INSTAR, a arte de condicionar sem ousar proibir


Dizem os doutos dicionários, incluindo o do meu patrício Houiass, que “instar” – verbo de regência múltipla, aceitando as preposições ‘a’, ‘para’ e ‘por’, conforme reza a santa gramática – significa pedir com instância, com insistência; solicitar reiteradamente; encorajar com veemência, sem que se caia no movediço, capcioso e insidioso terreno movediço da ordem e da proibição. Ao contrário da aspereza dos tiranos ou da hirsutez dos déspotas – que impõem sem apelo nem agravo –, aqueles que instam somente manejam uma arte diplomática, como quem exorta sem esbofetear, persuade sem subjugar e clama sem escândalo. Tudo dentro dos limites gramaticais, sem jamais instar contra a sintaxe.

Instar é um verbo delicado, refinado, polido pelo tempo e pela retórica das cândidas almas prudentes. É verbo que não manda, que não obriga, que não legisla: apenas sugere, somente recomenda, só aconselha, embora com um leve toque de urgência. Como é belo o instar! Quase uma arte, de certeza um bailado semântico onde o poder se insinua sem jamais descer à vulgaridade de um édito ou de uma censura declarada.

E que seria da civilização moderna e democrática sem todos aqueles que instam os outros?

Desde tempos imemoriais, os grandes beneméritos da ordem e da moral compreenderam que uma liberdade desenfreada seria um perigo, porquanto os homens, deixados à sua própria sorte, acabariam sempre por enveredar por caminhos inconvenientes. Por isso, por bondade e paciência, por desvelo tutelar e zelo pedagógico, pontífices do alheio arbítrio e esclarecidos curadores da humanidade assumiram o labor de instar os distraídos, os indisciplinados e os inconvenientes a reverem os seus caminhos.

O primeiro grande instador da História foi, sem dúvida, Sócrates – e vejam no que deu! Passou a vida a instar os atenienses a pensar por si próprios, a questionar os deuses e as leis, até que os instados, fartos de tanta insolência, decidiram instá-lo de volta a tomar uma taça de cicuta. Os seus discípulos aprenderam a lição: Platão, por exemplo, compreendeu que a maiêutica não se conduz com perguntas incómodas, mas com regras bem estruturadas, instigadas com tacto para satisfazer não a inquietação da verdade, mas o consolo de certezas reconfortantes.

Roma, essa magnífica forja de leis e impérios, aperfeiçoou o instar com tal maestria que haveria de perdurar pelos séculos. O Senado, essa excelsa reunião de precavidos varões, instava os generais a serem leais, instava os tribunos a não abusarem da palavra, instava os cidadãos a confiarem cegamente na lei e na ordem. E se, por acaso, algum recalcitrante resistisse ao instar senatorial, então um pretor ou um legatus estaria sempre pronto a instá-lo com um exílio ajustado.

A Idade Média, uma extraordinária era de fé e temperança, também compreendeu a utilidade da arte do instar. A Santa Igreja, com a sua inexaurível paciência e magnânima caridade, coadjuvada pelo Santo Ofício, modelo de prudência e equilíbrio, nunca impunha, apenas incentivava. Vá lá, exortava com vigor evangélico. Jamais obrigava alguém a crer, muito longe disso. Apenas instava fraternalmente os hereges a reconsiderarem os erros, sob a gentil persuasão de um ligeiro aquecimento pirotécnico nas estacas de um auto-de-fé. E o povo, essa turba sempre tentada pelo demo, sujeita a ocasionais lapsos doutrinais, aprendia célere de que instar era sempre um generoso convite, cuja desnecessária recusa, embora tecnicamente possível, trazia consigo umas modestas repercussões térmicas, tão eficazes na purificação da alma como na combustão da carne.

Mas nenhuma época desenvolveu de forma tão primorosa a arte do instar como a modernidade. No tempo dos monarcas absolutos, instava-se com elegância: “Meu caro duque, seria uma grande tristeza para Sua Majestade se tivésseis de vos retirar para a vossa propriedade rural por tempo indefinido…”.

No tempo das revoluções, instava-se com mais fervor: “Cidadão, os princípios da Revolução exigem a vossa adesão. Resisti? Pois então, a guilhotina hás-de instar-vos com mais veemência.”

No tempo do liberalismo triunfante do século XIX, instava-se com polidez parlamentar: “Caro súbdito, ninguém vos obriga a aceitar as bênçãos do progresso, mas convém lembrar que, sem a devida deferência à ordem estabelecida, certas portas podem fechar-se, e certos favores administrativos podem tornar-se… nulos.”

