Luís Montenegro é o gato de Schrödinger: morto e vivo em simultâneo


Se há conjuntura que me concede um certo deleite metafísico, agora que desfruto do repouso eterno sem as agruras da política terrena, é a contemplação da Humanidade no seu perpétuo vai-e-vem de contradições e hesitações. Como se os séculos não lhe tivessem ensinado o mais fundamental dos preceitos: a arte de decidir entre estar morto ou estar vivo. Física e, já agora, politicamente. Porque a dúvida existencial, outrora apanágio dos filósofos, alastrou-se como praga à governação, convertendo os parlamentos em coliseus de incerteza e os governos em felinos hermeticamente fechados.

Tal preceito haurido por Epicuro na sua defesa da ataraxia, polido por Montaigne entre um ensaio e um cálice de bom vinho e subsequentemente sufocado sob a poeira metódica da dúvida cartesiana, haveria de ressurgir séculos depois sob uma nova roupagem – não mais em máximas filosóficas, mas na forma de um gato hipotético, trancado no limbo quântico pelo engenho de Schrödinger.

Para quem ignora, o austríaco de nominata Erwin Rudolf, que venceu o Prémio Nobel da Física em 1933, muito dado à metafísica, engendrou um pobre felídeo encerrado numa caixa hermeticamente fechada, na augusta companhia de um engenhoso dispositivo mortífero – um frasco de veneno e um mecanismo delicadamente ligado ao decaimento de um átomo radioactivo. Se o átomo se desfizesse num lampejo de irreverência nuclear, o frasco partia-se e o nosso desventurado gato passaria a integrar o coro eterno dos bichanos fenecidos das sete vidas. Se, pelo contrário, o átomo decidisse manter-se íntegro e recatado, o gato manter-se-ia em paz e aguardando a abertura da caixa com a altivez de quem já foi divinizado pelos egípcios.

Mas eis o busílis da questão: enquanto a tampa não for levantada, o gato não está nem vivo nem morto – está ambas as coisas em simultâneo! Suspenso num estado de indeterminação, onde a realidade se recusa a fixar-se numa das duas possibilidades, esperando apenas que a curiosidade de um observador se digne a colapsar a sua existência num dos dois extremos possíveis. Eis, pois, a mais refinada metáfora da hesitação política e da natureza equívoca de certos governos, que se encontram num perpétuo estado de indefinição, não sabendo se estão firmemente investidos no poder ou se, por mero acidente do destino, já não passam de um cadáver.

Ora, se há um domínio em que este dilema quântico encontra terreno fértil – mais do que os debates entre Schrödinger e os seus contemporâneos (Einstein, Podolsky e Rosen) – é na política portuguesa.

Diante de todos, pelo menos desde a noite deste sábado, um espectáculo digno dos melhores entremezes da política lusa toma forma: tem-se um primeiro-ministro, Luís Montenegro, que deseja ser simultaneamente um governante investido e um mártir da instabilidade, enquanto há um líder da oposição, Pedro Nuno Santos, ensaiando a arte da indecisão, oscilando entre o verdugo e o cúmplice. Assim, num prodígio de prestidigitação parlamentar, temos um governo que está e não está, governa e não governa, enquanto a oposição se entretém num jogo de paciência, à espera de que a caixa se abra sozinha

Portanto, a governação portuguesa, neste momento, não se encontra nada distante do tal felino enlatado do cientista austríaco: o Governo existe e não existe, é sólido e gasoso, é legítimo e ilegítimo, governa e não governa – mas é tudo isso em simultâneo porque ninguém parece se atrever a abrir a caixa. 

Prevejo, perante tão supremo nível de indefinição, que os deputados da Nação tenham de contratar físicos teóricos para determinar a posição exacta do Governo no espectro da realidade. Bohr e Heisenberg, chamados, postumamente, para resolver a crise, deverão concluir que a única forma de saber se o Executivo luso existe é observá-lo sem interagir com ele – como um panda tímido num jardim zoológico.

