A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) confirma que vai comunicar ao Ministério Público a prática de um crime de desobediência qualificada por parte do gerente da promotora musical Free Music, Bruno Dias Simões, após esta ter incumprido uma deliberação de carácter vinculativo que determinava a acreditação do director do PÁGINA UM, Pedro Almeida Vieira, para assistir ao concerto da banda norueguesa Leprous, realizado no passado domingo na República da Música, em Alvalade, Lisboa.
A decisão do regulador, notificada na manhã da passada sexta-feira e com efeitos imediatos, foi ignorada pela promotora, que impediu o acesso do jornalista ao evento, mesmo depois da intervenção de dois agentes da PSP — confirmando assim o dolo e a intencionalidade do incumprimento.

De acordo com o Código Penal, o crime de desobediência qualificada aplica-se a quem não cumpra ordens ou decisões de autoridade competente que revistam natureza vinculativa, como sucede no caso das deliberações da ERC. A pena de prisão pode ir até dois anos, ou multa até 240 dias, agravando-se quando o incumprimento se traduz numa violação consciente e deliberada, como agora sucedeu.
Paralelamente, o impedimento do acesso de um jornalista em serviço a um evento público com entrada paga — ainda que se trate de um concerto musical — configura também o crime de obstrução à liberdade de imprensa, ilícito punível com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias. Este tipo de crime aplica-se a quem, por acção ou omissão, impeça o exercício legítimo da profissão de jornalista ou dificulte o acesso à informação em eventos de interesse público.
Saliente-se que o respeito pela profissão de jornalista e pela liberdade de imprensa são critérios fundamentais para aferir a qualidade de uma democracia — independentemente de se tratar de um mero espectáculo público ou de acesso a informação governamental.

O caso que envolve a Free Music teve origem num pedido formal de acreditação efectuado pelo PÁGINA UM com mais de um mês de antecedência, no âmbito da sua secção de crítica musical, devidamente comprovada como actividade jornalística regular. A promotora, porém, recusou o pedido com base em critérios discricionários, argumentando, em resposta à ERC, que “não podem dar uma resposta com a antecedência exigida”, acrescentando que “dão prioridade a órgãos de comunicação social especializados no tipo de eventos que produzem” e que “o jornal em causa nunca os havia contactado antes para esse fim”.
A ERC, após análise, considerou que tais fundamentos violavam frontalmente o Estatuto do Jornalista, que consagra o direito de acesso à informação e o dever de igualdade de tratamento entre órgãos de comunicação. A deliberação do regulador sublinhou, aliás, que a Free Music desrespeitara as regras de transparência ao não publicar nem divulgar previamente os critérios de acreditação, o que impede qualquer verificação objectiva da igualdade de tratamento.
Num dos excertos da deliberação, a ERC assinalou que “a recusa de acreditação do requerente [director do PÁGINA UM] assenta numa decisão arbitrária da requerida e desrespeitadora das regras em matéria de direito de acesso fixadas” no Estatuto do Jornalista, acrescentando ainda que os critérios de selecção “nunca se poderão sobrepor a uma lei geral da República”.

Ou seja, sendo o PÁGINA UM um órgão de comunicação social de âmbito nacional e com sede em Lisboa, tinha obrigatoriamente prioridade numa acreditação jornalística.
Assim, a deliberação da ERC, além de exigir que a Free Music adoptasse e divulgasse “futuramente os critérios de acreditação aplicáveis a jornalistas e profissionais equiparados, de forma objectiva, transparente, proporcional e não-discriminatória”, advertia-a de que incorreria em crime de desobediência caso não cumprisse.
Porém, apesar destes avisos, o gerente da Free Music, Bruno Dias Simões, manteve a recusa de acesso ao director do PÁGINA UM na noite do espectáculo, à entrada da República da Música, optando por violar deliberadamente uma decisão formal e vinculativa do regulador. O acto, agravado pela presença de agentes da PSP que presenciaram a recusa em flagrante delito, deveria ter conduzido à detenção imediata do gerente da promotora, uma vez que tal intervenção é legalmente obrigatória sempre que um crime punível com pena de prisão é cometido na presença de autoridade policial — ainda que a pena possa ser substituída por multa.
Mas o episódio não se resume à desobediência. O impedimento do acesso de um jornalista devidamente identificado e em serviço noticioso a um evento público com entrada paga configura também o crime de obstrução à liberdade de imprensa, previsto no artigo 19.º do Estatuto do Jornalista.

