Entre hoje, 4 de Agosto, e a próxima quarta-feira, 6 de Agosto, Portugal estará, segundo os modelos oficiais do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA) e do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), sujeito a um cenário de catástrofe térmica — ou, em linguagem técnica, a um surto de mortalidade em escala alarmante. Os dados do chamado Índice ÍCARO, actualizados diariamente e utilizados como base para alertas de saúde pública e planos da protecção civil, projectam para este período níveis de risco sem paralelo desde 2012.
A previsão para quarta-feira aponta um valor de 1,57 no Índice ÍCARO — o mais elevado dos últimos treze anos —, o que representa, segundo a própria definição estatística do modelo, um aumento expectável de 157% na mortalidade diária face a condições sem calor excessivo. Traduzido em termos concretos: se a mortalidade média no Verão ronda os 280 óbitos por dia, um índice de 1,57 corresponderá a cerca de 720 mortes num só dia. Um valor que implicaria mais 440 óbitos do que o habitual — o equivalente, em termos proporcionais, a um acidente ferroviário catastrófico por dia durante três dias consecutivos.

Também os valores previstos para segunda-feira e terça-feira se apresentam extremamente elevados: 1,21 e 1,30, respectivamente. Estes índices implicam, segundo o modelo, 619 e 644 mortes diárias. Assim, e apenas com base no Índice ÍCARO, o total de mortes previstas para este trio de dias aproximar-se-ia das duas mil mortes, ou seja, mais 1100 óbitos acima da média esperada para o mesmo período — se o modelo estivesse calibrado com precisão.
Contudo, a realidade será eventualmente menos aterradora, embora possa atingir níveis de gravidade relevante. Desde o dia 25 de Julho, os valores do índice têm-se mantido positivos, mas ainda assim bastante abaixo do limiar de 1. A mortalidade registada tem oscilado dentro de valores ligeiramente superiores ao padrão sazonal, com uma média próxima dos 320 óbitos diários — o que representa um acréscimo de cerca de 15% face à mortalidade-base.

Este pequeno aumento, aliás, pode estar também relacionado com um Inverno particularmente ameno, o que terá poupado parte da população mais vulnerável, agora exposta a condições extremas. Desde o início de Janeiro, os níveis de mortaldiade global têm estado alinhados com os do anos passado.
Mas o que mais fragiliza a confiança no modelo para valores mais elevados é o que se passou neste domingo. O valor do Índice ÍCARO — inicialmente estimado para 1,44, mas que foi entretanto corrigido para 0,87 —, significaria um acréscimo de 87% na mortalidade, ou seja, cerca de 524 mortes. No entanto, os dados provisórios do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) apontam para apenas 290 óbitos, um número perfeitamente dentro do padrão estival. Aqui poderá estar, paradoxalmente, uma boa notícia: o Índice ÍCARO exagera os cenários quando os valores se tornam mais elevados — em suma, é estruturalmente catastrofista.
Criado em 1999 pelo Observatório Nacional de Saúde do INSA em colaboração com o IPMA, o modelo do Índice ÍCARO assenta numa equação estatística simples: estima-se a diferença entre o número de óbitos esperados com o efeito do calor e o número médio de óbitos em condições meteorológicas normais, com base em séries temporais da temperatura máxima observada e prevista. A variável central do modelo é a chamada “sobrecarga térmica acumulada”, definida como o número de dias em que a temperatura máxima ultrapassa os 32ºC, ponderado pelo excesso registado acima desse limiar.

O modelo tem mérito técnico, e foi pioneiro nos sistemas de vigilância meteorológica com implicações em saúde pública. Contudo, como já reconheciam os próprios autores no artigo fundador publicado em 1999 na Revista Portuguesa de Saúde Pública, o sistema foi deliberadamente concebido com uma orientação catastrofista: privilegia a sensibilidade (detectar todos os sinais de risco possíveis) à custa da especificidade (evitar alarmes falsos).
Como se lê nesse artigo: “Em termos de especificidade, isto é, na sua capacidade para evitar falsos alarmes, [o modelo] está longe de ser perfeito. Mas, claramente, num sistema de alerta não pode sacrificar-se a sensibilidade à especificidade. A ocorrência de falsos alarmes num sistema de alerta não é um problema grave desde que o sistema denote uma muito boa sensibilidade”. E acrescentam que o índice ÍCARO “parece mostrar uma boa capacidade de detectar todas as ondas de calor de que temos conhecimento e avaliar a severidade do seu impacto na mortalidade”.
Na prática, isto significa que o modelo está concebido para soar o alarme perante qualquer sequência de dias muito quentes, mesmo que não exista uma correspondência real em termos de aumento da mortalidade. Acresce que os valores mais recentes do índice se baseiam exclusivamente em previsões meteorológicas a três dias, sem cruzamento com dados demográficos, clínicos, alimentares ou epidemiológicos. Como se tem constatado, nem sequer ajusta as suas previsões em função da evolução real da mortalidade recente.

Em todo o caso, o resultado é um índice com uma tendência demasiado alarmista do ponto de vista estrutural, que esta semana atinge o paroxismo ao prever valores superiores ao dobro da mortalidade de base, durante três dias consecutivos. O PÁGINA UM contactou esta tarde o presidente do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, Fernando de Almeida, colocando questões sobre a validação empírica do modelo, possíveis actualizações ou recalibrações feitas nos últimos anos, os limiares que justificam a emissão de alertas, e as medidas concretas que estão a ser tomadas com base nestas previsões. Até ao fecho desta edição, não foi recebida qualquer resposta.
Apesar disso, o Índice ÍCARO continua a ser utilizado como fundamento para activar planos de contingência da Protecção Civil, emitir orientações clínicas e influenciar decisões políticas e mediáticas. Ainda no final desta tarde, a Direcção-Geral da Saúde emitiu um comunicado sobre medidas preventivas.
A comunicação de valores como 1,57 — que, num quadro meramente estatístico, implica quase 750 mortes num só dia — não pode ser feita de forma acrítica nem sem escrutínio técnico. Quando o modelo falha sistematicamente e de forma ampla, e ainda assim continua a ser divulgado sem qualquer contextualização crítica, o risco deixa de estar no calor extremo: passa a residir no próprio sistema de alerta.

Contactado pelo PÁGINA UM, Francisco Ferreira, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e presidente da associação ZERO, sublinha que, embora não conheça em detalhe o funcionamento do Índice ÍCARO, “este tipo de modelos serve sobretudo como alerta prévio para se introduzirem medidas preventivas que evitem a mortalidade em excesso prevista”. Tal como sucede com os modelos de previsão da qualidade do ar, temática da qual é especialista, Francisco ferreira acrescenta que se “tratam de indicações de risco potencial que devem ser mitigadas ou atenuadas”.
O problema, como mostram os números das previsões, é quando o risco previsto não existe, a sociedade é condicionada por alarmes sem substância. E quando existe mas se mostra demasiado alarmista, os políticos depois vêm cobrar um sucesso que nunca existiu.