O Capital (e o regresso à A Capital)

black Corona typewriter on brown wood planks

PEDRADAS NO CHARCO I Há axiomas a levar em conta nisto de intervir. Por exemplo, o Jornalismo é o quarto poder, e o seu papel é noticiar com isenção, expôr com factos e enfrentar os poderes, ouvir todas as partes. A mercantilização da Imprensa tornou o negócio dos Media um pardieiro de favores, promíscuo e servil. Um matrimónio entre a publicidade e a manipulação. O espaço de opinião é onde se pode e deve fazer a exposição de tendências e idiossincrasias. Goste-se ou não. Se me der para lembrar numa crónica factos ocorridos em 1900 e carqueja, não vou tergiversar ou cometer delitos gratuitos de opinião, ataques velhacos ad hominem, mas tenho direito a tecer retratos parciais fruto da minha experiência com tratantes (ou elogiosos, se for o caso). Outra coisa: escrever para agradar a gregos e troianos é um mau princípio. A escrita criativa é por natureza uma actividade subversiva. Tal como a escrita de Imprensa (artigo, notícia, reportagem) um espaço de informação.

A SALVAÇÃO I Talvez a paz de espírito permita deixar este mundo sem conflitos (internos e externos). Não faltam livros de ajuda, terapias, exemplos de gurus e influencers de serviço à grande causa da paz entre os homens. O humor (negro ou de outra tonalidade) é uma arma eficaz, mas os picaros sofrem de cinismo. Um cinismo de sobrevivência, idealista, mas cinismo na mesma. Os guerrilheiros idealistas querem limpar a face da terra da corja que explora o homem. A morte do inimigo é o seu credo. Há uma pestilência de competição encarniçada que vai das ruas ao parlamento, dos estádios aos templos. Nasce tudo de cabeças onde a cooperação é tomada apenas no sentido de acabar com o inimigo. Onde estás, amigo? Onde estás, amor? Há um refúgio secreto onde se ouvem os bateres do coração, o murmúrio de um cão fiel e leal, um caminhar de mãos dadas. Se o têm não o divulguem. Até isso é motivo de cobiça e inveja, o motor da frustração que leva à apologia da inimizade. Só é inimigo quem vos quer governar e pôr a pata na jugular.

O CAPITAL I Quem precisa de bulir para sobreviver (e observa as notícias sérias e isentas) é natural que se indigne, insurja ou até parta para a angariação directa de fundos perante o regabofe com os dinheiros”públicos”. Se o fizer é uma justa causa. Por outro lado, ninguém deveria abrir o bico sem ter passado por duras realidades (ditaduras, estupros, violações, violência gratuita, bullying ou assim). Não falo de perder os pais segundo a ordem natural da vida. Falo de perder um filho, por exemplo, raptado, torturado, violado e depois atirado aos bichos ou de tiro na nuca ou alvo de tiro de um sniper como um pato. Vale para um ou outro lado da barricada de quem perpetra. Falo do patrão coçar a micose enquanto os assalariados se esfalfam (estudasses, não é? Ou não tivesses dignidade para não subir na horizontal). Falo de não ter pais ricos, heranças, e ser incorrupto e dar o litro a trabalhar por uma vida decente e nunca sair da cepa torta porque o sistema é o que é. Falo de haver fome quando há desperdícios. Falo de andar a roubar, espancar e assassinar pobres diabos só por serem doutro país (pobres diabos pois claro). Falo de usar a lei cabotina do mais forte para subjugar no lugar de carregar em ombros e alcandorar quem trabalha e enriquece os accionistas. Falo de usar o panegírico do socialismo, do comunismo e da social democracia e ser um déspota ou arrivista de trazer por casa. Falo de escrever sem lágrimas.

EXERCÍCIO I Antes de qualquer actividade física é preciso aquecer, alongar, para prevenir o risco de lesão. Na escrita o princípio é idêntico. Alinhar o tico e o teco, dar a primeira demão, limpar a ganga (gordura), corrigir os excessos e só então publicar. O público leitor agradece. Até é capaz de reler ou guardar e partilhar como se guardam recortes de jornais e revistas. Por falar nisso é raro ver aqui textos fotografados com as respectivas caligrafias. A escrita manual diz muito da persona. É como uma voz silenciosa na forma de gatafunho ou um desenho letra a letra, símbolo a símbolo, frase a frase, ideia a ideia, irrepreensível.

