É verdade que o Polígrafo sabe fazer verificação científica? Falso


Há muito que o Polígrafo deixou de ser um órgão de “verificação de factos” para se tornar um curioso laboratório de legitimação de financiadores. O projecto, que nasceu sob o pretexto da “verificação da verdade”, é hoje uma caricatura daquilo que pretendia denunciar: consolida-se como um veículo de desinformação institucionalizada, moldado aos patrocínios que lhe asseguram os lucros.

Se o maná da pandemia lhe trouxe os milhões — sim, já ultrapassou um milhão — do Facebook e, também, agora do TikTok, o Polígrafo virou-se para uma estratégia sui generis e despudorada: em poucos meses abriu três linhas de facturação explícitas — futebol (financiada pela Betclic), finanças (financiada pela Ordem dos Contabilistas Certificados) e cancro (financiada pela Fundação Champalimaud, desde Agosto). Não se conhecem montantes envolvidos nem condições.

O Polígrafo dá a mão a quem lhe dá dinheiro para fazer fact checking.

Se calhar houve mais parcerias que me passaram despercebidas — ou que o seu fundador, Fernando Esteves, se esqueceu de nos revelar. Não se conhecem valores, contratos nem condições editoriais. Conhece-se apenas o resultado: uma deriva editorial que substitui o espírito crítico pelo conformismo rentável.

Nada disto surpreende. O Polígrafo é um projecto torto, nascido do conceito de que a desinformação vem de fora — sobretudo das redes sociais —, quando, na verdade, radica na perda de credibilidade da imprensa e na sua incapacidade de convencer os leitores a usar informação fidedigna e produzir análises rigorosas sem enviesamentos. E fazer secções editoriais a pedido — ou seja, criar secções se houver patrocinador, como sucede num programa televisivo de domingo com o João Baião — é cavar ainda mais a sepultura da moribunda credibilidade jornalística.

E isto com a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) a fingir que nada vê. A ERC, aliás, tem sido cúmplice silenciosa desta perversão: permite, sem pestanejar, que se pratique um “jornalismo a pedido” — não de cidadãos, mas de quem paga. A verificação de factos tornou-se, assim, um serviço de consultoria disfarçado de jornalismo.

Qual a razão para o Polígrafo se dedicar ao futebol agora com afinco? Porque uma empresa de apostas de Malta, a Betclic, lhe começou a pagar para escrever especificamente sobre futebol – e não sobre outros temas quaisquer.

O caso mais revelador desta promiscuidade é a secção Vital — o portal do cancro, financiada pela Fundação Champalimaud —, que tanto surge em site autónomo, com textos não assinados, como no próprio Polígrafo, assinados por jornalistas. Só isso já choca, porque, obviamente, o Polígrafo analisa questões relacionadas com o cancro porque há uma entidade que trabalha nessa área que lhe paga. Se um dia houver uma congregação que lhe mande fazer fact-checking sobre enchidos, aparecerão textos, tal como sucede no futebol e nas finanças.

Enfim, sempre se poderá defender que o tema das doenças oncológicas — onde subsistem muitos mitos e desinformação — é bastante relevante e que, enfim, até justifica que a imprensa possa contribuir para melhorar a informação.

Porém, o Polígrafo, mais uma vez — e com a chancela da Fundação Champalimaud e a pena de jornalistas inexperientes —, aventura-se por terrenos científicos com a ligeireza de quem nunca abriu um artigo numa revista científica, pretendendo combater a desinformação em saúde com um amontoado de simplificações, erros conceptuais e juízos dogmáticos que ofendem a inteligência de quem conhece minimamente o método científico.

Escrever sobre cancros: o espaço alargou-se no Polígrafo por uma só razão: a Fundação Champallimaud paga.

Tomemos o exemplo recente de um artigo sobre a vitamina D, que o Polígrafo classificou como “FALSO”. Segundo a peça, um “alegado médico e escritor de livros de auto-ajuda” teria dito, numa entrevista, que a vitamina D funcionava como uma “vacina para o cancro”. O Polígrafo decidiu pegar na frase — isolada, sem citar o nome do autor nem o contexto — e analisá-la literalmente. Ora, esse é o primeiro erro científico: confundir linguagem metafórica com proposição factual. Quando alguém diz que a vitamina D é “como uma vacina”, a comparação não é imunológica, é simbólica — remete para o potencial preventivo ou terapêutico, não para um mecanismo biológico idêntico ao das vacinas contra bactérias ou vírus.

