Da amizade ao pacote

black Corona typewriter on brown wood planks

PACOTE LABORAL I Desde 2005 libertei-me de entidades patronais. O meu último patrão foi o sr. Paulo Ferreira, mentor do universo Blue. Saí do remanso azul depois de um quiproquo com o sr. Tiago Silveira Machado, esse modelo de virtudes. Era ele ou eu. Depois de uns meses na prateleira acertámos a saída e ficou o leal director até este engenheiro da lisura sair airosamente para fazer o seu produto alternativo e a Blue dar o badagaio. A Blue foi um grande projecto até certo ponto. Devo a essa revista muitos meses na estrada, mundo e antecâmara de livros. E amizades. Depois passei a freelancer.

Um bom patrão reparte e não parte. Não alinha por partidos a não ser a defesa dos seus empregados. Não toma os accionistas como os únicos merecedores de lucros.

No mundo do trabalho o melhor patrão que tive foi um mestre da Cabala. É por ele que me sigo.

A venda de rua é um trabalho, embora não pareça. Neste mundo há poucos amigos, e os que há não padecem de invejite aguda. Eles sabem quem são, e eu idem.

Andam ao sol, ao frio, à chuva e respeitam a inclemente acção do tempo. Não têm salário, subsídios e os descontos são por sua conta. Tirando meia dúzia de empresas que se querem exemplares. As benesses são como as das empresas sediadas nos Países Baixos.

Creio que no dia da greve geral furarão o protesto. Afinal, não é nada com eles.

MANEL JOÃO I O jogral João faz falta. O problema é haver dois palhaços ricos na corrida a Belém. Quero ver o face a face Ventura Vieira. Num país de aflitos, o humor de salvação nacional é uma lufada de aerofagia, um hino ao peido. O MJ foi meu vizinho ou fui eu dele, no bairro de Campo de Ourique. É um blasée costurado, veste fatos por medida. Um actor, poeta fingidor, necessário para desconstruir a falsa seriedade do candidato bem intencionado cuja intenção é sacar umas viagens e uma avença vitalícia. O Vieira não quer nada disso, a começar porque não precisa. Tem dote. Costumava ir ao Maxim ver os Ena Pá. O alívio da tensão facial é imperativo. Se é para morrer, que se morra de riso. Se tudo isto já é uma desbunda triste, venha o tinto. Troco o Ferrari por um Aston.

ADN I Estava aqui a falar com o meu botão esquerdo sobre genealogia. Saber de onde vimos, pode dar uma ajuda para onde vamos. Sei por onde não vou (emprenhar por ouvido, a título de exemplo). Talvez deva ao avô Garcia (jornalista, escritor) a mania de só falar e escrever a partir da escuta e observação, acompanhada da leitura. Levar a carta a Garcia é bonito. É como o belicismo justiceiro dos Gomes. O Salazar tem patine e ecoa dos bascos. E o Abel, claro. O Sousa rima com todos e vem de pai e mãe. Agora, vamos ao carácter do indivíduo entrelaçado com os povos, as origens. Um quinhão sefardita via Morão de Campos também cá mora e nutro curiosidade e simpatia por hebraicos (filósofos, artistas, humanistas, mestres de Krav Maga), como por Ibn-Arabi ou Ibn-Batuta. Adão Cadmon ou Jesus de Nazaré, serei parente ou basta a afinidade? Já chamei pai ao Miller e mãe à Clarice, num auto-baptismo literário. Ou à Cristina Carvalho que bate todas as mães. Lede a breve trecho o seu livro sobre a Yourcenar, essa rainha da lucidez retrospectiva que me deu ensejo para chamar Margarida à minha mais pequena. Tudo está ligado, até o pó de Cassiopeia.

AMIGOS I A Amizade é do melhor que o mundo tem. Amistad, de amistoso, de aligeirar a carga, partilhar larachas, chorar ombro a ombro, rir até voltar a pingar a lágrima, emprestar algum sem receio de calote. É por aí, livre de ciúme, orgulho, inveja, leva e trás, chibaria. Coisa nobre de guardar segredos até à tumba. Saber que se pode contar. Discordo quando os pais dizem aos filhos “eu não sou teu amigo”. Os pais deveriam ser os primeiros e maiores amigos, para se estabelecer um lastro de confiança nesse traço de união. Os Estados (e os governos) deveriam ser os melhores amigos dos cidadãos e não os seus primeiros inimigos. Os amigos, os grandes, dão por dar, sem moeda de troca. Aturam-nos como nós a eles. Gosto de amigos que dizem o que pensam e sentem. Um amor sem amizade é coxo. Não é Amor.

DA RELEVÂNCIA I Para um amblíope é relevante andar por passeios desimpedidos (incluindo de ciclistas e trotineiros nas suas montadas apressadas), além de ter um cão-guia com benefícios fiscais e outros que tais, pois a cegueira limita. Para quem tem fome ou quem vive para se enfartar a comida é relevante. É de igual maneira relevante dormir descansado e ter sonhos fúcsia, livre de ameaças de despejo, aumento de renda ou da taxa de juro do crédito, incluindo as desferidas na própria casa. A relevância abrange o livre acesso à informação dos direitos e deveres de um cidadão ou de quem o pretenda ser numa pátria adoptada. É de extrema relevância o domínio da língua bem como das emoções. Tal pode estender-se à compreensão de um texto. Comunicar, seja a quem for, oralmente ou por pomba-correio, o resultado de uma reflexão, sem preconceitos e hostilidade, munido apenas da razão e da ternura, é de relevância superlativa.

Era aqui que queria chegar: comunicar com ternura, ainda que o assunto seja difícil. Na irrelevância de uns, pode estar a relevância de outros.

Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)