Políticos e a hipocrisia da ‘transparência opaca’


Em mais um dos seus rasgos de hipocrisia em fim de festa, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, veio afirmar que “a comunicação social tem um papel a desempenhar”, que pode ser “desagradável para os titulares de poderes políticos, mas é um preço”. Claro que Marcelo, especialista em discursos flexíveis como um contorcionista de circo, gosta sempre de equilibrar o jogo: reconhece o papel da imprensa, mas logo relativiza, como se o escrutínio público fosse um incómodo inevitável, uma consequência desagradável da democracia, e não um direito fundamental dos cidadãos.

Entretanto, o Governo, em coro harmonioso, anda a lamentar o suposto “voyeurismo” sobre os rendimentos dos políticos. A tese é brilhante: nunca há corrupção nem tráfico de influências, não há conflitos de interesse, jamais haverá favores encobertos – o problema é a obsessão dos jornalistas e do povo em querer saber demasiado. E, claro, José Pedro Aguiar-Branco, esse veterano da política e dos negócios, surge a fazer coro, alertando para o perigo de um clima onde, por “demagogia, inveja ou maledicência”, se anda demasiado preocupado com os interesses dos políticos. No limite, diz ele, corremos o risco de “só ficar com políticos sem interesse algum”. A ideia, subentendida, é que bons políticos precisam de um certo grau de opacidade, que os grandes talentos da política só sobrevivem se não forem demasiado escrutinados. Se não for permitido misturar negócios e política, se as perguntas forem muitas e incisivas, então só nos restará uma classe política medíocre.

A falácia desta narrativa é que assenta numa inversão descarada de valores. Os políticos não são vítimas de um escrutínio excessivo – são, isso sim, os protagonistas de um sistema que se esforça ao máximo para evitar ser escrutinado. A ladainha do “voyeurismo” não é mais do que uma manobra de diversão, um pretexto para mascarar a falta de transparência e a aversão ao legítimo controlo dos actores políticos.

Na verdade, a legislação sobre a transparência dos rendimentos e património foi desenhada pelos políticos para dificultar ao máximo o acesso a informações relevantes. E não para defender as vidas privadas, mas sim para esconder vícios privados com dinheiros públicos. Os mecanismos de consulta das declarações de rendimentos e interesses dos titulares de cargos políticos são deliberadamente burocratizados, e qualquer tentativa de furar essa barreira enfrenta obstáculos legais e acusações de perseguição mediática. Quando alguém exige mais rigor, a resposta é sempre a mesma: indignação, vitimização e apelos à moderação, como se o problema não fosse a falta de transparência, mas sim a ousadia dos jornalistas e cidadãos que insistem em perguntar.

A Lei da Transparência dos detentores de cargos políticos, agora gerida pela Entidade para a Transparência, não passa de um exercício de cinismo político, um embuste cuidadosamente arquitectado para que a transparência continue a ser uma ilusão sem qualquer aplicação prática. O regime veste-se com as roupagens da ética e da prestação de contas, mas o corte do fato é feito à medida da classe política, com bainhas suficientemente largas para esconder o essencial e costuras reforçadas contra qualquer tentativa de escrutínio sério.

A ilusão começa logo com a suposta abertura das declarações de rendimentos, património e interesses. Em teoria, tudo parece acessível, mas basta um olhar atento ao texto legal para perceber que os dados fornecidos são cuidadosamente depurados de qualquer utilidade para investigações jornalísticas. A lista de restrições é extensa: desde a justificada protecção de dados pessoais (como a morada) à exclusão de detalhes fundamentais sobre património e rendimentos. O resultado? Jornalistas e cidadãos são impedidos de cruzar dados de forma eficaz, deixando lacunas perfeitas para quem quiser ocultar informação sensível.

Printscreen do registo de interesses de um deputados onde se considera que todas as cinco actividades, cargos ou funções que exerceu no ano anterior estão escondidas “devido a sigilo profissional”.

Por exemplo, ao impedir a consulta detalhada de serviços prestados no âmbito de atividades sujeitas a sigilo profissional ou ao restringir o acesso a informações sobre rendimentos, participações societárias e aplicações financeiras apenas a valores totais, impossibilita-se qualquer verificação séria de potenciais conflitos de interesse. Um político pode ter realizado trabalhos em empresas que fazem negócios com o Estado, mas a lei assegura que ninguém terá acesso ao nome dessas empresas. Transparência? Só a fingir.

E o grande truque desta encenação legislativa está na criminalização do escrutínio. A violação da “reserva da vida privada” é punida nos termos do Código Penal, o que significa que, em teoria, um jornalista que se atreva a publicar informações inconvenientes pode ser arrastado para os tribunais. E nem precisa de haver uma fuga de dados – basta que a divulgação não esteja formalmente autorizada para que o profissional da imprensa se veja transformado num réu. Como cereja no topo do bolo, há ainda um artigo que impede a publicação da declaração única na Internet ou nas redes sociais, tornando impossível que qualquer cidadão tenha acesso livre à informação.

Portanto, documentos que, por definição, são públicos, não podem ser tornado verdadeiramente acessíveis, sob pena de punição. As imagens que decidi publicar a acompanhar este texto só não serão puníveis porque não identifico os deputados e posso alegar ser um “meio adequado para realizar um interesse público e relevante” – neste caso, denunciar uma fantochada.

Mas a maior prova de que esta lei não passa de um embuste é a burocracia kafkiana montada para dificultar o acesso às declarações. Em vez de um sistema aberto e digitalizado, com dados acessíveis e pesquisáveis, impõe-se um sistema absurdo, onde cada pedido de consulta exige um requerimento formal e fundamentado, com registo individualizado, preenchimento repetitivo de formulários e um labirinto de códigos de acesso, reconfirmações e dificuldades informáticas.

Prinstcreen de uma declaração de um político onde não se identificam as aplicações financeiras, que podem ser acções em empresas sob regulação ou intervenção do Estado.

Para se ter uma ideia do grau de ridículo, demorei mais de seis horas – repito, seis horas – a concluir os 78 requerimentos das declarações dos deputados do PSD que resultaram nesta notícia. Sim, demorou-se mais tempo a fazer os requerimentos do que as consultas propriamente ditas. Quando tentei avançar com mais pedidos para cobrir todos os 230 deputados, o sistema informático da Entidade para a Transparência colapsou de novo. Desisti. Prefiro denunciar esta palhaçada. Para agravar, após a autorização – com registo –, o acesso expira ao fim de cinco dias, não sendo passível de se fazer a gravação em formato consultável.

Se houvesse verdadeira vontade de garantir transparência, os dados estariam acessíveis online, sem restrições, e com a totalidade da informação relevante disponível. Não haveria necessidade de pedidos formais, nem registos de quem consulta, nem poderes discricionários para decidir quem pode ou não ver. Mas isso seria um problema para o regime – que criou esta obtusa lei, ainda mais restritiva do que a anterior, gerida pelo Tribunal Constitucional –, porque a transparência real implica responsabilidade, e responsabilidade é precisamente aquilo que a classe política portuguesa mais teme. Melhor mesmo é continuar a iludir os cidadãos com esta transparência de faz de conta, onde tudo parece acessível e tudo se esconde.