A mortalidade triplicou mesmo ou a SIC é o novo Jornal do Incrível?

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A SIC Notícias brindou os portugueses, neste dia da graça de 22 de Agosto, com uma das maiores vergonhas do jornalismo nacional recente: a manchete Calor extremo faz disparar nível de mortalidade para o triplo face a 2024, em arquivo aqui para memória futura. Um enunciado que, à primeira leitura, não resiste sequer ao teste da lógica elementar.

Triplicar significa aumentar 200%. E, como qualquer aluno do secundário sabe, se em 2024 morreram “x” pessoas, para em 2025 a mortalidade “triplicar” teriam de morrer 3x. Ora, bastaria olhar para a série histórica da mortalidade em Portugal para perceber que tal crescimento seria uma aberração estatística — nunca em tempo algum se registou, nem remotamente, uma explosão destas dimensões.

Mas afinal, o que mostram os dados oficiais, designadamente os disponibilizados pelo Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO)? Entre 21 de Junho e 20 de Agosto de 2024 morreram 18.570 pessoas. No mesmo período de 2025 morreram 19.606. Diferença: +1.036 óbitos, equivalentes a +5,6%.

Não há triplicação, nem duplicação, nem um aumento sequer de 50% nem de 10%. Houve apenas um acréscimo marginal, até perfeitamente dentro da variabilidade sazonal. Mas a SIC não hesitou em colocar na capa uma formulação que faria corar qualquer estudante de estatística. O problema não é apenas a mentira numérica: é a incapacidade de suspeitar que a triplicação não tinha lógica alguma e, ainda assim, publicá-lo como verdade absoluta.

Mesmo que se quisesse, porque a Estatística pode permitir muitos ziguezagues, “puxar” a corda das metodologias, usando baselines mais propensos a detectar excessos de mortalidade — como a média de 2014–2019, um período pré-pandemia em que a mortalidade era mais baixa e a população menos envelhecida (e em menor número) —, o máximo que se encontra é um aumento na ordem dos 20%. E isto com o truque de não usar padronização etária. Mais realistas seriam os cálculos com média 2014–2024, que apontam para +13,6%.

Porém, uma análise séria teria de inclui tendência secular e ajustar à evolução demográfica. Contas feitas, com o modelo Serfling–Poisson, o excesso no Verão de 2025 não passa assim de +4% (+748 óbitos). Ou seja: nunca, em cenário algum, se chega sequer a 10%. Quanto mais a 200%! A notícia da SIC não é apenas exagerada: é aritmeticamente absurda.

Evolução da mortalidade diária observada em Portugal no ano de 2025 (linha preta), em comparação com dois baselines históricos: a média dos anos 2014–2019 (linha azul tracejada) e a média de 2014–2024 (linha laranja tracejada). A zona sombreada a laranja corresponde ao período de Verão entre 21 de Junho e 20 de Agosto. Observa-se que, embora durante estas semanas os valores diários de 2025 tenham ficado acima das médias históricas, o desvio foi moderado e nunca configurou uma explosão de mortalidade. A oscilação é compatível com fenómenos sazonais normais e não justifica, jamais, a ideia de uma “triplicação” da mortalidade.

E há um dado ainda mais revelador que a SIC omitiu, bem como o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge que anda numa azáfama para colar na imprensa um excesso de mortalidade que não existe.

Com efeito, no acumulado de 2025 até 20 de Agosto, longe de se registar excesso, está a observar-se mesmo um défice de mortalidade, ou seja, menos mortalidade do que a esperada. Entre 1 de Janeiro e 20 de Agosto, o país contabilizou 78.271 óbitos, quando o esperado, ajustado à tendência de envelhecimento, seria de cerca de 81.487. Ou seja, morreram menos 3.216 pessoas do que seria expectável, um défice de 3,9%. Isto significa que, no conjunto do ano, não só não houve uma explosão de mortes, como até se morreu menos do que o normal.

A “triplicação” da SIC é, portanto, não só falsa mas diametralmente oposta ao real: em vez de se morrer a mais, morreu-se a menos.

