No passado dia 18 de Julho, consumou-se um monumental golpe do baú — talvez o mais engenhoso desde a criação da Reserva Federal em 1913, quiçá rivalizando com a proeza do maior ilusionista financeiro da história: John Law. Foi ele quem, em 1716, fundou em Paris o Banque Générale, que dois anos depois se tornaria no Banque Royale, com autorização para emitir papel-moeda garantido pelo Estado francês — a grande “inovação” do seu tempo, que acabaria em ruína.
Agora, nos Estados Unidos, repete-se a façanha, mas, desta vez, com uma roupagem digital: o Congresso aprovou o chamado Genius Act, uma lei que, sob o pretexto de “modernizar o sistema financeiro”, legaliza a emissão de moedas digitais privadas — autorizadas pelo Estado, mas imunes a qualquer escrutínio.

A mais célebre — ou infame — dá pelo nome de USD1, uma stablecoin emitida por uma entidade ligada à família Trump, que passa, assim, a poder fabricar dinheiro digital com lastro em dívida pública dos EUA…sem repartir um cêntimo de juros com os detentores dos tokens.
Em rigor: os cidadãos financiam, sem saber, a máquina de endividamento estatal — enquanto Trump e os seus parceiros lucram com os juros pagos pelo Tesouro. Tudo legal. Tudo “genial”. Tudo, claro está, aprovado com o aplauso de republicanos e democratas.
A semelhança com o papel-moeda de John Law não é apenas a história a repetir-se — é a sua mutação digital. Tal como no século XVIII se multiplicaram os meios de pagamento em circulação sem qualquer criação real de riqueza, também agora estas stablecoins privadas operam como duplicadores digitais da base monetária, alimentando o mesmo monstro de sempre: a inflação. Num sistema já fundado sobre uma fraude monumental, junta-se agora mais uma camada de ilusão.

O esquema é triplo, em cascata: primeiro, o Banco Central inventa dinheiro do nada; depois, os bancos comerciais multiplicam esse dinheiro com base em reservas fraccionárias; agora, os emissores de stablecoins privadas quase duplicam os meios de pagamento — também a partir do nada. Uma cascata inflacionária sem precedentes, orquestrada com o selo da legalidade e o silêncio cúmplice de toda a imprensa financeira.
Estas novas moedas digitais não pagam um cêntimo aos seus detentores — mas rendem juros bem reais aos seus emissores, à custa da dívida pública norte-americana que serve de colateral. O cidadão julga possuir uma moeda estável, mas está afinal a financiar os juros da dívida com os seus impostos futuros. Sem o saber, tornou-se simultaneamente utilizador, financiador e vítima. A quadratura do círculo fiscal está consumada: os plebeus pagam impostos, os privados lucram com os juros — e ninguém reparte um tostão com os detentores do token.
Ao contrário de John Law, que terminou falido e exilado, ou de Richard Cantillon, assassinado após ter arruinado os seus clientes com manobras de crédito e manipulação bolsista, os novos feiticeiros digitais da dívida pública gozarão os seus milhões, protegidos por exércitos de advogados, grupos de influência e legislação feita à medida. O crime compensa — sobretudo quando é mascarado de inovação e liberdade financeira.

Para compreender esta arquitectura fraudulenta, convém antes perceber o que é, afinal, uma “stablecoin”? O nome diz tudo: uma moeda “estável” — pelo menos na aparência. Trata-se de um activo digital que procura replicar o valor de uma moeda fiduciária, como o dólar norte-americano, através de diferentes mecanismos de “lastro”.
Para os seus defensores é o melhor dos dois mundos: a estabilidade da moeda tradicional com a eficiência das transacções digitais. Na prática, é uma nova forma de moeda fiduciária — com ainda menos transparência e menos garantias.
Existem três grandes modelos de stablecoins. O mais comum é o das moedas lastreadas por reservas fiduciárias, como dólares ou títulos do Tesouro norte-americano, supostamente mantidos numa conta bancária ou num fundo segregado.

