O Nobel da Paz, a família política de María Corina e o anti-trumpismo primário


Há fenómenos mediáticos que revelam menos sobre o assunto em si e mais sobre quem os comenta. A atribuição do Prémio Nobel da Paz a María Corina Machado foi, em Portugal, um desses casos: em vez de se analisar o que significa distinguir uma opositora que, independentemente do contexto político, desafia um regime autoritário e clientelar, preferiu-se brincar aos espelhos ideológicos. Como se viu no Expresso, com David Dinis a traçar um enviesamento narrativo de contornos propagandísticos, o reflexo de Trump na Sala Oval parece ter sido mais importante do que o espelho partido da Venezuela.

As manchetes e colunas que por cá se escreveram, entre a satisfação e a ironia, pareciam celebrar menos o reconhecimento de uma mulher corajosa e mais a “derrota simbólica” do presidente norte-americano — esse homem de ego oceânico, que até já anunciou sonhar com o Nobel da Paz tanto como uma miss qualquer ambiciona a faixa de Miss Universo.

María Corina Machado

Ainda mais porque, ou me engano muito, ele acabará por recebê-lo num dos próximos anos, excepto se houver um qualquer percalço ou fatalidade. Não por mérito moral, mas por inevitabilidade histórica: Trump é o sintoma de uma América que ainda se crê o centro do mundo – e é-o do ponto de vista militar e estratégico –, e é provável que, um dia, para saciar essa mesma crença, o Comité de Oslo ceda e lhe estenda a medalha — talvez não pela guerra, mas por algum acordo improvável, seja no Médio Oriente, seja num tratado de desanuviamento algures entre Jerusalém e o Cáucaso, ainda que ele confunda a Arménia com a Albânia, como sucedeu recentemente.

O mundo não acabará por isso. Já o Nobel sobreviveu a Kissinger — arquitecto da duplicidade vietnamita — e a Obama — laureado antes mesmo de decidir quais as guerras que iria iniciar. Por que não Trump? Se a paz já serviu para premiar generais e estrategas, não há escândalo que um vendedor de ilusões o conquiste por conveniência e vaidade. Antes isso do que guerras…

Mas o que, nesse momento, mais me espanta não é o destino provável de Trump; é a leitura enviesada que a imprensa portuguesa faz do presente. O prémio a María Corina Machado foi descrito como a personificação da “esperança de um futuro diferente, onde os direitos fundamentais dos cidadãos são protegidos e as suas vozes são ouvidas”, em contraponto ao que, por exemplo, David Dinis tem a ousadia de comparar: as supostas autocracias de Maduro e Trump — o que, convenhamos, se mostra ridículo mesmo para um opositor arreigado do trumpismo.

Donald Trump

No meio disto é curioso notar o malabarismo (ou cegueira) dos comentadores sobre a postura de María Corina Machado, até do ponto de vista ideológico. Com efeito, ao invés de ser uma adversária de Trump, a nova laureada da Paz é uma indefectível apoiante do presidente norte-americano. Chamou-o de “visionário” e “corajoso” pela sua política face a Maduro — e não haja dúvidas de que vê numa Administração republicana um aliado mais natural do que teria numa Administração democrata.

A ignorância e o enviesamento na leitura da premiação acabam por ser caricatos, porque idolatraram quem simboliza o pragmatismo trumpista: uma mulher que defende privatizações “massivas” — incluindo a da PDVSA, a petrolífera estatal venezuelana — e que chegou a admitir a presença de forças militares estrangeiras para derrubar o regime. Na verdade, na Venezuela, María Corina é vista como uma liberal radical — e em certa medida, mostra essa postura. Na esquerda latino-americana é tida como de “extrema-direita”; no Brasil, uma “amiga da extrema-direita bolsonarista”.

Em concreto — e aí não há como negar —, a nova Prémio Nobel da Paz tem uma família ideológica: é uma das subscritoras da Carta de Madrid, manifesto lançado em 2020 pela fundação Disenso, ligada ao partido espanhol VOX, e que congregou uma constelação de figuras da direita liberal e conservadora mundial — e que muita imprensa cataloga de extrema-direita: de Giorgia Meloni a Eduardo Bolsonaro, de Santiago Abascal a José Antonio Kast, de Javier Milei e a dezenas de dirigentes de direita da oposição venezuelana. O documento, redigido em tom de cruzada, denuncia o “avanço do comunismo” e o “sequestro da região por regimes totalitários” patrocinados por Cuba, pelo Foro de São Paulo e pelo Grupo de Puebla, defendendo a propriedade privada, o Estado de direito e a liberdade de expressão como baluartes civilizacionais.

person driving car during daytime

Contextualmente, a adesão de Machado a essa plataforma — que não foi isolada, pois conta com mais de trinta opositores venezuelanos — insere-se num movimento transnacional de resistência conservadora ao populismo de esquerda latino-americano, mas também serve, ironicamente, de espelho ao próprio discurso do Nobel, que, sob o pretexto da defesa da democracia, reedita uma batalha ideológica simétrica, em que cada campo acusa o outro de autoritarismo enquanto instrumentaliza a linguagem da liberdade. Não surpreende, assim, que, em Portugal, o Chega tenha saudado María Corina Machado, sublinhando tratar-se de “um triunfo da liberdade contra o socialismo”.

De qualquer modo, a cartografia de rótulos — incluindo o anti-trumpismo primário, que consegue fazer esquecer tudo o resto — revela um problema maior: o debate político global transformou-se numa disputa de caricaturas. Já não se discutem ideias, apenas se escolhem lados. A imprensa — e a portuguesa em particular — tornou-se um eco de trincheira: o que interessa é saber se o vencedor do Nobel “ajuda” ou “derrota” Trump, não se a Venezuela poderá um dia voltar a respirar democracia.

Pessoalmente, não tenho idolatrias nem certezas morais sobre María Corina Machado. Não a vejo como uma Madre Teresa de Calcutá — até porque a política, ao contrário da santidade, exige manobras e compromissos —, mas reconheço nela uma mulher que, com todos os defeitos e excessos, enfrenta um regime corrupto e violento que destruiu o seu país. A sua ideologia é discutível; a sua coragem actual, inegável — e, por agora, pragmaticamente, isso é o mais relevante.

María Corina Machado foi uma das signatárias da Carta de Madrid, promovida pelo Vox (Espanha).

Em todo o caso, mostra-se perturbante ver como se cola ou descola rótulos em função das circunstâncias ou conveniências, endeusando ou diabolizando não em função de acções, mas de utilidades momentâneas. Num mundo polarizado, a lucidez é cada vez mais rara. E hoje há um fascínio mórbido por reduzir pessoas a emblemas e causas a slogans. O verdadeiro debate político — o que deveria discutir a liberdade, a justiça e o equilíbrio entre soberania e direitos — foi substituído por um jogo de espelhos morais: o inimigo do meu inimigo é meu herói, até segunda ordem.

Para mim, María Corina Machado é uma mulher de direita sem disfarces – e isso pode não me agradar –, mas também é o rosto da resistência a um regime que persegue, censura e mata. E se há um mérito no Nobel que recebeu, é o de lembrar que a coragem política ainda existe — mesmo quando vem embrulhada em ideias que não partilhamos. Qualquer outra extrapolação, nesta fase, é mero exibicionismo ideológico. Por isso, o Prémio Nobel da Paz parece-me mais relevante pelo que pode representar para o futuro da Venezuela, mas nada tem de punição contra Trump – pelo contrário.