Credo!
Não exagero quando vos digo que, naquela noite, senti a proximidade do Cão. Não dele, propriamente, mas de um agregado seu, talvez um afilhado. Teria o Senhor da Escuridão mandado até nós como seu embaixador aquela figura pouca?
Admito que me arranharam os costados umas várias tremuras de pavor.
Ao fim daquela impressionante algaravia, decidi retomar o meu costumeiro eu. Enquadrei os ombros, passei a mão pela cara, como se ajeitando as feições, e levantei-me. Suspirei devagar e fundo, a fim de permitir que a brabeza, vinda do centro da Terra, entrasse em mim, após atravessar a sola reforçada de minhas botinas. Quando me pus em pé já estava armado de fúria. Pouco me importava que ele tivesse vínculos com o Tinhoso.

Estamos no mundo real e eu sou um servidor da Lei e da Justiça, pensei.
Decidi verificar se aquilo que estava diante de meus olhos, molambo que não era nem homem nem bicho, como ele próprio admitira, mas que sabia perorar com esperteza, possuía mesmo lombo reforçado, como alardeara orgulhoso.
Chegamos, então, à mais dolorosa das estações dessa nossa sacrílega via sacra, a sexta. Não perca a conta, Excelência! A sexta!
Trabalhar vagabundo é arte que exige malícia e determinação, Excelência.
Pelo diálogo na Sala do Comando e pela confissão que acabara de escutar, eu havia detectado que o chaguento era mais que um simples matreiro: possuía adestramento na arte de apresentar-se como um toleirão zombeteiro.
Saiba, Excelência, que todo campesino esperto é dessa mesma composição, mas aquele era fora da série, um raro exemplar polido por pó de tijolo.
Bem. Tem profissional que acha que se deve ir logo para a apelação à ignorância. Já eu começo pela beirada. Uma distraída pisada num pé. Um beliscão quase amistoso. É só para desorientar o indivíduo, que está esperando pancadaria brutal. O trabalho deve seguir num crescente.

Se ganha de cara um murro, a vítima já sabe que dali para diante a humilhação vai diminuir. Bofetada só se emprega para esculachar meliante aprendiz ou inofensivo.
Levantei-me, apanhei um banquinho que mantenho naquela cela para uma finalidade específica e me encaminhei até o bandidaço, genuflexo e ainda de mãos amarradas atrás.
Ordenei então a ele que se acomodasse no banquinho, que se colocasse bem à vontade. Até brinquei.
– Tome assento, cabeça de vento!
Ressabiado, pressentindo maus bocados, ele se sentou devagar e cuidadosamente.
Ato contínuo, principiei a sessão pela orelha.
Ao lado dele, segurei-lhe o tampo da cabeça com uma mão e, com a outra, eu lhe grampeei o ouvido. Foi como se alguém, mal comparando, um gigante, tivesse agarrado a porta aberta de uma casa. De repente, dei um forte puxão. Eu era o gigante arrancando a porta do seu marco.
O sujeito assombrou-se. Deve ter pensado: se o homem começa desse modo é porque vai me destruir a fachada.
Deixei que se recuperasse um pouco enquanto esperava pelo próximo ataque. Onde será?
Você se retarda. Deixa o indigitado aguardando. Aí, acaba fazendo o que ele de certo modo já esperava: ataca-lhe a outra orelha. Porém, num movimento contrário. Premiei-o com uma tapona de fora para dentro, de modo que ele teve a clara impressão de que a cartilagem ia penetrar-lhe pela lateral do crânio.
Sabendo explorar, orelha rende bem.
– Já estás me ouvindo melhor, minha flor?

Nem era uma pergunta a valer, era mais uma informação à besta: que se preparasse para ser cozinhada em fogo baixo.
Ele então me encarou pela primeira vez. Foi por fração de segundo, mas consegui perceber pelo risinho que escorria dos olhos dele que, interiormente, o danado já comemorava minha derrota.
Por entre os dentes cerrados, caçoou.
– Será dessa maneira que o coronel pensa me fazer recitar a tabuada?
Sou um trabalhador controlado que raramente perde as estribeiras. Por isso, fervi sem soltar vapor e até motejei.
– Erraste, burro. Vou te ensinar astrologia. Verás estrelas.
Admito que não devia ter fornecido tanta trela a ele, porque prisioneiro gosta de ouvir a voz de quem lhe aplica a correção. O raciocínio é simples: esse aí tem boca e fala, portanto, é humano.
O verdugo deve ser mudo.
Chegou-me então uma ideia estranha. Encostei minha botina esquerda no nascedouro das costas dele e com as duas mãos agarrei a ponta da corda que lhe amarrava os punhos. Puxei-a para mim e para o alto, mas devagarzinho, testando a resistência da ossamenta dele.
Botei muita força, me creia. Fui até ouvir uns estalidos de graveto seco. Parei antes de alcançar o ponto de ruptura. Julguei para mim que o indivíduo tinha ossos de borracha. Mas não lhe dei repouso.
– Vou aumentar a pressão nas caldeiras. Ministrarei ao estimado companheiro um medicamento indicado para febre alta.
Destaquei do cinto a bainha do facão.
– Pode berrar à vontade. Não se acanhe. Dependendo da sonoridade, seu choro será educativo. Sinalizará à bicharada da Jaula Grande como a Justiça trata malfeitores que se deixam apanhar em flagrante.