É neste modelo que se insere a USD1 de Trump, bem como outras como a USDT (Tether) ou a USDC (Circle). Dizem-se “estáveis” porque cada token emitido corresponde, alegadamente, a um dólar custodiado — seja numa conta bancária ou numa conta valores, com títulos de dívida pública, quase sempre obrigações do tesouro norte-americano.
O segundo modelo baseia-se no lastro em criptoactivos voláteis, como o Bitcoin ou o Ethereum. O exemplo mais conhecido é a DAI, uma stablecoin parcialmente descentralizada. Neste sistema, cada novo token só pode ser emitido com um colateral mínimo de, por exemplo, 140% em activos digitais.
Ou seja, para criar 100 DAI, é necessário “imobilizar” 140 dólares em Ethereum ou Bitcoin. Se o valor do colateral cair até, digamos, aos 110%, o sistema liquida automaticamente a posição e queima o token — ou exige mais colateral. É um mecanismo que tenta garantir a estabilidade, mas que pode ruir em momentos de forte volatilidade ou corrida aos activos.

Por fim, temos as stablecoins algorítmicas, como a falida Luna do protocolo Terra, que tentavam manter a paridade com o dólar através de incentivos automáticos de mercado: se o valor da moeda caía, queimavam-se tokens para induzir escassez; se subia, criavam-se novos para diluir o preço.
Apesar dos riscos, as stablecoins oferecem vantagens práticas inegáveis — sobretudo quando comparadas com o sistema bancário tradicional, moroso e obsoleto. Ao contrário das transferências internacionais convencionais, que dependem da rede SWIFT, repleta de intermediários e sujeita a sanções políticas — como se viu no caso dos bancos russos —, uma stablecoin pode ser adquirida, enviada e recebida por qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, com custos reduzidos e em poucos segundos.
Enquanto uma transferência bancária pode demorar dias, envolver taxas ocultas e depender do humor de burocratas ou reguladores, uma transacção em blockchain faz-se sem passaportes, sem fronteiras e sem autorização prévia. Sobretudo: sem o olhar inquisidor de um funcionário bancário a pedir justificações pela movimentação do dinheiro.

O principal risco destas novas moedas digitais não é tecnológico — é político e institucional: o desconhecimento do público quanto ao verdadeiro lastro. É o velho problema do ouro e do papel-moeda, apenas agora reeditado com roupagem digital. No tempo do padrão-ouro, nunca ninguém sabia se as notas em circulação correspondiam, de facto, ao metal guardado nos cofres dos bancos.
A lógica era simples: os banqueiros, ao perceberem que os depositantes só resgatavam uma pequena parte dos seus depósitos, começaram a emprestá-los a terceiros, cobrando juros, mas sem informar os depositantes, que julgavam ter o dinheiro sempre disponível. Quando muitos tentavam resgatar simultaneamente os seus fundos, a farsa ruía — porque o dinheiro já não estava lá: tinha sido emprestado a prazo, sem liquidez imediata para ser devolvido. Esse modelo, que durante séculos alimentou colapsos bancários e crises financeiras, agora ressurge sob uma nova pele.
Com esta nova legislação, a situação não desaparece. Embora a nova lei obrigue à existência de reservas 100% líquidas e auditadas, bem como à publicação mensal da composição do lastro, o cidadão comum continua sem meios técnicos para verificar, em tempo real, a correspondência entre tokens emitidos e activos efectivamente detidos.

A confiança permanece cega, baseada em relatórios e fé institucional. Mesmo que exista transparência formal, nada impede que o sistema seja subvertido por criatividade contabilística ou capturado por interesses políticos. A ilusão mantém-se: uma moeda “estável” apoiada por papéis do Tesouro, que por sua vez dependem da confiança no Estado mais endividado da História.
No fundo, o que o blockchain prometia — transparência radical, rastreabilidade permanente, eliminação de intermediários — acaba diluído num modelo onde a auditoria depende de terceiros, os activos estão sob custódia bancária, e a estabilidade é uma promessa política. O cidadão continua sem saber, com verdadeira certeza, se o token que segura vale aquilo que diz valer.
Estas stablecoins — apesar de apresentadas como uma grande novidade tecnológica — continuam sujeitas à mesma lógica de censura e controlo que define o sistema financeiro tradicional. A qualquer momento, os “donos” do sistema podem congelar as contas bancárias onde se encontra depositado o lastro, bloquear os pagamentos dos juros das obrigações do Tesouro que servem de colateral, ou simplesmente apagar e congelar endereços no blockchain.

