O dogmatismo ‘científico’ e a desinformação: o paradigma David Marçal


Nos últimos anos, poucos conceitos foram tão martelados no espaço mediático e político como o da “desinformação”. Tornou-se uma espécie de fetiche moral, uma nova lepra simbólica que se cola a tudo o que contraria o consenso hegemónico — ainda que esse consenso seja, com frequência, volátil, interesseiro ou simplesmente errado.

A palavra “desinformação” passou, aliás, a ter uma dupla função: por um lado, denunciar falsidades objectivas — o que é legítimo e necessário; mas, por outro, tornou-se um instrumento de exclusão retórica, um selo de infâmia aplicado a tudo o que destoa do discurso dominante. Serviu para calar vozes críticas no plano político, silenciar dissidentes no plano social e descredibilizar minorias epistémicas no plano científico. O que antes se combatia com argumentos, combate-se agora com rótulos. E um dos mais eficazes é precisamente este: “desinformador”.

Curiosamente — ou não —, raramente se discute que a desinformação, em sentido lato, é uma externalidade negativa de algo positivo: a liberdade de expressão e a democracia. Tal como a poluição é uma consequência indesejada da industrialização — cuja mitigação exige tecnologia, investimento e ética —, também a desinformação é um subproduto inevitável da liberdade. Só em ditaduras se impõe uma visão única das coisas. E num regime democrático, a única resposta legítima à mentira é a palavra, não a mordaça.

Pretender erradicar a desinformação sem pôr em causa a liberdade de expressão é como pretender eliminar o ruído urbano sem tocar no tráfego automóvel: uma ilusão autoritária mascarada de boa intenção.

Mais grave do que essa simplificação é a tentação crescente — e perigosamente institucionalizada — de se combater a desinformação com censura. Pior ainda: com a Ciência, erigida a nova instância de verdade absoluta. Como se os cientistas fossem missionários, como se os consensos científicos fossem dogmas, como se a discordância fosse uma forma de heresia e os dissidentes, uns leprosos cognitivos.

Mas a Ciência — e é trágico ter de repetir o óbvio — não é um corpo de verdades eternas: é um método. Ora, esse método vive de questionar, de duvidar, de admitir a possibilidade de estar errado. E também de ser paciente em refutar hipóteses absurdas ou erradas, mas sempre com espírito aberto e tolerante. Não se combate erros ou teorias da conspiração proibindo que sejam faladas — combate-se deixando que sejam faladas, para que caiam em descrédito.

Não há, na verdade, Ciência sem dissenso, sem controvérsia, sem revisão de pressupostos. A História da Ciência está repleta de consensos quebrados — e foi sempre por aí que ela mais cresceu.

Por isso, se há figuras públicas que me causam um fastio particular são aquelas que se colocam no pedestal da racionalidade, nos ombros da Ciência, para anatematizar os debates públicos — sejam estes travados por especialistas ou por leigos. Um desses exemplos, que se tornou uma espécie de mascote nacional da “Ciência Certa”, dá pelo nome de David Marçal, conhecido como colunista do Público e autor de vários livros de “divulgação científica”.

David Marçal

Essa minha irritação não decorre da falta de inteligência de David Marçal, nem da ausência de capacidade argumentativa. É precisamente o contrário: é por ser tão fluente na retórica falaciosa, tão hábil na omissão do que o incomoda, tão moralista nas suas inferências, que o seu discurso me parece perigosamente eficaz. E, claro, por ser tão ostensivamente aplaudido por aqueles que se julgam mais esclarecidos — os zelotas do racionalismo domesticado.

No seu mais recente texto, publicado na passada sexta-feira no Público e intitulado As nossas percepções estão quase sempre erradas, David Marçal exemplifica esse seu modus operandi de forma lapidar. De início, parece apenas um ensaio sobre as nossas falhas cognitivas e erros de percepção, com base em autores credíveis como Daniel Kahneman, Bobby Duffy ou Hans Rosling. Nada contra.

