Se não houver mais surpresas, esta segunda-feira serão finalmente anunciados os candidatos aprovados para os cursos de juízes e magistrados do Ministério Público, cujo início só deverá ocorrer no princípio de Dezembro — um atraso inédito de quase dois meses. A razão dessa demora reside no elevadíssimo número de reprovações de candidatos que, apesar de terem superado as três exigentes provas escritas (de Direito Civil, Direito Penal e de Cultura Geral) e sido aprovados nas provas orais, acabaram eliminados por uma empresa de psicologia, a Think About, que, segundo uma notícia do Correio da Manhã no início de Outubro, chumbou mais de metade dos “resistentes”.
Embora o número exacto de reprovações não tenha sido oficialmente divulgado, sabe-se que passaram todas as provas escritas e orais 165 candidatos, o que significa que terão ocorrido mais de 82 exclusões na fase psicológica. O arranque do curso acabou por ser adiado para permitir uma segunda avaliação psicológica, conduzida por vários psicólogos indicados pela Ordem dos Psicólogos Portugueses, numa espécie de “segunda opinião” institucional.

A principal causa deste número invulgar de chumbos parece estar no tipo de testes aplicados pela Think About, uma empresa unipessoal criada em 2020 por Mauro Paulino, psicólogo forense conhecido do público pelas participações em programas da SIC como Análise Criminal e Casa Feliz. Segundo apurou o PÁGINA UM, Mauro Paulino, enquanto psicólogo clínico, decidiu aplicar — aparentemente sem qualquer validação científica específica para este contexto — um inquérito desenvolvido nos anos 1990, o “Personality Assessment Inventory (PAI)”. Apesar de amplamente utilizado na avaliação clínica e forense, o PAI está longe de ser adequado para aferir características de personalidade de futuros juízes e procuradores, já que foi concebido para contextos clínicos, hospitalares e penitenciários com o objectivo de detectar perturbações psicológicas, ajustamento emocional e comportamentos de risco.
Na verdade, pretende sobretudo identificar sintomas de depressão, impulsividade, tendências suicidas, psicopatias, abuso de substâncias e perturbações de ansiedade. O seu objectivo primário é diagnóstico e terapêutico, não a aferição de idoneidade, ponderação racional ou estabilidade cognitiva — atributos essenciais à função judicial. A escolha do PAI deve-se ao facto de Mauro Paulino ter sido o psicólogo português que traduziu e adaptou experimentalmente esse modelo para Portugal, a partir dos trabalhos do psicólogo norte-americano Leslie Charles Morey, professor da Texas A&M University, que reviu o teste em 2007.
Por essa razão, a aplicação do PAI em concursos para a magistratura levanta sérias reservas científicas e éticas: trata-se de um teste de triagem clínica — útil para identificar risco psicopatológico — mas inadequado como critério eliminatório entre candidatos saudáveis, sobretudo porque, segundo apurou o PÁGINA UM, houve candidatos com classificações de excelência que foram reprovados nas provas psicológicas.

O PÁGINA UM teve acesso às 344 perguntas – para as quais se poderia responder com uma de quatro formas (Falso, Ligeiramente Verdadeiro, Bastante Verdadeiro e Completamente Verdadeiro – que compõem o PAI e constatou que muitas são claramente inapropriadas ou absurdas no contexto da selecção de magistrados, chegando mesmo a invadir a intimidade dos candidatos ou a incidir em dimensões sem relevância funcional para o exercício da magistratura. A leitura ao calhas do inquérito do PAI chega a ser divertido, se não fosse trágico.
Eis cinco exemplos paradigmáticos: “Já pensei em algumas formas de me suicidar.” (n.º 60) – uma questão de natureza clínica, que pressupõe vulnerabilidade depressiva, mas cuja resposta isolada não deve determinar eliminação num concurso público.
“Experimentei quase todos os tipos de droga.” (n.º 23) – adequada em avaliação de toxicodependência, mas completamente deslocada num processo de selecção baseado em mérito intelectual e moral.

“O meu poeta favorito é o Daniel Sampaio.” (n.º 40) – uma pergunta que roça o absurdo metodológico, sem qualquer relação com traços de personalidade relevantes para o desempenho judicial, mesmo que uma resposta afirmativa pudesse ser estúpida, porque o irmão do antigo presidente da República Jorge Sampaio não é conhecido como vate.
“Tenho planos para me converter, algum dia, numa pessoa famosa.” (n.º 108) – sugere fantasia narcísica, mas é irrelevante para aferir competências éticas ou jurídicas.
“Tenho prazer em conduzir muito depressa.” (n.º 159) – explora impulsividade e busca de risco, mas o seu valor discriminativo para a magistratura é nulo.

