Astérix já é um dos nossos


Foi preciso esperar 66 anos desde a criação de Astérix e Obélix até que, finalmente, a dupla gaulesa apanhasse o barco do mercador fenício, no norte da Gália e, em vez de rumarem até ao Mediterrâneo, parassem numa cidade do Atlântico e que é ainda mais antiga do que Roma: Olissipo. 

A aventura “Astérix na Lusitânia”, sabemos bem, não é a mesma que resultaria caso tivesse sido feita pelos criadores originais, Uderzo e Goscinny, mas podemos afirmar que a nova equipa, o argumentista Fabcaro e o desenhador Didier Conrad, fizeram um trabalho competente e que não envergonha o original. Reconheça-se ainda que não têm um trabalho fácil, pois, como explica Conrad: “Se tirarmos a opinião do editor, dos herdeiros, as expectativas dos leitores e as exigências do formato e da impressão, temos toda a liberdade de criar o que queremos”.

Fabcaro (Fabrice Caro ) e Didier Conrad, autores de “Astérix na Lusitânia”. / Foto: D.R.

O certo é que também não é preciso ser um génio da edição de livros para saber que um novo álbum de Astérix será sempre um sucesso de vendas. Pois, mais não seja, os leitores das aventuras originais irão sempre querer ter o último álbum na estante para não ficarem com a sensação de uma colecção incompleta. Enquanto isso acontecer um pouco por todo o mundo – são cerca de 5 milhões de exemplares no total, em cerca de 19 países –, então cada álbum será sempre um êxito garantido, independentemente da qualidade e das expectativas do mesmo.

Este é o 41º álbum da coleção, mas apenas o sétimo feito a partir de 2013, altura em que Uderzo passou a responsabilidade do desenho para Didier Conrad. Os textos – que até 1977 eram de Goscinny – tiveram a assinatura de Jean-Yves Ferri nos cinco primeiros álbuns, mas, desde 2023, é Fabcaro quem os idealiza. E, depois de ter criado o álbum anterior a este, “O Lírio Branco”, podemos dizer que a aventura na Lusitânia é capaz de estar no topo das preferências desta nova fase, tanto mais não seja pelo facto de Portugal estar na moda.

Os estereótipos estão lá todos, para o bem ou para o mal. Temos a referência a Amália, que até escolheu um dos fados “mais alegres” para dar as boas-vindas aos gauleses. Existe uma personagem que o editor quis que se chamasse “Saudade”, em vez do “Oxalá” do original francês. Há ainda paisagens, como as Azenhas do Mar. Falta, contudo, o trânsito em Olissipo – que já naquela altura seria tão movimentado quanto o da Lutécia. Depois, temos bacalhau, pastéis de nata, azulejos, galo de Barcelos, eléctrico XXVIII e ainda Ronaldo, que até aparece em dose dupla.

Apresentação do livro “Astérix na Lusitânia”. Foto: D.R.

“Desenhei uma criança que joga à bola com o número VII na camisa, mas o editor queixou-se que estava muito pequena e mal se via. Então desenhei-o, de forma mais visível, noutra situação”, explicou Didier Conrad ao Página Um. E quando perguntámos aos novos autores por que não recriaram um jogo de futebol onde Ronaldo, o primeiro futebolista multimilionário da história do desporto, pudesse ter mais destaque, um pouco à semelhança do jogo de rugby que Goscinny e Uderzo fizeram na aventura entre os Bretões, os autores explicaram que, no caso da viagem à Inglaterra, o rugby era um desporto mais típico dessas paragens, “enquanto a paixão do futebol é transversal a vários países e não apenas a Portugal”.

Quanto à história em si, sabemos que Astérix só precisa de um pequeno pretexto para sair da aldeia – existe uma tradição em que as aventuras de Astérix alternam entre uma história dentro da aldeia e outra que é o chamado álbum de “viagem”, como é neste caso. Na realidade, uma aventura de Astérix na Lusitânia era algo que poderíamos esperar desde, pelo menos 1967, altura em que Goscinny fez, em “Astérix, Legionário”, uma menção à canção francesa dos anos 50, “As Lavadeiras de Portugal” (que chama “As Lavadeiras da Lusitânia”). Depois, em 1969, a dupla criativa original fez a aventura na Hispânia, criando, três anos mais tarde, um personagem lusitano na história “O Domínio dos Deuses”. O próprio Uderzo, que visitou Portugal em 1991, e falou nessa altura da possibilidade de haver uma aventura na Lusitânia, ainda criou mais um personagem lusitano no álbum “O Pesadelo de Obélix”, editado em 1996.  

