25 de Novembro: E que tal uma nova Revolução?


Os nossos vizinhos espanhóis evocaram há dias os 50 anos do 20-N, que lhes corresponde ao dia 20 de Novembro, data da morte do ditador Francisco Franco. Esta forma abreviada, ao colocaram o número do dia seguido pela primeira letra do mês, é uma maneira assaz interessante que os habitantes do outro lado da fronteira desta nossa Península Ibérica têm para evocar os seus acontecimentos históricos recentes. Por cá, não é comum escrever 28-M, 25-A, 28-S, 11-M, 25-N, ou 4-D.

Costuma-se dizer que Portugal e Espanha são dois países separados pela mesma História. E a expressão nunca esteve tão perto da verdade. Reconhecemos que temos um certo desconhecimento da História de cada um, muitas vezes partilhada em factos paralelos, mas frequentemente ignorada nas suas leituras comuns.

Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República, e José Pedro Aguiar-Branco, presidente da Assembleia da República, na Sessão Solene Evocativa dos 50 anos do 25 de novembro de 1975 que decorreu hoje. /Foto: D.R.

De vez em quando, procuro colmatar esse desconhecimento e, há dias, acabei de ler uma banda desenhada vinda de Espanha, “La Caja de Pandora”, de Angel de la Calle. É um romance gráfico, que recomendo a quem aprecia o género (e sugiro, a quem consegue ler em espanhol, como um bom exemplo para quem ainda não descobriu a força impactante desta forma de arte literária e gráfica). O autor faz um passeio introspectivo e semi-biográfico pelos anos da transição espanhola da ditadura para a democracia (1975-1978). Um período semelhante aos nossos primeiros anos pós 25-A.

Em mensagem pessoal que enviei para Angel de la Calle, a agradecer a oportunidade, qualidade e importância da produção desta obra, mencionei uma frase que cito de memória, onde o próprio rei Juan Carlos terá dito ao seu amigo do Estoril, o nosso recém-falecido ex-primeiro-ministro, Pinto Balsemão: “Em Portugal, houve uma Revolução. Em Espanha, morreu um homem”. Se o rei nunca disse esta frase, não é essa a questão, pois digo-a eu na mesma por a achar verdadeira. Nela, resume-se uma diferença, mas não esconde o que se seguiu depois nos dois países até, pelo menos, 1985, ano em que Portugal e Espanha assinaram, no mesmo dia, a entrada na CEE. Portugal, de manhã. Espanha, depois do almoço.

O Angel, na resposta à minha mensagem, disse-me que, em Portugal, tivemos mais sorte, pois a nossa revolução foi pacífica. E numa entrevista que deu a um canal de televisão espanhol, relatou que, em Portugal, no 25-A, só morreu uma pessoa e foi porque seria atropelada por um camião militar numa manobra de marcha-atrás. Quero acreditar que essa afirmação era uma alegoria, pois temos de incluir as vítimas dos tiros da PIDE e contar ainda com os anos bombistas que se seguiram e a Guerra Civil nos territórios ultramarinos portugueses que tiveram de ficar independentes.

Sessão Solene Evocativa dos 50 anos do 25 de novembro de 1975. / Foto: D.R.

A Espanha não fez uma descolonização em apenas um ano após o dia em que o carro militar fez marcha-atrás. Nem teve de integrar, em dias, meio milhão de retornados. Tivemos um PREC, que acabou no 25-N e, dez anos depois, lá entramos, Portugal e Espanha, na CEE. Após os sacrifícios que fizemos a nível económico, ao dar um sinal de unidade europeia, sem ditaduras, com a “Democracia”, foi dado um sinal a Moscovo que a Alemanha tinha de ser unida. E isso aconteceu quatro anos depois, em 1989, ao cair o muro. A própria URSS caiu em 1991 e foi criado o Euro, onde os países da Península Ibérica, apesar de não termos um sistema económico forte, ainda assim tivemos de entrar para dar mais um sinal de unidade europeia.

Até que, juntamente com outros países do sul da Europa que ajudaram ao fortalecimento do centro da Europa – Irlanda, Itália e Grécia –, puseram-nos no clube dos PIIGS. Os porcos da Europa. Obrigadinho, Europa comunitária e solidária. De nada. Afinal, para quê queixar-nos se até temos uma representação do PCP no antigo Hotel Vitória – imóvel de interesse público, arquitectura de 1934, de Cassiano Branco –, situado na luxuosa Avenida da Liberdade, ao lado de lojas de luxo? Podemos sempre ir exorcizar os nossos sentimentos de Liberdade com desfiles de 25-A nessa avenida da alegada liberdade e depois ir fazer compras – os que podem, claro – nas lojas bem recheadas de produtos que a liberdade do mercado e das condições laborais permite existirem. 

Agora que estamos a evocar os 50 anos do 25-N, aquela madrugada que muitos esperavam, o tal dia inicial, inteiro e limpo de 1975 (E então? Acaso, não são assim todos os dias para aqueles que gostam de os viver sem se cansar?), convém lembrar que nenhuma comemoração estaria completa sem a menção de dois nomes que muito contribuíram para o sucesso da estabilização da Democracia em Portugal: Frank Carlucci e Henry Kissinger.