A verdade, caríssimas leitoras e caríssimos leitores, é que o paradoxo do Gato de Schrödinger foi concebido para demonstrar os absurdos da mecânica quântica, mas acabou por se tornar um excelente modelo para vislumbrar e compreender a política contemporânea nas terras de Camões, que ainda por cima era zarolho. Quando um primeiro-ministro coloca a hipótese de se submeter a uma moção de confiança e a oposição se recusa a decidir se o sustenta ou o derruba através de uma moção de censura, temos, sem sombra de dúvida, uma superposição de estados políticos.

Luís Montenegro está e não está no poder. O seu governo existe na condição felina de um gato que não pode decidir se já expirou ou se ainda tem alguma das sete vidas para gastar. Como sucede com a gestão da Spinumviva, Montenegro não governa nem deixa de governar, embora tenha andado a governar-se. Está num estado quântico de hesitação, como um Santo António de barro que, em vez de ajudar a encontrar coisas perdidas, perdeu-se a si mesmo.

E aqui entra Pedro Nuno Santos, um homem que, qual Hamlet burocrático, se recusa a ser o carrasco de Montenegro, e ao mesmo tempo se abstém de lhe oferecer salvação. Na prática, o Partido Socialista é ambas as coisas: carrascio e salvador, mas sem querer abrir a caixa e verificar o estado do gato, optando antes por assobiar para o lado. Finge que não está de martelo em punho, mas também não querendo parecer relutante em esmagar o frasco de veneno que poderá matar o felino Montenegro. Eis o teatro da indecisão, onde todos os actores se movem como sombras chinesas projectadas numa parede cambaleante.

Neste preciso momento, Pedro Nuno Santos é como uma estátua romana hesitante, uma espécie de Discóbolo de Míron que nunca chega a lançar o disco. Montenegro, por seu turno, aparenta a solenidade de um busto de bronze – fixo, mas já com pombos metafóricos a sobrevoá-lo, esperando que a gravidade política decida o seu destino.

Mas, afinal, qual o sentido desta coreografia de hesitações? Se um Governo só cai com o chumbo de uma moção de confiança ou com a aprovação de uma moção de censura e a oposição fica hesitante qual opção escolher, então o Governo não cai, mas também não se fortalece. E Luís Montenegro, qual gato de Schrödinger da política nacional, continua fechado na sua caixa governativa, vivo e morto, suspenso entre a permanência e a extinção. 

Se as minhas pacientes leitoras e os meus estoicos leitores ainda não sucumbiram ao riso, permitam-me que acrescente um último paralelismo: nos tempos áureos da diplomacia europeia, o Congresso de Viena (1815) viu-se enredado em negociações infinitas porque ninguém queria ser o responsável por decidir o que fazer com os destroços do Império Napoleónico. Agora, como antes, na sua versão parlamentar do problema, Portugal transforma a governação num jogo de paciência onde a solução, em vez de surgir pela acção, aparecerá pelo esgotamento dos participantes. 

E, assim, neste imbróglio governativo digno do mais refinado teatro do absurdo, assistimos a um primeiro-ministro que implora sustento e a uma oposição que, num requinte de indecisão quântica, oscila entre a misericórdia e o punhal, mas sem jamais empunhar nenhum dos dois. Schrödinger, se porventura tivesse paciência para estas trivialidades terrenas, talvez suspirasse com aquele seu ar de cientista desencantado e murmurasse: “O Governo está vivo ou morto? Eis a questão. Mas interessa a quem?

Ao que o próprio gato, lá do fundo da caixa parlamentar, entre um bocejo e um olhar de superior desinteresse, se limitaria a dar uma lambidela na pata e a concluir, com a fleuma daqueles que já tudo viu: “Interessa? Bah! Desde que me tragam atum, tanto faz.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas

N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.


N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.