Viver para ver! – e nem a morte me salvou desta tragédia. E não é apenas ver, mas continuar a ver, porque há desgraças que, longe de se extinguirem com o tempo e a vida, se reproduzem com uma fertilidade assombrosa. Dizem que o progresso humano nos levaria a um patamar de luz e discernimento, mas, por vezes, suspeito que apenas se fabricam lanternas mais sofisticadas para iluminar a velha e perene estupidez. O ouro e o latão continuam a brilhar indistintamente aos olhos dos incautos, e a multidão, essa infalível congregação de juízes estrábicos, segue a apontar, como se fosse um novo génio, cada novo saltimbanco que sobe ao palco do mundo com gestos largos e retórica enfatuada.
Não há mistério algum na ascensão desses personagens. Em tempos, a imbecilidade ainda cultivava certo pudor e disfarçava-se sob a capa do estudo ou da compostura; hoje, desfila em despudor, convencida de que a ausência de mérito é afinal, ela própria, um mérito novo. E que direi da fama? Ah, esse bálsamo dos inanes! Se outrora se mostrava necessário algum talento, ainda que medíocre, para conquistar renome, nestes dias basta uma aparição mediática, um bom escândalo, um disparate bem pronunciado, um rasgo de desfaçatez. O mundo, esse augusto areópago de néscios, já nem distingue mais entre o meritório e o ilusório, entre o laudatório e o difamatório, entre o valoratório e o vitatório.
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E eu no meio disto? Eu, que já morri, continuo a ver! Se a vida fosse um romance de boa feição, teria encerrado eu os olhos e deixado isto entregue à ópera bufa. Mas não; cá estou, espectador involuntário desta contínua farsa, assistindo à civilização marchando jamais na direcção desejada. Na verdade, o maior problema de viver para ver – ou de morrer e continuar a ver – não é tanto aquilo que se vê, mas aquilo que se continua a ver, apesar de toda a crença optimista no aperfeiçoamento humano. Quem me dera ter a eternidade me concedido não apenas a imortalidade do olhar, mas também a possibilidade de manter as pestanas para, dessa sorte, nem que fosse por um instante, deixar de assistir a esta tragicomédia incessante.
E eis que, por tudo isto, tive então de suportar, no mais recente acto desta peça de vaudeville, o deputado Rui Paulo Sousa, do Partido Chega, elevar a lógica política a um novo patamar de absurda simplicidade – ou de complexa imbecilidade. Em momento de arroubo lógico, proclamou ele que o seu líder, André Ventura, é o candidato presidencial mais reconhecido pelos portugueses e, se é o mais reconhecido, então é porque os portugueses o conhecem; e se o conhecem, é porque gostam; e se gostam, votam; e se votam, ganha; e se ganha, há de passar à segunda volta das Presidenciais! Eis a política reduzida à mecânica infalível do óbvio ululante, onde a notoriedade se confunde irremediavelmente com a preferência e a repetição de um nome se torna prova irrefutável do seu sucesso.
Que se registem, pois, nos anais da ciência política estes novos postulados do silogismo sousaniano, dignos de figurar entre Aristóteles, John Stuart Mill e, por que não, um pasteleiro de génio que conclua que, se um bolo cresce no forno, é porque já nasceu levedado. Não há aqui espaço para hesitações ou incómodos detalhes estatísticos: se um nome ecoa nos ouvidos do povo, nem é preciso discernir se é por motivos deploráveis ou apenas medíocres – a vitória fica certa e é apenas uma questão de tempo e decibéis.
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O Chega, que aprecia apresentar-se como o bastião da moralidade e do combate à corrupção, esquece-se que tem tido um talento assaz curioso para coleccionar figuras que se tornam célebres pelos piores motivos.
Quem não se lembra do seu deputado que, ao invés de um discurso inflamado com bengaladas no soalho, preferiu dar chapeladas num árbitro?
Quem já se olvidou do seu dirigente que, feroz defensor da castração química para pedófilos, acabou apanhado em negociações pouco edificantes com um menor de 15 anos?
Quem se esqueceu do seu deputado que, em vez de fiscalizar a governação, se especializou na arte de desviar bagagens na Portela, tornando o seu check-in nos Açores numa actividade de risco para os passageiros mais distraídos?