O segundo erro é mais grave: o Polígrafo ignora a complexidade epistemológica da ciência biomédica e submete o raciocínio ao mesmo esquema binário com que decide se um político mentiu sobre o preço do gasóleo. Em ciência, a dicotomia “verdadeiro/falso” é um disparate. A investigação opera sobre probabilidades, evidências parciais, correlações, hipóteses e margens de erro. Nenhum investigador sério, nem na Fundação Champalimaud, nem em Harvard, classificaria, por regra, um enunciado científico com um carimbo de “FALSO” — porque o conhecimento científico é, por definição, provisório e refutável.

Curiosamente, no caso em apreço, o próprio Polígrafo, ao tentar justificar o seu veredicto, cita estudos que desmontam a sua própria sentença. Refere o ensaio clínico VITAL, publicado no New England Journal of Medicine em 2019, que concluiu que a suplementação de vitamina D não reduziu significativamente a incidência de cancro, mas revelou uma tendência favorável para menor mortalidade em quem já estava diagnosticado. Em português corrente: a vitamina D não previne o aparecimento da doença, mas pode ajudar quem já a tem. Acrescenta ainda uma meta-análise que confirmou o mesmo padrão: ausência de efeito preventivo, mas sinal positivo na sobrevivência.

Analise-se a qualidade da análise do Polígrafo em fact checking de ciência feita por uma jornalista ‘junior’ formada em Comunicação Social.

Ou seja, a própria evidência que o Polígrafo cita demonstra que o enunciado não é “falso” — é, na melhor das hipóteses, não comprovado em termos preventivos e parcialmente corroborado em termos de prognóstico. O jornalismo científico, se o fosse, deveria dizer isto. Mas o Polígrafo prefere a sentença categórica. É mais vistosa. E, sobretudo, mais conveniente para um patrocinador que, ironicamente, é uma fundação ligada à investigação oncológica e que dificilmente apreciaria um artigo a sugerir que a vitamina D possa ter efeitos benéficos que a sua própria instituição ainda não estudou.

Esta ironia é amarga: um projecto financiado pela Fundação Champalimaud escreve artigos de fact-checking que impõem certezas onde a ciência admite dúvidas. Por isso, é o contrário da investigação científica: é a dogmatização do provável.

Em ciência, não se trabalha com selos de “verdadeiro” ou “falso”. Trabalha-se com níveis de evidência: plausível, não comprovado, consistente, em revisão, refutado. Quando um estudo sugere associação, outro contesta e um terceiro encontra efeito apenas num subgrupo, o papel do comunicador científico é explicar essa incerteza, não abafar a discussão. A missão do jornalista na área da ciência não é decretar sentenças, é iluminar zonas de dúvida.

O Polígrafo, porém, transforma o conhecimento em moral, a nuance em pecado e o método científico em catecismo. Usa a retórica da ciência para impor uma autoridade dogmática — e fá-lo em nome da luta contra a “desinformação”. Eis um paradoxo digno de figurar num manual de epistemologia: o verificador que desinforma ao simplificar.

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Secções do Polígrafo crescem em função do patrocínio. Os temas editoriais em função de critérios financeiros: a antítese do jornalismo.

A culpa, contudo, não é apenas do Polígrafo: é de um ecossistema mediático e regulatório que permite esta farsa. A ERC, que devia garantir a independência editorial, assiste calada enquanto órgãos de comunicação social se financiam por rubricas temáticas pagas por entidades com interesse directo na narrativa. Até porque secções patrocinadas estão a invadir as redacções e a infeccionar o jornalismo. Já não surpreende se houver laboratórios farmacêuticos a pagar aos jornais para decidir o que é “falso” ou “verdadeiro” em farmacologia. A independência morre, o jornalismo prostitui-se e a verdade torna-se um produto com recibo verde.

Este caso da vitamina D é apenas um exemplo. Amanhã será outro. O Polígrafo, e outros, já abriram a porta. No fundo, aquilo que este episódio revela é um fenómeno mais vasto: a transformação da verificação de factos num mercado de opiniões sancionadas. A verdade já não é investigada; é subcontratada. O Polígrafo é o sintoma perfeito de uma era em que o jornalismo prefere agradar a quem paga — e está intimamente ligado aos temas tratados — do que enfrentar a complexidade do real. Até porque nunca se assumem quais os valores envolvidos.

O verdadeiro jornalista, como o verdadeiro cientista, sabe que a dúvida é a forma mais elevada de honestidade. O Polígrafo, infelizmente, parece ter optado pela certeza remunerada.