Hoje é dia de mudar o mundo, depois da tempestade varrer a madrugada.

Começar o dia com um abraço e um beijo sem desejos.

Agradecer a quem nos ensanduicha o papo seco, tira a bica sem um gesto maquinal. A quem nos conduz ao trabalho, o motorista, o carro bem oleado e de travões revistos, o político e seu partido que se batem por leis justas e guardam a língua no saco, os jogadores que deram o litro para vencer mesmo que tenham sido derrotados. Agradecer aos músicos, aos artistas, aos escrevinhadores de redes sociais ou aos jornalistas que se ocupam em escrever a verdade dos factos. A Divina só Deus sabe.

BILHETE DE IDENTIDADE I Não tenho cadastro, mas não significa não ter aprontado. E não falo de meter chupa-chupas ou chocolates Regina ao bolso. Estou a falar de outras cenas, e não me arrependo. A acção directa é um instrumento de defesa pessoal. Quando nos atacam a defesa deve ser proporcional. Um insulto, toma lá outro. Um soco, esquiva, e pimba. Um tiro já é mais complicado. Se alguém tocar nos meus, a resposta é na mesma moeda, ou um pouco mais contundente. Estou a fazer uma simulação para o entendimento do estado do mundo. Evolução é ignorar, dar a outra face, recorrer ao coro dos tribunais ou ter a guarda alta? Posso beliscar ou mesmo ir à jugular num texto. Mas isso é coisa pouca se a maldade é refinada.

Em puto sofri de bullying. Levei porrada da grossa, além das bofetadas correctivas. Ouvi barbaridades. Passei por humilhações. Emasculações disfarçadas de amor a cargo de vítimas piores do que carrascos
Fui gamado pelo Estado e ciganos. Tenho uma catarata no olho esquerdo à conta de um ajuste de ciganos que trouxeram os primos por causa de uma luta que me correu bem. Fui gamado pelo Estado de tal ordem que quase sucumbi a uma depressão. Não há lutas leais. Talvez nos ringues e nem todas.

Sou pouco crente na bondade generalizada. Há gente boa. Há gente do Amor e da Paz. São esses que quero comigo, ao meu lado, nem à frente nem atrás.

A CAPITAL (O jornal defunto)

Não esperei 28 anos para falar deste assunto na última crónica “A Glória Perdida”. O nome do chefe de redacção (que exerceu o seu contraditório) ocorreu-me somente num contexto de histórias lamentáveis ao serviço do Jornalismo. Podia escrever um ensaio sobre esses 30 anos e picos a dar a cara e o corpo ao manifesto, mas só digo que conheci diversos vespeiros e fiz um punhado de amigos. Também amigos, amigos, negócios à parte.

Sobre a situação em concreto, tal como disse o chefe nasceu de um erro meu, fruto da ingenuidade. Bastaria ter confirmado se o nome e a patente correspondiam ao entrevistado. A impressão que guardei foi de nada do sucedido ter sido inocente.

Sobre a intenção da peça, foi encomenda do editor Rodrigues, que me disse para me deslocar ao comando-geral da PSP no pressuposto de entrevistar o Comandante. Se fosse apenas para recolher um depoimento de um relações públicas tê-lo-ia feito por telefone. Fui tolo ao comprar lebre por gato.

É facto que fui levado à sala da direcção para ser despedido e nunca mais me esqueci do vil cenário que presenciei. Se o chefe diz que me apoiou, fico satisfeito por saber, mas não foi essa a impressão que guardei, sobretudo pelo terror psicológico que vivi nos meses seguintes até sair do jornal por minha livre vontade.

Quanto à directora Helena Sanches Osório (com quem mantive uma boa amizade até ao fim e depois do sucedido ainda me convidou para ver o filme do Taveira e umas belas jantaradas na sua casa do Estoril) limitou-se a mudar-me para a secção de Cultura. O chefe sabe o que estou a dizer porque estava lá. Se foi sugestão sua salvar-me, aqui fica um obrigado extemporâneo.

De resto chegámos a ter uma conversa os dois, na mesma noite, no corredor à saída da redacção, sobre o que achava daquele incidente e da irrelevância de me chamar Salazar. O Gomes, homem de guerra, soa mais bonito.

Também faltou dizer que toda a redacção sabia que eu ia ser pai (aos 25 anos) e caso tivesse sido despedido seria de uma tremenda crueldade.

Nada de anormal neste mundo e não só nos pés de vento do Jornalismo.

Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)