Quem deixará de recordar o seu deputado que, após uma noite de libações, decidiu que as leis de trânsito eram meras sugestões, sendo surpreendido ao volante com uma taxa de álcool digna de um enólogo em plena fermentação vínica?
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Quem não nomeará o seu militante que, empenhado em defender os valores tradicionais, resolveu que o melhor modo de exaltar a família era distribuir umas cachaporras domésticas, fazendo da moral um exercício de punho fechado?
E que dizer do espectáculo contínuo da polémicas de André Ventura, onde cada semana há um novo sobressalto, uma nova saída de tom, uma nova indignação fabricada para gáudio da turba?
O reconhecimento sem mais, minhas mui formosas e meus ilustres cavalheiros, é um critério estapafúrdio para o Chega que se nos apresenta como um oráculo do destino eleitoral. Pobres de espírito.
Se ser conhecido garantisse uma eleição, então Judas Iscariotes, à época do seu infeliz episódio monetário, teria sido proclamado líder de Jerusalém com ampla vantagem sobre Caifás. Pela mesma lógica inexorável, Nero, tão célebre quanto incendiário, teria sido aclamado tribuno perpétuo do povo romano. E que dizer de Rasputine, cujas façanhas místicas e lascivas o tornaram notório em São Petersburgo? Se a popularidade bastasse, teria ele despachado os czares e sentado os abades num concílio para aclamar os méritos terapêuticos da devassidão.
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E não nos esqueçamos do bondoso e tão afamado Barba Negra, que teria sido eleito almirante de Sua Majestade Britânica, desde que os eleitores não se importassem com a ligeira questão dos saques e homicídios em alto-mar.
Não, caríssimas leitoras e estimados leitores! A fama não é predicado de mérito, e a notoriedade não é atalho para o poder. E há ali, na lógica sousaniana, um perigoso e indesejado sofisma, porque defender que quanto maior a notoriedade maior a fama, também se aplica à infâmia. O criminoso vulgar pode ser conhecido na sua rua, mas não na cidade. O vigarista sofisticado pode ser falado na cidade, mas não no país. E só o déspota e o traidor à Pátria se alcandoram em todas as cabeças e entram nos anais da História.
Assim, ao proclamar Ventura como o mais reconhecido dos candidatos, o que o deputado do Chega quis dizer? Que o nome do seu chefe ecoa em todas as esquinas, em todas as cidades, vilas e aldeias? Que a sua presença é constante nos debates e nas redes sociais? Muito bem! Mas será esse reconhecimento pelo seu talento e espírito público, ou pelo espectáculo de demagogia e populismo?
Talvez fosse bom recordar os grandes pensadores. Platão, ao falar dos governantes ideais, não recomendou que fossem os mais conhecidos, mas sim os mais sábios. Aristóteles, que estudou a política com rigor, nunca disse que a fama era critério de excelência. E Maquiavel, que estudou o poder na sua expressão mais nua, não se cansou de advertir que a reputação pode ser fabricada, mas que nenhum príncipe sobrevive apenas da aparência – precisa de astúcia para governar e do consenso real para chegar ao poder, e ali se manter.
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O problema, no fundo, é que os tempos estão para raciocínios fáceis destinados a plateias crédulas, convertendo a notoriedade em critério absoluto, como se o simples eco de um nome fosse suficiente para lhe conferir substância. As redes sociais, essas ágoas vivas, promovem a ilusão de que tudo se mede por números e estatísticas superficiais. Assim, se uma sondagem diz que alguém é reconhecido, não pode a propaganda transformar isso em inevitabilidade eleitoral. Se assim fosse, a Cristina Ferreira e o Tony Carreira disputar-se-iam na segunda volta das Presidenciais, e o José Castelo Branco debateria políticas públicas com os grandes estrategas da Nação.
Diante de tamanha balbúrdia intelectual, que resta senão rir? Rir como riram os senadores romanos de Nero; rir como riram os cortesãos de Luís XIV quando o rei dançou vestido de sol; rir como riu Voltaire dos dogmas do seu tempo. Porque, ao fim e ao cabo, a política portuguesa já nem se veste de tragédia grega, onde até há um sentido de destino inexorável. Transformou-se sim num teatro burlesco, em commedia dell’arte, com personagens tão previsíveis como risíveis e com truques tão grosseiros como pueris.
E não há como, fazendo cair o pano, acabar com esta farsa.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.
N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.