Habitação e urbanismo: um mundo de ideologias e certezas fáceis

white painted concrete building

Há um novo tipo de alquimia académica que prospera à sombra dos números e dos microfones: transformar correlações frouxas em verdades absolutas. A imprensa, ávida de narrativas morais e de culpados prontos a usar, trata-as como dogmas científicos. O caso mais recente vem do Público, que proclamou ontem, com ar de epifania sociológica, que “as regiões com maior aumento da construção são onde os preços das casas mais sobem”. A frase soa bem, dá manchete, indigna o leitor e conforta o preconceito. Mas é estatisticamente falsa, logicamente invertida e intelectualmente preguiçosa.

Os investigadores citados — quase todos de um certo círculo universitário urbano-progressista, entre Lisboa e Porto, em áreas onde a Estatística é pouco assídua — erguem-se como sacerdotes do anti-mercado. Falam em “subsídios à especulação”, em “unidades imobiliárias como instrumentos económicos”, como se fosse uma descoberta de laboratório que o imobiliário é… um activo.

several cranes above the buildings

Estranha surpresa: o capital investe onde há rendimento. Não há conspiração global; há procura. Mas, para esta geração de cientistas sociais, tudo o que não cabe na cartilha da redistribuição coerciva é, por definição, perverso. E o Estado, que deveria ser o regulador do mercado, intervindo no planeamento e na construção de forma activa — porque tem capacidade de influenciar preços —, é “convidado” a interferir coercivamente na propriedade privada e em actividades económicas legítimas.

O problema básico é que, sob o verniz da denúncia, não há método. Nenhum. O artigo que lhes dá palco confunde, de forma absurda, associação com causalidade, ignora variáveis elementares — juros, rendimentos, migração, turismo, custo dos materiais, crédito — e cita séries temporais sem qualquer controlo de contexto.

Provavelmente isto assustará os leitores comuns, mas tem de ser, para desmontar falácias: pegando nos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) — que não foram, como deveriam ter sido, cruzados com outras variáveis e séries mais longas —, observa-se que a correlação entre aumento de construção e valorização de preços é moderada (r≈0,55). Ou seja, há correlação positiva, mas não causalidade. Quando se aplicam modelos simples de regressão linear aos dados (Y = β₀ + β₁X), o coeficiente β₁ estimado situa-se apenas em torno de 0,25 — isto é, um aumento de 100% na construção associa-se, em média, a apenas 25 pontos percentuais de subida de preços. E o r²≈0,30 mostra que apenas 30% da variação dos preços pode ser explicada pela variação da construção.

Notícia do Público.

Mas, talvez induzido pela “narrativa” dos investigadores, em vez de o reconhecer, o Público prefere reinventar a Economia: diz que, quanto mais casas se constroem, mais as casas sobem. É como afirmar que os hospitais provocam epidemias porque as camas ficam cheias quando há doentes.

A análise regional, aliás, desmente por completo a tese propagada. De acordo com os próprios dados do INE, a Área Metropolitana do Porto registou o maior aumento de construção no período 2019-2024 (+273,7%) e uma subida expressiva dos preços (+79,2%). Contudo, a Região Autónoma da Madeira, com crescimento de construção inferior (+213,9%), apresentou o maior aumento de preço (+97,3%). Em contraste, a Península de Setúbal teve apenas um acréscimo de 69% em novos fogos, mas foi a segunda maior valorização do país (+85%). Já o Algarve, com crescimento de construção moderado (+93,4%), viu os preços subir 62,3%, próximo da média nacional.

E, no extremo oposto, a Beira Baixa, com crescimento quase nulo da construção (+0,5%), registou também a menor variação de preços (+1,75%). Ou seja, aparentemente, vai tudo no mesmo sentido, mas esse “mesmo sentido” é apenas uma aparência superficial.

Na realidade, a construção e os preços movem-se em simultâneo porque respondem à mesma força: o crescimento da procura e das expectativas de valorização. Quando há mais compradores, crédito e investimento, constroem-se naturalmente mais casas — não o inverso. Assim, o que o Público apresenta como causalidade é, na verdade, um reflexo do ciclo económico e demográfico, e não uma lei do mercado imobiliário.

Dados do INE usados pelo Público para concluir que as “regiões com maior aumento da construção são onde os preços das casas mais sobem”.

Porém, há um erro ainda mais profundo: a variação da construção não é uma variável independente, porque depende directamente da procura habitacional e de fenómenos demográficos e económicos locais. Constrói-se mais onde há crescimento populacional, investimento, crédito e emprego; e constrói-se menos onde há despovoamento e ausência de dinamismo económico. A construção é, portanto, endógena — responde ao mercado, não o determina. Ignorar esta endogeneidade é o mesmo que culpar o termómetro pela febre.

