No ano passado, no Porto, a não eleita Ursula von der Leyen, a actual presidente da Comissão Europeia, discursava perante uma plateia obediente. O ambiente era cuidadosamente coreografado, como em todos os eventos do poder europeu; de repente, um manifestante a favor da Palestina ousou interromper. O que fez a senhora? Com a arrogância típica de quem nunca teve de responder a votos, atirou-lhe: “Se estivessem em Moscovo, estavam agora na prisão”.
A frase saiu-lhe com a naturalidade de quem confunde liberdade com obediência e democracia com espectáculo. O mais irónico é que, nesse mesmo instante, quem estava a ser esmagado pela polícia portuguesa era o manifestante, não na Rússia, mas na cidade do Porto, sob as ordens de uma União Europeia que se autoproclama campeã da liberdade!

Na mesma altura, na Finlândia, repetia-se o mesmo número. Armando Mema, um político local de Nurmijärvi, interpelou von der Leyen durante a campanha para as eleições europeias. O tema era simples: questionar a dirigente não eleita sobre as suas políticas.
O mesmo número: enquanto lhe dizia que tinha a sorte de viver na União Europeia, em que a liberdade de expressão é protegida, Mema era detido no local, multado e advertido de que seria preso novamente caso ousasse repetir o atrevimento de falar em público. Hoje, enfrenta julgamento em Helsínquia, acusado do crime de “desobediência a um funcionário público”.
Estas duas cenas – Porto e Helsínquia – são perfeitas para compreender a União Europeia em que a nossa classe política nos meteu ao longo de 50 anos. Trocaram soberania por sinecuras, autonomia por subsídios, liberdade por regulação, tudo embrulhado na linguagem piedosa do “projecto europeu”.

O resultado é hoje inescapável: a União Europeia tornou-se uma organização directamente descendente da extinta União Soviética. Um corpo burocrático sem escrutínio, governado por dirigentes não eleitos, que multiplica reguladores como coelhos e legisla sobre tudo o que mexe. O seu objectivo é claro: destruir liberdades individuais e reduzir-nos a vassalos.
Comecemos pela legislação já em vigor: o chamado Regulamento Europeu relativo à Liberdade dos Meios de Comunicação Social. O nome é, por si só, uma fraude. Sempre que o poder fala em “liberdade”, trata-se de um eufemismo para controlo. Tal como os partidos comunistas invocavam o “bem-comum” para justificar os campos de concentração, hoje, Bruxelas invoca a “liberdade” para erguer uma rede de vigilância e censura.
O artigo 4.º, apesar de aparentar proteger as fontes jornalísticas, proibindo buscas e detenções, abre a porta a excepções, em nome de “razões imperiosas de interesse público”. Ninguém sabe o que isto significa; é precisamente por isso que serve para tudo. O mesmo artigo autoriza a instalação de spyware em telemóveis, desde que haja crimes puníveis até cinco anos de prisão. O que impede que amanhã um jornalista crítico seja vigiado em nome da “segurança pública”? Nada. É o método clássico: proclama-se a liberdade na regra e destrói-se a liberdade na excepção.

O artigo 7.º concede aos reguladores o poder de exigir informações não apenas às empresas visadas, mas a “qualquer outra pessoa” que possua dados relevantes. Traduzido: um profissional liberal, um fornecedor de vídeos, ou uma agência de publicidade podem ser coagidos a entregar ficheiros internos para alimentar investigações políticas. É a infiltração difusa do Estado em todo o ecossistema mediático.
O artigo 14.º introduz a “cooperação acelerada” entre reguladores de diferentes países. Em 14 dias, uma página web acusada de “prejudicar a segurança pública” num determinado Estado pode ser silenciado em toda a União. Conceitos vagos como “risco grave” bastam para justificar reacções em cadeia. Num exemplo prático: um jornal cobre protestos públicos e é acusado de instigar a violência. Em duas semanas, as autoridades de vários países podem coordenar a sua limitação. Tudo legal, tudo em nome da “liberdade”.
O artigo 17.º cria um mecanismo para restringir os meios de comunicação social “provenientes de fora da União”. Basta dois Estados-Membros considerarem que um serviço “prejudica a segurança pública”. Desta forma, abre-se a porta para banir canais estrangeiros incómodos, rotulando-os de propaganda – não é novidade, já o fizeram com vários canais informativos russos. Em suma: a União Europeia acusa outros de censura enquanto ergue os seus próprios muros informativos.

O artigo 18.º institucionaliza o rótulo de “imprensa reconhecida” para redes sociais. Quem não aderir a códigos aprovados pelo poder político ficará sem prioridade nas plataformas. É um sistema de castas: propaganda oficial com privilégios, imprensa independente condenada à invisibilidade.
Os artigos 22.º e 23.º vão ainda mais longe: permitem travar fusões de jornais e rádios não apenas com base em critérios económicos, mas na “influência sobre a opinião pública”. Imaginemos dois jornais regionais a tentarem sobreviver fundindo-se. O regulador pode bloquear a operação por considerar que “influenciam demasiado” os leitores locais. Eis a arrogância: decidir até que ponto os cidadãos podem ou não ser expostos a determinadas opiniões!
Tudo isto, reparem, é vendido sob o rótulo de “pluralismo e liberdade”! Mas a realidade é o exacto oposto: centralização, vigilância e censura. A União Europeia comporta-se como uma União Soviética digital, mas com legislação “bem desenhada”, repleta de palavras pomposas e bonitas!