Ao longo do século XX, com as ideologias a florescerem, instava-se com um misto de idealismo e pragmatismo: “Camarada, o futuro radioso do proletariado depende da vossa lealdade inquebrantável. Discordais? Ah, compreendemos, mas um breve retiro para reeducação talvez vos ajude a ver a luz… caso contrário, sempre há outras formas de instar-vos a cooperar.

Mas se há um domínio onde o instar atingiu a perfeição, é na política das democracias. Os grandes regimes, aqueles que compreendem a delicada mecânica da obediência voluntária, sabem que a censura bruta já não é eficaz. O velho decreto, a proibição escancarada, a perseguição direta – tudo isso caiu em desuso. O segredo está em instar através de entidades ditas independentes.

As democracias liberais, mestres na arte do parecer sem ser, compreenderam que o poder funciona melhor quando não parece poder. Assim, os governos já não censuram os jornais, apenas instam a imprensa a ser responsável. As autoridades já não impõem, apenas encorajam boas práticas. Os tribunais já não condenam opiniões, apenas instam os cidadãos a serem cuidadosos com as palavras.

E é neste contexto de delicada repressão que, em Portugal, se tem em funções a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), esse augusto organismo de imparcialidade e elevação moral, cuja única missão é instar os jornalistas a conduzirem-se com responsabilidade. Aqui, valha-nos Deus e a Constituição da República Portuguesa, não há censura – que ideia! Abrenúncio! isso era coisa da Outra Senhora. Apenas há uma mão suave sobre o ombro, somente um sussurro paternal: “Caro jornalista, talvez devêsseis ponderar esse tom… Afinal, há valores a preservar, equilíbrios a manter, sensibilidades a respeitar…”.

Insta-se, diz a Entidade Reguladora para a Comunicação Social…

Se, por acaso, o jornalista for de natureza bravia e insistir em desafiar a doce mão reguladora, então não há problema. Quer dizer, instar-se-á de novo, com mais convicção. E mais uma vez, e outra, e mais outra, até que a resistência do instigado se dissolva num silêncio prudente. Gota a gota, até que a pedra ceda. Primeiro, um pequeno processo – um gesto simbólico, claro, para reafirmar os princípios. Depois, uma leve advertência – apenas um lembrete amigável de que certos trilhos são escorregadios. Em seguida, um subtil sinal de que talvez fosse mais sensato recalibrar a bússola editorial. E, por fim, sem pressas nem atropelos, o somatório de tantas generosas instigâncias resultará em proscrição pública, sem que ninguém se atreva a chamar-lhe censura. Afinal, ninguém proibirá nada – apenas se instiga à prudência, com a delicadeza de quem sabe que a liberdade ordenadamente conduzida é sempre mais saudável para todas as partes.

Sublime estratégia. Instar hoje é, na verdade, a censura do século XXI, mas vestida de seda e perfumada com ares de respeito democrático. É a rédea dourada que guia sem parecer prender. É a sombra tutelar que cobre sem parecer sufocar.

Se atentardes com o devido discernimento, talvez devêsseis, dilectas donzelas e respeitosos cavalheiros, agradecer à ERC e às suas congéneres por esse zeloso ofício. Pois, convenhamos, o homem livre é um perigo para si mesmo. O jornalista que escreve sem ser instado pode acabar por dizer verdades inoportunas, ferir susceptibilidades perigosas, questionar consensos laboriosamente construídos. Como pode um Estado responsável permitir tal coisa?

Não, minhas senhoras e meus senhores, a liberdade, para ser usufruída em plenitude, não pode ter excessos, e convém ser conduzida, balizada, orientada com gentileza e firmeza. E, por isso, que método mais eficiente do que este instar persistente, essa mão invisível que nunca proíbe, mas sempre condiciona?

Portanto, deixemos os reguladores continuarem a instar. Deixemos que os jornalistas aprendam a ser instados com a devida humildade. E deixemos que o público, pouco a pouco, se habitue a um jornalismo instado, sentado e resignado, onde tudo se pode dizer desde que dentro dos limites do conveniente. Só assim o instar – nobre mecanismo purificador e instrumento de aperfeiçoamento cívico – cumpre o seu glorioso destino: sem matar a liberdade, ensina-a a comportar-se. E com o tempo, a liberdade, ensinada e aprimorada, deixará de ser instada: adestrada, amansada e castrada, instar-se-á sozinha.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas

N.D. – As ilustrações que acompanham este texto foram produzidas com recurso a inteligência artificial.


N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.