Há quem confunda divulgar ciência com a missão de nos salvar de nós próprios. Quando isso acontece, o rigor cede à retórica e o discurso científico transforma-se em catequese pública. O recente ensaio de David Marçal no Público, intitulado “Beber vinho é dar cancro a muitos portugueses”, é exemplo cristalino dessa deriva: uma peça em que o pânico se sobrepõe à ponderação, e a convicção ideológica suplanta a nuance científica.
O título, digno de uma campanha de abstinência radical, revela o propósito: substituir a dúvida metódica pelo susto pedagógico. É a velha pedagogia do medo aplicada ao copo de vinho, de que Marçal foi um apologista durante a pandemia da covid-19 — afinal, não é defeito; é feitio. Marçal, que tem cultivado um estilo de comunicação científica centrado na dramatização — como se o público só aprendesse quando levado ao sobressalto —, parece ter esquecido que o papel do divulgador é informar, não alarmar.

Ao colocar o vinho ao mesmo nível do uísque ou da vodka, o autor ignora diferenças fundamentais de composição, concentração alcoólica, modo de consumo e efeitos metabólicos. É uma equiparação cientificamente falha e conceptualmente grosseira. Além disso, vai buscar uma análise, ainda por cima, nem muito recente, esquecendo de fazer uma abordagem mais holística.
O vinho é uma bebida fermentada, integrada numa matriz alimentar e cultural; os destilados são concentrados etílicos, de ingestão rápida e efeito tóxico superior. Misturar tudo em nome da “mensagem de saúde pública” é um erro metodológico — e, sobretudo, uma forma de transformar complexidade científica em moral simplificada.
O ensaio de Marçal recorre ainda à classificação da Agência Internacional para a Investigação em Cancro (IARC) de forma equívoca. A categoria de “carcinogénio de grupo 1” não significa que uma substância seja igualmente perigosa em qualquer dose — apenas que há evidência de associação causal. A luz solar pertence à mesma categoria, e ninguém propõe o encerramento das praias.

A diferença entre informação e alarmismo é a mesma que separa ciência de propaganda. Uma análise séria exige escala e contexto. O relatório mais recente e abrangente sobre o tema — a Review of Evidence on Alcohol and Health (National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine, 2025) — conclui que o consumo moderado de álcool está associado a menor mortalidade global (redução média de 16%), e a menor mortalidade cardiovascular (redução de 18 a 22%, consoante o estudo).
Quanto ao cancro, as evidências são modestas: um ligeiro aumento de risco de cancro da mama (cerca de 10%), mas nenhuma associação consistente com outros tumores em padrões moderados de consumo.
Estes dados, provenientes da mais prestigiada instituição científica norte-americana, mostram que a relação entre álcool e saúde é de gradação, não de absolutos. O risco existe, sim, mas não legitima a retórica do interdito. Estudos têm revelado que o vinho tinto, consumido moderadamente, está associado a menor mortalidade e a melhor saúde cardiovascular mesmo em doentes cardíacos.

A tradição mediterrânica — que integra o vinho nas refeições, em quantidades contidas e socialmente mediadas — tem sido reconhecida pela Organização Mundial da Saúde como modelo de longevidade e equilíbrio nutricional. Ignorar essa evidência para alinhar o vinho com o tabaco é uma forma de revisionismo biológico, em que a história cultural é varrida em nome de uma moral higienista.
A comunicação científica, quando se entrega ao moralismo, deixa de esclarecer e passa a punir. O divulgador que fala em nome da ciência deve distinguir o risco individual do fenómeno populacional, a estatística do dogma. E por isso, quando o discurso se torna sermão, como sucede com David Marçal, a ciência perde a sua razão de ser: a dúvida crítica.
É legítimo alertar para os perigos do consumo excessivo de álcool; é irresponsável transformar esse alerta em catecismo de abstinência. O público merece ser tratado como adulto — capaz de compreender que entre o copo diário e a garrafa diária há um mundo de diferença.

A ciência não é abstinente, é prudente. O vinho não é uma substância maligna, mas uma expressão de cultura e de sociabilidade. E se há algo verdadeiramente cancerígeno no debate público, é o medo travestido de ciência — esse que, de tanto se repetir, começa a corroer o pensamento crítico.
Em última análise, o que deve ser combatido não é o vinho, mas o discurso alarmista e sensacionalista do David Marçal, que reduz a complexidade da evidência científica a slogans de indignação. Beber vinho não é dar cancro — é, quando sensatamente praticado, uma expressão de cultura, de convivência e de equilíbrio. É isso que a ciência, quando é fiel a si própria, continua a demonstrar. E a vida.