Salvar a revista Visão? Não, obrigado! – e muito menos obrigado


Há um limite para tudo — até para a mistificação. O apelo na rede social X de Pedro Coelho — um reconhecido jornalista da SIC e com especiais responsabilidades na formação de futuros jornalistas (é professor da Universidade Nova de Lisboa – a que o Estado e os credores públicos “criem condições” para salvar a revista Visão, é um desses momentos em que o absurdo ultrapassa a fronteira do aceitável.

Lamenta ele que “não alertámos a tempo para a crise da Visão e da TIN [Trust in News]” – abusando da primeira pessoa do plural –, mas anuncia que para “salvar” um título jornalístico há por aí “um grupo de jornalistas corajosos” que “precisam de nós” — mas o que realmente propõe é que se varra para debaixo do tapete uma gestão ruinosa que custou, no mínimo, 15 milhões de euros ao erário público. Em suma, propõe um perdão moral e financeiro a quem conduziu a TIN ao colapso, e uma indemnização indireta à irresponsabilidade. É o mais torpe apelo que um jornalista pode fazer.

Quando um profissional da comunicação, pertencente a um grupo mediático (Impresa) que se libertou em 2018, através de esquemas com o Novo Banco, de um ‘cancro financeiro’ – transmitindo-o a Luís Delgado que investiu 10 mil euros para sacar cerca de 350 mil euros em salários para si logo nos dois primeiros anos –, pede que o Estado e os contribuintes reparem os desmandos privados, abdica do seu papel mais elementar: o de fiscal do poder e guardião da ética.

A Visão (e as outras revistas) não caem por um acaso, um azar, ou pela conjectura, ou pela desinformação. Caíram porque a TIN foi gerida com leviandade, sem escrutínio interno, e com uma conivência quase eclesiástica entre jornalistas que se julgavam imunes às leis da economia e da decência. Enquanto os jornalistas da Visão recebiam salários, somavam-se dívidas ao Estado e à Segurança Social, acumulavam-se calotes a fornecedores e mascarava-se tudo mentindo e omitindo à ERC e fazendo contabilidade criativa.

E a qualidade jornalística decaía, reflectindo-se na perda de leitores: em 2017, a revista Visão ainda chegou a vender quase 61 mil exemplares por semana e tinha seis mil assinaturas digitais. No último trimestre de 2023 — última vez que houve auditoria da APCT —, a Visão já só vendia 20.047 exemplares em banca por semana e tinha apenas 3.169 assinaturas digitais. Hoje, não havendo sequer números oficiais, apontam-se para menos de 10 mil exemplares.

Post de Pedro Coelho a apelar para que os “credores públicos” criem condições para salvar uma empresa que ainda nem sequer apresentou contas no ano passado e terá uma dívida ao Estado de mais de 15 milhões de euros e um passivo superior a 30 milhões de euros, tudo sob a gestão de uma empresa criada com um capital social de 10 mil euros.

Perante isto, dizer agora que há um grupo de “jornalistas corajosos” prontos a “assumirem o barco” é de uma ironia cruel. Onde estavam esses heróis quando o casco começou a meter água, ainda no tempo da Impresa? Onde estavam quando a TIN acumulava dívidas e escondia balanços? O PÁGINA UM alertou, documentou e publicou uma extensa investigação, a partir de Julho de 2023 (p. ex., aqui, aqui e aqui), aquilo que todos os outros não queriam sequer ver. E fomos ignorados ou mesmo insultados – aliás, a postura corporativista da imprensa é um dos piores males do nosso jornalismo.

Chamaram até “fantasiosas” às notícias do PÁGINA UM que, linha por linha, antecipavam a derrocada inevitável. A própria então directora e publisher da Visão durante anos, Mafalda Anjos, escreveu em carta formal ao PÃGINA UM que não se pronunciava sobre “artigos fantasiosos que versam as contas da TIN”. Mas a sua maior preocupação nesse e-mail estava no facto de usaremos fotografias dela que constavam das suas redes sociais. Hoje, a mesma Mafalda Anjos, desmentida pelos factos, tenta reescrever a história nas redes sociais, como se o descalabro da TIN fosse um relâmpago vindo do nada.

Não é, pois, de coragem que se trata quando se quer “salvar” a Visão – e o mesmo sucede com o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias –, mas de oportunismo. Há uma diferença abissal entre quem luta para criar um projecto sustentável e quem pede indulgência pública para manter um título. Se os jornalistas da Visão acreditam que existe mercado para o seu trabalho, façam o que qualquer profissional decente faz: criem uma nova revista, registada na ERC, com outro título, outro modelo e contas limpas. Tão simples como isto.

O PÁGINA UM publicou a primeira notícia sobre a situação financeira da Trust in News em 24 de Julho de 2023, há mais de 26 meses. Mafalda Anjos, sorridente ao lado de António Costa, apelidaria então de “fantasiosas” as notícias sobre esta matéria.

