Num país onde o Estado se arvora em zelador da moral, da saúde e da dignidade pública, um médico dermatologista embolsa mais de quatrocentos mil euros em apenas dez sábados, como quem colhe, sem lavrar, os frutos da horta alheia.
Miguel Alpalhão, médico do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, consagrou-se, não pela excelência da ciência, mas pela astúcia de facturar, em regime de ‘produção adicional’, valores de uma obscenidade que fariam corar qualquer boticário de uma qualquer aldeia remota.

Dizia-se que removia quistos e sinais benignos, mas cobrava como quem executa cirurgias de alta complexidade. Fê-lo sob o manto da legalidade, apadrinhado pelo labirinto regulamentar que permite, em nome do combate às listas de espera, instituir verdadeiros coutos privados dentro do ‘património público’. Não foi um erro. Foi um modelo. Todos sabiam.
A ministra, com aquele semblante de virtude ultrajada que só a classe política domina, prometeu auditorias, sindicâncias, relatórios. Mas a encenação repete-se. O drama é sempre o mesmo: um escândalo, um discurso, um manto de silêncio. O país volta a dormir. O que ninguém ousa perguntar é o essencial: como é possível que isto não aconteça com regularidade, quando o modelo inteiro é concebido para o abuso?
Todos os partidos, das franjas da extrema-esquerda ao centro plastificado da direita urbana, passando pela nova direita de timbre autoritário e pela liberalóide ilusão meritocrática, rezam o mesmo credo: o problema é de gestão, não é de modelo. Juram, com fervor quase religioso, que se forem eles a nomear os directores, a escolher os chefes de serviço, a contratar os cozinheiros de hospital, tudo será maravilha, eficiência e ética. Nenhum assume que o planeamento central é, por definição, um convite à corrupção, ao compadrio e ao desperdício.

A classe política portuguesa assemelha-se a uma irmandade de prestidigitadores: com um golpe de retórica, fazem desaparecer as causas e projectam as culpas para os rostos mais fáceis. O problema nunca é estrutural, nunca reside no sistema, mas sempre em algum actor que “abusou” ou “exagerou”. Contudo, um sistema concebido para funcionar sem preços, sem propriedade privada, sem responsabilidade directa, não é passível de reforma: é passível de abolição. Os vícios do Serviço Nacional de Saúde (SNS) não são acidentes. São a expressão natural da sua arquitectura moral e económica.
O equívoco não é apenas económico: é civilizacional. A Constituição da República Portuguesa, esse alfarrábio de pretensões pias e contradições colossais, mistura direitos negativos com pretensos direitos positivos, confundindo liberdade com benesse, propriedade com concessão, dignidade com dependência.
Os verdadeiros direitos, os únicos compatíveis com uma ordem justa, são negativos: não ser morto, não ser roubado, não ser preso arbitrariamente. Para esses, não se exige nada a ninguém, apenas que se abstenham da violência. Já os chamados direitos sociais, como a saúde, a educação ou a habitação, exigem espólio, administração, coerção. Alguém tem de pagar, à força se preciso for. É aqui que a liberdade se esvai.

Não há nobreza na espolça fiscal, nem dignidade na dependência estatal. Quando um cidadão é obrigado a entregar parte do fruto do seu labor para sustentar um sistema que não escolheu, não está a contribuir: está a ser saqueado. Quando o serviço oferecido é de baixa qualidade, lento, burocrático e opaco, não está a ser ajudado: está a ser ludibriado. Quando lhe dizem que tudo isto é um direito, não está a ser informado: está a ser enganado.
O que todos se esquecem de dizer: o cálculo económico é impossível num contexto socialista; ou seja, quando os meios de produção pertencem ao Estado. Sem propriedade privada, não há preços genuínos. Sem preços, não há como saber se um acto de produção é eficaz ou ruinoso. A informação económica é dispersa, contextual, intransmissível centralmente. Nenhum ministério da saúde, por mais computadores que tenha, pode substituir o juízo descentralizado de milhões de indivíduos a tomar decisões diárias no mercado. Não se trata apenas de ineficiência, mas de imoralidade institucionalizada. Um sistema como o SNS é construído sobre roubo, sobre coerção, sobre arrogância tecnocrática. O utente não é cliente. O médico não serve. Obedece. O gestor não inova. Cumpre directivas.
Querem exemplo mais claro? Imaginem que o Estado decidia assegurar comida gratuita para todos, em nome do ‘direito à alimentação’. Criava uma rede de cantinas públicas, com cozinheiros contratados por concurso, ementas definidas por nutricionistas da DGS, fornecimentos atribuídos a empresas amigas.

À entrada, filas. No prato, arroz sem sal e peixe congelado. Os alimentos frescos sumiam-se nos desvios logísticos. Os directores de cantina enchiam os bolsos com subornos e favores. Os empregados de mesa tinham, obviamente, cartão partidário. Os utentes, esfomeados, procuravam alternativas no mercado negro. O Estado, incapaz de admitir a falência, dizia que faltava “mais investimento”. É exactamente isso que sucede com o SNS.
Até um mendigo, que vive da caridade e do excesso alheio, consegue comer e vestir-se numa sociedade capitalista. Porque o mercado, quando livre, produz abundância tal que o excedente serve até os que não produzem. Um par de calças, uma refeição quente, um cobertor – tudo isto se consegue pela livre acção humana, sem coerção, sem regulamento. Mas o mesmo Estado que diz querer ‘garantir’ direitos é o primeiro a impor barreiras, a destruir incentivos, a punir a excelência. Na saúde, como na comida, como na educação, o planeamento central gera escassez, degradação, corrupção.
É tempo de dizê-lo sem meias palavras: a saúde não é um direito, é um bem económico. Não é moral que um cidadão seja coagido a pagar pelos serviços de outro, sob pretexto da solidariedade. Não é justo que sejamos espoliados para sustentar um sistema que nos trata como utentes, não como senhores da nossa vontade. É justo, sim, que cada um possa escolher o seu médico, o seu hospital, o seu seguro. Que possa contratar, pagar, reclamar. Que possa, em liberdade, decidir como cuidar da sua própria saúde.

Mas para isso, é preciso coragem. Coragem para dizer que o rei vai nu. Coragem para enfrentar a turba que venera o SNS como se fosse um altar. Coragem para admitir que somos enganados há décadas. E, sobretudo, coragem para mudar. Até quando iremos insistir nesta fraude?
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
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