Nada impede que os emissores, sujeitos a supervisores estatais, obedeçam a ordens de bloqueio político, como já sucedeu com a USDC e a USDT — que possuem mecanismos internos para colocar endereços de blockchain em listas negras, ou mesmo a reversão de transacções.
Os detentores destes tokens, ao contrário do que supõem, não estão protegidos. Continuam presos ao mesmo sistema de sempre — um sistema de repressão das liberdades, vigilância total e controlo arbitrário, tal como acontece com os depósitos bancários.
A diferença é que agora o poder de censura é instantâneo: basta um clique para congelar, bloquear ou eliminar os fundos — sem explicação, sem aviso, sem recurso. Na essência, estas stablecoins não passam de versões privadas das Moedas Digitais dos Bancos Centrais — como o Euro Digital — com o mesmo nível de submissão, mas publicitadas com a retórica da inovação e da liberdade financeira.

Ao contrário dos bancos tradicionais — que, mesmo a contragosto, ainda remuneram os depósitos para manter os clientes —, os emissores destas stablecoins estão expressamente proibidos de pagar um cêntimo aos seus detentores.
O dinheiro está sempre “disponível”, mas na prática é imediatamente aplicado em dívida pública norte-americana. Os juros? Revertidos a 100% para os donos da stablecoin — como acontece com o USD1, ligada à família Trump.
O adquirente do token julga ter um activo estável…mas está, na verdade, a financiar indirectamente o Estado federal norte-americano, sem saber, sem votar, sem o seu consentimento. Foi uma jogada de mestre: o Tesouro substitui os Bancos Centrais — e são agora os privados, em todo o mundo, que financiam a máquina de endividamento dos EUA.

Até um agricultor brasileiro ou um comerciante indonésio, ao comprar uma stablecoin, está a comprar dívida pública norte-americana. O mais perverso: esse mesmo dólar tokenizado serve simultaneamente como meio de pagamento para o cidadão — e como moeda fiscal para o Tesouro, que com ele paga salários, subsídios e contratos. É a cascata inflacionária perfeita: um mesmo dólar convertido em token circula como meio de troca, enquanto serve, em paralelo, para financiar a dívida perpétua do império. Um milagre monetário — para os emissores. Uma armadilha perfeita — para todos os outros.
Com este golpe legislado, institucionalizou-se uma nova cascata inflacionária — talvez até uma quarta, jamais imaginada nem pelo próprio John Law. Vejamos: o Banco Central norte-americano emite dinheiro do nada para comprar obrigações aos bancos comerciais, creditando as suas reservas. Estes, por sua vez, multiplicam esse dinheiro por dez ou quinze vezes, concedendo crédito ao sector privado.
De seguida, os emissores de stablecoins recolhem dinheiro fresco dos seus compradores — cidadãos que trocam dólares reais por tokens — e transferem esses fundos para o Tesouro, adquirindo dívida pública. O Tesouro, por seu turno, gasta esse dinheiro em salários, subsídios ou contratos.
O ciclo não acaba aqui: o detentor da stablecoin pode usá-la como meio de pagamento na Internet, ou melhor ainda, pode emprestá-la em plataformas de finanças descentralizadas, obtendo juros por isso. Um mesmo dólar — digitalizado e reciclado em múltiplos circuitos — torna-se simultaneamente dívida, reserva, meio de pagamento e activo financeiro!

Resultado? A inflação não irá cessar nos próximos anos. As casas e a comida continuarão a dirigir-se para a estratosfera. A massa monetária expande-se em múltiplos estratos, sem que haja criação de riqueza real.
O sistema financeiro reinventou-se como uma máquina de multiplicação infinita da ilusão — agora com contratos inteligentes, blockchain, logótipos patrióticos e a bênção do Congresso norte-americano. Se John Law visse isto, coraria de inveja. O seu castelo de cartas era rudimentar. O de hoje é global, digital, impune — e legitimado por decreto.
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
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