em nome da “protecção das crianças”. Tudo legal, tudo regulamentado, tudo aprovado por parlamentos onde quase ninguém lê as leis que vota.

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Foto: D.R.

A União Europeia não é hoje uma união de povos e estados livres, mas uma máquina burocrática a caminho do totalitarismo digital. Tal como a União Soviética, que se desmoronou pelo peso da sua mentira, também esta “união” irá afundar-se. Mas, até lá, quantas liberdades serão esmagadas? Quantas vidas serão destruídas por acusações algorítmicas? Quantos cidadãos verão a sua intimidade devassada por regulamentos redigidos em Bruxelas?

Ano passado, no Porto e em Helsínquia, foi possível conhecer melhor a verdadeira Europa: arrogância, hipocrisia e repressão. As novas leis mostram para onde está a caminhar: vigilância total, suspeição permanente e censura institucionalizada. É hora de dizer sem medo: não, isto não é liberdade. É a mais perigosa forma de tirania — aquela que se apresenta como virtude.

Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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