Frank Carlucci, na altura embaixador dos Estados Unidos em Portugal, na sua chegada ao aeroporto de Lisboa em meados de Janeiro de 1975.  A sua primeira conferência de imprensa foi em português, algo inédito para um diplomata norte-americano. / Foto: Embaixada dos Estados Unidos

O primeiro até tem um azulejo com o seu nome – diz “Casa Carlucci” – na fachada da residência do embaixador dos Estados Unidos na Rua do Sacramento à Lapa. Era aí que costumava reunir-se com o líder do PS, Mário Soares, a conspirarem, na lavandaria do palacete – era onde havia menos hipóteses de serem escutados. Os serviços de Carlucci em prol da Democracia do 25-N foram depois recompensados com um emprego em Langley, nos Estados Unidos, como director-adjunto da CIA. A mesma CIA à qual ele sempre negou pertencer enquanto esteve em Lisboa – e é verdade que não perten…cia, mas depois de ter adquirido experiência no terreno, passou a pertencer.

Quanto a Henry Kissinger, por sua vez, teve o mérito de confiar no julgamento de Carlucci, adiando a ideia de que Portugal estava perdido para uma Democracia previsível e obediente ao interesse norte-americano, e que até poderia funcionar como “vacina” ao ser a Cuba da Europa.

Bem revelador da importância de Kissinger para o 25-N e o sistema de partidos que temos hoje em vigor, é a declaração de Melo Antunes, então ministro dos Negócios Estrangeiros, que num encontro com Frank Carlucci, duas semanas após o 25-N, quando o embaixador lhe perguntou o que teria acontecido se os comunistas tivessem vindo para a rua, Melo Antunes disse que havia uma coisa na sua mente: “A oferta da ajuda de Kissinger”. Isto data de 5 de Dezembro de 1975 e, para que não haja dúvidas, está aqui uma cópia certificada. Se não está ainda numa exposição sobre esta data, aqui fica a referência da mesma para que sejam incluídas nas comemorações oficiais: https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1969-76ve15p2/d169

Henry Kissinger (ao centro), em Paris, em 28 de Setembro de 1970. / Foto: D.R.

Daqui a dias teremos ainda os 45 anos do 4 de Dezembro, a data do assassinato de Sá Carneiro – sim, porque já se concluiu na Assembleia da República que a explicação mais lógica para a queda do avião teria sido devido à deflagração de um engenho explosivo a bordo. Mas, nestes 45 anos, iremos continuar a ouvir que foi acidente, pois isso é mais tranquilizador para as mentes que não querem investigar o móbil do atentado. Talvez daqui a cinco anos se saiba mais.

E, finalmente, daqui a seis meses, vamos celebrar os 100 anos do 28 de Maio, outro momento em que os militares agiram com a intenção de salvar o país do caos e da ruína. Teremos, portanto, com a força da democracia, encarar uma data em que o chefe dos militares portugueses de há 100 anos, Gomes da Costa, dizia aos jornalistas de há 100 anos coisas como estas (Entrevista a Gomes da Costa, Diário de Lisboa, 3 de junho de 1926):

“Fazer uma revolução nacional desta força e significação para nos instalarmos no Terreiro do Paço a fumar charutos tranquilamente também não pode ser”.

Edição do Diário de Lisboa, 3 de junho de 1926.

“A imprensa é útil, é uma força nacional. Tem liberdade para dizer o que pensa. Não abafaremos o pensamento de ninguém. Também acreditamos que ninguém desvirtuará as nossas intenções. Sou militar. Falo a linguagem da verdade. O país estava cansado dos políticos que nos arrastaram para a miséria que aí estava”.

“Se é ditadura meter o país nos eixos, sim, ditadores somos. Mas nunca uma ditadura no conceito antigo, suprimindo liberdades, perseguindo e vexando. De porcarias estávamos nós fartos. Liberdade bem distribuída, justiça para todos, saneamento das finanças e dos serviços públicos – eis a nossa ditadura”.

O general Gomes da Costa. / Foto: D.R.

No livro de Angel de la Calle, numa conversa em Cuba, uma amiga sua pergunta-lhe: “Em Espanha, têm Rei?” Sim, há rei, responde o autor. “E Guardia Civil?” Sim, há Guardia Civil. E concluiu a amiga: “Então de que transição estás a falar”? Poderíamos fazer o mesmo exercício sobre Portugal: Em Portugal, existe um Presidente da República e um primeiro-ministro? Sim. E GNR? Sim. Então de que revolução estamos a falar?

Os democratas de hoje, em Portugal e Espanha, sabem que, no tempo das ditaduras de Salazar e Franco, os Estados Unidos e União Europeia não tinham tanto poder sobre as decisões internas da “democracia orgânica” de cada nação ibérica. Se houve depois uma transição em ambos países, essa foi para entregar o poder de Lisboa e Madrid aos bons servos dos poderes de Washington e Bruxelas.

Feliz dia!