A exposição da dualidade entre pensamento rápido (Sistema 1) e pensamento lento (Sistema 2) é sólida, didáctica e reconhecida no campo da psicologia cognitiva. Também não é falso que, em muitos domínios da vida social, as percepções das pessoas estão erradas — como demonstram inquéritos sobre imigração, sexualidade, religião ou vacinas. Estamos na área da Psicologia, que é uma ciência humana e comportamental, não propriamente uma ciência exacta.

‘Ensaio’ desta sexta-feira de David Marçal no Público.

Mas o problema de Marçal começa na selecção e no tratamento dos exemplos. O texto pratica, com notável perícia, aquilo que em Ciência se designa por cherry picking: seleccionar apenas os casos que confirmam a tese que se pretende sustentar. Aponta com severidade os erros do cidadão comum, mas omite olimpicamente os erros das instituições científicas, dos especialistas mediáticos e dos organismos internacionais — como se estes fossem infalíveis ou, no mínimo, irrelevantes para o debate sobre desinformação. Isso é desonestidade por omissão. E, como se sabe, a meia-verdade é mais perigosa do que a mentira.

Por exemplo: onde está, no seu ensaio, qualquer referência aos consensos científicos errados da história recente? Onde está a autocrítica às previsões apocalípticas da pandemia da covid-19, em que se comparou a doença à gripe espanhola, se promoveram confinamentos com base em modelizações especulativas, se fecharam escolas sem base empírica sólida e se censuraram vozes discordantes que, com o tempo, se revelaram prudentes e certeiras? Onde está a reflexão sobre o papel das farmacêuticas na produção científica durante a pandemia, ou sobre a falência da revisão por pares como garante de fiabilidade?

Não está. E não está porque esse tipo de crítica não serve o propósito do texto: reforçar que o problema está nos outros — os desinformados, os ignorantes, os simplórios. Nunca no clero científico.

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O mais espantoso — e inquietante — é que, no momento em que a Ciência estava mais bem equipada do que nunca para enfrentar uma pandemia, com sistemas de vigilância epidemiológica, ferramentas estatísticas, equipas interdisciplinares e capacidade tecnológica sem precedentes, muitos dos seus representantes se comportaram como profetas do pânico, influenciando péssimas decisões políticas. Num cenário que exigia prudência, proporcionalidade e avaliação de risco baseada em dados desagregados, optou-se por uma retórica apocalíptica, convertendo incertezas legítimas em certezas absolutas e alimentando o medo como instrumento de mobilização social.

Suspender consultas, diagnósticos e cirurgias; encerrar escolas e confinar crianças à telescola; impedir que se andasse ao ar livre; internar idosos em “covidários”; tudo isto foi sustentado por cientistas que se deslumbraram com o poder de uma distopia.

E o paradoxo é este: o pico de mortalidade em 2020 e 2021 — não apenas pela covid-19 — deu-se quando havia menos visitas às urgências, menos camas hospitalares ocupadas e menos dias de internamento. E depois a Ciência recusou-se a avaliar seriamente as mortes em excesso em 2022, com temor em descobrir causas politicamente sensíveis. Mas note-se: mesmo entre os grupos mais vulneráveis — os idosos com múltiplas comorbilidades —, as taxas de mortalidade em Portugal durante a pandemia foram, por vezes, inferiores às de há vinte anos. Na primeira década deste século, a mortalidade relativa (taxa) entre maiores de 85 anos foi mais elevada do que nos picos pandémicos de 2020 ou 2021. Isto — goste-se ou não — é uma factualidade científica.

E, no entanto, a percepção mediática e institucional — alimentada por divulgadores como David Marçal — insistiu na ideia de uma catástrofe sanitária sem paralelo. Não por força dos dados, mas por imposição de uma narrativa.