Como se não bastasse, prepara-se agora uma legislação ainda mais intrusiva: o Regulamento para prevenir e combater o abuso sexual de crianças. Ninguém ousará levantar-se contra, porque, quem o fizer, será acusado de não querer proteger crianças inocentes. É precisamente esta chantagem moral que dá força ao projecto.
Os artigos 7.º a 10.º obrigam as plataformas de mensagens a detectar automaticamente conteúdos suspeitos em comunicações privadas. Não interessa se a conversa decorre no WhatsApp, no Signal ou no Telegram. Mesmo que esteja encriptada de ponta a ponta, será digitalizada no dispositivo do utilizador, antes da encriptação. Chamam a isto “client-side scanning”.
Traduzido: cada telemóvel e computador terão dentro de si um agente invisível, a vigiar todas as mensagens. É o equivalente digital a colocar um polícia sentado à mesa de cada jantar entre dois amigos.

As plataformas, por sua vez, ficam obrigadas a informar automaticamente as autoridades de tudo o que o algoritmo possa assinalar como suspeito. O risco de falsos positivos é gigantesco. Uma fotografia de família, uma piada privada ou um ficheiro mal interpretado podem cair numa base de dados. Imaginemos um pai a enviar ao pediatra uma foto do filho nu na banheira para avaliar uma erupção cutânea. No dia seguinte, pode ter a polícia à porta.
O artigo 11.º dá poderes extraordinários às autoridades nacionais: ordens directas às plataformas para aceder a comunicações privadas, sob pena de banimento do mercado europeu! A presunção de inocência desaparece. Todos somos suspeitos até prova em contrário!
O artigo 34.º prevê sanções “eficazes e dissuasivas” para empresas que não cumprirem. Isto significa que qualquer aplicação de mensagens terá de instalar portas traseiras ou desaparecer da Europa. O Signal já anunciou que preferirá abandonar o continente a trair os seus utilizadores. Se esta lei avançar, a União Europeia será pioneira na destruição da encriptação global.

As consequências vão muito além da Europa. Como a União é um dos maiores mercados digitais, a sua legislação exporta-se por osmose. Regimes autoritários poderão apontar para Bruxelas e dizer: “Se a Europa o faz, porque não nós?” A desculpa será sempre a mesma: “é para proteger as crianças”.
A técnica é sempre a mesma. Fala-se de liberdade para retirar liberdade. Fala-se de segurança para justificar vigilância. Fala-se de proteger as crianças para vigiar os adultos. É a linguagem dupla do totalitarismo. As palavras significam o contrário do que dizem.
Von der Leyen proclama liberdade de expressão enquanto manda prender quem a questiona. A Comissão Europeia fala em “pluralismo” enquanto cria mecanismos para banir vozes incómodas. Agora invoca a infância para obrigar todos os cidadãos a aceitarem espiões digitais nos seus telefones.

A Europa tornou-se um laboratório do autoritarismo. O seu escol fala de democracia, mas nunca se submete a votos. Criam reguladores independentes, mas todos dependem do poder central. Redigem relatórios cheios de boas intenções, mas todos escondem a mesma obsessão: controlar, vigiar, domesticar.
A pessoa comum é hoje tratada como um inimigo em potência. Cada correio electrónico pode esconder terrorismo. Cada fotografia pode esconder abuso. Cada opinião pode ameaçar a segurança pública. A lógica é clara: todos são culpados até prova em contrário. O Estado, que deveria ser limitado e vigiado, transforma-se no vigilante absoluto, e o indivíduo, que deveria ser soberano, reduz-se a um ficheiro na polícia.
Eis o futuro que nos impõem: jornalistas perseguidos em nome do “interesse público”; manifestantes presos em nome da “segurança”; cidadãos vigiados em nome da “protecção das crianças”. Tudo legal, tudo regulamentado, tudo aprovado por parlamentos onde quase ninguém lê as leis que vota.

A União Europeia não é hoje uma união de povos e estados livres, mas uma máquina burocrática a caminho do totalitarismo digital. Tal como a União Soviética, que se desmoronou pelo peso da sua mentira, também esta “união” irá afundar-se. Mas, até lá, quantas liberdades serão esmagadas? Quantas vidas serão destruídas por acusações algorítmicas? Quantos cidadãos verão a sua intimidade devassada por regulamentos redigidos em Bruxelas?
Ano passado, no Porto e em Helsínquia, foi possível conhecer melhor a verdadeira Europa: arrogância, hipocrisia e repressão. As novas leis mostram para onde está a caminhar: vigilância total, suspeição permanente e censura institucionalizada. É hora de dizer sem medo: não, isto não é liberdade. É a mais perigosa forma de tirania — aquela que se apresenta como virtude.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
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