De bainha em punho, eu me postei um pouco para trás do vadio, mas num ângulo bom para que ele pudesse me capturar pelo ladinho do olho. Num movimento muito vagaroso, levei a mão direita para o bem alto, muito acima da minha cabeça, alargando a extensão toda do braço. Dei um tempo para que ele me admirasse a postura. Só então comecei a contagem.
– Um!
Quando o meu braço se veio abaixo, eu, no meio do movimento, desmunhequei. Então, em vez de encontrar o alto do cocuruto, a bainha se acomodou na lateral do pescoço da personagem.
Saltou faísca!
Se eu batesse na cabeça, ele teria o resguardo da caixa craniana. Já o gasganete não tem amortecimento de gordura ou osso. É pura pelanca. Deve ter doído uma enormidade, mas ele nem mugiu. Não nego que fiquei meio desacorçoado.
Aí, acintosamente, eu me plantei diante dele. Abri o braço para o lado, de modo que ele pudesse, depois, captar a aproximação do improvisado açoite. Eu queria acertá-lo no cume do nariz, mais precisamente no intervalo entre os olhos. Foi o que fiz com bom aproveitamento.
– Dois!
O golpe propriamente não deve ter doído tanto, mas o infrator se sobressaltou bastante. Afinal, o olho é dos nossos organismos o mais precioso. O que valeu, enfim, foi a surpresa ruim: o couro duro aparecendo de supetão, rente às órbitas, anunciando cegueira.
Quando inteirei a primeira dúzia de lapadas, distribuídas por muitas superfícies, percebi que a faxina não estava rendendo. Naquela noite eu não me encontrava inspirado. Em busca de aconselhamento, fui ao pátio consultar o grande disco de prata.
Lá fora, comecei botando em dia a respiração. Minutos depois, de chofre, enquanto distraído fitava o círculo que cintilava no firmamento, uma sugestão de origem transcendente penetrou-me no âmago da alma. Apanhei balde, atopetei de água e voltei ao prédio.

Sem palavreado, verti o precioso líquido sobre o custodiado, atentando para que os lados todos recebessem rega por igual. Diante daquela ducha fora de horário e em sítio inadequado, o sujeito alvorotou-se. Notei o corpo se encolhendo e a cabeça questionando: o que será que me vem pela frente?
Molhado, o ser humano perde a atitude. Vira pintinho. Isso em se tratando de pensamento. Mas o mais importante se dá ao nível da epiderme, que fica mais sensibilizada.
– Treze!
Dei começo à fase molhada, limitando-me ao comezinho: a lambada corriqueira, sem muito método ou ciência. Eu, porém, nunca executo como os demais representantes da Lei. Não! É uma questão muito minha. Tenho a tentação de ser diverso e variante. Era um açoite no ombro direito, outro na paleta esquerda. O seguinte na base do crânio, de atravessado. Um na polpa da bunda. Outro, bem sonoro, no alto da coxa, de jeito que a bainha se transformasse em cobra e ameaçasse morder a virilha do condenado. Parei duas vezes para enxugar o suor da testa.
– Quarenta e dois!
Na última dessas paradas cheguei a agachar-me para analisar a fuça dele, que permanecia abaixada. Era a mesma, inexpressiva, de antes do suplício.
Resumindo: parei de numerar em voz alta as pancadas ao inteirar meio cento.
O porquê da contagem? É o efeito que ela causa no espírito de quem sofre a flagelação. O padecente imagina, penso eu, que o carrasco vai contar até o infinito. Acaba sofrendo tanto pelos golpes quanto pela enumeração.

Bater é maquinal. Pode parecer exagero, mas aquele que fustiga se transforma em máquina acionada pelo seu próprio movimento. Motor perpétuo, como se diz.
Não, Excelência, ele não soltou nome nenhum. Nem mesmo um suspiro exalou. Os recolhidos à Jaula Grande não ouviram nada além da estridência das lambadas. O sentenciado recebeu a coça sem dar resposta visível e retardou-se para amolecer.
– Cinquenta!
Foi só quando eu, consumido, resfolegava como cavalo após corrida forte que ele arriou. Aluiu de frente. Como uma casa arrastada pelas águas de um rio furioso depois que o barranco em que ela se assentava foi lambido pela inundação.
Deitado no chão sujo, ele ficou sendo mesmo o que aparentava ser. Um traste. Aproveitei para encerrar com chave de prata, mas ele não acusou o pontapé que lhe mandei à junção das virilhas.
Lourenço Cazarré é escritor
Publicado originalmente no livro O soldado amarelo.