Marxismo: o protestantismo secularizado


Há espectáculos televisivos que, de tão repetitivos, se tornaram uma espécie de missa negra do pensamento português: o candidato presidencial do PCP, António Filipe, senta-se diante das câmaras, despeja o catecismo marxista com a serenidade de quem recita contas de um rosário gasto, e os jornalistas acenam, reverentes, como se estivessem diante de uma esfinge portadora de verdades eternas.

António Filipe, na sua última entrevista na CNN, brindou-nos com uma daquelas frases que fariam corar até o velho Marx – não de vergonha, mas de tédio: “O velho de Marx ensinou-nos algo que hoje é aceite (sic) unanimemente: o trabalho cria a riqueza produzida”! Como se o disparate inicial tivesse de ser coroado por outro ainda maior, arrematou: “Os lucros resultam da parte não paga aos trabalhadores; se os lucros aumentam exponencialmente, isso é retirado dos salários.” Assim, sem pestanejar, como quem anuncia que descobriu a pólvora.

António Filipe, candidato presidencial apoiado pelo PCP, na entrevista que concedeu à CNN, no dia 16 de Novembro. / Foto: Imagem obtida a partir do vídeo da CNN | D.R.

Estas afirmações grotescas continuam a infectar o espaço público como um vírus, aceites como verdades cristalizadas, repetidas por gerações de alunos mal preparados e comentadores educados nas madraças estatais ainda piores.

É o velho mito protestante — esse veneno intelectual que rejeitou toda a autoridade natural e pariu o socialismo — transfigurado em axioma económico. A recusa da autoridade papal, que durante séculos moldou a ordem social, degenerou no dogma moderno de que todas as relações humanas resultam em conflitos insanáveis: empregador contra empregado, professor contra aluno, general contra soldado. Não há colaboração, não há benefício mútuo; há exploração, opressão, antagonismo.

O socialismo é o protestantismo secularizado: a ideia de que ninguém tem autoridade legítima, de que toda a estrutura social assenta num roubo camuflado, e de que um qualquer comité de iluminados tem de reorganizar o mundo para espiar o pecado original do lucro.

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Foto: D.R.

Eis o terreno perfeito para a supremacia do estado totalitário em que hoje vivemos: se toda a cooperação humana é um conflito, se o trabalhador é sempre uma vítima do empresário, então o Estado – esse bandido estacionário com licença para roubar – surge como o mediador inevitável, o “protector dos fracos”, o “árbitro dos litígios”.

Na realidade, cria apenas conflitos artificiais para nos roubar melhor: assalta o trabalhador através de impostos pornográficos; furta o empresário através de burocracias confiscatórias; subtrai o bolso do consumidor através da inflação patrocinada pelo Banco Central e a banca comercial com a sua licença para operar. Quanto mais conflito artificial, maior a autoridade do predador. É o milagre da multiplicação das esmolas obrigatórias.

Destrua-se agora, de uma vez por todas, esta patranha. Se um escultor competente passa oito horas a esculpir uma estátua em mármore, aplicando talento, técnica, sensibilidade, anos de aprendizagem e domínio da forma, o resultado é um objecto desejado, valioso, apreciado. Se, ao lado dele, o Sr. Joaquim — picareta humano, inimigo público do belo — passa exactamente as mesmas oito horas a martelar um bloco de mármore sem saber o que faz, o resultado é um pedaço de cascalho disforme que nem como pisa-papéis serviria.

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Foto: D.R.

Segundo António Filipe, ambas as peças deveriam ter o mesmo valor: afinal, têm igual quantidade de “trabalho incorporado”. O consumidor, esse reaccionário que insiste em querer utilidade, discorda – a estátua vale, o cascalho não. Eis, em toda a sua nudez, a falência da teoria do valor-trabalho.

O valor não está na pedra. Nem no tempo cronometrado. Nem no suor pingado. Está na cabeça dos consumidores, na utilidade subjectiva que cada um atribui ao bem. A primeira estátua satisfará a necessidade mais urgente: embelezar a sala de estar. A segunda, talvez a entrada da casa. A terceira, o jardim. A quarta já não servirá para nada. Quanto maior a quantidade de um bem, menor o valor que cada unidade adicional tem na escala das necessidades humanas. É por isso que o ouro é caro: é escasso e tem usos subjectivos de elevado valor. Não é porque alguém gastou “x horas” a minerá-lo.