Fabcaro explicou como se lembrou do lusitano de “O Domínio dos Deuses” para dar início à aventura, onde ele chega à aldeia a pedir ajuda para libertar um amigo, produtor português do garum – o molho de peixe fermentado e que a Lusitânia era fornecedora para o Império Romano. E há um detalhe que, até ao momento, poucos terão ainda dado por ele: o rival desse português é um napolitano, Crésus Lupus (Burlus Lupus na versão portuguesa), que Conrad desenhou numa óbvia caricatura de Sílvio Berlusconi – o magnata da Imprensa e ex-primeiro-ministro de Itália.

Foto: D.R.

Fizemos notar ao argumentista a coincidência dessa personagem surgir neste álbum num momento em que o filho de Berlusconi, Pier Silvio Berlusconi, está interessado na compra do grupo Impresa, nas mãos da família Balsemão. Fabcaro garante que não foi de propósito, pois trata-se de um personagem que já surgira na aventura de 2017, “Astérix e a Transitálica”, precisamente como um rico produtor de garum. E, agora, fez todo o sentido trazê-lo para a aventura na Lusitânia.

A propósito de outras caricaturas que surgem na aventura portuguesa, há uma que não tem qualquer relação com o País, mas que se trata de um centurião romano que caricatura o cómico inglês Ricky Gervais. Conrad confirmou ao Página Um ser um pedido especial do editor francês “que é um grande fá do comediante inglês”, acrescentando que, por outro lado, o governador romano na Lusitânia, Pluvalus (Interesseirus em português), não corresponde à caricatura de ninguém em real. Fabcaro sorri, pois na sua descrição estava uma pessoa semelhante a… Donald Trump. Acontece que Didier Conrad vive nos EUA, no Texas, é decidiu que não seria boa ideia. Esse tipo de censura é algo que também transparece na fala do pirata africano que, de repente, já diz os “r”.    

Outra questão que levantou alguma estranheza entre os leitores portugueses é facto de os personagens portugueses estarem sempre a dizer “ó pá”. Isso surge de forma que, podemos mesmo considerar, ser exagerada. Não era preciso usar isso sempre em todas as falas dos lusitanos. Menos seria mais. Aliás, o editor português da ASA, Vítor Silva Mota, sentiu mesmo a necessidade de explicar essa opção perante a plateia que encheu uma das salas de cinema do UCI no El Corte Inglés onde decorreu uma apresentação pública. Disse ele que foi uma opção para brincar com o original onde os personagens lusitanos trocam a terminação francesa de palavras terminadas em “ion” por “ção”. Fabcaro disse mesmo ao Página Um que recebeu mensagens de amigos franceses com “félicitação” em vez de “félicitation”.

Outro dos desafios da tradução tem a ver com uma referência ao nosso 25 de Abril. Na versão francesa, os autores colocam um prisioneiro a gritar “oyez, oyez”, como “ouçam, ouçam”. Um outro prisioneiro diz que se trata “de mais um jovem idealista que julga que se pode fazer a revolução com oyez”, sendo que esta última palavra soa a cravos em francês, os “oillets”. Na versão portuguesa o prisioneiro diz que “o povo jamais será vencido” e o companheiro explica que ele é o prisioneiro número MCMLXXIV (1974), e pede para que não lhe liguem, pois tem a cabeça cheia de ideias revolucionárias.

Astérix e Obélix, num momento raro, mas não inédito, disfarçam-se de locais, pintando o cabelo de escuro, o que dá um efeito cómico também único a esta aventura, e ainda participam numa cimeira internacional a bordo da galera “Davos”, que Fabcaro explicou fazer sentido decorrer em Lisboa, pois é uma cidade que deu início à globalização. E essa é ainda uma referência que surge com uma personagem feminina lusitana chamada Gama, que tem um tasco chamado Vasco – que em francês é o Le Vase Clos –, onde há sempre belas descobertas.

Outras descobertas deste álbum é a citação do poema de Voltaire sobre o terramoto de Lisboa, que surge a explicar a nostalgia portuguesa, com a tradução de Vasco Graça Moura: “Bem será tudo um dia, é essa a nossa esp’rança; Hoje tudo está bem, é essa a ilusão”. Também Fernando Pessoa é lembrado, embora apenas na versão portuguesa, quando um soldado romano diz que não é nada, mas tem em si todos os sonhos do mundo.

Cada leitor teria feito uma aventura diferente, mas esta é a que agora temos. E, fatalmente como destino, vamos ter de gostar dela como está e para sempre.

Frederico Duarte Carvalho, jornalista e escritor, colaborador regular do Página Um, assina este texto porque também é um especialista em banda desenhada tendo, inclusive, editado recentemente, nas edições Polvo, o livro “As Aventuras de Goscinny e Uderzo entre os Lusitanos”, onde explica a evolução das aventuras da dupla gaulesa até chegar à história na Lusitânia. Uma obra que conta com documentos inéditos do Institut René Goscinny, cedidos especialmente para esse trabalho.