Aliás, a TIN tinha um capital social de apenas 10 mil euros, não é muito: é o mesmo valor do PÁGINA UM. Não precisam de milagres nem de perdões fiscais — precisam de ética, investimento privado e responsabilidade. Uma Empresa na Hora basta – e podem começar a nova revista na próxima semana com essa estrutura e o conhecimento desse “grupo de jornalistas corajosos”. O resto é vitimização.

Bem sei que esta súbita onda de solidariedade não é inocente. É uma tentativa de limpeza simbólica, de apagar os rastos de uma gestão calamitosa que muitos preferiram ignorar enquanto o dinheiro público e privado era esbanjado. Luís Delgado não cavou o buraco sozinho: contou com o silêncio cúmplice de quem, dentro das redacções, fingia que a crise não existia. Contou com a inércia da ERC, que tudo permitiu, e com a cegueira de uma classe jornalística que só reage quando sente o frio do abismo.

A insolvência da TIN – e por arrasto o fim de muitos títulos – é um acto de justiça económica e moral. Não significa o fim do jornalismo, nem a morte da revista Visão enquanto conceito — apenas o encerramento de um ciclo de impunidade. O jornalismo que merece ser salvo é aquele que se sustenta na verdade, não o que se alimenta de subsídios e de nostalgia. Se o Estado se põe agora a “salvar” empresas privadas falidas só porque são do sector da imprensa, estará, além de minar a independência necessária em democracia, a consagrar o princípio de que a irresponsabilidade é um direito adquirido. E isso seria o golpe final na credibilidade do sector.

Mafalda Anjos escreveu em 26 de Julho de 2023 ao PÁGINA UM, de forma voluntária, dizendo que não se pronunciava sobre “artigos fantasiosos que versam contas da TIN”. Apontava depois o erro de não se publisher desde finais de 2022 e de não ter responsabilidades de gestão financeira na Visão. Convém referir que a Lei da Imprensa concede o direito de um director ser informado da situação financeira em detalhe do órgão de comunicação social que dirige.

Não querendo ser moralista, tenho mesmo de defender que está na hora de moralizar o campo mediático. Não desejo o desemprego de ninguém, mas também não aceito que se confunda solidariedade com complacência. A regeneração do jornalismo português passa por enterrar os ‘cadáveres corporativos’ que há demasiado tempo poluem a profissão. É preciso criar novos projectos, independentes e transparentes, que não se escondam atrás de marcas antigas. O cemitério da imprensa está cheio de títulos ilustres — e nenhum ressuscitou pela vontade piedosa do Estado. A Visão é apenas um nome. O que deve importar é a lucidez, a honestidade e a coragem de enfrentar a realidade.

A morte da Visão — enquanto símbolo de um modelo falido — é um acto de higiene estrutural. Que sirva de exemplo. O bom jornalismo não se faz de esmolas do Estado, nem de piedade dos contribuintes. Faz-se de verdade e de carácter. Faz-se até os leitores decidirem – e tem sido essa a máxima do PÁGINA UM: somos aquilo que os leitores querem que sejamos. E se hoje ainda fazemos um jornalismo de nicho, porque ainda escasseia um número suficiente de apoiantes, a solução mais cordata não parece ser endividarmo-nos até ao tutano, aguardando pela salvação do Estado.

P.S. Num comentário na rede social X, Mafalda Anjos continua a viver na sua bolha e acusa-me de “teorias da conspiração” e que escrevo aquilo que escrevo porque “tenho de fazer pela vida”. Mafalda Anjos pensa que ainda vive nos seus gloriosos tempos da pandemia, onde tiradas e rótulo serviam como argumento. Ao contrário de Mafalda Anjos, eu não fui director da Visão e não fugi do ‘barco’ quando estava a afundar e ainda tentei sacar 54 mil euros de indemnização (que acabou por não ser pago, porque o karma é tramado e Luís Delgado deu-lhe também um calote).

Mafalda Anjos; quando uma jornalista tenta reescrever a História (neste caso, o contexto do termo fantasiosos; e da situação grave da TIN em 2023 que “já estavam documentadas”, usando ainda argumentos primários dos tempos da pandemia (teorias das conspiração e ‘tens de fazer pela vida’, que ela bem sou usar), só tem futuro no Jornalismo por empenhos e conhecimentos pessoais. Mas a sua manutenção na classe agrava a seriedade e credibilidade do jornalismo.

E mais: ao contrário da Mafalda Anjos, eu não tenho uma agenda recheada de contactos públicos e privados para, depois do descalabro na Visão, encontrar uma boia de salvação profissional na CNN Portugal (cuja informação é maioritariamente opinião de bitates) e na sempre generosa RTP/RDP. No dia em que a qualidade e a seriedade fossem critérios no jornalismo lusitano, Mafalda Anjos teria de encontrar refúgio apenas numa empresa de marketing e comunicação empresarial a vender marcas e narrativas – nisso, admito, ela tem um imenso jeito e uma esbelta cara de pau.