Quanto ao capitalista — esse ogre de duas cabeças na mitologia marxista — desempenha a função mais nobre da economia moderna: adianta a poupança para permitir a produção. Se todos fossem co-proprietários dos frutos, como seria?

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Foto: D.R.

Imaginem uma cooperativa de vinicultores. Plantam a vinha. Esperam anos pela primeira colheita. Primeiro drama: como dividir o futuro vinho se não sabem quanto haverá? Segundo drama: todos terão de esperar anos para consumir; ninguém recebe salário agora. Terceiro drama: se, quando o vinho finalmente sair, o consumidor não o desejar? Falência da cooperativa, miséria “democrática”.

O capitalista oferece a solução: “Eu pago-te hoje — com a minha poupança — e compro a tua produção futura.” O trabalhador recebe já, não espera anos, não corre risco. O risco é do capitalista: pode perder tudo. Pode aplicar mal, pode produzir algo que ninguém queira.

Ao diferir consumo, espera ser remunerado: se o sacrifício é de 5%, exigirá um retorno de 10% para ter lucro de 5%. Este diferencial entre receitas e poupanças adiantadas para adquirir factores produtivos é o sinal que atrai os empreendedores, esses detectores de oportunidades que coordenam os capitais disponíveis. Não há exploração: há cooperação voluntária. O trabalhador vende bens futuros em troca de consumo presente; o capitalista compra bens futuros prescindindo de consumo presente. Tudo voluntário, sem polícia, sem comités centrais, sem Marx debruçado sobre o ombro.

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Foto: D.R.

Quando os empreendedores acertam, os lucros são reinvestidos. Há mais máquinas, mais fábricas, mais computadores, mais ferramentas – e mais produtividade. Um agricultor africano com uma enxada, a trabalhar dez horas, produzirá uma migalha face a um agricultor chinês com um tractor de quinhentos cavalos. O chinês pode ganhar vinte vezes mais, mas o custo por unidade produzida é irrisório em comparação. É a acumulação de capital, não o “trabalho incorporado”, que enriquece sociedades. O socialismo, ao odiar o capital, odeia o único mecanismo que tira os povos da miséria. Por essa razão, invariavelmente, produz pobreza.

António Filipe remata ainda com outra pérola: “o capitalismo destrói recursos”. Eis a mentira preferida de quem nunca produziu um alfinete. Julian Simon destruiu esta fantasia malthusiana quando humilhou Paul Ehrlich na famosa aposta: escolheu cinco metais que, segundo os profetas da escassez, iriam inevitavelmente tornar-se mais caros. Dez anos depois, todos estavam mais baratos. A humanidade tinha mais população, mais consumo, mais indústria – e mais abundância.

A escassez é humana, não natural: é o tempo, o engenho, a tecnologia que transformam recursos brutos em bens úteis. O capitalismo multiplica recursos porque multiplica a inteligência aplicada. Só o socialismo é capaz de criar escassez artificial: basta nacionalizar qualquer sector para transformar ouro em chumbo.

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Foto: D.R.

Chegamos, assim, ao ponto final: os comunistas continuam a espalhar mentiras porque a mentira é a argamassa do seu edifício intelectual. O comunismo é, por natureza, totalitário porque pretende substituir a coordenação descentralizada feita por preços e lucros – sinais indispensáveis – por uma entidade central que decide quem produz, quanto produz e para quem produz.

Sem preços nem lucros, decide-se às escuras; não se sabe se os recursos escassos estão a ser afectados correctamente; ninguém conhece custos reais, preferências reais, oportunidades reais. A miséria, a escassez, a ruína são inevitáveis.

Foto: D.R.

A história do século XX é suficientemente clara para qualquer pessoa honesta. Mas os nossos jornalistas continuam encantados com a liturgia socialista, prontos a indignar-se com a “extrema-direita”, mas incapazes de um suspiro perante a patranha marxista que, há cem anos, mata povos e destrói economias.

Até quando suportaremos esta catequese da mentira? Até quando jornalistas e comentadores continuarão a enfiar-nos pela boca a papinha comunista enquanto fingem que é um alimento intelectual? Talvez até ao dia em que o escultor português, cansado de ser tratado como picareta, decida largar o martelo e emigrar. Nesse dia, talvez alguém perceba que o valor não nasce do trabalho – nasce da verdade. A verdade, ao contrário do marxismo, não pode ser planificada.

Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário

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