Narrativa essa que foi promovida com zelo quase religioso por cientistas e divulgadores que confundiram pedagogia com propaganda, muitas vezes em promiscuidade ideológica, financeira ou simbólica com a indústria farmacêutica e com os centros de decisão político-mediáticos. A “Ciência” — essa entidade abstracta que tantos invocam — serviu de escudo retórico para justificar medidas que, em muitos casos, não resistiram ao escrutínio retrospectivo. E quem ousava colocar perguntas incómodas era imediatamente rotulado como “negacionista”, “desinformador” ou “anticiência”.

Aliás, a ideia de que se combate a desinformação com “mais Ciência” é, por si só, uma armadilha lógica. Que Ciência? A de que momento? Publicada onde? Financiada por quem? Promovida por que canais? A Ciência não é um bloco monolítico. É feita por humanos, com os seus interesses, limitações, enviesamentos e alinhamentos institucionais. O verdadeiro cientista não teme o dissenso — estimula-o. Não silencia dados desconfortáveis — investiga-os. Não exclui outliers — problematiza-os. Quando um divulgador científico se comporta como censor ou paladino do dogma, deixa de ser defensor da Ciência e passa a ser apóstolo de uma fé travestida de método.

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O mais irónico — e preocupante — é que essa retórica ilustrada, desse círculo de Marçal, que despreza o senso comum e endeusa a tecnociência, tem efeitos sociais contraproducentes. Em vez de promover confiança na Ciência, fomenta a suspeita. Em vez de combater os extremismos, alimenta-os. Quando o público se apercebe de que há censura de opiniões divergentes, de que só certas narrativas têm direito à luz do dia, de que os consensos mudam ao sabor do vento político, tende a desconfiar de tudo — até do que está bem fundado. A verdade não se impõe com silenciadores. A confiança constrói-se com transparência, humildade epistémica e coragem para admitir os erros do passado.

Marçal termina o seu ensaio com uma referência ao Brexit como exemplo de erro colectivo baseado em percepções erradas. Pode até ser. Mas pergunto: quantas decisões políticas foram moldadas por dados distorcidos promovidos por instituições ditas credíveis? Onde está a crítica às projecções falhadas do FMI, do BCE ou da OCDE, que erraram sistematicamente durante anos sem qualquer responsabilização? O critério de Marçal é invariável: criticar a irracionalidade das massas, mas nunca a manipulação das elites.

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Talvez a pergunta que hoje mais importa não seja “como combater a desinformação?”, mas sim “quem define o que é desinformação?”. Porque a História está cheia de ideias que foram rotuladas de perigosas ou absurdas — e que se tornaram, mais tarde, pilares do conhecimento. Galileu, Lavoisier, Semmelweis, Barry Marshall, Alfred Wegener: todos foram dissidentes. Todos foram perseguidos ou ignorados. Todos foram, a seu tempo, justificados pelos dados. Nenhum deles teria tido espaço nos palcos bem-pensantes da “Ciência Oficial” onde hoje David Marçal actua com os favores de uma certa academia e da imprensa.

Na verdade, ao propor que a Ciência funcione como instrumento de silenciamento — erguendo-a a tribunal moral e a gendarme da verdade —, David Marçal não está a defendê-la: está a traí-la. Porque a Ciência, por definição, só respira em ambientes de liberdade crítica, de permanente revisão, de dúvida metódica. Quando alguém a invoca para calar em vez de para debater, para excluir em vez de para esclarecer, transforma-a numa paródia autoritária do seu próprio ideal.

E se Marçal ainda acredita que esse é o papel legítimo da Ciência — o de censurar o dissenso e filtrar o que merece ou não ser discutido —, então estará perigosamente próximo de cometer aquilo que mais proclama combater: a desinformação. E mesmo que, em nome da liberdade, lhe reconheça o direito de o fazer, não posso deixar de assinalar a ironia: é que o homem que se arroga paladino da razão parece ter esquecido que a dúvida, e não a certeza, é a verdadeira alma do conhecimento.