O gráfico mostra a evolução dos óbitos acumulados em Portugal desde 1 de Janeiro até 20 de Agosto de 2025 (linha preta), comparada com três referências distintas: a média diária de 2014–2019 (linha azul tracejada), a média diária de 2014–2024 (linha laranja tracejada) e o baseline ajustado à tendência secular obtido por modelo Serfling–Poisson (linha verde), que incorpora a evolução demográfica e o envelhecimento da população. A zona sombreada a laranja assinala o período de verão, entre 21 de Junho e 20 de Agosto. Apesar de o traçado de 2025 se situar acima das médias históricas não ajustadas durante o verão, a comparação com a linha verde evidencia que, no acumulado anual até 20 de Agosto, o número de óbitos ficou abaixo do esperado, traduzindo um défice de 3,9%. Este resultado confirma que os picos de mortalidade verificados em Julho e Agosto correspondem sobretudo a um efeito de harvesting effect e não a um excesso líquido de mortes.

Este dado liga-se a um mecanismo conhecido e estudado: o harvesting effect. Em muitos episódios de calor extremo, alguns idosos muito frágeis morrem uns dias ou semanas mais cedo, criando picos temporários. Ou, por outro lado, uma menor actividade gripal no Inverno acaba por ‘permitir’ que no Verão se concentrem mais pessoas altamente vulneráveis. Mas, no verão – que é, aliás, a época do ano de menor mortalidade – logo a seguir a eventuais picos, observa-se um défice compensatório, porque essas pessoas já estavam próximas do fim da vida. É uma espécie de antecipação estatística da mortalidade.

Em situações normais, excepto casos de ruptura dos sistemas de saúde e crises sanitárias, o resultado líquido, ao fim de alguns meses, tende a ser nulo ou muito reduzido. E é exactamente isso que começa a desenhar-se em 2025, depois das anomalias entre 2020 e 2022: um ligeiro aumento no Verão, mas um défice claro no total anual até Agosto, porque os primeiros meses do ano foram de baixa mortalidade. Aquilo que a SIC pintou como catástrofe inimaginável é, afinal, apenas o jogo normal da sazonalidade e da fragilidade etária.

Ainda mais grave, a somar ao facto de nenhum editor sénior ter detectado a parvoíce, é quem assina esta autêntica vergonha jornalística. A jornalista responsável passou anos a trabalhar em “fact-checking” para o Polígrafo, projecto que deixou em Novembro do ano passado e se apresenta como guardião da verdade contra a desinformação. Ora, se quem viveu do carimbo “verdadeiro/falso” é capaz de colocar no ar uma falsidade que nem sequer resiste ao senso comum mais básico, que confiança pode ter o público em todo o edifício do chamado “fact-checking”? O caso da SIC mostra como o jornalismo português, em vez de desconfiar e questionar, opta por amplificar narrativas institucionais sem pestanejar, mesmo quando os números gritariam o contrário.

Tabela comparativa da mortalidade observada em Portugal no verão de 2025 (21 de Junho–20 de Agosto) e no acumulado do ano até 20 de Agosto (YTD), face a dois baselines históricos: média 2014–2019 (A1) e média 2014–2024 (A2). São apresentados os valores observados, os esperados, o excesso absoluto e relativo, bem como a Razão de Mortalidade Padronizada (SMR) e respectivos intervalos de confiança a 95% (IC95%). Mesmo em cenários mais favoráveis à detecção de excesso, os desvios nunca ultrapassam +21%, e no acumulado anual ficam entre +4,8% e +9,5%. Estes valores contrastam radicalmente com a manchete da SIC que falava em “triplicação” (200%), algo estatisticamente impossível e totalmente desprovido de lógica.

A lógica jornalística deveria ser esta: se alguém afirma que a mortalidade triplicou, o primeiro dever é fazer a conta simples e ver se é plausível. E, em seguida, confrontar a instituição com o disparate. O que aconteceu foi precisamente o inverso: a SIC transformou um disparate em manchete, espalhou-o pelas redes sociais e reforçou o medo colectivo. Tudo isto sem perceber que estava a afirmar uma impossibilidade estatística.

Em síntese: a SIC não só errou como errou de forma grotesca. Não só exagerou como transformou um aumento de 5,6% (ou mesmo menor) em um suposto aumento de 200%. Não só deixou de fazer jornalismo como prestou um serviço de desinformação. E, talvez mais grave do que tudo isto, revelou uma total ausência de cultura estatística e de escrutínio crítico — exactamente aquilo que um jornalista de “fact-checking” deveria ter como competências mínimas. Publicar esta notícia foi um acto de irresponsabilidade e de propaganda, não de informação.