Os promotores de espectáculos públicos — sejam musicais, culturais ou desportivos — têm a obrigação legal de assegurar o acesso de jornalistas acreditados, sem custos, e de definir previamente critérios transparentes quando o espaço destinado à imprensa é limitado. Nesses casos, deve ser dada prioridade a órgãos de comunicação de âmbito nacional e com sede no concelho do evento — condições que o PÁGINA UM cumpre integralmente.
A Free Music, promotora responsável por vários concertos em Portugal, decidiu ignorar este enquadramento legal, justificando-se junto da ERC com o argumento insólito de que o PÁGINA UM “não é especializado no tipo de eventos que produzem”. O regulador considerou esta justificação “inconsistente e violadora dos princípios de igualdade e transparência”, reiterando que todos os jornalistas devidamente credenciados gozam do mesmo direito de acesso à informação, independentemente do género de eventos cobertos.
Na sequência do incumprimento, a ERC deliberou agora comunicar o caso ao Ministério Público, por se tratar de um crime público, confirmando que “a presente deliberação reveste natureza vinculativa, incorrendo em crime de desobediência quem não acatar”.

Apesar da gravidade da situação — em que uma entidade privada desobedece deliberadamente a uma decisão de uma autoridade administrativa independente —, o Sindicato dos Jornalistas, presidido por Luís Simões, manteve-se em silêncio. O PÁGINA UM tentou, por três vezes desde o passado domingo, obter uma reacção do sindicato, que habitualmente se pronuncia sobre limitações de acesso a eventos desportivos ou políticos. Contudo, nesta situação, em que está em causa não apenas o acesso, mas uma violação expressa da lei e um crime de desobediência qualificada, o sindicato optou por (ainda) nada dizer.
Este silêncio não é, contudo, novidade. Há poucos meses, o Sindicato dos Jornalistas também não se quis pronunciar — apesar de ter sido solicitado — quando uma juíza determinou, antes da audiência do julgamento por difamação contra Pedro Almeida Vieira, intentado pelo médico Gustavo Carona, que a Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais elaborasse um relatório sobre as “condições de vida” do director do PÁGINA UM, questionando, por exemplo, se “tinha água canalizada em casa” ou “como gastava os seus tempos livres”.
De igual modo, o Sindicato dos Jornalistas também se manteve calado quando o jornalista José Gabriel Quaresma — pivot da CNN Portugal, conhecido por ministrar formações de media training, prática incompatível com o exercício do jornalismo — pediu à ERC e ao Ministério Público o encerramento do PÁGINA UM.

Em contrapartida, a ERC assumiu desta vez uma posição de firmeza institucional, reafirmando que o direito de acesso à informação é um dos pilares essenciais do Estado de Direito democrático.
Com este envio ao Ministério Público, a ERC abre caminho a uma acusação formal por crime de desobediência qualificada, à qual se poderá somar o crime de obstrução à liberdade de imprensa, uma vez que o PÁGINA UM apresentará, sobre esta matéria, queixa formal com pedido de responsabilidade civil tanto contra a empresa Free Music como contra o seu gerente, Bruno Dias Simões.
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N.D. Há episódios que valem mais do que mil conferências sobre liberdade de imprensa. Este é um deles. Um concerto de uma banda norueguesa, numa pequena sala de espectáculos lisboeta, tornou-se o espelho da forma como, em Portugal, a autoridade e a lei se medem consoante o tamanho da plateia. A deliberação da ERC era vinculativa — e, portanto, obrigatória —, mas foi tratada pela promotora como um simples conselho. Os dois agentes da PSP — por sinal simpáticos e atenciosos —, presenciaram a violação flagrante da lei, mas porventura por desconhecimento do alcance de uma deliberação vinculativa da ERC, apenas identificaram o gerente da Free Music, quando, na verdade, deveriam tê-lo detido em flagrante delito, se não cumprisse (como não cumpriu) a deliberação. O Sindicato dos Jornalistas, sempre célere a emitir comunicados de circunstância, calou-se, algo que já sucedeu noutras circunstâncias em que eu sou um ‘protagonista’. E o Ministério Público, veremos agora se acorda perante esta situação.
Tudo isto poderia ser anedótico se não fosse sintomático. Porque aquilo que está em causa não é o acesso a um evento público, mas o direito de informar e de ser informado sem discriminação nem censura. Quando um jornalista precisa de uma decisão vinculativa de uma autoridade pública para exercer o seu trabalho, e mesmo assim é barrado, é o próprio Estado de Direito que fica à porta.
A desobediência à ERC não é apenas um gesto de arrogância privada: é um desafio à legalidade democrática. E a omissão das instituições que deviam fazer cumprir a lei transforma essa arrogância em impunidade. Há quem pense que a liberdade de imprensa é um privilégio. Não é. É uma fronteira civilizacional — e cada vez que se abdica dela, o país fica mais pequeno.
Pedro Almeida Vieira