Numa análise mais detalhada encontram-se formulações que, para qualquer pessoa intelectualmente equilibrada e socialmente integrada, soam absurdas e ridículas. Frases como “Já pensei em algumas formas de me suicidar”, “Sou incapaz de controlar o meu consumo de drogas”, “Aproveitar-me-ia dos outros se fosse fácil”, “Faço muitas coisas perigosas só pela emoção que me causam” ou “Tenho planos de me converter, algum dia, numa pessoa famosa” são perguntas que dificilmente se imaginariam colocadas a futuros juízes e procuradores — presumivelmente adultos instruídos, com formação jurídica, sem historial criminal nem perturbações comportamentais.
Mas a bizarria não se fica por aí. O mesmo inventário questiona ainda se o candidato reconhece que “Sou incapaz de controlar o meu consumo de drogas”, “O consumo de drogas provocou-me alguns problemas de saúde”, “Algumas pessoas já me disseram que tenho problemas com as drogas” ou “Já tive problemas económicos devido ao consumo de drogas” — formulações que fariam sentido num centro de desintoxicação, mas não num concurso público de selecção de magistrados.
Há igualmente uma vertente quase caricatural na tentativa de detectar impulsividade ou descontrolo emocional, com itens como “Às vezes, expludo e perco o controlo sobre mim”, “Quando me enfureço, é muito difícil acalmar-me”, “Faço muitas coisas perigosas só pela emoção que me causam” ou “Quando estou a conduzir e me indigno com os outros condutores, faço para que deem conta disso”. E não faltam formulações de tom paranóide ou delirante, como “Algumas pessoas fazem coisas para me deixar mal”, “As pessoas que me rodeiam são leais comigo”, “Às vezes, misturo os pensamentos uns com os outros” ou “Certas partes do meu corpo ficaram sem sensibilidade, sem que eu saiba o porquê”.

Os absurdos continuam. Os candidatos foram ainda ‘convidados’ a pronunciar-se sobre afirmações como “Tenho diarreia com frequência”, “Tenho o pulso firme”, “Evito certas coisas que trazem más recordações”, “Tenho pouco interesse por sexo”, “Sou pouco paciente com as pessoas que não estão de acordo com os meus planos”, “A minha vida é completamente imprevisível”, “Em algumas ocasiões, a minha visão piorou e depois voltou a melhorar” e “A minha relação conjugal não vai bem”.
O tom do questionário oscilou entre o clínico e o grotesco, perguntando ainda se “Tenho pouco que dizer a outras pessoas”, “Qualquer actividade exige-me um grande esforço”, “Aproveitar-me-ia dos outros se fosse fácil”, “Grande parte das pessoas tem boas intenções” ,“O meu destino é ser infeliz desde que nasci”, “Sou alvo de uma conspiração” ou “Creio que dentro de mim há três ou quatro personalidades completamente diferentes”.
Em suma, difícil é seleccionar as questões absurdas que mostram um retrato desconcertante: o Estado português, no momento em que avalia quem julgará os seus cidadãos, submete os candidatos a um interrogatório mais próximo de uma triagem psiquiátrica do que de uma aferição ética ou cognitiva.

O PÁGINA UM colocou diversas perguntas ao CEJ e ao responsável pelo inquérito, Mauro Paulino, sobre a razão deste tipo de inquérito de exclusão após exigentes provas jurídicas e de cultura geral, mas não obteve qualquer resposta.
Saliente-se que apesar de ser formalmente o Ministério da Justiça a entidade responsável pela aprovação da empresa de psicologia encarregue de avaliar os candidatos, o PÁGINA UM apurou que todo o processo de selecção e escolha foi conduzido internamente pelo então director do CEJ, Fernando Vaz Ventura, que tomou posse em 2022 e acabou por não ser reconduzido pela actual ministra, Rita Alarcão Júdice.
Segundo documentação oficial, a proposta partiu directamente de Fernando Vaz Ventura, tendo sido formalizada em despacho da ministra datado de 21 de Julho de 2025, que nomeou a empresa Talking About – Psicologia e Ciências Forenses, também conhecida como Mind, para realizar as provas psicológicas do 42.º Curso de Formação de Magistrados Judiciais e do 12.º Curso de Juízes dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Contudo, não existe qualquer registo público do contrato celebrado entre o CEJ e a empresa escolhida, nem qual o procedimento seguido (concurso público, consulta prévio, ajuste directo ou outro) nem sequer o valor pago pelos serviços. Apesar de se tratar de um procedimento sujeito às regras da contratação pública, não há vestígios no portal BASE. Tanto o CEJ como a Talking About não responderam às perguntas enviadas pelo PÁGINA UM sobre o processo de adjudicação.
Este caso suscita sérias dúvidas sobre transparência e conformidade legal, sobretudo quando está em causa a avaliação psicológica de futuros magistrados. A ausência de informação pública e de resposta institucional aumenta a opacidade da actuação do CEJ e poderá justificar um pedido de esclarecimento formal à ministra da Justiça sobre os critérios e fundamentos da escolha.
