A sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que condenou quatro dirigentes da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) a uma sanção pecuniária compulsória de 70 euros por dia, no caso de não cumprirem uma intimação colocada pelo PÁGINA UM há 40 meses — para aceder a uma base de dados dos internamentos hospitalares — pode dar a aparência de encerrar um longo processo judicial.
Mas seria ingénuo pensar que tudo termina aqui. Há muito mais para dizer — e, sobretudo, muito para aprender — sobre este caso (não único) que expõe, de forma cristalina e vergonhosa, a podridão burocrática e moral de certos sectores da Administração Pública portuguesa.

Aquilo que o juiz Miguel Crespo julgou — e devo destacar-lhe o brio, tal como a semana passada critiquei a atitude da sua colega Telma Nogueira (os magistrados são criticáveis, de forma positiva ou negativa — não foi apenas o incumprimento de uma sentença: foi o confronto entre o dever de transparência e o vício da opacidade.
Desde Julho de 2022 que o PÁGINA UM lutava para obter a base de dados dos internamentos hospitalares — os chamados Grupos de Diagnóstico Homogéneos (GDH) — que o então presidente da ACSS, Victor Herdeiro, sob a tutela da ministra Marta Temido, não quis dar, mesmo se a legislação previa a disponibilização dessa informação devidamente anonimizada.
Essa base de dados mostra-se essencial para que qualquer investigador ou jornalista possa avaliar a incidência de doenças, o desempenho dos hospitais, as desigualdades regionais e até a eficácia das políticas públicas de saúde. Em suma, é um instrumento de escrutínio democrático.

Mas o Estado português — esse que se auto-intitula “de Direito” — decidiu comportar-se como um delinquente reincidente. Durante o processo os tribunais administrativos, mentiu, ocultou, distorceu, manipulou e fez tudo para não cumprir a lei. Primeiro, sob a tutela de Marta Temido. Depois, com Manuel Pizarro. E agora, já com Ana Paula Martins. E mesmo saindo Victor Herdeiro — um lacaio servil e cobarde (nunca deu a cara) dos Governos socialistas e da sua política de saúde —, a atitude do conselho directivo da ACSS não mudou com a entrada de Artur Trindade, homem vindo dos sombrios gabinetes políticos. Ou seja, não está parta servir o país, mas sim o partido (PSD, neste caso) que lhe vai dando de comer com cargos públicos.
E esta ‘gente’ serve o seu amo. E assim, o padrão de Trindade foi similar ao do Herdeiro: esconder o que é público, desrespeitar decisões judiciais transitadas em julgado e, quando tudo falha, recorreu à estratégia mais rasteira de todas — fingir que o carteiro nunca tocou à porta da ACSS.
É difícil descrever a extensão do absurdo. Após três derrotas judiciais — no Tribunal Administrativo de Lisboa, no Tribunal Central Administrativo do Sul e no Supremo Tribunal Administrativo, esta em 2023 —, a ACSS ainda continuou por mais dois anos a não querer cumprir uma sentença, tentando depois ludibriar a Justiça, oferecendo versões mutiladas da base de dados, amputadas de variáveis fundamentais e desprovidas de valor científico. Chegaram, ainda no tempo de Victor Herdeiro, a propor-me “negociações” indecentes, como se a transparência fosse uma mercadoria passível de ser trocada por conveniência.

Queriam que o PÁGINA UM aceitasse pedaços de informação, numa tentativa infantil de me fazer desistir, talvez acreditando que eu preferiria uma vitória a meias (uma parte da informação) a uma verdade inteira (toda a informação).
Não vacilei. Nem eu, nem o advogado do PÁGINA UM, Rui Amores. Sabíamos que, por trás desta resistência absurda, não estava apenas o receio de divulgar dados: estava a arrogância de um poder administrativo, feita de lacaios, habituados à impunidade, convencidos de que podem enganar a Justiça e intimidar quem o enfrenta. E tínhamos razão.
A sentença agora proferida pelo juiz Miguel Crespo — impondo uma multa diária a cada um dos dirigentes até cumprirem a ordem judicial — é, pois, mais do que um acto de Justiça. É um acto moral.
E digo moral porque tacitamente concede-me o direito de chamar esta gente pelo nome que merece: RASCA.

Rasca a atitude de quem mente perante um tribunal. Rasca a cobardia de quem foge de notificações oficiais. Rasca a hipocrisia de quem fala em transparência e age como se fosse dono da informação e temesse pela vida que esta fosse pública. Rasca a cultura que se enraizou na administração portuguesa, onde o poder é um escudo e o dever uma inconveniência.
Infelizmente, será um erro ver neste episódio um caso isolado. Aquilo que aconteceu com a ACSS é o sintoma de uma doença profunda: a transformação do Estado português num aparelho que protege os seus próprios vícios e despreza os cidadãos. Quando um jornal precisa de gastar 40 meses, atravessar três ministros e vencer três instâncias judiciais para obter dados públicos, algo está estruturalmente errado. O problema nem é a falta de leis — é a falta de vergonha.
Durante décadas, a Administração Pública tem sido ocupada por carreiristas, por gestores de confiança política e por técnicos sem espírito de serviço, mas com muita arte para adiar, disfarçar e escapar. Estes casos mostram que a degradação não é apenas funcional, é moral. Aqueles que exigem cumprimento fiscal, legalidade e pontualidade aos cidadãos, acham-se no direito de contornar sentenças judiciais, de brincar com a Justiça e de se esconder atrás do expediente.

O caso da ACSS é, por isso, um espelho daquilo em que o Estado português se tornou: uma estrutura pesada, hipócrita, onde a desobediência à lei é tolerada se vier de dentro. E o mais revoltante é que tudo isto se passa em torno de algo tão simples como uma base de dados que deveria estar publicamente acessível. Uma base que permitiria conhecer melhor a realidade sanitária do país, identificar desigualdades, avaliar desempenhos hospitalares, detectar erros e melhorar políticas. Uma base que o Estado, ironicamente, deveria ter orgulho em divulgar para se melhorar — mas que prefere esconder, manipular e distorcer.
Ao fim de quase quarenta meses, esta sentença é mais do que uma vitória do PÁGINA UM. É uma denúncia viva de como a máquina pública se transformou num labirinto de má-fé. E é também uma lição amarga: em Portugal, ainda é preciso lutar como um insurgente para exercer um direito básico. Luta-se para que a Justiça, mesmo que tarde, chegue e meta gente rasca na ordem. Mas isso quase nunca purifica — apenas recorda o quanto o Estado se sujou pelo caminho…