Por isso, o restante — os 70% que escapam à regressão — resulta de factores estruturais: turismo, rendimento disponível, atracção de investimento, políticas fiscais, fluxos migratórios e confiança económica. A estatística revela aquilo que o discurso ignora: a valorização imobiliária não decorre da oferta, mas da procura. As regiões com maior dinamismo económico e demográfico são aquelas que simultaneamente constroem mais e valorizam mais, não porque o cimento inflacione o preço, mas porque o mercado responde à procura. É um reflexo clássico: quando a expectativa de valorização é positiva, constrói-se mais; quando é negativa, a construção retrai-se.

Tomemos outro exemplo. O Oeste, com forte crescimento populacional e turismo interno, aumentou a construção em 113% e os preços em 70%. Já o Baixo Alentejo, onde a procura é débil, teve apenas 10% de novos fogos e valorização de 28%. Esta simples comparação destrói a tese do “quanto mais se constrói, mais sobe”. A realidade é a oposta: constrói-se mais onde os preços já estão a subir — e os preços sobem onde há procura e rendimento, não betoneiras.

white painted concrete building

A notícia do Público e a narrativa dos especialistas contactados tratam-se, portanto, de uma infeliz inversão causal clássica — o erro que qualquer estudante de Estatística aprende a evitar. Mas, na academia mediática portuguesa, a lógica é facultativa: não importa demonstrar — basta narrar. Assim, quando a evidência concreta desmente a ideologia, torce-se a evidência. Os investigadores convocados pelo Público têm em comum uma obsessão moral: o capitalismo como mal absoluto, a habitação como campo de luta, o investidor como inimigo de classe. Falta-lhes o desconforto da dúvida e o exercício da refutação. Sobram-lhes certezas e epítetos.

A imprensa, por sua vez, mostra-se uma cúmplice voluntária: já não se questionam os pressupostos, apenas se amplificam os ecos. Esta cumplicidade académica-jornalística constitui uma das formas mais perniciosas de agenda setting: transformar a opinião militante em “facto verificado” e a hipótese especulativa em “evidência empírica”. O jornalismo abdica da crítica para se tornar extensão do discurso universitário dominante — aquele que confunde urbanismo com engenharia social. Quando os media reproduzem sem escrutínio a tese de que “aumentar a oferta não resolve o problema da habitação”, estão a fazer política, não ciência.

Há, porém, um dado inescapável: onde há mais crescimento populacional e económico, há simultaneamente mais construção e mais valorização. A correlação observada é o reflexo da procura, não da oferta. As regiões que atraem investimento e emprego — Porto, Lisboa, Madeira — são também as que têm preços mais altos. O fenómeno é o mesmo que leva o preço do trigo a subir quando há boas colheitas: se a procura cresce mais depressa do que a produção, o preço sobe. E não há decreto ideológico que o contrarie.

houses near sea

É nesta recusa da complexidade que o urbanismo académico se transforma em militância. Em vez de compreender as dinâmicas sociais e económicas, reduz tudo a moral política: há “especuladores”, “fundos”, “nómadas digitais”, “casas vazias”, “alojamento turístico”. Bodes expiatórios convenientes, que desviam a atenção do essencial: rendimentos estagnados, políticas fiscais erráticas e ausência de mobilidade laboral. O problema da habitação não está nas gruas; está na Economia e num país cada vez mais litoralizado, que não pode continuar a crescer apenas em torno da Grande Lisboa e do Grande Porto. Mas é mais fácil culpar o investidor do que discutir o Estado.

Nota-se cada vez mais uma estética do simplismo que domina a ciência social portuguesa: gráficos sem análise, conceitos inflacionados e uma fé quase teológica no Estado redentor. E há uma imprensa que, incapaz de escrutinar, cede ao conforto da unanimidade. O resultado é a colonização ideológica do espaço público — uma paródia de empirismo que legitima medidas contraproducentes, como a proibição de alojamentos turísticos ou a demonização da propriedade privada.

A ciência serve para descrever o mundo, não para o moralizar. A Economia serve para compreender o comportamento humano, não para o disciplinar. Quando investigadores abandonam o método para agradar à tribo, deixam de ser cientistas e tornam-se propagandistas. E quando jornalistas abdicam da dúvida para vender indignação, deixam de informar e passam a catequizar.

a row of houses by the water

A verdade é que o preço das casas sobe porque Portugal cresceu em procura, investimento e exposição internacional. Subiu porque a impressão desmesurada de massa monetária pelo Banco Central Europeu causou inflação e canalizou dinheiro para o tijolo, porque a confiança no euro e no crédito aumentou, e porque o Estado é lento a disponibilizar solo e a simplificar licenciamentos.

Seria sensato devolver o rigor à análise e o cepticismo ao jornalismo. O problema da habitação não se resolverá com indignações impressas nem com teses que confundem ideologia com evidência. E talvez fosse hora de os urbanistas descerem dos seminários e aprenderem a ler um gráfico antes de o usarem como bandeira. Até porque o debate público precisa de ciência, não de sermões — e de jornalistas que saibam distinguir entre um dado e uma doutrina.